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LKJIHGFEDCBA
o
PROCESSO DE TEXTUALIZAÇÃO
NA SANTERIA CUBANA
1
ihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
E
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ste trabalho prelim inar
esteia-se num texto
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s o-bre a S a n te r ia C u b a n a .
Esse texto chegou-m e às
m inhas m ãos através do e s
-critor e biógrafo inglês,
]onathan Fryer, m eu am igo,
que m e tem acom panhado
ao longo dos anos nas m
i-nhas pesquisas
luso-afro-brasileiras. Em um a de suas
estadias em Cuba, em 1997,
com prou no "m ercado
pul-gas" em Havana, um a
bro-chura, im pressa em
processo de m im eógrafo,
• P ro fe s s o r T itu la r d e A n tro p o lo g ia d a U F C .
perfazendo um total de 508
páginas, frente e verso,
intitulado M AN U AL D E L S AN T E R O E N C U B A2 ,
sem nenhum a referência autoral, local ou data.
Acode-m e um a prática cultural da tradição oral
posta na escrita, a textualizada da m em ória
afro-cubana. No caso específico da S a n te r ia tenho
no m eu conhecim ento, o trabalho sistem ático
de Fernando Ortiz com o sendo pioneiro no
pro-cesso de textualização dessa m em ória - H AM P A
AF R O - C U B AN A - L O S N E G R O S B R U jO S
( AP U N T E S P AR A U M E S T U D I O D E E N O L O G I A
C R I M I N AL ) . Sendo Professor de Direito Penal
da Universidade de Cuba, seu livro volta-se para
práticas religiosas afro-cubanas dentro do
as-pecto jurídico crim inal. A transcrição da m
e-m ória oral afro-brasileira para a escrita foi
introduzida na academ ia por Nina Rodrigues,
O a n im is m o F e tic h is ta d o s N e g r o s B a h ia n o s
(935), um a abordagem onde o determ inism o
fisiológico e o prim ado da noção de raça têm
.,
-, •.•" : 'r.::,-~ '
t ) " . . .J t i-L.J. J
P E R iO D IC O S
seu apanágio. Poderia
en-tão se dizer que se
encon-traria em Fernando Ortiz
um a preocupação análoga
aos estudos realizados por
Nina Rodrigues no Brasil.
Esses autores
encon-trarão seu contra ponto em
M anuel Quirino,
intelectu-al negro, que nos C o s tu m e s
Afr ic a n o s n o B r a s il ( 9 3 8 ) ,
responde a essas teses, em
um a abordagem que
privi-legia o cultural e até
ante-cipando em décadas o
conceito de transculturação
tal com o foi elaborado
pos-teriorm ente por Fernando
Ortiz. Quirino procura dem onstrar a
contribui-ção do negro na form acontribui-ção da sociedade
brasi-leira.
ISMAEL PORDEUS JR.*
R E S U M O
É u m tra b a lh o p re lim in a r e m to rn o d e u m te x to s o b re a
GFEDCBA
S a n t e r ia C u b a n a . O re fe rid o te x to d e s e n c a d e o u a p e s -q u is a e m c u rs o s o b re o p ro c e s s o te x tu a liz a ç ã o d a s tra d i-ç õ e s re lig io s a s o ra is a fro -c u b a n a s . U m a b ro c h u ra , im p re s s a e m p ro c e s s o d e m im e ó g ra fo , in titu la d aM A N U -A L D E L S -A N T E R O E N C U B -A ,s e m n e n h u m a re fe rê n c ia a u to ra l, lo c a l o u d a ta . O liv ro e m q u e s tã o é fa s c in a n te e v a i ju n ta s e a u m fe n ô m e n o m a is a m p lo q u e v e m o c o r-re n d o c o m a m e m ó ria a fric a n a tra n s p o s ta p a ra a A m é ri-c a , a n te s tra n s m itid a o ra lm e n te p a s s o u a s e r d e ita d a n a e s c rita p e la s p e s s o a s p e rte n c e n te s à s re lig iõ e s a fro a m e -ríc a n a s . E te m e x e rc id o u m p a p e l b a s ta n te re le v a n te n o p ro c e s s o d e tra n s c u ltu ra ç ã o d e s s a s re lig iõ e s d e u m a m a -n e ira g e ra l.
o
livro em questão, M a n u a l d e i S a n te r oe n C u b a , é fascinante e vai, no m eu entender,
juntar-se a um fenôm eno m ais am plo que vem
ocorrendo com a m em ória africana transposta
para a Am érica, antes transm itida só oralm ente,
passou a ser posta em escrita pelos adeptos das
religiões afro-am ericanas. Venho então
realizan-do um a pesquisa sobre os processos de
horizontalização da voz no Brasil e em Portugal,
quero dizer, do processo de textualização da
m em ória luso-afro-brasileira.
Seria im portante procurar saber de outros
processos de textualização realizados por
aque-les que (re)produzem o im aginário no
afro-portenho e tam bém na Venezuela, na religião
designada de M aria Leonza, assim poderíam os
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pensar de uma maneira ampla sobre os
proces-sos e técnicas por que passam as memórias
afro-americanas.
Gostaria de tecer alguns comentários
re-lativos ao processo que designo de
tex-tualização da vocalidade. A proeminência da
escrita como paradigma de civilização leva a
esquecer que a oralidade permanece.em
qual-quer sociedade onde a escrita é fundamental
em todo o processo de conhecimento. Os
an-tropólogos de uma maneira geral
estabelece-ram a "grande divisão" entre o escrito e o oral,
conduzindo a acentuar as diferentes formas e
práticas da oralidade, considerada dentro de
sua iredutibilidade à escrita.
A maior parte das teorias e pontos de
vistas sobre as estruturas mentais nas
diferen-tes sociedades humanas procura explicações
em conceitos dicotômicos, como primitivo e
avançado, magia e ciência, oral e escrito, como
é o caso específico de Jack Goody (994) em
sua
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R a zã o G r á fi c a . A voz não conseguiu sereliminada pela escrita. Os cantadores, os
de-safios, a literatura de folheto no Nordeste
bra-sileiro continuam a soar livre na imensidão dos
sertões e nas cidades, mesmo depois de
edita-dos. O mesmo ocorrendo quando das giras dos
milhares de terreiros das religiões
luso-afro-brasileiro.
Tem razão Paul Zunthor quando diz que
falta uma poética geral da oralidade que possa
servir de menção às pesquisas específicas
propon-do noções operatórias aplicáveis aos fenômenos
de transmissão da poesia pela voz e pela
memó-ria. Em nenhum momento, Zunthor deixa de levar
em consideração o sentimento daquilo que é a
voz humana e no que ela implica. O simbolismo
primordial integrado ao exercício fônico se
mani-festa eminentemente no emprego da linguagem
sendo aí que se cruza toda a poesia.
No caso específico do Candomblé, da
Santeria, da Umbanda de Omolocô um dos
fe-nômenos que chama atenção são os oriki, que
ao mesmo tempo são invocações poéticas aos
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R E V IS T A D E C I~ N C IA S S O C IA IS v .3 3 N.2
Orixás, são saudações a todos os seres vivos e
inanimados. É através dos oriki que é vocalizada
a dinâmica dessas religiões de matrizes africanas.
Ninguém sonharia em negar a
importân-cia do papel que desempenharam ou
desempe-nham as tradições orais onde elas existam. Várias
culturas ainda hoje se mantêm unicamente ou
principalmente graças a elas. E hoje, mais que
nunca e tá patente o retorno da oralidade em
nossa ociedade o paraí o da imprensa,
decor-rente dos proce o ma ivos.
As religiões de matrizes africanas se
manti-veram marginais praticadas por grupos
específi-cos de negros e cravo até a sua libertação.
Posteriormente os negros e seus descendentes que
vieram a integrar como grupos marginais nas
socie-dades de classe em formação, continuaram as
prá-ticas. E mesmo hoje quando essas religiões não se
restringem mais a esses grupos matrizes, no caso
Brasileiro e Português, objeto de meu estudo, não
se pode pensar nessa religião esquecendo
performance da voz nos cantos e no corpo que
responde à ação da voz.
No pensamento negro africano, toda
ativi-dade humana, todo o movimento na natureza
repousam sobre o verbo, sobre a potência
gera-dora da palavra que é água e calor, semente e
verbo, potência de vida. Como mostra em suas
pesquisas Genevieve Calame-Griaule (989), o
verbo libera as forças latentes dos minerais,
ani-ma as plantas e os animais, a palavra transporta
as "coisas", ao nível onde elas se realizam
en-contrando um sentido na ação.
Penso que deve ser levado em conta todo
o sistema de decantação da tradição oral africana
trazida pela escravidão para as Américas e, por
conseqüência, sofrendo o processo de
transculturação, de esquecimento, e
principalmen-te de fragmentação, em que longas sagas, cantos,
litanias foram reduzidos, permanecendo hoje, sua
essência. Todo esse processo provocou a
frag-mentação da voz existente em sua origem.
As pesquisas de Parry e Lord realizadas
sobre as sagas jougoslavas mostram que um
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poem a com posto oralm ente não pode ser
transm itido pela tradição do canto sem que
intervenham m odificações fundam entais. A
cada passagem de um m esm o aedo, no m
es-m o canto, encontravaes-m -se m odificações.
Nes-a m esm Nes-a perspectiva, Ism ail Kadaré em seu
rom ance
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R e l a t ó r i o H m ostra que o aedoja-m ais canta a m esm a saga sem que haja um a
troca de verso ou frase, em bora essas m
odifi-cações não venham alterar o enredo da
can-ção. Penso com o Gody, que isso ocorre
quando a saga se encontrar fixada em um
ri-tual, m ais especificam ente a um ritual
religioso.(Goody 1994:91/120 passim ).
Nesse sentido, no que se refere ao ritual
religioso, tem os com o exem plo as pesquisas
de Pierre Verger (957) voltadas para os
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" o r i e ie m l e n m l e n , que são, respectivam ente para os
Yorubas da Nigéria e os Fon do Dahom ey, um a
érie de longos textos tradicionais. (. ..) nenhum
desses grupos não se servia da escrita para
transm itir suas tradições e suas histórias"
(Verger P.239).
Os o r i ki africanos e hoje recitados no
Bra-sil e em Cuba dentro de quadros rituais
especí-ficos, são em sua m atriz um a peça clássica e
um a peça m ítica. Enquanto peça clássica eles
são subm etidos a certas leis precisas e
invariá-veis quanto à sua estrutura. Enquanto peças
m íticas fazem referência a certos personagens
precisos e não podem ser recitadas que em
cer-tas ocasiões prescricer-tas, ritualm ente dentro de um a atm osfera particular, ritual esse que cria um am
-biente específico. A substância m aterial dessas
narrações, essa atm osfera devem -se vivenciar e
nela penetrar para definir esse gênero oral, o
qual designo com o saga em suas origens.
Analisando o term o o r i ki , Vergar explica,
o r i = cabeça, ki = saudar: saudar a cabeça.
As-sim pode-se com preender o que representa para
os Yorubas da Nigéria, assim com o para o
Can-dom blé, a Um banda de Om oloko de um a m
a-neira geral no Brasil e em Portugal, para a
S a n t e r i a , o Vodu: saudar a cabeça é saudar a
sede da personalidade ou da identidade
profun-da dos hom ens. Entre os Yorubas o o r i ki con i
-te então em situar, por um a série de saudaçãe
um a pessoa dentro de um quadro social, a lem -brar suas origens e a história de sua fam ília.
As pesquisas que venho desenvolvendo
sobre a textualização da m em ória
luso-afro-brasileira, tal com o vem sendo construída em
Lisboa, por D. Virginia Albuquerque, os o r i ki
são utilizados nas invocações aos Orixás,
an-cestrais divinos. E os o r i ki r i são dirigidos
igual-m ente aos vegetais, as folhas litúrgicas em que
seu uso é constante no curso das cerim ônias
de iniciação ou da revitalização de "objeto
-suporte" da força dos Orixás. Não tenho
dúvi-da em afirm ar que no caso do Brasil que essas
antigas sagas, hoje reduzidas a pequenos
ver-sos, foram em parte destruídas, se desfizeram
com o tem po, pelo vento da m em ória; o que
hoje pode ser encontrado são fragm entos
li-gados às práticas rituais. (Pordeus 2.000)
Os o r i ki dos Orixás são com postos em
um a am álgam a de fórm ulas antigas onde as
virtudes e o poder dos Orixás são evocados e
as frases se relacionam a certos sacerdotes
lo-cais desses Orixás que se tornaram célebres
por sua força, sua ciência e seu esplendor.
Certos o r i ki dedicados aos Orixás são
conhe-cidos em seu lugar de origem e se encontram
sobre um a área bastante vasta que se estende
ao Brasil, com o se pode perceber de m eu
estu-do no Terreiro Ogum M ege em Lisboa,
Portu-gal, e em Cuba com o no livro em questão.
O term o Yoruba a fo s b e significa " e xp r i
-r n i-r - -r e a lis a -r " (Verger 1957). O que m e perm
i-tiria pensar com o perform ance, pois Paul
Zunthor, tom ando o m esm o sentido dado por
Austin, diz que "é a ação com plexa pela qual
um a m ensagem poética é sim ultaneam ente
transm itida e percebida, aqui e agora.
Locu-tor, destinatário'(s), circunstâncias (que o
tex-to, por outro lado, auxiliado pelos m eios
lingüísticos, os representa ou não) se
encon-tram com pletam ente confrontados,
indiscutí-veis. a perform ance se recortam os dois eixos
da com unicação social: aquela que junta o
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wvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
locutor a autor; e aquele sobre o qual se unem
situação e tradição (Zunthor op. cit. 32)".
Todo o m aterial deitado na escrita por
M ãe Virgínia Albuquerque é considerado por
m im nessa m esm a perspectiva, a noção de
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p e r fo r m a n c e então passa a ser utilizada com o
viga m estra, com o quadro geral de explicação
dos textos-livro publicados pela autora em sua
íntegra. Assim com o os livros de Um banda
edi-tados e de grande circulação no Brasil, e aqui,
no livro em questão M AN U AL D E L S ÀN 7 E R O
E N C U B A.
Nas culturas sem um a escrita, a arte da
palavra foi desenvolvida de um a m aneira
espe-cial. Segundo as circunstâncias para se com
uni-carem com os deuses, com os ancestrais, contam
a história e estórias, fazem rir ou verter lágrim as,
sublevando o entusiasm o a ponto de os
ouvin-tes se tornarem ébrios ou extasiados.
Os m itos, sagas, cantos com o que foram
se desfazendo no tem po. Poderia se dizer que
as categorias espaço/ tem po vão form ar um a
equação com as categorias do sagrado/
profa-no: o tem po no ritual reduzido à sua essência,
pois o espaço sagrado encontra-se passível da
repressão na velocidade do tem po profano.
Velocidade e lentidão são fundam entais nesse
processo.
A im portância da oralidade nas
civiliza-ções da África Negra pode ainda hoje ser
desta-cada em suas sagas, suas preces, seus contos,
seus cantos, seus provérbios e adivinhações. Um
patrim ônio cultural fundado na potência e na
beleza da palavra. Povos de cantores e de
poe-tas sensíveis ao ritm o da boa linguagem onde
os m estres da palavra, fazendo-a vibrar de
for-m a hábil, fá-Ias possuir quase todo o poder. No
Brasil a voz disputa espaço com a escrita: nos
pastoris, cantos-louvações e loas diante dos
pre-sépios, na noite de natal, nas parlendas e
advinhas, com o a cantar as saudades.
Hoje, ouve-se m uitas vezes dizer que a
voz está desaparecendo, tom ando-se com o
exem plo a poesia oral dos folhetos de cordel o
que é enfaticam ente negado pela produção con-
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R E V IS T A D E C I~ N C IA S S O C IA ISV.33
N.2
tínua dessa literatura. A voz continua na sua
dialética com a escrita, sendo suficiente se
vol-tar para o cam po religioso para se perceber a
sua vitalidade: preces, cantos, glossolalia, oriki
pontos cantados, corim bas, um coro de vozes
que em erge das profundezas úm idas e solta-se
livre atravessando o espaço em busca do infinito.
Longe de m eu trabalho pensar em
qual-quer processo evolutivo das sagas africanas, dos
contos, dos m itos, dos oriki, quero m uito m ais
cham ar atenção para o esquecim ento, a
frag-m entação, os processos de transculturação da
voz, de m igração transatlântica num ir e vir de
um lado a outro em que vai se gastando com o
um seixo que rola, levado pelas águas e se
per-de a feição nos processos de fricção, assum
in-do form as diversas ao longo in-do percurso.
A oposição oral escrito perm anece um
baluarte quase inexpugnável, sem , no entanto,
negar a pertinência da delim itação dos dois cam
-pos e serem oponíveis pelo m enos
contrasta-dos; seria necessário olhar de frente um terceiro
cam po, o da intertextualidade onde oral e
escri-ta se com binam de form a m atizada e m uitas
ve-zes se sobrepõem . O cam po desta com binação
é perceptível de m aneira m ais im ediata na
lite-ratura de folheto, cujo gênero pouco hom
ogê-neo encontra sua unidade nas características de
im pressão e circulação. A rica tradição do
cor-del brasileiro, m ais corretam ente nordestino,
expressa-se na perform ance individual dos
cantadores. Essa m esm a poesia m anifesta um
lugar de m em ória, particularm ente sensível ao
registro e à transm issão da m em ória social.
Antes da colonização na África existiam
grandes escolas onde todos os conhecim entos
eram ensinados oralm ente. Entre outras existia
um a no delta nigeriano, na em bocadura do Niger,
a qual guarda lem brança dos grandes m estres
da palavra das tradições locais e islâm icas. O
ensinam ento oral era guardado e transm itido por
aqueles que possuíam um talento particular de
criação e im provisação. Criadores e
continua-dores, esses grandes artistas do verbo
enrique-ciam o patrim ônio com um .
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As culturas africanas, culturas do verbo,
força vital, vapor do corpo, líquido carnal e
espiritual, se estendem ao m undo ao qual dão
vida. É sobre o verbo que repousa toda
ativi-dade. Na África se diz que um a "bela palavra"
é um a boa provisão, pois se alguém fala bem ,
é suficiente se sentar e contar. Todo m undo
virá cercá-Io e ser-Ihe-á dado tudo que tem
necessidade. M as ao lado dos grandes m
es-tres da palavra que não são necessariam ente
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g r io ts , existe tam bém no coração de cada um
a poesia e que pode jorrar em grandes
ocasi-ões de em oção. as reuniões, nas festas são
lugares apropriados a grandes com petições
po-éticas, a disputas oratórias. Durante todo o
período de transum ância os pastores com
pu-nham poem as e em seu retorno cantavam em
público, as m elhores perm aneciam e se
canta-vam durante toda um a estação. O m esm o se
fazia durante o banho ritual do ano novo, da
circuncisão, da m orte, dos casam entos, cada
vez se im provisam poem as (Dieterlen 1966).
O m aterial oral que com põe o livro
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M a-n u a l d e i S a n te r o e n C u b a é im portante pelo
in-teresse que ele apresenta por ele m esm o, m as
tam bém pelo papel que se supõe desem penhar
no universo das cerim ônias, no ritm o da
execu-ção de rituais com plexos aos quais se integram
na m esm a rubrica os gestos do oficiante, do
sacrificador ou dos participantes. Sim ples
pre-ces, individuais ou coletivas, fórm ulas de
invo-cação onde intervêm repetições rítm icas,
m oduladas ou cantadas, textos longos que
ser-vem de base a transm issão, o registrar a m em
ó-ria, o ensino, e aqueles que se subm etem à
iniciação. E ainda, os o r iki dos 256 O d u s í e suas
respectivas interpretações. O que irá perm itir
pos-teriorm ente um estudo com parativo com os que
perm anecem na m em ória luso-afro-brasileira.
Algum as questões devem ainda ser
su-blinhadas - os textos são litúrgicos, não
pos-suindo, para aqueles que os utilizam , um
caráter literário, m as oferecem , no entanto, toda
sua especificidade de textos sagrados, ou seja,
que im plicam a enunciação e a locução
da-quele que fala e dada-queles que ouvem . A
invo-cação, o testem unho da fé do indivíduo ou do
grupo, o apelo dirigido por todos, aos Orixás,
às potências sobrenaturais, aos ancestrais, para
serem socorridos ou agradecim entos que lhe
são dirigidos.
Essas preces, em bora sejam acom panhadas
freqüentem ente de considerações que tratam de
elem entos naturais, às vezes de objetos cujo
sen-tido não se pode com preender a um a prim eira
audição, apoiam -se nas crenças e no sistem a de
pensam ento da m em ória afro-cubana onde nada
daquilo que se faz, se diz ou se pensa é
indife-rente, nada do que foi criado pode ser
negligen-ciado. Afinal o hom em age dentro de um
universo em função da presença e do valor de
todos os elem entos que o com põem .
Os praticantes das religiões de m atrizes
africanas têm um a consciência clara daquilo tudo
que os cerca, em seus m ínim os detalhes, todo o
universo apreendido é classificado em
categori-as. Na perspectiva religiosa fazem parte de um
todo essas categorias, e se encontram
relaciona-das entre si para além de um ponto de vista
conceitual de ordem biológica. O m esm o
ocor-re com o desenvolvim ento da m agia, das
práti-cas designadas usualm ente de feitiçaria,
atingindo provavelm ente a m esm a
profundida-de, traduzindo-se em técnicas essas
correspon-dências e analogias.
A oralidade rege todo o conhecim ento
tradicional, no' que concerne ao valor do
con-teúdo e da sua expressão. Pois, se o Ocidente
possui um certo núm ero de textos escritos
con-siderados com o sagrados, no universo
luso-afro-brasileiro e no caso específico do afro-cubano,
os textos são inúm eros, m as eles são orais. O
seu conhecim ento necessita um exercício
m nem ônico im enso: sua transm issão é
realiza-da com m uito cuidado e, em decorrência de
seu caráter sacram ental, necessita de
preocu-pação particular. Transm itidos fielm ente de
ge-ração a geração por aqueles que são
depositários e para aqueles que deverão
subs-titui-Ios. As m ães e pais-de-santo passam para
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os filhos, para o iniciado essa transm issão, que
se cerca de garantia, destinada a proteger de
qualquer sacrilégio.
Paul Zunthor, em seu estudo sobre a
poe-sia oral, m ostra a dificuldade para trabalhar o
m aterial m arcado pela oralidade, ou com o
pre-fere o autor, pela vocalidade com preendida com o
a historicidade da voz e seu uso. Sugere o autor
de
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B a b e i o u in a c a b a m e n to , três tipos deoralidade, correspondentes a três tipos de
situa-ções culturais: um a prim ária e im ediata que não
com porta nenhum tipo de contato com a
escri-tura; um a segunda, m ista, quando a influência
da escrita perm anece externa e parcial; e e
final-m ente ufinal-m a terceira, vocalidade, a qual designa
de oralidade a segunda, na qual toda expressão
é m arcada m ais ou m enos pela presença da e s
-crita. Penso que é nessa oralidade segunda onde
pode ser colocado o texto do M a n u a l d e i S a n te r o
e n C u b a .
Gostaria de relacionar de passagem
al-guns itens do índice geral: P r e a m b u lo , O r ig e n
d e lo s s a n to s a fr ia c a n o s ( . . .) M is te r iio d e i s o l y
I a lu n a , ( . . .) H is to r ia d e i
GFEDCBA
L o r o . C . . ) O l o f i n le te n ia m u c h a la s tim a a o b b i . C . ..) P a r a h a c e r h e b o d ee s te r a , ( . . .) P a r a p r e p a r a r u m
o m ie r o .C ...) AI g u n o s c a r u ic o , ( .. .) E I d ilo g g u n y
s u fo r m a d e le c tu r a , ( , . .) L o s o d u n s m a yo r e s y
m e n o r e s .C ...) P a r a s a b e r l o s s a n to s s e r e c ib e n d e s p u e s d e h a c e r o c b a .C . . .) D is tin ta s c la s e s d e
e c h u s ( .. .) C o m o s e h a c e u m e le g g u a (p.s04).
Posso então afirm ar que se trata de um
registro geral de toda a prática religiosa da
S a n te r ia de Cuba. Um texto de caráter
teológi-co, com o os produzidos em Lisboa por Virgínia
Albuquerque. Esse m aterial poderia ser
classifi-cado itilizando-se noção proposta por Roger
Cartier (996) em práticas da " e s c r ita c o m u m " ,
ou escritas " s e m q u a lid a d e ' , que durante m uito
tem po foram deixadas de lado pelas abordagens
clássicas das práticas culturais, e que hoje são
objeto de m últiplos trabalhos, de reavaliações
im portantes e encontram um lugar central nas
interrogações dessas m esm as práticas.
Gostaria de encerrar dizendo, pelo
gêne-50
ihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
R E V IS T A D E C ltN C IA S S O C IA IS V.33
N.2
ro de construção do texto, pelo cubano falado
deitado na escrita que se trata de um livro
pro-duzido por alguém pertencente à S a n te r ia e que
tom ou a si o encargo de registrar a m em ória do
fazer e do dizer de seu grupo religioso.
NOTAS
1 O texto original foi apresentado em conferência
realizada na Université Lurniêre Lyon2, no
qua-dro do Acordo CAPES/COFECUB, em abril de
2001.
2 Em julho do mesmo ano fui a Cuba onde dei
iní-cio a minha pesquisa de campo. Tive a
oportuni-dade de comprar no mercado mais dois livros com
as mesmas características do M a n u a l D e i S a n te r o
e n C u b a . Retomei a Havana em janeiro de 2001
dando prosseguimento à pesquisa.
3 Odu é o mito que compõe o complexo do jogo
adivinhatório de Ifá. No Brasil foi praticamente
esquecido, no entanto no Rio de Janeiro ainda
pode ser encontrado o Babalaô Professor Agenor
que tem se deslocado para a Bahia quando da
sucessão nos terreiros tradicionais.
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