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O processo de textualização na santeria cubana

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(1)

-

LKJIHGFEDCBA

o

PROCESSO DE TEXTUALIZAÇÃO

NA SANTERIA CUBANA

1

ihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA

E

wvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA

ste trabalho prelim inar

esteia-se num texto

ihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA

s o

-bre a S a n te r ia C u b a n a .

Esse texto chegou-m e às

m inhas m ãos através do e s

-critor e biógrafo inglês,

]onathan Fryer, m eu am igo,

que m e tem acom panhado

ao longo dos anos nas m

i-nhas pesquisas

luso-afro-brasileiras. Em um a de suas

estadias em Cuba, em 1997,

com prou no "m ercado

pul-gas" em Havana, um a

bro-chura, im pressa em

processo de m im eógrafo,

• P ro fe s s o r T itu la r d e A n tro p o lo g ia d a U F C .

perfazendo um total de 508

páginas, frente e verso,

intitulado M AN U AL D E L S AN T E R O E N C U B A2 ,

sem nenhum a referência autoral, local ou data.

Acode-m e um a prática cultural da tradição oral

posta na escrita, a textualizada da m em ória

afro-cubana. No caso específico da S a n te r ia tenho

no m eu conhecim ento, o trabalho sistem ático

de Fernando Ortiz com o sendo pioneiro no

pro-cesso de textualização dessa m em ória - H AM P A

AF R O - C U B AN A - L O S N E G R O S B R U jO S

( AP U N T E S P AR A U M E S T U D I O D E E N O L O G I A

C R I M I N AL ) . Sendo Professor de Direito Penal

da Universidade de Cuba, seu livro volta-se para

práticas religiosas afro-cubanas dentro do

as-pecto jurídico crim inal. A transcrição da m

e-m ória oral afro-brasileira para a escrita foi

introduzida na academ ia por Nina Rodrigues,

O a n im is m o F e tic h is ta d o s N e g r o s B a h ia n o s

(935), um a abordagem onde o determ inism o

fisiológico e o prim ado da noção de raça têm

.,

-, •.•" : 'r.::,-~ '

t ) " . . .J t i-L.J. J

P E R iO D IC O S

seu apanágio. Poderia

en-tão se dizer que se

encon-traria em Fernando Ortiz

um a preocupação análoga

aos estudos realizados por

Nina Rodrigues no Brasil.

Esses autores

encon-trarão seu contra ponto em

M anuel Quirino,

intelectu-al negro, que nos C o s tu m e s

Afr ic a n o s n o B r a s il ( 9 3 8 ) ,

responde a essas teses, em

um a abordagem que

privi-legia o cultural e até

ante-cipando em décadas o

conceito de transculturação

tal com o foi elaborado

pos-teriorm ente por Fernando

Ortiz. Quirino procura dem onstrar a

contribui-ção do negro na form acontribui-ção da sociedade

brasi-leira.

ISMAEL PORDEUS JR.*

R E S U M O

É u m tra b a lh o p re lim in a r e m to rn o d e u m te x to s o b re a

GFEDCBA

S a n t e r ia C u b a n a . O re fe rid o te x to d e s e n c a d e o u a p e s -q u is a e m c u rs o s o b re o p ro c e s s o te x tu a liz a ç ã o d a s tra d i-ç õ e s re lig io s a s o ra is a fro -c u b a n a s . U m a b ro c h u ra , im p re s s a e m p ro c e s s o d e m im e ó g ra fo , in titu la d aM A N U -A L D E L S -A N T E R O E N C U B -A ,s e m n e n h u m a re fe rê n c ia a u to ra l, lo c a l o u d a ta . O liv ro e m q u e s tã o é fa s c in a n te e v a i ju n ta s e a u m fe n ô m e n o m a is a m p lo q u e v e m o c o r-re n d o c o m a m e m ó ria a fric a n a tra n s p o s ta p a ra a A m é ri-c a , a n te s tra n s m itid a o ra lm e n te p a s s o u a s e r d e ita d a n a e s c rita p e la s p e s s o a s p e rte n c e n te s à s re lig iõ e s a fro a m e -ríc a n a s . E te m e x e rc id o u m p a p e l b a s ta n te re le v a n te n o p ro c e s s o d e tra n s c u ltu ra ç ã o d e s s a s re lig iõ e s d e u m a m a -n e ira g e ra l.

o

livro em questão, M a n u a l d e i S a n te r o

e n C u b a , é fascinante e vai, no m eu entender,

juntar-se a um fenôm eno m ais am plo que vem

ocorrendo com a m em ória africana transposta

para a Am érica, antes transm itida só oralm ente,

passou a ser posta em escrita pelos adeptos das

religiões afro-am ericanas. Venho então

realizan-do um a pesquisa sobre os processos de

horizontalização da voz no Brasil e em Portugal,

quero dizer, do processo de textualização da

m em ória luso-afro-brasileira.

Seria im portante procurar saber de outros

processos de textualização realizados por

aque-les que (re)produzem o im aginário no

afro-portenho e tam bém na Venezuela, na religião

designada de M aria Leonza, assim poderíam os

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wvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA

pensar de uma maneira ampla sobre os

proces-sos e técnicas por que passam as memórias

afro-americanas.

Gostaria de tecer alguns comentários

re-lativos ao processo que designo de

tex-tualização da vocalidade. A proeminência da

escrita como paradigma de civilização leva a

esquecer que a oralidade permanece.em

qual-quer sociedade onde a escrita é fundamental

em todo o processo de conhecimento. Os

an-tropólogos de uma maneira geral

estabelece-ram a "grande divisão" entre o escrito e o oral,

conduzindo a acentuar as diferentes formas e

práticas da oralidade, considerada dentro de

sua iredutibilidade à escrita.

A maior parte das teorias e pontos de

vistas sobre as estruturas mentais nas

diferen-tes sociedades humanas procura explicações

em conceitos dicotômicos, como primitivo e

avançado, magia e ciência, oral e escrito, como

é o caso específico de Jack Goody (994) em

sua

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R a zã o G r á fi c a . A voz não conseguiu ser

eliminada pela escrita. Os cantadores, os

de-safios, a literatura de folheto no Nordeste

bra-sileiro continuam a soar livre na imensidão dos

sertões e nas cidades, mesmo depois de

edita-dos. O mesmo ocorrendo quando das giras dos

milhares de terreiros das religiões

luso-afro-brasileiro.

Tem razão Paul Zunthor quando diz que

falta uma poética geral da oralidade que possa

servir de menção às pesquisas específicas

propon-do noções operatórias aplicáveis aos fenômenos

de transmissão da poesia pela voz e pela

memó-ria. Em nenhum momento, Zunthor deixa de levar

em consideração o sentimento daquilo que é a

voz humana e no que ela implica. O simbolismo

primordial integrado ao exercício fônico se

mani-festa eminentemente no emprego da linguagem

sendo aí que se cruza toda a poesia.

No caso específico do Candomblé, da

Santeria, da Umbanda de Omolocô um dos

fe-nômenos que chama atenção são os oriki, que

ao mesmo tempo são invocações poéticas aos

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R E V IS T A D E C I~ N C IA S S O C IA IS v .3 3 N.

2

Orixás, são saudações a todos os seres vivos e

inanimados. É através dos oriki que é vocalizada

a dinâmica dessas religiões de matrizes africanas.

Ninguém sonharia em negar a

importân-cia do papel que desempenharam ou

desempe-nham as tradições orais onde elas existam. Várias

culturas ainda hoje se mantêm unicamente ou

principalmente graças a elas. E hoje, mais que

nunca e tá patente o retorno da oralidade em

nossa ociedade o paraí o da imprensa,

decor-rente dos proce o ma ivos.

As religiões de matrizes africanas se

manti-veram marginais praticadas por grupos

específi-cos de negros e cravo até a sua libertação.

Posteriormente os negros e seus descendentes que

vieram a integrar como grupos marginais nas

socie-dades de classe em formação, continuaram as

prá-ticas. E mesmo hoje quando essas religiões não se

restringem mais a esses grupos matrizes, no caso

Brasileiro e Português, objeto de meu estudo, não

se pode pensar nessa religião esquecendo

performance da voz nos cantos e no corpo que

responde à ação da voz.

No pensamento negro africano, toda

ativi-dade humana, todo o movimento na natureza

repousam sobre o verbo, sobre a potência

gera-dora da palavra que é água e calor, semente e

verbo, potência de vida. Como mostra em suas

pesquisas Genevieve Calame-Griaule (989), o

verbo libera as forças latentes dos minerais,

ani-ma as plantas e os animais, a palavra transporta

as "coisas", ao nível onde elas se realizam

en-contrando um sentido na ação.

Penso que deve ser levado em conta todo

o sistema de decantação da tradição oral africana

trazida pela escravidão para as Américas e, por

conseqüência, sofrendo o processo de

transculturação, de esquecimento, e

principalmen-te de fragmentação, em que longas sagas, cantos,

litanias foram reduzidos, permanecendo hoje, sua

essência. Todo esse processo provocou a

frag-mentação da voz existente em sua origem.

As pesquisas de Parry e Lord realizadas

sobre as sagas jougoslavas mostram que um

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poem a com posto oralm ente não pode ser

transm itido pela tradição do canto sem que

intervenham m odificações fundam entais. A

cada passagem de um m esm o aedo, no m

es-m o canto, encontravaes-m -se m odificações.

Nes-a m esm Nes-a perspectiva, Ism ail Kadaré em seu

rom ance

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R e l a t ó r i o H m ostra que o aedo

ja-m ais canta a m esm a saga sem que haja um a

troca de verso ou frase, em bora essas m

odifi-cações não venham alterar o enredo da

can-ção. Penso com o Gody, que isso ocorre

quando a saga se encontrar fixada em um

ri-tual, m ais especificam ente a um ritual

religioso.(Goody 1994:91/120 passim ).

Nesse sentido, no que se refere ao ritual

religioso, tem os com o exem plo as pesquisas

de Pierre Verger (957) voltadas para os

GFEDCBA

" o r i e i

e m l e n m l e n , que são, respectivam ente para os

Yorubas da Nigéria e os Fon do Dahom ey, um a

érie de longos textos tradicionais. (. ..) nenhum

desses grupos não se servia da escrita para

transm itir suas tradições e suas histórias"

(Verger P.239).

Os o r i ki africanos e hoje recitados no

Bra-sil e em Cuba dentro de quadros rituais

especí-ficos, são em sua m atriz um a peça clássica e

um a peça m ítica. Enquanto peça clássica eles

são subm etidos a certas leis precisas e

invariá-veis quanto à sua estrutura. Enquanto peças

m íticas fazem referência a certos personagens

precisos e não podem ser recitadas que em

cer-tas ocasiões prescricer-tas, ritualm ente dentro de um a atm osfera particular, ritual esse que cria um am

-biente específico. A substância m aterial dessas

narrações, essa atm osfera devem -se vivenciar e

nela penetrar para definir esse gênero oral, o

qual designo com o saga em suas origens.

Analisando o term o o r i ki , Vergar explica,

o r i = cabeça, ki = saudar: saudar a cabeça.

As-sim pode-se com preender o que representa para

os Yorubas da Nigéria, assim com o para o

Can-dom blé, a Um banda de Om oloko de um a m

a-neira geral no Brasil e em Portugal, para a

S a n t e r i a , o Vodu: saudar a cabeça é saudar a

sede da personalidade ou da identidade

profun-da dos hom ens. Entre os Yorubas o o r i ki con i

-te então em situar, por um a série de saudaçãe

um a pessoa dentro de um quadro social, a lem -brar suas origens e a história de sua fam ília.

As pesquisas que venho desenvolvendo

sobre a textualização da m em ória

luso-afro-brasileira, tal com o vem sendo construída em

Lisboa, por D. Virginia Albuquerque, os o r i ki

são utilizados nas invocações aos Orixás,

an-cestrais divinos. E os o r i ki r i são dirigidos

igual-m ente aos vegetais, as folhas litúrgicas em que

seu uso é constante no curso das cerim ônias

de iniciação ou da revitalização de "objeto

-suporte" da força dos Orixás. Não tenho

dúvi-da em afirm ar que no caso do Brasil que essas

antigas sagas, hoje reduzidas a pequenos

ver-sos, foram em parte destruídas, se desfizeram

com o tem po, pelo vento da m em ória; o que

hoje pode ser encontrado são fragm entos

li-gados às práticas rituais. (Pordeus 2.000)

Os o r i ki dos Orixás são com postos em

um a am álgam a de fórm ulas antigas onde as

virtudes e o poder dos Orixás são evocados e

as frases se relacionam a certos sacerdotes

lo-cais desses Orixás que se tornaram célebres

por sua força, sua ciência e seu esplendor.

Certos o r i ki dedicados aos Orixás são

conhe-cidos em seu lugar de origem e se encontram

sobre um a área bastante vasta que se estende

ao Brasil, com o se pode perceber de m eu

estu-do no Terreiro Ogum M ege em Lisboa,

Portu-gal, e em Cuba com o no livro em questão.

O term o Yoruba a fo s b e significa " e xp r i

-r n i-r - -r e a lis a -r " (Verger 1957). O que m e perm

i-tiria pensar com o perform ance, pois Paul

Zunthor, tom ando o m esm o sentido dado por

Austin, diz que "é a ação com plexa pela qual

um a m ensagem poética é sim ultaneam ente

transm itida e percebida, aqui e agora.

Locu-tor, destinatário'(s), circunstâncias (que o

tex-to, por outro lado, auxiliado pelos m eios

lingüísticos, os representa ou não) se

encon-tram com pletam ente confrontados,

indiscutí-veis. a perform ance se recortam os dois eixos

da com unicação social: aquela que junta o

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wvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA

locutor a autor; e aquele sobre o qual se unem

situação e tradição (Zunthor op. cit. 32)".

Todo o m aterial deitado na escrita por

M ãe Virgínia Albuquerque é considerado por

m im nessa m esm a perspectiva, a noção de

ihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA

p e r fo r m a n c e então passa a ser utilizada com o

viga m estra, com o quadro geral de explicação

dos textos-livro publicados pela autora em sua

íntegra. Assim com o os livros de Um banda

edi-tados e de grande circulação no Brasil, e aqui,

no livro em questão M AN U AL D E L S ÀN 7 E R O

E N C U B A.

Nas culturas sem um a escrita, a arte da

palavra foi desenvolvida de um a m aneira

espe-cial. Segundo as circunstâncias para se com

uni-carem com os deuses, com os ancestrais, contam

a história e estórias, fazem rir ou verter lágrim as,

sublevando o entusiasm o a ponto de os

ouvin-tes se tornarem ébrios ou extasiados.

Os m itos, sagas, cantos com o que foram

se desfazendo no tem po. Poderia se dizer que

as categorias espaço/ tem po vão form ar um a

equação com as categorias do sagrado/

profa-no: o tem po no ritual reduzido à sua essência,

pois o espaço sagrado encontra-se passível da

repressão na velocidade do tem po profano.

Velocidade e lentidão são fundam entais nesse

processo.

A im portância da oralidade nas

civiliza-ções da África Negra pode ainda hoje ser

desta-cada em suas sagas, suas preces, seus contos,

seus cantos, seus provérbios e adivinhações. Um

patrim ônio cultural fundado na potência e na

beleza da palavra. Povos de cantores e de

poe-tas sensíveis ao ritm o da boa linguagem onde

os m estres da palavra, fazendo-a vibrar de

for-m a hábil, fá-Ias possuir quase todo o poder. No

Brasil a voz disputa espaço com a escrita: nos

pastoris, cantos-louvações e loas diante dos

pre-sépios, na noite de natal, nas parlendas e

advinhas, com o a cantar as saudades.

Hoje, ouve-se m uitas vezes dizer que a

voz está desaparecendo, tom ando-se com o

exem plo a poesia oral dos folhetos de cordel o

que é enfaticam ente negado pela produção con-

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R E V IS T A D E C I~ N C IA S S O C IA IS

V.33

N.

2

tínua dessa literatura. A voz continua na sua

dialética com a escrita, sendo suficiente se

vol-tar para o cam po religioso para se perceber a

sua vitalidade: preces, cantos, glossolalia, oriki

pontos cantados, corim bas, um coro de vozes

que em erge das profundezas úm idas e solta-se

livre atravessando o espaço em busca do infinito.

Longe de m eu trabalho pensar em

qual-quer processo evolutivo das sagas africanas, dos

contos, dos m itos, dos oriki, quero m uito m ais

cham ar atenção para o esquecim ento, a

frag-m entação, os processos de transculturação da

voz, de m igração transatlântica num ir e vir de

um lado a outro em que vai se gastando com o

um seixo que rola, levado pelas águas e se

per-de a feição nos processos de fricção, assum

in-do form as diversas ao longo in-do percurso.

A oposição oral escrito perm anece um

baluarte quase inexpugnável, sem , no entanto,

negar a pertinência da delim itação dos dois cam

-pos e serem oponíveis pelo m enos

contrasta-dos; seria necessário olhar de frente um terceiro

cam po, o da intertextualidade onde oral e

escri-ta se com binam de form a m atizada e m uitas

ve-zes se sobrepõem . O cam po desta com binação

é perceptível de m aneira m ais im ediata na

lite-ratura de folheto, cujo gênero pouco hom

ogê-neo encontra sua unidade nas características de

im pressão e circulação. A rica tradição do

cor-del brasileiro, m ais corretam ente nordestino,

expressa-se na perform ance individual dos

cantadores. Essa m esm a poesia m anifesta um

lugar de m em ória, particularm ente sensível ao

registro e à transm issão da m em ória social.

Antes da colonização na África existiam

grandes escolas onde todos os conhecim entos

eram ensinados oralm ente. Entre outras existia

um a no delta nigeriano, na em bocadura do Niger,

a qual guarda lem brança dos grandes m estres

da palavra das tradições locais e islâm icas. O

ensinam ento oral era guardado e transm itido por

aqueles que possuíam um talento particular de

criação e im provisação. Criadores e

continua-dores, esses grandes artistas do verbo

enrique-ciam o patrim ônio com um .

(5)

-

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As culturas africanas, culturas do verbo,

força vital, vapor do corpo, líquido carnal e

espiritual, se estendem ao m undo ao qual dão

vida. É sobre o verbo que repousa toda

ativi-dade. Na África se diz que um a "bela palavra"

é um a boa provisão, pois se alguém fala bem ,

é suficiente se sentar e contar. Todo m undo

virá cercá-Io e ser-Ihe-á dado tudo que tem

necessidade. M as ao lado dos grandes m

es-tres da palavra que não são necessariam ente

ihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA

g r io ts , existe tam bém no coração de cada um

a poesia e que pode jorrar em grandes

ocasi-ões de em oção. as reuniões, nas festas são

lugares apropriados a grandes com petições

po-éticas, a disputas oratórias. Durante todo o

período de transum ância os pastores com

pu-nham poem as e em seu retorno cantavam em

público, as m elhores perm aneciam e se

canta-vam durante toda um a estação. O m esm o se

fazia durante o banho ritual do ano novo, da

circuncisão, da m orte, dos casam entos, cada

vez se im provisam poem as (Dieterlen 1966).

O m aterial oral que com põe o livro

GFEDCBA

M a

-n u a l d e i S a n te r o e n C u b a é im portante pelo

in-teresse que ele apresenta por ele m esm o, m as

tam bém pelo papel que se supõe desem penhar

no universo das cerim ônias, no ritm o da

execu-ção de rituais com plexos aos quais se integram

na m esm a rubrica os gestos do oficiante, do

sacrificador ou dos participantes. Sim ples

pre-ces, individuais ou coletivas, fórm ulas de

invo-cação onde intervêm repetições rítm icas,

m oduladas ou cantadas, textos longos que

ser-vem de base a transm issão, o registrar a m em

ó-ria, o ensino, e aqueles que se subm etem à

iniciação. E ainda, os o r iki dos 256 O d u s í e suas

respectivas interpretações. O que irá perm itir

pos-teriorm ente um estudo com parativo com os que

perm anecem na m em ória luso-afro-brasileira.

Algum as questões devem ainda ser

su-blinhadas - os textos são litúrgicos, não

pos-suindo, para aqueles que os utilizam , um

caráter literário, m as oferecem , no entanto, toda

sua especificidade de textos sagrados, ou seja,

que im plicam a enunciação e a locução

da-quele que fala e dada-queles que ouvem . A

invo-cação, o testem unho da fé do indivíduo ou do

grupo, o apelo dirigido por todos, aos Orixás,

às potências sobrenaturais, aos ancestrais, para

serem socorridos ou agradecim entos que lhe

são dirigidos.

Essas preces, em bora sejam acom panhadas

freqüentem ente de considerações que tratam de

elem entos naturais, às vezes de objetos cujo

sen-tido não se pode com preender a um a prim eira

audição, apoiam -se nas crenças e no sistem a de

pensam ento da m em ória afro-cubana onde nada

daquilo que se faz, se diz ou se pensa é

indife-rente, nada do que foi criado pode ser

negligen-ciado. Afinal o hom em age dentro de um

universo em função da presença e do valor de

todos os elem entos que o com põem .

Os praticantes das religiões de m atrizes

africanas têm um a consciência clara daquilo tudo

que os cerca, em seus m ínim os detalhes, todo o

universo apreendido é classificado em

categori-as. Na perspectiva religiosa fazem parte de um

todo essas categorias, e se encontram

relaciona-das entre si para além de um ponto de vista

conceitual de ordem biológica. O m esm o

ocor-re com o desenvolvim ento da m agia, das

práti-cas designadas usualm ente de feitiçaria,

atingindo provavelm ente a m esm a

profundida-de, traduzindo-se em técnicas essas

correspon-dências e analogias.

A oralidade rege todo o conhecim ento

tradicional, no' que concerne ao valor do

con-teúdo e da sua expressão. Pois, se o Ocidente

possui um certo núm ero de textos escritos

con-siderados com o sagrados, no universo

luso-afro-brasileiro e no caso específico do afro-cubano,

os textos são inúm eros, m as eles são orais. O

seu conhecim ento necessita um exercício

m nem ônico im enso: sua transm issão é

realiza-da com m uito cuidado e, em decorrência de

seu caráter sacram ental, necessita de

preocu-pação particular. Transm itidos fielm ente de

ge-ração a geração por aqueles que são

depositários e para aqueles que deverão

subs-titui-Ios. As m ães e pais-de-santo passam para

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os filhos, para o iniciado essa transm issão, que

se cerca de garantia, destinada a proteger de

qualquer sacrilégio.

Paul Zunthor, em seu estudo sobre a

poe-sia oral, m ostra a dificuldade para trabalhar o

m aterial m arcado pela oralidade, ou com o

pre-fere o autor, pela vocalidade com preendida com o

a historicidade da voz e seu uso. Sugere o autor

de

ihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA

B a b e i o u in a c a b a m e n to , três tipos de

oralidade, correspondentes a três tipos de

situa-ções culturais: um a prim ária e im ediata que não

com porta nenhum tipo de contato com a

escri-tura; um a segunda, m ista, quando a influência

da escrita perm anece externa e parcial; e e

final-m ente ufinal-m a terceira, vocalidade, a qual designa

de oralidade a segunda, na qual toda expressão

é m arcada m ais ou m enos pela presença da e s

-crita. Penso que é nessa oralidade segunda onde

pode ser colocado o texto do M a n u a l d e i S a n te r o

e n C u b a .

Gostaria de relacionar de passagem

al-guns itens do índice geral: P r e a m b u lo , O r ig e n

d e lo s s a n to s a fr ia c a n o s ( . . .) M is te r iio d e i s o l y

I a lu n a , ( . . .) H is to r ia d e i

GFEDCBA

L o r o . C . . ) O l o f i n le te n ia m u c h a la s tim a a o b b i . C . ..) P a r a h a c e r h e b o d e

e s te r a , ( . . .) P a r a p r e p a r a r u m

o m ie r o .C ...) AI g u n o s c a r u ic o , ( .. .) E I d ilo g g u n y

s u fo r m a d e le c tu r a , ( , . .) L o s o d u n s m a yo r e s y

m e n o r e s .C ...) P a r a s a b e r l o s s a n to s s e r e c ib e n d e s p u e s d e h a c e r o c b a .C . . .) D is tin ta s c la s e s d e

e c h u s ( .. .) C o m o s e h a c e u m e le g g u a (p.s04).

Posso então afirm ar que se trata de um

registro geral de toda a prática religiosa da

S a n te r ia de Cuba. Um texto de caráter

teológi-co, com o os produzidos em Lisboa por Virgínia

Albuquerque. Esse m aterial poderia ser

classifi-cado itilizando-se noção proposta por Roger

Cartier (996) em práticas da " e s c r ita c o m u m " ,

ou escritas " s e m q u a lid a d e ' , que durante m uito

tem po foram deixadas de lado pelas abordagens

clássicas das práticas culturais, e que hoje são

objeto de m últiplos trabalhos, de reavaliações

im portantes e encontram um lugar central nas

interrogações dessas m esm as práticas.

Gostaria de encerrar dizendo, pelo

gêne-50

ihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA

R E V IS T A D E C ltN C IA S S O C IA IS V.

33

N.

2

ro de construção do texto, pelo cubano falado

deitado na escrita que se trata de um livro

pro-duzido por alguém pertencente à S a n te r ia e que

tom ou a si o encargo de registrar a m em ória do

fazer e do dizer de seu grupo religioso.

NOTAS

1 O texto original foi apresentado em conferência

realizada na Université Lurniêre Lyon2, no

qua-dro do Acordo CAPES/COFECUB, em abril de

2001.

2 Em julho do mesmo ano fui a Cuba onde dei

iní-cio a minha pesquisa de campo. Tive a

oportuni-dade de comprar no mercado mais dois livros com

as mesmas características do M a n u a l D e i S a n te r o

e n C u b a . Retomei a Havana em janeiro de 2001

dando prosseguimento à pesquisa.

3 Odu é o mito que compõe o complexo do jogo

adivinhatório de Ifá. No Brasil foi praticamente

esquecido, no entanto no Rio de Janeiro ainda

pode ser encontrado o Babalaô Professor Agenor

que tem se deslocado para a Bahia quando da

sucessão nos terreiros tradicionais.

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