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Hipersegmentações na escrita infantil: entrelaçamentos de práticas de oralidade e de letramento

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Academic year: 2021

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Hipersegmentações na escrita infantil:

entrelaçamentos de práticas de oralidade e de letramento

Lourenço CHACON

Faculdade de Filosofia e Ciências – Unesp chacon@marilia.unesp.br

Abstract: In this article, we discuss how orality and literacy are involved in the wqy children make hypothesis about word limits in writing.

Keywords: writing acquisition; prosody; literacy.

Resumo: Neste artigo, discuto o papel das práticas de oralidade e de letramento na maneira como aprendizes da escrita segmentam palavras da língua.

Palavras-chaves: aquisição da escrita; prosódia; letramento.

1. Como segmentar?

Por quais caminhos se pode supor que o aprendiz da escrita transita ao tentar identificar e delimitar, por meio de espaços em branco, palavras na escrita? Minhas inquietações, em grande medida, parecem reproduzir aquelas do narrador de Budapeste ao se defrontar, pela primeira vez, com o húngaro falado e escrito: Palavra? Sem a mínima noção do aspecto, da estrutura, do corpo mesmo das palavras, eu não tinha como saber onde cada palavra começava ou até onde ia. (BUARQUE, 2004, p. 8).

Buscarei, nesta exposição, caracterizar esse trânsito, na medida em que, a meu ver, ele remete ao/recupera o entrelaçamento de práticas orais-letradas que constitui a própria história de linguagem do aprendiz da escrita – e que acredito ver marcada nos modos pelos quais a criança delimita, por espaços em branco, porções de sua escrita inicial. É o que procurarei demonstrar.

2. O escrito no oral

Ao ser indagada, num questionário, sobre a idade que achava que seu filho deveria falar sem trocas, a mãe do menino, uma senhora da periferia de Marília (SP), respondeu a uma minha colega de departamento, fonoaudióloga: A partir dos sete anos, quando ele já é alfabetizado.

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que Tfouni desenvolve essa crítica com base em narrativas orais de adultos não-alfabetizados, em pesquisa cujos resultados vêm demonstrando que recursos lingüístico-discursivos tidos como característicos da escrita considerada culta (ou literária) são verificados também nas narrativas orais que a autora vem pesquisando.

Decorre, a meu ver, dessa pesquisa a (feliz) conclusão de Tfouni de que não existe, nas sociedades modernas, o letramento ‘grau zero’, que equivaleria ao ‘iletramento’. Do ponto de vista do processo sócio-histórico, o que existe de fato nas sociedades industriais modernas são ‘graus de letramento’, sem que com isso se pressuponha sua inexistência. (op. cit., p. 23). É o que também se pode depreender da inquietação de Beatriz, uma menina de cinco anos, em processo de alfabetização, que, ao olhar para palavras escritas em um muro, demonstra sua entrada no mundo letrado, ao perguntar para sua avó: Vovó, por que eu nem quero ler, e os meus olhos já leram? (MATTOSO, 2003, p. 35).

Portanto, a resposta de uma mãe e as narrativas orais de adultos não-alfabetizados mostram que os modos de enunciação da língua (falado e escrito) mais se entrelaçam do que se separam. Contudo, procurarei mostrar esse entrelaçamento (essa não-separação) dos modos de enunciação falado e escrito da língua por meio de um outro tipo de produção lingüístico-discursiva.

3. O oral no escrito

Inverterei, a partir deste ponto, o eixo das pesquisas de Tfouni, mas manterei a mesma direção de sua crítica a uma separação radical entre usos orais e escritos da língua. Inicio essa inversão com considerações de Quirk et al. (1985) sobre os sinais de pontuação – e sobre como, a meu ver, esses sinais indiciariam relações entre oralidade e atribuição de sentidos na leitura.

De acordo com esses autores, é praticamente impossível compreender um texto escrito sem que se atribua a ele alguma prosódia – quer o tomemos silenciosamente ou o leiamos em voz alta (op. cit., p. 1443)1. Pensando em leitores ouvintes, o que se pode inferir das palavras de Quirk et al. é que uma condição fundamental de atribuição de sentidos a seqüências de palavras (ou mesmo de letras) é a de esses leitores ouvintes organizarem tais seqüências, durante a leitura, sob forma de constituintes prosódicos – tarefa que, em grande parte, pode ser facilitada pelos sinais de pontuação, já que marcam graficamente (embora imperfeitamente) limites de contornos rítmico-entonacionais com os quais uma seqüência de palavras escritas poderia ser enunciada oralmente.

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Com efeito, em vários de seus trabalhos, Abaurre demonstra que segmentações não-convencionais na escrita infantil obedecem, em grande medida, a princípios que estão na base da organização do componente fonológico da língua em constituintes prosódicos2.

Tendo, pois, como base para reflexão o produto de minha leitura dos resultados de pesquisas de Tfouni, de Corrêa e de Abaurre aqui sintetizados, minha proposta mais específica nesta exposição é olhar para entrelaçamentos na sistematização da noção de palavra que podem ser detectados na chamada aquisição da escrita infantil. Na medida em que, em sociedades letradas como a nossa, não existiriam textos e/ou discursos que poderiam ser caracterizados como essencialmente orais ou essencialmente escritos (CORRÊA, id. ibid.), é meu objetivo demonstrar que hipersegmentações em vocábulos trissílabos seriam, em verdade, produtos de um modo heterogêneo de constituição da própria escrita. Resumidamente, a heterogeneidade constitutiva da escrita resulta de uma particularização, para o domínio da escrita, do encontro das práticas orais/faladas e letradas/escritas (CORRÊA, 2004, p. 34). Esse encontro caracterizaria, para este autor, a heterogeneidade da escrita (e não a heterogeneidade na escrita). Nessa perspectiva, portanto, a heterogeneidade é vista como constitutiva da escrita e não como algo exterior que se marcaria nela como uma sua característica pontual e acessória. Desse modo, ao mesmo tempo em que a relação entre o falado e o escrito deixa de ser vista como uma questão de interferência, fato que traria, implícita, a consideração de ambas as modalidades como puras (CORRÊA, 1997, p. 86), a heterogeneidade constitutiva da escrita é explicada pela relação que o sujeito mantém com a linguagem, em seus diferentes modos de enunciação. Assim, a consideração desse modo heterogêneo pode ser útil como uma contraposição ao preconceito comum com que se tomam as produções escritas consideradas como menos integradas a um padrão tido como legítimo (CORRÊA, 1997, p. 86).

Em nosso caso específico, trata-se, sobretudo, de ver marcas características da chamada aquisição da escrita (como as hipersegmentações) não como marcas de imperfeição de um produto que se tem como modelo, ou, nas palavras de Abaurre, Fiad & Mayrink-Sabinson (1997), como manifestações “imperfeitas” de uma gramática “adulta”, mas como marcas de um sistema em construção, que indiciariam o trânsito do sujeito aprendiz pelos diferentes modos de enunciação da língua.

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Vogel (1986). No que se refere às práticas de letramento, meu interesse é pela maneira como a própria noção de palavra se marca na escrita infantil como fruto das convenções ortográficas (tanto pela ação da alfabetização, quanto pela ação dos variados usos da escrita em contextos não-escolares).

4. Com que dados?

Minhas considerações serão apoiadas em ocorrências de hipersegmentações extraídas de um conjunto 451 textos produzidos em contexto escolar por 40 crianças (18 meninas e 22 meninos) da primeira série de uma escola municipal de ensino fundamental do interior de São Paulo. Esses textos foram fundamentados em propostas temáticas desenvolvidas com base em gêneros textuais como relatos, cartas, histórias, listas, descrições, receitas etc.

Os textos foram produzidos no ano letivo de 2001 (período de março a novembro). De um total de 382 ocorrências – detectadas, em maior ou menor grau, em textos de 38 sujeitos3 da amostra –, selecionei aquelas nas quais foi possível detectar rupturas em vocábulos trissílabos. Das 382 ocorrências, 139 (36,38%) corresponderam a trissílabos rompidos.

Na medida em que um de meus interesses é pela maneira como se poderia detectar a ação da prosódia na escrita infantil, pelo menos no corpus considerado, os trissílabos me pareceram fornecer indícios mais interessantes dessa ação do que polissílabos e dissílabos. Com efeito, polissílabos hipersegmentados ocorreram com uma freqüência muito baixa no corpus. Já os dissílabos hipersegmentados, embora tenham ocorrido com uma freqüência ainda maior do que a dos trissílabos, não apresentaram variação significativa no que se refere à ação da prosódia, já que, na grande maioria deles, o espaço em branco para mais ocorreu no limite entre as duas sílabas das palavras – ou seja, apenas a unidade basilar da prosódia (a sílaba) é que se mostrou significativa nesses casos.

5. Entrelaçamentos

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Voltemos aos trissílabos hipersegmentados. Em princípio, qualquer ponto de um trissílabo poderia funcionar como um possível ponto de ruptura – logo, de uma hipersegmentação. Mas não é isso o que acontece. Dentre as rupturas nos 139 trissílabos hipersegmentados, apenas três, a meu ver, podem parecer mais estranhas, por assim dizer. Veremos, logo adiante, por quê. Trata-se das ocorrências a j u das, aj u da e pe di g rre. Dito de outro modo, o não-estranhamento que se pode atribuir aos demais 136 trissílabos hipersegmentados deve-se ao fato de que as rupturas obedecem a princípios recorrentes, e é justamente essa recorrência que, a meu ver, permite recuperaros entrelaçamentos que identifico nas hipersegmentações. Cumpre, agora, mostrar de que maneira(s) esses entrelaçamentos, na heterogeneidade da escrita infantil, podem ser localizados em práticas de oralidade e de letramento.

Iniciarei com a exposição de indícios, na heterogeneidade da escrita infantil, do trânsito da criança por práticas de oralidade. Ao detectar vínculos entre os dois modos de enunciação da língua na escrita e, provavelmente, por supor que, na escrita, a relação entre esses dois modos seria de representação direta (ou mesmo de transparência), a criança busca orientar a produção de sua escrita por características da língua que, mais facilmente, detectaria em seu modo de enunciação oral. É o caso do ritmo, que, já estruturado na língua, marca-se na oralidade, por exemplo, por meio de contrastes entre sílabas acentuadas e não-acentuadas.

Na língua, tais constrastes estruturam-se, pois, por uma relação de dominância (do acento) que se estabelece entre duas ou mais sílabas no interior de um mesmo constituinte fonológico – o pé rítmico. Segundo Bisol (1996), no português brasileiro, a maioria dos pés é de natureza binária e de cabeça (acento) à esquerda, o que caracteriza um pé troqueu. É o que se pode verificar, por exemplo, na estrutura rítmica da palavra rato. Há também, no português brasileiro (mas em menor proporção), pés binários com cabeça à direita, os pés iambo – cuja estrutura rítmica se verifica, por exemplo, na palavra daqui –, bem como, em proporção ainda menor, pés formados por uma seqüência de duas sílabas longas (geralmente uma sílaba acentuada e uma pesada4), estrutura característica de um pé espondeu, como se observa na palavra viram.

Foi marcante a sensibilidade dos sujeitos da amostra a essas características prosódicas da língua. Com efeito, do total de 139 trissílabos hipersegmentados, somente os três com que iniciei esta parte de minha exposição as hipersegmentações promoveram rupturas que não se explicam, a meu ver, em termos prosódicos: a j u das; aj u da; e pe di g rre. Como se vê, nesses três casos, o constituinte prosódico basilar, a sílaba, foi rompido em algum ponto de sua participação na palavra hipersegmentada – daí a sensação de estranhamento que essa forma de ruptura parece suscitar.

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nesses casos, a ruptura promoveu uma curiosa e bastante recorrente combinação entre uma sílaba e um pé, ou entre um pé e uma sílaba.

A tendência dominante nesses 111 trissílabos foi a de a ruptura promover a combinação entre uma sílaba e um pé, fato que se deu em 92 (82,88%) desses trissílabos hipersegmentados. A título de exemplo, destaco as combinações: (a) entre uma sílaba e um pé iambo em com vido (“convidou”); (b) uma sílaba e um pé troqueu em e Rita (“irrita”); e, finalmente, (c) uma sílaba e um pé espondeu em a sucar (“açúcar”). Nos 19 trissílabos restantes (17,12%), a ruptura promoveu a combinação inversa, ou seja, um pé + uma sílaba. Como exemplos, vejam-se as combinações: (a) entre um pé iambo e uma sílaba em colo que (“coloque”); (b) um pé troqueu e uma sílaba em para bems (“parabéns”)5; e, por último, (c) a única combinação entre um pé espondeu e uma sílaba de toda a amostra, em escom de (“esconder”).

Como se pode verificar, o elevadíssimo percentual de ocorrências de hipersegmentações de trissílabos nos quais as rupturas ocorreram em pontos de delimitações de constituintes prosódicos como a sílaba e o pé (em suas diferentes estruturas rítmicas) indicia, na heterogeneidade da escrita infantil, o trânsito das crianças por práticas de oralidade. Com efeito, nesses momentos, as crianças parecem tentar plasmar em sua escrita contrastes ritmicos que certamente detectam, sobretudo, a partir do relevo prosódico do acento na oralidade e que, por sua recorrência, padronizam-se sob forma de constituintes prosódicos da própria língua.

Mas certamente deixaríamos de contemplar a complexidade desses dados de escrita infantil se nos ativéssemos apenas ao trânsito das crianças por práticas orais. E, equivocadamente, poderíamos incorrer no erro de tomar os dados que venho expondo como marcas de “interferência” da oralidade (pura?) numa escrita que, em algum momento (do processo de escolarização?), deveria se mostrar como autônoma (pura?), com base em algum modelo do que se difunde como boa escrita.

Volto, pois, à heterogeneidade constitutiva da escrita infantil a partir de mais alguns exemplos. E, nessa volta, introduzo um segundo tipo de indício – desta vez, do trânsito da criança por práticas de letramento. Ou, nas palavras de Buarque (2004, p. 9): Cortei o som, me fixei nas legendas, e observando em letras pela primeira vez palavras (…), tive a impressão de ver seus esqueletos.

Para tanto, como representativos do conjunto de toda a amostra, destaco o trissílabo hipersegmentado em sílabas câ me ra e os seguintes trissílabos com combinações entre sílabas e pés iambo, troqueu e espondeu, respectivamente: a prenti (“aprendi”), por quinho (“porquinho”) e ou viram (“ouviram”). Destaco, agora, exemplos de combinações entre pés iambo, troqueu e espondeu, respectivamente, e sílabas: respon da (“responda”), para beis (“parabéns”) e escom der (“esconder”).

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hipersegmentados das crianças, que uma de suas partes corresponda a monossílabos. Especialmente quando, nos dados, essa correspondência se mostra em 112 (80,58%) das 139 possibilidades. Se levarmos, ainda, em conta que, das 27 ocorrências nas quais não se detecta um monossílabo, em 11 se detecta um dissílabo (por exemplo: es quente ou s cola), esse percentual eleva-se para 88,49%. Talvez esteja justamente aí, e faço mais uma vez minhas as palavras de Chico Buarque, (…) a brecha que me permitiria destrinchar todo o vocabulário (id., ibid.).

Vê-se, pois, um primeiro indício do trânsito das crianças por práticas letradas (tanto dentro quanto fora do contexto escolar) nessas hipersegmentações. Com efeito, principalmente em situações nas quais uma letra ou uma pequena seqüência de letras tanto podem constituir uma parte de uma palavra quanto podem corresponder a uma palavra inteira (mas não só nessas situações, como o atestam os dissílabos) é que emergem as rupturas – marcadas pelos espaços em branco.

Outro indício desse trânsito são as próprias soluções ortográficas para essas sílabas. É o que se pode observar, por exemplo, nos grafemas escolhidos por duas crianças para grafarem a coda silábica em com vido (“convidou”) e ol viram (“ouviram”). A escolha por m e por l em detrimento de “n” e de “u” nesses dois exemplos mostra a oscilação das crianças entre diferentes formas gráficas de se marcar a nasalização e a semivocalização da coda dessas sílabas na escrita. A curiosa solução e Rita (“irrita”) leva ainda para mais longe a ação do trânsito da criança por práticas letradas: não apenas ela marca com e o que em registro distenso (esperado de uma criança) se pronuncia como [i] como ainda marca com R (letra maiúscula) o que identifica como a inicial de um nome próprio! No caso da hipersegmentação de trissílabos em sílabas que destaquei, ainda é bastante curioso que seu autor não se esqueça do acento circunflexo na solução ortográfica que propôs para câ me ra (“câmera”).

Desse modo, o grande percentual de hipersegmentações de trissílabos nos quais as rupturas delimitam sílabas e pés de modo que a grande maioria das sílabas corresponda a monossílabos da língua e vários pés a dissílabos indicia, a meu ver, na heterogeneidade da escrita infantil, o trânsito das crianças por práticas de letramento. É justamente nesses momentos que a escrita das crianças parece mostrar-se, com mais clareza, como produto da inserção do aprendiz em práticas de letramento (dentro e fora do contexto escolar) que privilegiam um conhecimento metalingüístico sobre a língua em seu modo de enunciação escrito.

6. Considerações finais

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Por um lado, vimos que a esmagadora maioria das porções hipersegmentadas indiciam a base do acento (a sílaba) e os contrastes que ele possibilita na oralidade (pelos diversos tipos de organização das sílabas no interior de pés rítmicos). Mas vimos também que, além de se tratar de sílabas e de pés que inferimos da disposição gráfico-visual da escrita (já que partimos de como se dá a atribuição de espaços em branco), muitas vezes as soluções gráficas com que se mostraram sugerem um trabalho reflexivo das crianças sobre a complexidade da correspondência grafema-fonema.

Por outro lado, pudemos detectar, num elevado percentual de porções hipersegmentadas, as idas e vindas das crianças com a atribuição de espaços em branco delimitando grafemas ou seqüências de grafemas que, na escrita, em alguns momentos correspondem a partes de palavras e em outros a palavras inteiras. Mas vimos também que, exceção feita a apenas três dos 139 trissílabos hipersegmentados da amostra – 2,12% do total –, em todos os demais, a atribuição não-convencional de espaços em branco nessas idas e vindas correspondeu a pontos da organização do componente fonológico da língua em que se podem detectar limites prosódicos.

Como se vê, por qualquer lado que se olhe para as segmentações não-convencionais (tanto a partir de seu vínculo com práticas de oralidade quanto com práticas de letramento), sempre a sua outra contraparte imediatamente se mostra.

Para finalizar, algumas palavras sobre um dos tópicos em questão nesta mesa-redonda: o da alfabetização. Acredito, com os resultados que expus, poder contribuir para realçar (como desde alguns anos já vêm fazendo vários estudiosos da aquisição da escrita no Brasil) o fato de que, na alfabetização, o que mais insistentemente está em questão, de um ponto de vista lingüístico, é a relação sujeito-língua – possibilitada pelo movimento de muitas e complexas práticas de oralidade e de letramento que, entrelaçadas, compõem o universo de linguagem do aprendiz da escrita. É a ação dessas práticas sobre o sujeito e/ou a reflexão que ele faz sobre elas que, a meu ver, mais se mostram nas ocorrências de hipersegmentações. Com efeito, é justamente esse entrelaçamento de práticas que se faz mostrar na busca de critérios do que se pode ou não considerar como palavra (a exemplo do narrador de Budapeste, com palavras em língua estrangeira), já que, como vimos, em 88,49% das ocorrências, o que emergia eram justamente palavras sob palavras – e não, aleatoriamente, cacos de palavras. Ou seja, é a história de linguagem do sujeito que se mostra e se mobiliza no processo de alfabetização (e para a qual, a meu ver, o alfabetizador deve estar bastante atento).

Notas

1. Tradução sob minha responsabilidade.

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também merecem, a meu ver, destaque por suas preocupações quanto a esse aspecto da aquisição da escrita. Tenani e Capristano, mais recentemente, também têm se voltado para essa mesma questão. O trabalho de Tenani, aliás, é digno de nota por tematizar a aquisição da escrita em adultos. Por limitações de espaço, não vou enumerar aqui os estudos desses autores. Mas, em trabalho a sair (CHACON, 2004b), vários desses estudos são referenciados.

3. Apenas no material recolhido de dois sujeitos da amostra não pude detectar hipersegmentações: no sujeito feminino 18, pelo fato de escrever em letra de forma os seus textos, deixando, praticamente em todas as situações, uma mesma distância entre as letras, o que não me possibilitou detectar nem ao menos limites de palavras; no sujeito masculino 40, pelo fato de não dominar nem mesmo as convenções mais básicas das correspondências grafema-fonema.

4. Sílabas pesadas são aquelas cuja rima é constituída por vogal + consoante (por exemplo: cAR, em carta; cAN, em canto) ou por vogal + vogal (por exemplo, nos ditongos EU, em meu, e AU, em mau). Para uma introdução às características da sílaba no português brasileiro, remetemos o leitor ao trabalho de Collischonn (1996).

5. Houve apenas uma palavra hipersegmentada sob a forma pé troqueu + sílaba: parabéns. Essa palavra foi grafada como para beis (pelo sujeito feminino 5), para bems (pelo sujeito feminino 17) e para bes (pelo sujeito masculino 26).

Referências bibliográficas

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Agradecimentos

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