• Nenhum resultado encontrado

O OUTRO, DIFERENTE DE MIM, IGUAL A MIM 2014 Rio

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2022

Share "O OUTRO, DIFERENTE DE MIM, IGUAL A MIM 2014 Rio"

Copied!
9
0
0

Texto

(1)

1 O OUTRO, DIFERENTE DE MIM, IGUAL A MIM – 2014 Rio

1. O outro diferente de mim, o outro como eu

No decorrer da segunda metade do século XX, o outro e a alteridade se tornam, com uma frequência sempre maior, um dos temas mais recorrentes da reflexão filosófica.

Gadamer, por exemplo, destaca que o outro não é somente o outro diferente de mim, isto é, o absolutamente e radicalmente outro, mas é também e sobretudo o outro como eu, ou seja, aquele que participa da minha própria humanidade e pelo qual de vários modos sou responsável.

Mais recentemente Marion destaca que a relação que por excelência nos une ao outro, ou seja, o amor, não é um aspecto periférico e secundário da existência humana, mas o centro.

A subjetividade individual, ao seu ver, não nasce de uma instância cognitiva (o que posso conhecer?), mas de uma necessidade relacional (existe alguém que me ama?).

A partir destas reflexões recém acenadas, emerge com evidência um modelo antropológico que põe em destaque o outro e o inevitável relacionamento que nos liga a ele. Não é o indivíduo, mas o estar com, o encontro com o outro, que é colocado em maior evidência. Nesta perspectiva, a abertura ao outro e o “reconhecimento” deste, individuados como aspectos centrais da experiência intersubjetiva, se tornam elementos originários e constitutivos para cada homem.

Redescoberta a alteridade, é preciso então reservar uma atenção específica à dimensão da relacionalidade. Faz-se necessário passar da perspectiva do outro como pura alteridade, à perspectiva do outro como outro em relação.

Quais são as características da relação, seja no plano fenomenológico que psicológico?

Que papel ela reveste na gênese, na evolução e na maturação de cada ser humano?

Quais elementos qualitativos devem diferenciá-la para que essa possa constituir uma interface em condições de nos fazer atingir o “outro” e de “nos revelarmos” a nós mesmos?

Foi sobretudo a pesquisa em âmbito psicológico que, nestas últimas décadas, procurou dar uma resposta a estas interrogações, destacando nas relações a dimensão constitutiva da vida psíquica humana.

A psicologia do último século afirma que a mente é relacional e que o relacionamento com o outro funda e dá sentido à identidade psíquica de cada indivíduo1. Não só a mente é relacional, mas a sua relacionalidade se nutre constantemente de uma dinâmica feita de reciprocidade. Cada mente subsiste e se organiza à medida que estabelece contatos intersubjetivos, ativa a “leitura” de outras mentes, experimenta a “interpretação” de outras mentes em uma dinâmica relacional de reciprocidade2.

Nos últimos anos as neurociências têm demostrado como o nosso sistema nervoso é constituído de forma a ligar-se ao dos outros seres humanos, a ponto de poder fazer a experiência do outro, “como se” estivéssemos na pele do outro3. A vida mental de cada indivíduo humano é fruto de uma “matriz intersubjetiva”, ou seja, de um contínuo diálogo com a mente dos outros4.

Tal matriz está presente desde o nascimento na psiché de cada indivíduo5. Braten apresenta a hipótese de que esta nasce com um outro virtual na mente6.

______________________________

1 Cf. S.A. Mitchell, Il modello relazionale. Dall’attaccamento all’intersoggettività, tr. it., Raffaello Cortina, Milano 2002; D.J. Siegel, La mente relazionale. Neurobiologia dell’esperienza interpersonale, tr. it., Raffaello Cortina, Milano 2001.

2 Cf. D.N. Stern, Il momento presente, op. cit.

3 Cf. G. Rizzolatti, C. Sinigaglia, So quel che fai. Il cervello che agisce e i neuroni specchio, Raffaello Cortina, Milano 2006.

4 Cf. J. Bruner, La ricerca del significato. Per una psicologia culturale, tr. it. Bollati Boringhieri, Torino 1999; D.N.

Stern, Il mondo interpersonale del bambino, tr. it., Bollati Boringhieri, Torino 1998.

5 Vanno in tale direzione gli studi condotti da Stern sui neonati.

6 Ciò lascia intuire che la prima relazionalità è all’interno dell’individuo stesso.

(2)

2 Todavia, a reciprocidade sobre a qual tem base a matriz intersubjetiva da mente não constitui um fim “último”, suficiente para conter a complexidade e a potencialidade do indivíduo humano. O desafio atual da psicologia consiste talvez no colher e teorizar também aquela forma particular de reciprocidade, ainda de tudo inexplorada, que torna possível a comunhão entre os indivíduos e que se enraiza no dom de si, na gratuidade, na incondicional acolhida.

2. O dom e a reciprocidade relacional

Chiara Lubich na sua lição magistral em Malta, reserva ao tema do dom algumas considerações, que podem ser úteis se repassadas no âmbito desta nossa reflexão. São três as passagens sobre as quais devemos nos ater. Em primeiro lugar, esta exprime a consideração de que o homem contemporâneo deva recuperar um “Eu integral”.

Um “Eu”, por assim dizer, capaz de se libertar dos modelos culturais dominantes que o empurram de modo acrítico em direção à posse, para abrir-se a uma experiência enriquecedora de comunhão com os outros. Com isso a integridade do Eu se torna, por diferentes motivos, ligada à capacidade de doar (de esvaziar-se, de despir-se), e à possibilidade de experimentar uma relação de comunhão com os outros7.

Em uma segunda observação, de acentuada conotação psicológica, Chiara Lubich traz à tona o tema crucial do reconhecimento. O indivíduo não pode delinear singularmente a própria identidade sem a necessária presença dos outros, sem a contribuição indispensável destes, sem que estes o

“reconheçam” na sua irrepetível subjetividade.

Além do mais, esta liga a possibilidade de reconhecimento à qualidade da experiência relacional.

Nem todas as experiências relacionais, de fato, estão em condições de produzir e de assegurar reconhecimento, mas somente aquelas que se fundamentam sobre a “autenticidade” do encontro e estão abertas à reciprocidade.

Em uma passagem ulterior, coloca em evidência o vínculo que une o “reconhecimento”, o “dom” e a “comunhão”. Por fim, conclui-se que aquilo que cada indivíduo percebe e manifesta, não é jamais um fim em si mesmo, não é jamais concluído em si, mas é fundamentalmente aberto ao outro, ao

“dom” a ele voltado.

A relação de comunhão, portanto, e não uma outra relação qualquer, torna possível o reconhecimento autêntico da diversidade e é capaz de fazer germinar o dom, em uma perfeita circularidade que, ao mesmo tempo, cria e “funda” o “homem”, a “relação humana”.

Não podemos deixar de nos perguntar se, e em qual medida as intuições originais de Chiara Lubich encontram um comparativo em outros tipos de conhecimento, pioneiro entre todos aqueles da psicologia. Como estímulo de tal verificação está a centralidade atribuída à Chiara Lubich na experiência do reconhecimento e a sua afirmação “audaciosa” segundo a qual a instância de reconhecimento não se conclui jamais em si mesma, mas destinada a cada momento a transformar- se em dom ao outro.

Já na pesquisa filosófica que caracterizou o século passado, alguns pensadores destacaram a doação de si como elemento determinante e central para a própria compreensão do ser.

É sempre o dom, e em particular o “dom pressuposto” do reconhecimento, a tornar “humana” cada relação, a fazer de cada um de nós um “ser humano”.

O “dom pressuposto” é a experiência na qual podemos doar ao outro a nossa capacidade de

“reconhecê-lo”, de nos colocarmos diante dele a partir do seu ponto de vista, da sua perspectiva pessoal. O homem e a qualidade humana de cada relação, portanto, se originam deste comportamento fundamental, desta disponibilidade indispensável a reconhecer a unicidade e a diferença do outro.

______________________________

7 Sulla “comunione”, sulle sue caratteristiche relazionali e sulle sue implicazioni psicologiche cfr. S. Magari, P.A.

Cavaleri, Il senso del sé, l’incontro con l’altro e l’accettazione del limite, in “Nuova Umanità”, XXXI, n. 183, 2009, pp.

379-394.

(3)

3 Se de um lado o reconhecimento gera o dom, é também verdade que o ato de reconhecer já é um dom em si, um “dom pressuposto”.

Existe um elo vital entre a realidade do dom e a experiência de reconhecimento. O que torna possível o dom é o reconhecimento.

O dom cria o vínculo social e a partir deste é gerada a sociedade do homem. Porém, por sua vez, este pode ter lugar se o doador possui em si por inteiro a capacidade psicológica de reconhecer o doador, o destinatário do dom, colocando-se no seu lugar, vendo a realidade através de seus olhos e de sua sensibilidade.

É a partir desta complexa experiência psicológica, constituída por reconhecimento e por empatia8, que nasce não somente a realidade do dom, mas também a definição da identidade individual.

Aprendo a me reconhecer porque alguém já me reconheceu na minha diferença, que não pretendo reter para mim e a qual estou agora pronto a fazer-lhe dom. Nesta dinâmica psicológica, fundada sobre a reciprocidade e sobre a circularidade da relação, a identidade subjetiva pode continuar a existir e a alimentar-se somente se permanecer “aberta” ao outro, somente se se transformar

em um dom ulterior ao outro, em um reconhecimento ulterior dele.

A mente humana é sadia quando possui algumas competências relacionais estratégias, que a permitem sair de si para “abrir-se” a uma realidade social feita de múltiplas diferenças, ou seja, quando é capaz de “perceber” de forma adequada os outros e a diversidade da qual são portadores, quando é capaz de “sentir” as emoções alheias e de intuir corretamente os pensamentos.

3. O perdão como expressão máxima do dom

As “pré-condições psicológicas” que possibilitam o dom são procuradas sobretudo na capacidade do doador de querer, de reconhecer e de ser empático. Se trata de capacidades indispensáveis que encontramos como elementos importantes para uma experiência muito próxima ao dom: o perdão9. O perdão, de fato, apresenta vários aspectos e numerosas características psicológicas em comum com o dom. Do mesmo modo, o perdoar constitui uma das expressões mais importantes do doar, com cada probabilidade a sua forma mais alta.

Haveria entre o dom e o perdão uma espécie de raiz comum constituída pela experiência de culpa, vivida desde sempre e em qualquer lugar por todo ser humano10. O nascimento seria ao mesmo tempo dom e culpa. Colocados diante do imenso dom da vida, ou seja, do “dom original”, nenhum de nós é capaz de retribuir, resultando num sentir-se em débito, e portanto em culpa11.12.

A culpa humana se coloca no horizonte da transgressão voluntária. O fato de que cada culpado possa ser perdoado demonstra que a injustiça por ele cometida não entra na esfera da necessidade.

A culpa humana se coloca sempre no interior de uma relação livre entre vontades finitas que, justamente por isso, podem cometer erros. A partir do momento em que esta relação livre é destruída, a pessoa injusta se torna então “culpada”.

Embora a punição produza o efeito de restituição da justiça infringida, somente o perdão permite ao culpado a plena reentrada no âmbito da justiça. Fundamentando-se sobre a absoluta gratuidade do dom, o perdão é capaz de criar de modo radical uma “relação nova”.

______________________________

8 Moreno distingue l’empatia da Tele. Quest’ultima è rapporto in doppio senso. La reciprocità Telica è la caratteristica comune ad ogni esperienza di incontro vero.

9 Sugli aspetti psicologici del perdono cfr. E. Molinari, A. Ceccarelli, Il processo del perdono: aspetti psicologici, in

“Rivista di Psicologia Clinica”, 2007, n.3, pp. 242-251.

10 Cf. A. Malo, Dono, colpa e perdono. Elementi per una fenomenologia del perdono, in B. Barcaccia, F. Mancini (a cura di), Teoria e clinica del perdono, Raffaello Cortina, Milano 2013, pp. 1-15.

11 Cf. P. Gilbert, Sapere e sperare. Percorso di metafisica, tr. it., Vita e Pensiero, Milano 2003.

12 Cf. A. Malo, Io e gli altri. Dall’identità alla relazione, EDUSC, Roma 2010.

(4)

4 No perdão a culpa não é destruída nos seus efeitos, nem condenada, mas é “transfigurada” pelo dom, que abre assim novos espaços seja para a vítima que para o culpado: “Com o perdão a vítima se liberta de uma relação com o culpado, dominada por emoções negativas como o rancor e/ou ódio, enquanto que o culpado recebe a graça de poder recomeçar um novo relacionamento consigo mesmo e talvez até mesmo com o ofendido”13.

Colocando-se fora da necessidade natural, o perdão implica no “jogo livre de duas liberdades”, aquela do ofendido e aquela do culpado, que podem se abrir ou se fechar, mas sem por isto ser

“forçadas por nenhuma lei cósmica”. O perdão opera, especialmente sobre um plano psicológico, uma “ruptura na necessidade natural” que remete à culpa.

Graças ao perdão, somos colocadas diante de um novo tipo de justiça, uma justiça que não é mais simétrica. O perdão é a perfeição do dom recebido porque “perdoando se doa aos outros a vida, no sentido que estes podem se regenerar, retomando sua liberdade de modo novo, sem o peso proveniente dos processos de necessidade resultante da culpa e de relações contaminadas pelo mal.

O perdão, portanto, é a novidade no âmbito dos relacionamentos humanos que gera novidade”14. Embora a “novidade” do perdão apareça em toda a sua evidência, alguns pensadores do nosso tempo se perguntam se o perdão é sempre possível.

O dom se inspira em uma lógica inteiramente focada à promoção da gratuidade e da novidade nos relacionamentos entre os seres humanos.

Considerações semelhantes podem ser aplicadas igualmente ao perdão. Certamente a inspiração para aquele que perdoa não está na expectativa de um agradecimento, de alguma forma de admiração ou de reconhecimento, mas ao contrário na vontade de se libertar de um relacionamento permeado de negatividade tóxica, e no desejo de sustentar um processo positivo de “regeneração”

no culpado.

A gratuidade do perdão possibilita a “transfiguração” da culpa. Todavia, tal “transfiguração” não se deve somente ao perdão gratuito expresso pela pessoa ofendida, mas também pela sua aceitação por parte da pessoa culpada: “Perdoar, como doar, implica a relação máxima entre liberdades: O dom que o ofendido concede existe realmente como perdão somente se este puder ser recebido pela parte culpada.”15.

A gratuidade e a plena liberdade dos sujeitos envolvidos se tornam então elementos incisivos de ruptura, capazes de desmantelar não só a lógica mencantil da reciprocidade, mas também a necessidade da culpa e da sua punição, a própria inevitabilidade da vingança.

O perdão se apresenta como uma experiência vital que abre o ser humano a um percurso evolutivo regenerador com implicações inimagináveis. Uma evidência assim tão clara não pode nos induzir a omitir as numerosas ciladas que, com frequência tornam dolorosos e martirizantes os percursos impenetráveis de quem perdoa16.

As relações interpessoais satisfazem as necessidades humanas mais produndas de pertença e de segurança afetiva, mas são também a fonte de algumas das feridas mais dolorosas. Quando as ofenças ganham vida, emoções negativas como a raiva e o ressentimento são reações comuns que criam uma potencial ruptura da relação em questão17.

Já no final dos anos quarenta Victor Frankl salientava o valor terapêutico que reveste a atribuição de um significado, não somente àquilo que se vive, mas também àquilo a que se é obrigado a submeter18.

______________________________

13 A. Malo, Dono colpa e perdono, op. cit., p. 9.

14 Ibidem, p. 11.

15 A. Malo, Dono, colpa e perdono, op. cit., p. 14.

16 Cf. C. Regalia, F.G. Paleari, Perdonare, il Mulino, Bologna 2008; R. Rizzi (a cura di), Itinerari del perdono.

Dall’individuo al gruppo, dalla terapia alla patologia, dall’offerta alla domanda, Unicopli, Milano 2010.

17 Cf. F.K. Fincham, G. Paleari, C. Regalia, Forgiveness in marriage: the role of relationship qualità, attributons and empathy, in “Personal Relationship”, 2000, n. 9, pp. 27-37.

18 Cf. V. Frankl, Uno psicologo nei lager, tr. it., Ares, Milano 1995; Id., Homo patiens. Soffrire con dignità, tr. it., Queriniana, Brescia 1998.

(5)

5 A possibilidade de atribuir significados adequados aos eventos da própria vida é uma prerrogativa exclusivamente humana e é no exercício de tal prerrogativa que a pessoa passa a experimentar-se protagonista ativo da própria existência, capaz de criar novas respostas e de atingir novas perspectivas, restituindo a harmonia a tudo aquilo que foi desarrumado pela imperfeição do limite.

A possibilidade de superar o sofrimento de uma experiência negativa de difícil aceitação está ligada ao esforço de não concentrar-se somente na perda recente, mas de expandir os horizontes para descobrir novas perspectivas, para criar novas estratégias de adaptação, para descortinar novos pontos de vista e vantagens até então inesperadas. Neste delicado processo de transformação, a prática do perdão tem um papel determinante.

De modo contrário, na falta do perdão, a raiva se autoalimenta de forma notória, chegando algumas vezes a níveis patológicos e produzindo logo duas estratégias instintivas como a vingança e a evitação19.

Atuar a vingança, desejá-la ou planejá-la, aciona vários processos emocionais e cognitivos de resultados imprevisíveis, que não raro se voltam contra o próprio agente. A vingança produz normalmente conseqüências indesejáveis, tais como conflitos interpessoais exacerbantes. Do desejo de vingança ou do seu preparo lento originam-se outros tantos efeitos negativos, como a estressante ruminação mental, ou a nociva focalização da atenção e das energias psíquicas seja na injustiça sofrida, seja no ofensor que foi a causa, resultando em um maior estado de ânsia e de distorção cognitiva do acontecido.

É muito difundida, especialmente no mundo ocidental, a opinião na qual o extravasar a agressividade de qualquer modo, descarregar a raiva, dar espaço à vingança, tenha um efeito catártico, melhore o estado emotivo, ajude a restabelecer o equilíbrio perdido, a libertar-se enfim daqueles sentimentos negativos que sempre acompanham a experiência de ter sido injustiçado.

Na realidade, parece que extravasar a própria raiva não ajude propriamente a extinguir-la, mas ao contrário, produz um efeito indesejado de fazê-la aumentar ulteriormente20.

Em contrapartida, os efeitos positivos que o perdão produz à saúde mental e ao bem estar psicofísico do ser humano, os múltiplos efeitos positivos que a prática deste afeta no plano psicoterapêutico, impulsionaram diversos especialistas a elaborar alguns modelos de intervenção que, de modo específico, têm a finalidade de promover a prática do perdão21.

Se perdoar o outro é uma tarefa árdua e complexa, ainda mais difícil é perdoar a si próprio22. Não é raro encontrar-se diante de situações aparentemente paradoxais, nas quais o ofensor recebe o dom do perdão da própria vítima, mas contudo não consegue perdoar a si próprio a infração cometida, permanecendo muito enraivecido consigo mesmo, prisioneiro dos próprios erros, incapaz de ir além dos próprios limites e de redimir-se adequadamente.

Alguns autores consideram a capacidade de perdoar a si próprio como uma expressão direta da capacidade de aceitar as próprias culpas.23 Conseguimos nos perdoar se estivermos familiarizados com os nossos limites reais, se soubermos quem realmente somos. É esta plena consciência que nos faz sentir mais livres e mais motivados a mudar.

______________________________

19 Cf. C. Regalia, G. Paleari, Perdonare, il Mulino, Bologna 2008.

20 Cf. B.J. Bushman, Does venting anger feed or extinguish the flame? Catharsis, rumination, distraction, anger and aggressive responding, in “Personality and Social Psychology Bulletin”, 2002, n. 28, pp. 724-731.

21 Cf. R.D. Enright, J. North, Exploring forgiveness, The University of Wisconsin Press, Madison 1998; E.

Worthington, L’arte del perdono, tr. it., Eco, Milano 2003. Worthington, in particolare, delinea un processo che si articola in quattro fasi: ricordare l’offesa subita; identificarsi empaticamente con chi ha offeso; offrirgli il dono del perdono; impegnarsi pubblicamente a perdonare; tenere saldo il proprio proposito.

22 Cf. N. Petrocchi, B. Barcaccia, A Couyoumdjian, Il perdono di sé. Analisi del costrutto e possibili applicazioni cliniche, in B. Barcaccia, F. Mancini (a cura di), Teoria e clinica del perdono, Raffaello Cortina, Milano 2013, pp. 185- 227.

23 Cf. M. Conran, Some consideretion of shame guilt and forgiveness derived principally from King Lear, in “Revista de Psicoanalisis”, 1993, n. 50, pp. 839-857.

(6)

6 Se a incapacidade de perdoar o outro faz emergir o evitamento, a incapacidade de perdoar-se evidencia a tendência a fugir de emoções ou de aspectos da própria personalidade, considerados dissonantes ou incoerentes com o próprio Eu ideal. Diferentemente do perdão interpessoal, que pode ocorrer até mesmo sem a reconciliação entre ofensor e vítima, não é possível perdoar-se sem uma plena reconciliação consigo mesmo24. É muito provável que a capacidade de perdoar a si próprio facilite de alguma forma a capacidade de perdoar o outro, mas a orientação dos especialistas é a de considerar as duas capacidades como dois processos mentais bastante distintos25. A intervenção clínica sobre o auto-perdão deve levar especialmente em consideração duas importantes emoções: a culpa e a vergonha26. O emergir da culpa, após ter cometido um erro, constitui um evento positivo e funcional por implicar em uma necessidade de reparação, favorecendo o arrependimento.

A vergonha, por sua vez, é uma emoção voltada para si, não em um aspecto particular, mas na sua inteira globalidade. Quem se envergonha de si, se envergonha de como é no seu todo, na sua inteireza e isso não exige nenhuma forma de reparação. A única necessidade ligada à vergonha é aquela de desaparecer, de anular-se, de retirar-se definitivamente do mundo27.

O perdão produz notáveis efeitos positivos, não somente no bem-estar psicológico, mas também na saúde física do paciente28. Algumas pesquisas demonstram que o auto-perdão favoresce uma influência positiva sobre a saúde mental e física em uma medida maior que a do perdão interpessoal, mostrando-se crucial na adaptação psicológica a algumas doenças orgânicas de particular gravidade29.

A possibilidade de perdoarmo-nos, portanto, aparece fortemente condicionada pela nossa disponibilidade a descobrirmo-nos limitados, com tantos defeitos e muitas fragilidades. Podemos perdoarmo-nos somente se soubermos aceitar aquilo que realmente somos, renunciando de modo definitivo a tantos mitos, cômodos e tranquilizadores, que elaboramos sobre nós mesmos com o passar do tempo. O auto-perdão, portanto, não pode por certo ser indolor. Este implica sempre em um confronto “cru” e sofrido consigo mesmo, mas também em uma sadia reelaboração da própria identidade.

Não é por acaso que o auto-perdão, como elemento-chave de um percurso terapêutico eficaz, tenha hoje se tornado objeto de grande interesse, especialmente em referência a formas específicas de transtornos mentais que parecem caracterizar o nosso tempo, como os distúrbios do comportamento alimentar e as diversas expressões da dependência patológica30.

Assim como o dom, também o perdão se torna uma atitude psicológica decisiva para o reconhecimento do outro, em particular para o reconhecimento dos seus limites, vividos como experiência de uma condição humana feita de insufiência. Alguns estudos a este respeito evidenciaram a empatia como sendo uma das variáveis que mais influenciam a capacidade de perdoar os outros.

______________________________

24 Cf. R.D. Enright, Counseling within the forgiveness triad, op. cit.

25 Cf. N. Petrocchi et al., Il perdono di sé, op. cit.

26 Cf. M.L. Fisher, J.J. Exline, Self-forgiveness versus excusing: Removing barriers related to shame, guilt, and regret, in “Social and Personality Psychology Compass”, 2010, n. 4, pp. 548-558.

27 Cf. P.E. Ricci Bitti, P. Boggi Cavallo, P.L. Garotti, Antecedenti situazionali, espressione e regolazione del senso di colpa, in C. Castelfranchi, R. D’Amico, I. Poggi (a cura di), Sensi di colpa, Giunti, Firenze 1994, pp. 203-217.

28 Cf. T. Wilson, A. Milosevic, M. Carroll, K. Hart, S. Hibbard, Physical health status in relation to self-forgiveness and other-forgiveness in healthy college students, in “Journal of Health Psychology”, 2008, n. 13, pp. 798-803.

29 Cf. C.M. Avery, The relationship between sefl-forgiveness and health : Mediating variables and implications for well-being, in Dissertation Abstracts International: Section B : The Sciences and Engineering, Vol. 69, 3-B, 2008, pp.1939; L.C. Friedman, C. Romero, R. Elledge, J. Chang, M. Kalidas, M.F. Dulay, G.R. Lynch, C.H. Osborne, Attribution of blame, self-forgiving attitude and psychological adjustment in women with breast cancer, in “Journal of Behavioral Medicine”, 2007, n. 30, pp. 351-357.

30 Cf. M. Scherer, E.L. Worthington, J.N. Hook, K.L. Campan, Forgiveness and bottle: Promoting self-forgiveness in individuals who abuse alchol, in “Journal of Addictive Diseases”, 2011, n. 30, pp. 382-395; M.J. Watson, J.A.

Lydecker, R.L. Jobe, R.D. Enright, A. Gartner, S.E. Mazzeo, E.L. Worthington JR, Self-forgiveness in anorexia nervosa and bulimia nervosa, in “Eating Disordes: The Journal of Treatment & Prevention”, 2012, n. 20, pp. 31-41; M.J.A.

Wohl, T.A. Pychyl, S.H. Bennet, I forgive myself, now I can study: How self-forgiveness for procrastinating can reduce future procrastination, in “Personality and Individual Differences”, 2010, n. 48, pp. 803-808.

(7)

7 Toda relação na qual somos protagonistas exige sempre a disponibilidade à reconciliação, ao zelo pelos laços e à plena dedicação. A relação pode perdurar no tempo e desenvolver-se de modo positivo se, através dela, os parceiros envolvidos exprimem a capacidade de reconhecer a legítima diferença do outro, de perdoarem-se por serem diferentes do quanto supunham, de fazer-se dom de confiante e acolhedora hospitalidade.

4. Descobrir o outro como irmão nos limites comuns

O dom se torna possível não somente pela diversidade do outro, mas também pelo seu limite, pela sua necessidade, pela sua falta ou deficiência. O dom não poderia existir se não em resposta a uma finitude que o outro possa apresentar. Portanto o limite não somente torna possível o dom, mas se torna também um aspecto importante e indispensável da relação recíproca. Precisamos uns dos outros de tantos modos, precisamos de “algo” que não temos e que no entanto é necessário a nossa vida para nutrir-se, para crescer, para ganhar forma.

Este “algo” nos remete continuamente a nossa finitude, é o marco inequívoco da nossa dependência recíproca, da nossa dependência comum do dom que nos vem a partir do outro.

Para o homem de hoje, uma das expressões mais típicas da dificuldade de atingir o sentido de si parece ser justamente a não aceitação do limite.

Um contributo interessante neste sentido pode vir da espiritualidade da unidade.

Chiara Lubich, de fato, identifica no limite da condição humana um limite de forte valia psicológica (dores, vazios, falências, tristezas), o obstáculo mais relevante à realização de si na comunhão com o outro. Mas indica, no assumir tal limite, a possibilidade de sua superação, e isto com base no exemplo do homem novo, de Jesus crucificado e abandonado.

A intuição de que o ato de assumir o limite seja a porta de acesso a sua própria superação não é totalmente estranha à psicologia do século passado.

A coragem de se expor à derrota e a determinação a aceitar e a “atravessar” o limite se delineiam como comportamentos que embasam a saúde mental de um indivíduo. Ao contrário, a recusa da derrota e o ato de não assumir o limite remetem a uma personalidade psicologicamente perturbada.

O neurótico é aquele que não consegue assimilar o fracasso da morte, a ferida da derrota, a frustração do falimento31.

A experiência do sofrimento constitui uma passagem insuprimível de cada processo de crescimento.

Em consequência disto, o comportamento mental de “abertura” e até mesmo de “abandono” em direção a dor promove o crescimento e uma rápida superação das próprias dores. Ao contrário, o comportamento de “fechamento” e de “resistência” ao sofrimento bloqueia o crescimento e alimenta os sintomas neuróticos32.

O fracasso, o falimento, constituem situações concretas nas quais o indivíduo é “desafiado” pela realidade, é forçado a “transcender-se”, a ir “além”. Colocado diante do próprio destino, o homem tem sempre algo sob seu poder. Ele tem, de certo modo, a possibilidade de criar, de experimentar escolhas ainda inéditas, de ativar energias e potencialidades latentes, de elaborar novos significados33, de colocar em ação a transformação da própria personalidade34.

Se permanecemos no interior de um horizonte psicológico monopessoal e intrapsíquico, o limite se manifesta ao homem através da sua condição e da sua história, através de cada uma daquelas experiências que comportam para ele o risco da frustração, da derrota, do fracasso. O fato de não assumir este limite produz o bloqueio evolutivo e a patologia psíquica.

______________________________

31 Cf. E. Becker, Il rifiuto della morte, tr. it., Paoline, Roma 1982.

32 Cf. F.S. Perls, R.F. Hefferline, P. Goodman, Teoria e pratica della Terapia della Gestalt, tr. it., Astrolabio, Roma 1971.

33 Cf. V.E. Frankl, Alla ricerca di un significato della vita, tr. it., Mursia, Milano 1990.

34 Cf. R.May,L’arte del counselling, Astrolabio, Roma 1991

(8)

8 Se, superando a perspectiva monopessoal, nos colocamos em uma dimensão relacional, na qual o indivíduo faz a experiência de sujeito que co-constrói relacionamentos com outros sujeitos, então o limite passa a ser vivido como dificuldade em “reconhecer” as diferenças do outro e a “ser reconhecido” por ele na manifestação da própria identidade específica. Assumir o limite intrínseco na dificuldade toda relacional, reconhecer o outro e ser por ele reconhecido, significa sustentar a identidade alheia e alimentar a própria. Equivale a tornar possível a reciprocidade relacional, a construir assim a forma mais “sadia” de interação humana.

A proposta de Chiara Lubich abre um novo horizonte. Destaca a existência de uma forma ainda mais “evoluída” e complexa de vida relacional: a comunhão. Esta se baseia num modo “ulterior” de viver a reciprocidade que poderíamos definir como reciprocidade de comunhão, cujas características psicológicas e implicações emotivo-afetivas são significativamente diferentes daquelas que conotam a mais genérica reciprocidade relacional.

A reciprocidade de comunhão não implica somente o reconhecimento, a empatia e a aceitação recíproca das diferenças, mas presume a “total” hospitalidade do outro, a tensão à plena comunhão, a pertença recíproca, a abertura à completa condivisão, a radical disposição ao dom gratuito de si.

No horizonte psicológico que se abre através da relação de comunhão o limite se manifesta não tanto na falta de “reconhecimento” quanto na falta de “correspondência”. Eu me experimento tragicamente exposto a um novo limite, ou seja, à frustração e à solidão che derivam do não ser

“correspondido” com a mesma radicalidade, com a minha mesma disposição à abertura de comunhão.

O ato de assumir o limite, neste caso, se concretiza no fazer dom de mim ao outro, fazendo dom da minha espera frustrada, da minha expectativa não correspondida, de um “cenário” implicitamente condividido, que porém não consegue explicitar-se. Em síntese, trata-se de fazer dom gratuito de si a fim de que o outro emerja nos tempos, nas modalidades e nas diferenças através das quais se exprime a sua unicidade, a sua identidade individual.

É evidente, de fato, que tal “não-correspondência” pode inesperadamente ser originada também por mim. Não obstante a minha disponibilidade inicial, a reciprocidade de comunhão pode de repente encontrar em mim mesmo, na mia desmotivação, no meu fechamento, na minha retração, o bloqueio psicológico que a impede de evoluir. Também aqui, todavia, assumir o falimento, que desta vez se origina em mim, pode assim constituir o comportamento decisivo para reunificar novamente aquela trama relacional, forte e ao mesmo tempo delicada e frágil, que é a comunhão.

A capacidade de assumir as expressões multiformes do “limite psicológico” se mostra de modo conclusivo como a passagem-chave e determinante para alcançar a própria autorealização humana.

O ato de assumir o limite, que se refere ao relacionamento consigo mesmo, produz o crescimento pessoal e a capacidade de adaptar-se à “realidade” da própria vida. O ato de assumir o limite, que se refere ao relacionamento com os outros, cede lugar a relações mentalmente sadias, capazes de alimentar e apoiar o eu de cada parceiro. Enfim, o ato de assumir o limite, que se manifesta na ausência de “correspondência”, torna possível a reciprocidade de comunhão e, com essa, a forma mais elevada de relacionamento entre os homens, a comunhão, onde finalmente o sentimento de pertença e a identificação, unidade e multiplicidade, se integram em toda a sua plenitude.

Para realizar uma tal forma “evoluída” de relação, necessita-se recuperar e repercorrer as mesmas dinâmicas psicológicas daquele homem novo, daquele homem-comunhão, que Cristo mostrou sobre a cruz e que agora esperam para ser completamente entendidas pelo saber da psicologia. Desvelado o homem-natureza, descoberto o homem-relação, a psicologia é agora chamada a deparar-se com o homem-comunhão, que se realiza negando a si próprio, fazendo-se dom gratuito para o outro e tornando assim possível aquela relação de comunhão, na qual somente a família humana pode encontrar esperança para o próprio futuro e força para colocar-se além daquela densa obscuridão que hoje envolve e obstacula o seu caminho.

Simonetta Magari

(9)

9

* Nota do tradutor

As referências bibliográficas referentes às citações estão aqui apresentadas na língua original de cada obra. Para uma ulterior consulta às obras em língua portuguesa ou outra língua, sugere-se verificar sua existência através do site www.amazon.com, onde poderão ser pesquisadas pelo nome do autor e encontradas em todas as línguas nas quais foram editadas.

Referências

Documentos relacionados

Evidentemente, a língua portuguesa representa o Brasil. A valorização da mesma significa, por transferência de significado, uma valorização da nação brasileira. A comparação do

Assim como algumas comunidades estão organizadas a partir de um líder (empreendedor, por que não?) que em nome do seu trabalho – comerciante do tráfico de drogas –

HOSPITAL MEMORIAL AMIU BOTAFOGO CENTRO OFTALMOLOGICO BOTAFOGO CLIN CIRURGICA SANTA BARBARA CLÍNICA MÉDICA NEMER CHIDID MEMORIAL TODOS OS SANTOS ASSIM - CENTRO MÉDICO CAMPO GRANDE

Por outro lado, quando se fala em pequenas e médias empresas, onde o número de funcionários é maior, é mais bem dividida e o uso da Intranet se torna

´e aquele pelo qual a filosofia alem˜a traduziu, depois de Kant, o latim existentia, mas Heidegger deu-lhe um sentido muito particu- lar, j´a que designa na sua filosofia

Nas Lições de Epicteto há inúmeras passagens onde o tó soma é apresentado como o primeiro item listado entre aquelas coisas “não sobre nós”, ou seja, que não nos

No 8º dia após o último comprimido de DELLAX 20 e DELLAX 30 (ou seja, após os 7 dias da semana de intervalo), inicie a fita seguinte, mesmo que a hemorragia não tenha parado.

A raiva é uma doença viral que acomete os animais domésticos, silvestres e destes para o homem, causando uma doença com sintomatologia?. nervosa, aguda e fatal, levando ao óbito