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OS DEGREDADOS DO VALE DE LÁGRIMAS: AS PRÁTICAS PUNITIVAS DE DEGREDO NO BRASIL (1640-1700) Ricardo George Souza Santana

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OS DEGREDADOS DO VALE DE LÁGRIMAS:

AS PRÁTICAS PUNITIVAS DE DEGREDO NO BRASIL (1640-1700)

Ricardo George Souza Santana

*

Resumo: O estudo do degredo tem recebido atenção nos últimos anos e suscitado importantes trabalhos que remontam a boa parte da história de Portugal, principalmente no período da Inquisição, época em que a pena de expatriação de sujeitos insubordinados, ameaçadores da ordem pública e da ortodoxia doutrinária era amplamente difundida no Reino com o fim de sanear a criminalidade além de povoar e enviar mão-de-obra para as possessões ultramarinas. Porém, conforme será visto nas linhas deste artigo, banir do convívio social estes sujeitos de comportamento tão incômodo não era apenas uma característica da metrópole. As evidências que ora exponho levam a crer que, no Brasil Colonial, a prática de “degradar” também era uma tradição constituída no espaço colonial, porém com nuances bem particulares.

Palavras-Chave: Degredo; Portugal; Brasil Colonial.

Na obra Portugal na época da Restauração, o Professor Eduardo D’Oliveira França estuda o século XVII europeu, desenvolvendo um importante estudo de uma época de protagonismo da Península Ibérica no cenário do mundo moderno. Porém, segundo o autor, “O século XVII teve a infelicidade de ficar entre o XVI e o XVIII. Ofuscado por dois esplendores, o Renascimento e as Luzes, ele parece distrofiar-se na comparação”. (FRANÇA, 1997, p.18).

Este artigo é um pequeno resumo de um projeto de pesquisa que venho desenvolvendo para o ingresso na pós-graduação. O recorte temporal proposto inicia-se em 1640, ano da publicação do Regimento do Santo Ofício da Inquisição dos Reinos de Portugal e encerra-se em 1700, já que a proposta desta pesquisa é abordar o século XVII.

Tentarei revisitar a sociedade colonial brasileira em formação sob o viés das representações da legalidade e do poder, identificando na experiência das mulheres e dos homens que aqui viviam uma prática cotidiana que, ora questionava, ora resignificava ou subtraía os padrões legais, morais ou religiosos da metrópole, mas era herdeira desta por vários fatores.

Metrópole essa que viveu o fim de 60 anos sob o reinado dos 3 Filipes da Espanha (1580-1640) e experimentava a recente restauração do trono português por uma dinastia de sangue luso, a dos Bragança, reconfigurando assim a geopolítica Ibérica e influenciando a vida colonial.

(HOLLANDA, 1997, p. 176-189).

O DEGREDO EM PORTUGAL

Estudando as medidas de punição implementadas por Portugal, para sanear a criminalidade do Reino, percebeu-se coação de certos “delitos” com dispositivos jurídicos deveras rígidos.

Vadios, jovens ladinos, cristãos–novos, bígamos, sodomitas, feiticeiras, visionárias, blasfemadores, impostores. Estes sujeitos de atitudes tão inconvenientes aos padrões religiosos e morais eram os alvos dos olhos e ouvidos da Santa Inquisição Portuguesa. Também os falsários e ladrões eram vistos como os inimigos públicos da sociedade lusitana. Diante disso, a Igreja

* Licenciado em História pela Universidade Católica do Salvador. Contato: gueertz@hotmail.com.

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Católica e o governo Português viam-se às voltas com estas mulheres e homens de atitudes condenáveis para a época e o encarceramento já não era tão eficaz como outrora.

Sendo assim, expulsar da metrópole esta gente perigosa à administração pública e de comportamento tão subversivo à doutrina da Igreja Católica se fazia necessário, não somente para extirpar do seio da comunidade estes inimigos sociais, mas também para auxiliar a crescente colonização das novas terras d’além mar.

Pode ser por isso que, em 15 de fevereiro de 1549, o Bispo Governador Gaspar Lopez, juiz do crime da cidade de Lisboa, escreve uma carta ao então monarca D. João III, informando- o que “(...) a armada ao Brasil levou todos os degredados que havia nas cadeas desta cidade para o Brasil/ não há ai agora mais que sete ou oito que depois sobrevieram/ os degredados para as partes d’alem a estes dias que partirão muitas caravelas os mandei todos não há agora ai nenhum.

A cidade louvores a nosso senhor está muito sã e quieta (...)”(COELHO, 2004, p. 506).

Para compreender estas práticas de saneamento social, é preciso repensar conceitos como os de crime e punição e introduzir outros como o de ortopedia moral (FOULCAULT, 1987, p.33). Tais conceitos têm fundamento na práxis cotidiana, no fazer histórico dos sujeitos para quem os crimes são muitas vezes artifícios de questionamento do poder vigente e o cumprimento da pena é representado pelas autoridades como via de correção do criminoso ou pela emblemática forma de impor o poder, estabelecendo limites de conduta e supliciando o transgressor. O resultado disso é que “a condenação marcará o réu com sinal negativo perante a sociedade” (FOULCAULT, 1987, p.30). O degredo estava associado à infâmia, rebaixando e estigmatizando a imagem pública do sujeito “degradado”.

A expulsão de indesejáveis era uma prática corriqueira de punição aos “delinqüentes” de Lisboa e de outras cidades de Portugal. Nesta época, a Igreja Católica detinha um poderio econômico e social intimamente ligado às estruturas do Estado Português expresso no controle das agressões à sua doutrina, tanto assim que a influência da Igreja Católica é nítida se verificarmos a construção dos códigos de Leis que normatizavam a vida e os costumes da população. Será desta forma que os Códigos ou Ordenações Afonsinas (1446), Manoelinas (1521) e Filipinas (1603) vão aparecer na história do Direito Português, com o fim de referendar a posição da Coroa e da Igreja Católica nos papéis de gestores e mantenedores da ordem pública, tomando, muitas vezes, medidas que expulsavam do seio da comunidade cidadãos que interferiam na ordem do reino ou na doutrina da Igreja.

O Código Filipino, promulgado em 1595, na época do reinado de Felipe II da Espanha, vigorou em janeiro de 1603; constituía-se num compêndio de leis, canônicas e seculares, a serem aplicadas no reino, como forma de organizar as Ordenações anteriores (Afonsinas e Manuelinas), e elucidar alguns “erros” na interpretação incluindo, também, novas leis.

A transgressão de algumas dessas leis era considerada um pecado contra Deus, a Igreja e o Estado. O temido Livro V das Ordenações Filipinas trata exclusivamente das penas previstas para degredo. (SOUSA, 2003, p.88).

A expatriação era uma punição deveras temida pela população portuguesa, o degredo tinha a função de “purgar” os “pecados” cometidos. Posteriormente, se julgados, os réus poderiam ser perdoados pela justiça temporal e religiosa. A terra brasilis foi um local adequado para a recepção de tais sujeitos, homens e mulheres que se encontravam em situação de conflito com a lei, por isso fadados a viver numa terra distante e estranha. Laura de Mello e Souza, ao analisar o degredo como punição, ilustra o significado desta prática:

Um século depois, a aventura dos descobrimentos possibilitava, em termos

práticos, a ocorrência de uma síntese marcante – o degredo –, unindo tradições

distintas: a das formulações européias acerca do purgatório, a da função

purificadora da travessia marítima, a do exílio ou desterro como elemento

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purificador. Na prática do degredo articulavam-se, desta forma, desdobramentos diversos de um grande rito de passagem. (SOUZA, 1993 p.89).

Posteriormente, ao chegar em terras desconhecidas, sem amigos ou familiares, o degredado via-se sozinho para cumprir sua pena e ter a esperança de algum dia voltar ao seu lar.

Ainda que fossem os mesmos crimes, o Código Filipino ocupava-se em tipificar os delitos contra o Rei e contra a Igreja. É interessante ressaltar que as Ordenações anteriores às Filipinas previam o crime de “lesa-majestade”, que eram as afrontas contra a magnificência do Rei e das instituições temporais. A Igreja Católica também incorpora este dispositivo jurídico para abarcar os crimes contra a “majestade” de Deus. Será neste argumento que a Inquisição Portuguesa encontrará respaldo jurídico temporal para efetuar as punições contra os hereges, apóstatas e outros “pecadores”, incluindo os degredados.

O “Regimento do Santo Ofício da Inquisição dos Reinos de Portugal” (PIERONI, 2000, p.39) foi publicado em 1640, com o fim de vigiar a doutrina e a moral do rebanho católico português, contendo um minucioso capítulo que tratava das questões de heresia, fundamentando a vocação específica do Santo Ofício: a conservação da ortodoxia da Mater Ecclesia, utilizando medidas duríssimas para que a “sã doutrina do Catecismo da Igreja Católica” não fosse vilipendiada pela vivência inadequada de cristãos infiéis e relapsos.

A Igreja Católica conquistou, neste período, o direito de condenar à morte os hereges.

Porém, no caso de Portugal, esta medida só tinha efeito sob a autorização da justiça temporal que, não obstante, era composta também por eclesiásticos dominicanos e jesuítas – em sua maioria membros do Santo Ofício. Os condenados à morte poderiam ser queimados em praça pública no espetáculo macabro da cerimônia do Auto de Fé, como exemplo da cólera da Igreja Católica contra os heterodoxos.

É procedente apontar que as punições suscetíveis a degredo descritas e previstas no Código Filipino puniam muitos dos réus por “crimes” que, naquela época, eram vistos como graves: a apostasia, o adultério, a sodomia, a heresia, a quebra dos votos perpétuos. “Delitos”

extremamente repudiados pela justiça temporal portuguesa da época.

Marc Bloch já citava um antigo provérbio árabe que dizia que “os homens são mais parecidos com seu tempo que com seus próprios pais” (BLOCH, 2001, p.7). A partir deste pensamento, tento explicar que o conceito de crime varia conforme o contexto em que a moral e a ética está inserida. O Direito – assim como a humanidade – é bem parecido com a experiência histórica no qual ele está inserido. Portanto a concepção de “crime” varia a partir das novas vivências que os sujeitos constroem no seu cotidiano.

Sendo assim, é prudente investigar as práticas punitivas, observando o contexto histórico em que estas estão inseridas, interpretando os fazeres dos sujeitos, sua mentalidade, sua vivência histórico-cultural numa temporalidade e numa localidade específicas

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OS DEGREDADOS DO VALE DE LÁGRIMAS

A tradição Católica Romana compreendia (e ainda compreende) que toda a humanidade

advém de um mito judaico no qual o primeiro homem, Adão, e a primeira mulher, Eva, viviam

felizes no Jardim das Delícias, porém, a “serpente primitiva” seduz o casal, e estes transgridem a

regra ditada por Deus: “... mas não comas do fruto da árvore da ciência do bem e do mal, porque

no dia em que dele comeres, morrerás” (Gn 2, 17). Assim, Deus degreda do Paraíso, Adão, Eva,

e conseqüentemente toda a sua geração, que passará a viver num mundo distante do Paraíso e

cheio de perigo, morte e doença. A Salve Regina é uma conhecida oração da tradição católica, de

domínio público, que suplica o auxílio de Maria, mãe de Jesus, na peregrinação da humanidade

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no mundo: “...A Vós bradamos, os degredados filhos de Eva, a Vós suspiramos, gemendo e chorando, neste Vale de Lágrimas...”.

Se inicialmente a imagem das terras do “Brasil” fora a de um paraíso edênico, local de fartura, felicidade e sossego, a partir da política colonizadora implementada por Portugal remodelou-se no imaginário português a noção deste locus como o purgatório (HOLLANDA, 1994, p.16) ou o já citado “Vale de Lágrimas” no qual o criminoso estaria purificando-se, purgando o seu pecado, para enfim alcançar a Glória dos Céus. Contudo, na atitude da Igreja Católica, o degredado não precisava morrer para conhecer o purgatório. O processo de purificação iniciava-se na metrópole, onde um corpo de magistrados o julgaria e decretaria a sua punição.

O Arquivo Público do Estado da Bahia guarda uma vasta coleção de Ordens Régias e Cartas do Rei de Portugal a autoridades diversas nas quais encontrei vestígios que me motivaram alguns questionamentos a respeito de uma possível nova constituição da prática de degredo: no Brasil Colonial também existia o hábito de expulsar os indesejáveis. Ora, a administração Colonial também degredava os criminosos do “Vale de Lágrimas”.

Os homens e mulheres, que aqui desembarcaram de Portugal como degredados, têm à sua frente um novo desafio: refazer as suas vidas. E, em boa medida, conseguem algum êxito. O professor Ronaldo Vainfas identifica como um dos motivos pelos quais a Visitação do Santo Ofício português chegou ao Brasil a considerável quantidade de engenhos de cana-de-açúcar administrados por cristãos-novos, muitos deles expulsos ou fugitivos de Portugal nesta fase de grande perseguição às “judiarias”. (VAINFAS, 1989, p. 296).

Vale lembrar que a criminalização de determinados costumes não é uma situação nova, construída no espaço colonial. Nesse contexto está presente uma “herança portuguesa”, se compreendermos a sua contribuição na formação do fazer cotidiano do sistema colonial. É necessário afirmar que o governo português assume, na prática, uma posição bastante nítida: a do colonizador, com o objetivo específico de explorar a sua posse e controlar as mulheres e homens que estão em seus domínios territoriais, visto que a exploração das colônias era a principal fonte de captação de recursos que Portugal dispunha na época para manter-se como estado absolutista em expansão.

No século XVII, especificamente em 1640, uma dinastia de sangue lusitano, a dos Bragança, volta a governar o estado português, reconfigurando a geopolítica da Península Ibérica que, durante 60 anos, estava sob o domínio dos Filipes. Esta época é marcada por várias dificuldades no campo da economia metropolitana, especialmente porque os cristãos-novos eram os protagonistas da burguesia mercantil portuguesa na época e, mesmo perseguidos pelo clero, desprezados pela nobreza e odiados pelo povo, ainda eram os mais ricos comerciantes do reino.

Com a agressiva espionagem da Inquisição Portuguesa, os judeus Sefarditas (Safarad era o nome hebraico da Península Ibérica) desviavam seus lucros para Flandres e outras localidades da Europa com a finalidade de preservar seus capitais que eram confiscados pela Coroa de tempo em tempo e com as mais diversas justificativas.

Os costumes e práticas do Reino, morais, legais ou religiosas, são impostos à Colônia com vistas a direcionar um controle dos sujeitos, portanto a Coroa Portuguesa estabeleceu normas e padrões de conduta, a partir de sua própria experiência, para serem cumpridos por seus súditos e assim sedimentar, de maneira eficaz, seu domínio.

Sendo assim, faz-se necessário revisitar a noção do poder na Colônia. Primeiramente, é

importante focalizá-la sem confundi-la com a ação do Estado, visto que este é o órgão máximo

da administração colonial, mas não o único a dar conta da explicação dos diversos poderes que

evidentemente coexistiam. Houve diversas fontes de poder tanto público como privado,

sobretudo num locus no qual a distância da metrópole contribuía para que o fazer cotidiano fosse

particular, construindo assim uma barreira para a plena ação centralizadora do Estado Português.

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Parece não existir um consenso sobre a questão do poder no Brasil Colonial. Na perspectiva do Professor Sérgio Buarque de Hollanda, por exemplo, o Estado sempre foi maior que a sociedade, prevalecendo seu interesse na administração da colônia, pois seguiu, desde o início, a tradição portuguesa de criar um estado forte e grupos sociais intermediários fracos. Esta tradição se manifesta na tentativa de estabelecer precocemente o poder público no Brasil, com a fundação da Vila de São Vicente e estabelecer um “sistema de capitanias” mesmo antes do início da Colonização. A normatização do fazer legal será de especial importância para a consolidação do poder público estatal muito evidente nas Cartas de Doação, Forais e outros regimentos que demonstram o interesse do Estado Português em legitimar o seu domínio na administração pública.

Contudo, é necessário considerar que esta tentativa de dominação pode ter sido eficaz nos recém-nascidos centros urbanos da Colônia, porém, no interior da Colônia, a metrópole não tinha um alcance tão forte, e os grandes proprietários de terra, a família patriarcal, fragmentavam a autoridade da Coroa e construíam práticas baseadas numa herança portuguesa, porém reelaboradas no espaço colonial. Esta experiência é verificada no caso da família Garcia D’Ávila, de Fernão Cabral de Taíde (VAINFAS, 1995, p.15), na Bahia, ou de Rafael Pinto Bandeira, no Rio Grande do Sul. Estes homens de grande expressão social na Colônia poderiam ser, ou não, um “elo” entre o poder público colonial e a realidade do interior de difícil acesso para a Coroa.

Ponderando sobre essas perspectivas, seria incoerente generalizar que só o poder estatal ou só o poder privado marcou o desenvolvimento de uma fase tão extensa como a colonial. É notória a predominância do poder da família patriarcal no interior do território colonial. Esta exalta a dominação masculina, estimula e legitima o monopólio, durante todo o século XVI e XVII, mas, ao fim deste período e durante todo o século XVIII, a monarquia portuguesa implementa uma sistemática política de intervenção da metrópole nas estruturas coloniais, alcançando, inclusive, as áreas mais distantes dos centros urbanos, sobretudo com o advento das reformas do Marquês de Pombal.

Se a presença do Governo Português era notória nas cidades como Salvador e Rio de Janeiro, durante o século XVII, esta vai se enfraquecendo e fragmentando no interior por dois motivos básicos: Os dispositivos burocráticos implementados pela metrópole para serem aplicados na colônia se inserem muito mais rapidamente nos centros urbanos litorâneos irradiadores do poder metropolitano (ainda que demore meses para chegar de Lisboa às mãos das autoridades e só depois serem aplicados na sociedade) que no sertão, de difícil e perigoso acesso para a época. Além do mais, esta distância do interior em relação à metrópole implicou a construção de costumes e práticas administrativas próprias que adaptam os regimentos à realidade vivenciada ou nem os cumpre.

“A existência de uma sociedade estamental ou de ordens pressupõe a existência de um Estado estamental ou de ordem” (WEHLING, 1999, p. 310). A sociedade portuguesa é marcada pela ação da nobreza lusitana na máquina pública do Estado se regalando dele enquanto a grande maioria da população portuguesa passava por momentos de grande dificuldade material, “(...) assim o Estado Português no Brasil reproduzia sua característica metropolitana” (WEHLING, 1999, p. 311). Existia, no Brasil, uma tensão entre a centralização absolutista metropolitana e outras forças sociais tipicamente locais.

Todavia, a burocracia portuguesa na América merece um estudo mais profundo.

Analisando a formação do Brasil Colonial, WEHLING afirma que a burocracia: “(...)

correspondia a um modelo patrimonialista, pré-moderno, no qual os cargos eram encarados

como doações do soberano (prebendas), quase sempre feitas pela arrematação da maior oferta

em dinheiro” (WEHLING, 1999, p.311). Esta importante avaliação nos leva a concluir que o

soberano tinha a preocupação em “doar” os cargos administrativos a pessoas de sua confiança,

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porém estas pessoas pagavam por estes cargos e, distantes da metrópole, sem fiscalização direta, resignificavam suas atribuições conforme a demanda da realidade.

A legislação metropolitana tinha grande interesse em regulamentar a organização social da colônia nos moldes portugueses, porém nota-se uma dissonância entre a formalidade das leis aplicadas, tanto públicas como privadas, e a experiência objetiva da aplicação destas leis no contexto colonial. Estas eram inaplicadas ou mal aplicadas por conta da força de interferência dos poderosos no processo da sua aplicabilidade ou da negligência, conivência ou conveniência dos funcionários do Reino. Acredito que o trecho a seguir pode referendar esta inquietação:

(...) vos envio mui saudar.Por poder de Catherina Fogaça moradora desta cidade se merrepresentou aqui (...) cada hua sentença na Casa de Suplicação contra Manoel Paes da Costa, em que foy condenado a sete anos de degredo para Cabo Verde e em setecentos reis para ella e cento dez reis para as despezas da Rellação pela culpa de lhe haver furtado aleivosamente sua filha e que querendo executar a tal sentença perante o ouvidor geral desta rellação lhe não fora possivel peroditto Manoel Paes seu parente e poderoso. Pedindome lhe mandasse nomear ministros meus para dar execução a ditta sentença visto o ouvidor geral ser suspeito. Encomendouces que constandovos ser suspeito este ministro nomeis outro para executar a sentença de que se trata. Escrita em Lisboa (ilegível) de outubro de 1691.(APEB, maço 2, doc. 40).

Uma infinidade de normas vinha da metrópole, muitas delas confusas e contraditórias, o que facilitava a corrupção ou levantamento de suspeitas da conduta dos funcionários da Coroa.

Aliado ao Código Filipino, vigoravam também no Brasil Colonial as normas do Direito Canônico, do Direito Romano, além de outras diretrizes administrativas como os Regimentos, que instruíam às autoridades e instituições como desempenhar suas funções: as Leis Ordinárias editadas pelo Rei, Alvarás que fixavam determinações da Coroa, válidas, geralmente, por um ano, as Cartas Régias, enviadas pelo Rei a autoridades diversas para executar ordens específicas, Decretos, Provisões e Portarias. Muitas leis, várias ordens, todas elas aplicadas e cumpridas?

Existia realmente um sistema jurídico e uma administração colonial plenamente organizada?

Todos estes questionamentos são importantes para a reconstrução do sentido do que era legal e ilegal no Brasil Colonial, por isso, merecem atenção especial.

Sendo assim, o contexto colonial é marcado por práticas que, sendo formuladas no reino, são “aplicadas” nas representações de posse e propriedade, legalidade e conduta moral, por exemplo, e têm a profunda marca de um catolicismo em franco processo de conquista estratégica, tanto institucional como territorial. A “matriz legal portuguesa” está repleta de valores católicos e será imposta à vivência colonial como condição primordial da hegemonia portuguesa e “bem-estar” social, execrando todas as práticas que contradizem suas imposições normativas.

Os sujeitos não passam ao largo desta discussão, pois é a partir do entendimento da experiência destes que iremos compreender o seu papel como construtores de uma prática que, muitas vezes, se dirigia na contramão das ordens do Estado Português, mas que já davam sinais de práticas particulares à realidade da colônia, muitas delas vistas com horror pela metrópole.

Aliás, a subversão já era uma velha conhecida da sociedade lusitana.

E é nos indícios documentais deixados por estes sujeitos que verifiquei algumas Ordens Régias, selecionando o recorte temporal já exposto, nas quais foi perceptível que as autoridades impunham o banimento a certas atitudes dos colonos na América. Chegando ao conhecimento da realeza, atitudes consideradas “criminosas” eram reprimidas com uma pena dura: o degredo.

Porém baniam-se os “delinqüentes” para fora da Colônia. Numa longa epístola enviada pelo Rei

de Portugal ao Governador do Maranhão, escrita em Lisboa no dia 21 de dezembro de 1686, a

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realeza fazia informar certas ordens a serem cumpridas na Colônia. Numa destas encontrei uma evidência em que os “brancos” e mamelucos iam às aldeias para tirar proveito dos recursos dos índios sem uma prévia autorização.

A Coroa só permitia o acesso e permanência nas aldeias aos padres jesuítas, no propósito de evangelizar. Porém, o trecho do documento abaixo mostra que o real era diferente do ideal.

Vejamos:

(...) Nenhuma de qualquer calidade que seja poderá ir as Aldeãs tirar índios para seu servisso ou para outro algum efeito sem lisensa das pessoas que (ilegível) dar na forma das minhas leis nem os poderam deixar ficar nas suas casas (ilegível) passado o tempo em que lhe foram consedidos; E os que contrário fizerem em (ilegível) pella primeira vês na pena de dois meses de prizão e de trinta mil (ilegível) para as despesas das (...) Segunda terão a mesma pena em dobro; e pela terceira serão degradados cinco anos para Angolla tão bem sem apelasão (...) (APEB, Maço1, p.62, doc. 47).

Contudo, não eram apenas os proventos que atraíam os colonos às aldeias, alguns deles procuravam os indígenas com outros propósitos:

Sem embargo do que fica disposto nos capítulos antesedentes sobre as pessoas q forem as Aldeas dos Índios sem lisensa sobre não poderem nella asistir nem viver Brancos nem Mamalucos desejando prover de médio os dannos q não so costumavão aconteser de se persuadirem as índias com enganos, e dádivas a intentarem procurarem os divorcios dos maridos principiando este mal pelo abominavel dos adultérios, e seguindosse de pois (ilegível) os matrimonioscom grande prejuízo das almas e governo temporal dos mesmos índios. Sou servido (ilegível), que o ouvidor geral tire todos os annos hua exacta devasa destes cazos, em que entrarão tão bem as (ilegível), ainda que pella lei não sejam cazos della, porque a mizeria e fraqueza dos Indios e o irem dos certões buscar minha proteção nas Aldeas em que vivem faz justificada a derroração de dita ley que para este fim hey por ezpressar como se della fisera especial mensão; e tirada a dita devasa a pronunciará e prosederá no Castigo dos Culpados os cazos declarados neste regimento como he disposto nelle, e nos cazos de adultério em que não ouver acuzasam procederá contra os aduteros com pena de degredo de dês annos para Angolla, e as aduteras querendo as receber os maridos nas Aldeas se madaram repor nellas, o arbítrio dos Padres Missionários e quando não as queiram receber respeitando o crime que fizeram como este se considere por cauza de sua natural fraqueza, e ignorância, pella malisia (ilegível) com que são persuadidas, e por estas rezam não meresam igual castigo nem seja conveniente ao servisso de (ilegível) que vão degradadas para outra conquista (...) (APEB, Maço 1, p. 65, doc. 47).

As transcrições nos remetem a questionamentos importantes acerca do significado da

transgressão no âmbito colonial, sendo importante compreender o que o Estado punha (lei) e o

que os sujeitos dispunham nos seus modos de vida e de sobrevivência ainda que elaborados na

contramão do projeto metropolitano. Nota-se que a prática ilegal de invadir aldeias indígenas

está vinculada à prática do adultério. Sendo assim, o assunto dizia respeito aos dois institutos de

poder mais evidentes da colônia: a Igreja Católica, que abominava o adultério, e o Estado

Português, que queria exclusividade na relação com os indígenas, proibindo assim interferências

de outros sujeitos que não fossem os missionários.

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É válido salientar que, apesar de o Código Filipino prever degredo ao crime de adultério, este não se refere, em nenhum momento, à invasão de aldeias indígenas. Observa-se também que os padres missionários tinham um papel relevante na apuração da acusação e no cumprimento da lei, até mesmo expulsando indígenas do Brasil. Faz-se necessário compreender qual seria o intuito do governo português no envio de indígenas para Angola, e o motivo pelo qual esta localidade tornou-se tão privilegiada para receber os banidos, levando-se em conta que, em muitos dos documentos manuseados, esta possessão ultramarina portuguesa é citada.

Baseado em tais evidências, seria razoável afirmar que as cartas Régias e outros documentos reais poderiam constituir-se como uma das muitas formas de adaptar a lei portuguesa a um contexto social novo, elaborado historicamente no espaço da Colônia, voltadas neste momento para certas vivências e práticas que transcendiam a demanda da metrópole, pois foram constituídas no cotidiano da terra brasilis.

A invasão de aldeias não era o único inconveniente a ser resolvido pela administração portuguesa no âmbito colonial. Outros perturbadores da ordem pública são amplamente citados e perseguidos pelas autoridades.

Os vadios, homens e mulheres livres, com condições econômicas parcas e sem ocupação permanente, eram vistos como um perigo iminente tanto na sociedade Portuguesa, no século XVII, quanto na sociedade colonial. A atitude mais freqüente da Coroa foi omitir a existência destes sujeitos, aprisioná-los nas cadeias municipais ou aplicar o Código Filipino que no Título LXVIII previa degredo para esta prática com o fim de suprir carências em outras posses portuguesas.

Uma saída encontrada pela administração metropolitana foi utilizar a mão-de-obra dos

“vagabundos e mulatos nascidos no lugar” (BOXER, 2002) para aumentar o efetivo do exército, visto que somente os mais ricos tinham interesse em servir nas armas e os mais pobres não incentivavam seus filhos à carreira militar. Acredito que este trecho pode elucidar como os vadios eram encarados pela administração metropolitana:

Carta que escrevo aos capitães dos (ilegível) pª prenderem gente pª Angolla.

Convém ao servicio de V. Magestade que no mesmo ponto que V.M. receber esta, prender com todo segredo e boa manha, homens brancos, mulatos, mestiços e mamalucos, dos q por esta freguesia e os tomão andar vadios, e que nella nam possam fazerem falta: por q sou informado com certesa haver muitos destes e presos os remeta a bom recado a entregar na cadea desta cidade até 15 desta infalivelmente seja lançados para Angolla.

4 de marco de 1664. Conde de Obidos. (APEB, Maço 148, p. 6A).

“Prender com todo segredo e boa manha” os vadios eram mais uma estratégia utilizada pela administração colonial para sanear a criminalidade. Nota-se que tais sujeitos não faziam falta para as autoridades, muito pelo contrário, pois eram perturbadores da ordem. Quer fossem

“brancos, mulatos, mestiços ou mamalucos”, não tinham uma ocupação permanente, estavam a perambular pelas ruas da colônia propiciando insegurança. Conhecer a experiência destes sujeitos e como o degredo para Angola era aplicado faz-se necessário, poism se estes eram descartáveis para as autoridades coloniais do Brasil, em Angola deveriam ter alguma utilidade.

Outro caso instigante foi notado numa carta do Rei de Portugal ao então procurador da Fazenda Real, Joseph de Freitas Serrão, escrita em Lisboa a 24 de maio de 1690:

(...) Sentensiai na Relação desta cidade, os Escravos delinquentes em degredo

para Angolla e São Thomé o que deveis ser para as gallés; e despeza que fazia a

Fazenda Real com os negros que se alugaria para remarem na falua do patrão

mor da Ribeira. Encomendou os muytos que ouvindo o Provedor Mor de minha

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Fazenda e officiaes da Camara me informeis sobre o que conthem o dito papel a respeito da comutação do degredo dos escravos para as gallés e serviso da Ribeira das naos em que hão de andar em ferros, e das mais obras publicas e a cujo cargo se deve encomendar a guarda e a administração dos dittos escravos degredados (APEB, Maço1, doc. 78).

Os vestígios documentais levam a perceber que existiam escravos que eram degredados para a África. Sendo assim, parece procedente apontar que existiam também certos “crimes” que introduziam estes sujeitos no rol dos banidos, agora expulsando-os para o seu continente de origem.

No trecho acima, podemos verificar que a administração metropolitana prefere, ao invés de “alugar” negros, utilizar os escravos “delinqüentes em degredo” para “remarem na falua do patrão mor da Ribeira”.

UM CAMINHO A PERCORRER

Considerando que o escravo era reconhecido como propriedade, torna-se necessário problematizar em que circunstâncias estes eram expulsos do Brasil e se os direitos de propriedade dos seus donos eram desconsiderados por causa dos crimes cometidos por eles. O Título LXI do Livro V das Ordenações Filipinas pune, com degredo, “o escravo, ou filho, que arrancar arma contra seu senhor ou pai”. Está é a única passagem nos 143 dispositivos do Livro V que declara alguma tipologia de delinqüência em que a punição do escravo será o degredo, porém seria incoerente acreditar na possibilidade de que somente este tipo de delito fazia com que o escravo fosse expulso da colônia.

Por fim, o diálogo com as fontes nos remete a outros horizontes: Em todas as evidências arroladas até o momento, somente o continente africano é citado como localidade receptora dos banidos do Brasil Colonial, que já era um local escolhido para receber os delinqüentes portugueses desde o início do século XVI (PIERONI, 2000, p.31). Seria a África vista no imaginário português como o inferno, já que o Brasil se configurava na mentalidade destes como o purgatório? Como o habitante do Brasil Colonial encarava o continente africano? Os escravos que estavam cativos no Brasil eram expulsos de volta para o seu continente de origem.

Certamente eles não concebiam sua terra natal como o inferno, ao contrário, ser degredado para a África poderia ser uma brecha para voltar aos seus.

Somente partindo de uma pesquisa criteriosa e atenta, aliada a outros conhecimentos adquiridos no decorrer dos trabalhos, a produção do conhecimento histórico será construída, não como resposta definitiva a todos os questionamentos levantados neste artigo, mas como uma tentativa de compreender como o poder e a legalidade eram encarados pelos sujeitos do Brasil Colonial.

BIBLIOGRAFIA

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Arquivo Público do Estado da Bahia. Série: Ordens Régias (1640-1690), Seção de Arquivo Colonial e Provincial, maço 1, pp.65, documento 47, capítulo 6º.

Arquivo Público do Estado da Bahia. Registro de correspondências expedidas para autoridades diversas (1657-1666), Seção de Arquivo Colonial e Provincial, maço 148, pp. 6A.

Arquivo Público do Estado da Bahia. Série: Ordens Régias (1640-1690), Seção de Arquivo

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Referências

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