UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE EDUCAÇÃO
MARÍLIA COSTA DIAS
Atendimento educacional especializado complementar e a deficiência intelectual: considerações sobre a efetivação do
direito à educação
São Paulo
2010
MARÍLIA COSTA DIAS
Atendimento educacional especializado complementar e a deficiência intelectual: considerações sobre a efetivação do
direito à educação
Dissertação apresentada à Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo para a obtenção do título de Mestre em Educação.
Área de concentração:
Estado, Sociedade e Educação
Orientadora:
Profa Dra. Rosângela Gavioli Prieto.
São Paulo 2010
Autorizo a reprodução e divulgação total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio convencional ou eletrônico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte.
Catalogação na Publicação Serviço de Biblioteca e Documentação
Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo
379.61 Dias, Marília Costa
D541a Atendimento educacional especializado complementar e a deficiência intelectual: considerações sobre a efetivação do direito à educação / Marília Costa Dias ; orientação Rosângela Gavioli Prieto. São Paulo:
s.n., 2010.
156 p.
Dissertação (Mestrado – Programa de PósGraduação em Educação. Área de Concentração: Estado, Sociedade e Educação)
Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo.
1. Direito à educação 2. Deficiência mental 3. Educação inclusiva I. Prieto, Rosângela Gavioli, orient.
F OLHA DE A PROVAÇÃO
Marília Costa Dias
Atendimento educacional especializado complementar e a deficiência intelectual:
reflexões sobre a efetivação do direito à educação
Dissertação apresentada à Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo para obtenção do título de Mestre.
Área de concentração: Estado, Sociedade e Educação
B
ANCA EXAMINADORA:
Profa. Dra. Rosângela Gavioli Prieto – FEUSP
______________________________________________
Profa. Dra Maria Teresa Eglér Mantoan – UNICAMP
______________________________________________
Prof. Dr. Romualdo Portella de Oliveira – FEUSP
______________________________________________
Dedico este estudo a todas as pessoas com deficiência intelectual, que inspiraram e deram sentido a cada palavra lida, verbalizada ou escrita. Dedico também a todas as pessoas que fizeram parte de alguma forma desta longa trajetória, participando do Grupo de Trabalho, ou me orientando sobre cada detalhe deste estudo, ou simplesmente sendo companheiros que suavizam e encantam a caminhada pelas estradas da vida.
R ESUMO
DIAS, Marília Costa. Atendimento educacional especializado complementar e a deficiência intelectual: reflexões sobre a efetivação do direito à educação. 2010. 156 p. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010.
O atendimento educacional especializado complementar para alunos com deficiência intelectual é uma das formas de se exercer o direito à diferença de modo a garantir a igualdade de oportunidades no processo de escolarização. E, para que a inclusão escolar desses alunos resulte em exercício do direito à educação, é necessário que a experiência escolar seja repensada do ponto de vista da gestão e dos resultados que dela se espera, tanto na esfera dos sistemas de ensino, como da gestão escolar e da sala de aula. Também é preciso que o professor especializado no campo da deficiência intelectual compreenda o funcionamento cognitivo para saber como fazer mediações pedagógicas que resultem em condições mais favoráveis à aprendizagem desses alunos. O presente estudo objetivou a construção de referenciais para a consolidação do atendimento educacional especializado complementar da APAE de São Paulo, como serviço de apoio aos sistemas de ensino na inclusão escolar do aluno com deficiência intelectual. Teve a pesquisaação como abordagem metodológica, o que implicou na constituição de um grupo de trabalho, formado pela pesquisadora e oito profissionais da APAE de São Paulo, para debater a prática do atendimento educacional especializado complementar para alunos com deficiência intelectual, à luz dos principais documentos que apresentam as diretrizes para esse tipo de atendimento, em âmbito nacional e local, e também a partir de contribuições teóricas que permitiram aprofundar conhecimentos sobre a mediação pedagógica para esses alunos. A construção dos referenciais gerou reflexões em duas perspectivas. A primeira diz respeito à concepção de que esse atendimento deve incidir sobre o funcionamento cognitivo, o qual se constitui como a principal barreira no processo de aprendizagem de pessoas com deficiência intelectual. E a complementaridade entre o professor especializado e o professor da classe comum exige mudanças na cultura dos profissionais de educação, pois ainda é frequente a concepção de que o professor especializado é o responsável pelos processos de ensino e de aprendizagem dos alunos com deficiência intelectual, mesmo quando eles estão inseridos na classe comum. A segunda perspectiva se relaciona às bases conceituais do atendimento, ou seja, ao aprofundamento teórico sobre a cognição e a sua indissociável relação com a afetividade e a linguagem no desenvolvimento humano.
PALAVRASCHAVE: Direito à educação. Atendimento educacional especializado. Deficiência intelectual.
A BSTRACT
DIAS, Marília Costa. Specialized complementary educational service and intellectual disability: considerations on implementing the right to education. 2010. 156 p. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010.
Specialized complementary educational service for students with intellectual disabilities is one way of putting into practice their rights so as to guarantee equal opportunities in the learning process. In order to make sure that the scholar inclusion of these students brings the right to education into practice, it is necessary that the scholar experience be reconsidered from the administrative point of view, as well as the expected results, in the sphere of teaching systems, school administration and in the classroom. It is also necessary that specialized professors in the field of intellectual disability understand cognitive function to be able to make pedagogical intermediations in the most favorable conditions for learning. The present study aimed to construct references for consolidation of a specialized complementary educational service APAE in São Paulo to support the teaching systems in the scholar inclusion of students with intellectual disability. The methodological approach was action research and it implicated in formation of a working group comprising a researcher and eight APAE professionals in São Paulo to debate the practice of specialized complementary educational service for students with intellectual disability in light of the main documents that present guidelines for this type of service, in the national and local scope, and also from theoretical contributions that permit indepth knowledge on pedagogical intermediation for these students. The construction of referentials brought forth reflections in two perspectives.
The first perspective is on the conception that this service would incur on cognitive function, which constitutes the main barrier in the learning process of people with intellectual disability. Complementarity between a specialized professor and a common classroom professor demands for changes in the culture of education professionals since conception that specialized professors are responsible for teaching and learning processes of students with intellectual disabilities is still frequent, even when these students are in common classrooms.
The second perspective is related to the conceptual basis concerning the service, that is, in
depth theoretical knowledge on cognition and its inseparable relation with affect and language in human development.
KEYWORDS: Right to education. Specialized educational service. Intellectual disability.
S UMÁRIO
1
I
NTRODUÇÃO ... 82
A
I
NCLUSÃOE
SCOLAR DOA
LUNO COMD
EFICIÊNCIAI
NTELECTUAL ... 172.1 DIREITO À EDUCAÇÃO ... 26
3
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TENDIMENTO ... 443.1 DIRETRIZES PARA IMPLEMENTAÇÃO DA PROPOSTA DE EDUCAÇÃO INCLUSIVA ... 56
4
A
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UNICIPAL DEE
DUCAÇÃOE
SPECIAL 63 4.1 A APAE DE SÃO PAULO ... 634.1.1 A ÁREA DE EDUCAÇÃO DA APAE DE SÃO PAULO ... 70
4.2 A POLÍTICA DE EDUCAÇÃO ESPECIAL NO MUNICÍPIO DE SÃO PAULO ... 75
5
M
ETODOLOGIA ... 816
C
ONSTRUÇÃO DOSR
EFERENCIAIS ... 956.1 CARÁTER COMPLEMENTAR DO ATENDIMENTO EDUCACIONAL ESPECIALIZADO ... 95
6.1.1 A INTERFACE DO ATENDIMENTO EDUCACIONAL ESPECIALIZADO COMPLEMENTAR COM A CLASSE COMUM ... 101
6.2 ASPECTOS CONCEITUAIS QUE FUNDAMENTAM O ATENDIMENTO EDUCACIONAL ESPECIALIZADO COMPLEMENTAR PARA A DEFICIÊNCIA INTELECTUAL ... 116
6.2.1 A EDUCAÇÃO COGNITIVA COMO ESTRATÉGIA DE TRABALHO ... 116
6.2.2 A DIMENSÃO AFETIVA NO DESENVOLVIMENTO HUMANO ... 121
6.2.3 A LINGUAGEM COMO FATOR DE DESENVOLVIMENTO ... 125
7
C
ONSIDERAÇÕESF
INAIS ... 128R
EFERÊNCIAS ... 137A
PÊNDICES ... 150
1 I NTRODUÇÃO
Nesta pesquisa, a prática da educação inclusiva foi objeto de reflexão, tendo como foco o atendimento educacional especializado complementar para alunos com deficiência intelectual1 que frequentam classes comuns do ensino fundamental – anos iniciais2
Em 2007, o Ministério da Educação (MEC) lançou um documento para formação continuada a distância de professores chamado: Atendimento educacional especializado em deficiência mental. Nesse documento há uma série de proposições que definem a natureza desse atendimento, explicitando que ele “existe para que os alunos possam aprender o que é diferente dos conteúdos curriculares do ensino comum e que é necessário para que possam ultrapassar as barreiras impostas pela deficiência” (BRASIL, 2007a, p. 22). Além disso, define que
.
[...] o atendimento educacional especializado para as pessoas com deficiência intelectual está centrado na dimensão subjetiva do processo de conhecimento. O conhecimento acadêmico referese à aprendizagem do conteúdo curricular; o atendimento educacional especializado, por sua vez, referese à forma pela qual o aluno trata todo e qualquer conteúdo que lhe é apresentado e como consegue significálo, ou seja, compreendêlo.
(BRASIL, 2007a, p. 23).
A tradução desses pressupostos em termos práticos ainda é um desafio para a educação especial, principalmente em se tratando de alunos com deficiência intelectual3
1 Neste texto será utilizada a expressão ‘deficiência intelectual’ e não ‘deficiência mental’, conforme Declaração de Montreal sobre a deficiência intelectual (OMS, 2004a).
, já que tradicionalmente a experiência dos professores especializados foi no sentido de substituir a escolaridade comum, portanto, até então, o objeto de ensino era os conteúdos escolares, ministrados para turmas pequenas e compostas apenas por esse alunado. Fazer a transposição de foco, proposta pelas novas diretrizes, não é algo simples, fácil ou direto.
2 Com a aprovação da Lei no 11.274, em 2006, o ensino fundamental passou a ter nove anos de duração com a inserção das crianças de seis anos de idade no primeiro ano dos anos iniciais, e a nomenclatura recomendada passou a ser ‘anos iniciais’ do primeiro ao quinto ano, e ‘anos finais’, do sexto ao nono ano (BRASIL, 2006).
3 Embora o públicoalvo da educação especial abarque os alunos com deficiência, com transtornos globais do desenvolvimento e com alta habilidade/superdotação, conforme a Resolução 4/2009 CNE/CEB (BRASIL, 2009a), neste texto o foco será apenas nos alunos com deficiência, e mais especificamente, os com deficiência intelectual.
Em 2008, a área de educação da Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (APAE) da cidade de São Paulo4
É importante destacar que neste estudo há uma estreita relação entre a experiência profissional da pesquisadora, o tema abordado, o problema a ser investigado e os objetivos da pesquisa. Por isso, fazse necessário relatar em breves linhas um pouco dessa trajetória para evidenciar esse entrelaçamento de interesses e reflexões. E com a intenção de facilitar a comunicação, temporariamente, será utilizado o discurso na primeira pessoa.
iniciou um processo de reformulação do trabalho, até então, desenvolvido com o objetivo de alinhar a educação especial com as diretrizes do MEC, ou seja, na perspectiva da educação inclusiva. E, nesse contexto, muitas questões permeavam as ações desenvolvidas pela equipe: se no atendimento educacional especializado complementar os conteúdos escolares não são objeto de ensino, o que devemos ensinar? Quais são as atividades que podem ajudálos a ultrapassar as barreiras impostas pela deficiência? O que se espera que os alunos com deficiência intelectual aprendam no atendimento educacional especializado?
Qual o papel do professor especializado em relação ao da classe comum?
Já trabalhava há 22 anos com educação quando assumi, em 2007, a coordenação do Serviço Especializado de Educação (SEE) – escola especial – na APAE de São Paulo. Até então, minha experiência como professora e coordenadora pedagógica era em escolas com propostas alternativas ao modelo mais conservador de educação e, portanto, minha perspectiva de atuação profissional já era de que o ensino deve ser diferenciado para se adaptar às características individuais dos alunos. Atuei muitos anos como capacitadora de outros professores e me especializei em didática, ou seja, meu foco era o “como ensinar” para garantir a aprendizagem de todos os alunos.
Nos seis anos que antecederam a minha entrada na APAE de São Paulo, vivi a enriquecedora experiência de trabalhar como coordenadora pedagógica em uma escola que procura colocar em prática as diretrizes da educação inclusiva. Lá, orientei a equipe de professores do ensino fundamental (primeira a quarta série5
4 Daqui para frente, neste texto, a organização será referida como a própria instituição se autodenomina, ou seja, como APAE de São Paulo.
) em relação ao trabalho pedagógico com vários alunos que apresentavam diferenças mais acentuadas no processo de aprendizagem, decorrentes de causas muito diversas. Alguns tinham deficiência intelectual, outros, transtorno
5 Nessa época a escola ainda funcionava como ensino fundamental de oito anos.
global de desenvolvimento6, dislexia7, deficiência auditiva8
Paralelamente a essa experiência, vivi outra durante sete anos, com igual riqueza do ponto de vista humano e profissional, assessorando os educadores da Fundação Projeto Travessia em questões relacionadas à educação de crianças e adolescentes que viviam em situação de risco social e pessoal
. E havia também aqueles que apresentavam atraso no processo de aprendizagem e no desenvolvimento, mas não tinham um diagnóstico que explicasse sua dificuldade escolar.
9
Nessas duas experiências meu foco profissional se definiu como inclusão escolar e social e quando me inscrevi no curso de mestrado minha intenção, ainda muito incipiente, era pesquisar a transição de algumas escolas para o paradigma da educação inclusiva. Aos poucos, essa ideia original foi modificando até constituirse na atual pesquisa.
.
Em setembro de 2007, provocada pela discussão sobre a versão preliminar da Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (PNEE), que acontecia em diferentes espaços e também na APAE de São Paulo, comecei a refletir sobre o foco da área de educação da organização. Isso resultou na decisão de fechar gradativamente a escola especial e centrar esforços no Serviço de Apoio à Inclusão Escolar (SAIE), considerando que um dos pilares do trabalho desenvolvido pela APAE de São Paulo é a inclusão10. Além disso, historicamente essa instituição, embora tenha um trabalho expressivo com a população com deficiência intelectual, não se constituiu como referência no atendimento dessas pessoas com comprometimentos caracterizados como deficiência grave e profunda11
6 Alunos com transtornos globais do desenvolvimento são aqueles que apresentam um quadro de alterações no desenvolvimento neuropsicomotor, comprometimento nas relações sociais, na comunicação ou estereotipias motoras. Incluemse nessa definição alunos com autismo clássico, síndrome de Asperger, síndrome de Rett, transtorno desintegrativo da infância (psicoses) e transtornos invasivos sem outra especificação, conforme Resolução CNE/CEB nº 4 de 2009 (BRASIL, 2009a).
e, numericamente, esses
7 “O termo dislexia [...] foi criado em 1887 para descrever dificuldade de leitura isolada. Infelizmente a palavra tem sido amplamente usada de forma inconsistente. Alguns ainda a usam somente para dificuldade específica de leitura, outros para dificuldade de leitura e escrita em conjunto, enquanto outros a usam para todos os tipos de dificuldade específica de aprendizagem.” (SELIKOWITZ, 2001, p. 10).
8 O termo ‘deficiência auditiva’ está sendo usado para se referir à diminuição da capacidade de percepção normal dos sons, por ser uma nomenclatura mais frequente, embora, para alguns autores, o mais correto seja o termo
‘surdez’, já que o déficit auditivo é determinado tanto por questões clínicas como sociais (DIAS; SILVA; BRAUN, 2007).
9 Ou seja, em situação de “abandono e tráfico; abuso, negligência e maus tratos nas famílias e nas instituições; vida nas ruas; trabalho abusivo e explorador; uso e tráfico de drogas; prostituição; conflito com a lei, em razão de cometimento de ato infracional” (PRÓMENINO, 2009).
10 Os outros pilares são prevenção e tecnologia.
11 A APAE de São Paulo ainda utiliza essa nomenclatura para diagnósticos médicos e psicológicos, em razão da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID 10), estabelecida pela Organização Mundial de Saúde (OMS), que utiliza a nomenclatura: retardo mental leve, moderado, grave e profundo.
casos têm menor ocorrência. Embora, nessa época, eu já soubesse que o grau de deficiência é sempre muito relativo, pois depende de vários outros fatores que são externos ao próprio sujeito, a decisão de trabalhar apenas no atendimento especializado complementar, tirou os casos mais complexos, pelo menos por algum tempo, do foco da organização, já que predominantemente seus atendidos não têm esse perfil.
No ano de 2008, assumi a coordenação do Centro Educacional, que incluía o SEE (escola especial) e o SAIE, e, assim, meu desafio se ampliou, pois passei a acompanhar o processo de inclusão de alunos com deficiência intelectual que frequentam classe comum e a APAE de São Paulo para receber atendimento educacional especializado, no contraturno. Além de ser responsável por fazer a transição de todos os alunos da escola especial para a classe comum.
Comecei a me defrontar com todo tipo de problema, como resistência por parte das escolas e também da própria família, assim como casos de negligência e violência no ambiente familiar e comunitário. Nas escolas comuns, vários alunos tinham, e outros ainda têm, seu tempo de permanência reduzido, alguns chegando a 45 minutos diários, sob alegação de que esse procedimento é o melhor, considerando suas dificuldades para frequentar o espaço escolar.
Em muitos casos, conseguimos reverter a situação e garantir o mesmo tempo de permanência dos outros estudantes; mas, de modo geral, somente quando apelamos para os meios legais, explicando que esse procedimento pode ser caracterizado como discriminação, sendo passível de processo judicial, por meio do Serviço de Garantia e Defesa de Direitos da APAE de São Paulo, que desenvolve suas ações por meio do trabalho voluntário de vários advogados. Por outro lado, algumas famílias impedem que seus filhos participem de atividades promovidas pela escola, como saídas pedagógicas e eventos, por considerarem que eles não têm condições de participar como os outros. Há também famílias que não entendem quando seus filhos recebem tratamento diferenciado para garantir igualdade de oportunidades, como, por exemplo, a realização de atividades adaptadas, e se sentem discriminadas. Há ainda famílias que os consideram preguiçosos por não conseguirem ler e escrever e aplicamlhes castigos ou utilizam violência física como forma de educálos.
Diante desse contexto, passei a me indagar sobre o direito à educação, à igualdade, mas também à diferença, quando esta se faz necessária para garantir as mesmas oportunidades a todos os alunos, e sobre a qualidade da educação oferecida aos que apresentam deficiência intelectual, tanto do ponto de vista da escola comum quanto do atendimento educacional especializado complementar.
Em 2008, dediqueime à reestruturação da proposta de trabalho do SAIE para melhorar a qualidade do atendimento aos alunos, às famílias e às escolas e, assim, contribuir para criar condições mais favoráveis à inserção do aluno com deficiência intelectual na classe comum.
Para 2009, estabelecemos como meta implementar uma nova proposta de trabalho de atendimento educacional especializado para alunos com deficiência intelectual, de modo a possibilitar uma intervenção mais qualificada e com resultados efetivos.
Imersa nessa discussão sobre a inclusão escolar, o atendimento educacional especializado e seu caráter complementar à escola comum, foi se delineando a pesquisa em questão. A profissional da APAE de São Paulo e a aluna de pósgraduação, da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, se fundiram no contexto das muitas perguntas sem respostas, das inquietações sobre as práticas e teorias e da busca por resultados concretos na inserção de alunos com deficiência intelectual na classe comum. Assim, fomentouse minha necessidade de estudar, debater e pesquisar, para aumentar a qualidade do serviço oferecido aos estudantes com deficiência intelectual no atendimento educacional especializado, de modo a garantirlhes o direito à educação.
A partir desse ambiente de reflexão, discussão e estudo, foi concebida a pesquisa em questão, com o objetivo de construir referenciais para a consolidação do atendimento educacional especializado complementar da APAE de São Paulo, como serviço de apoio aos sistemas de ensino, na inclusão escolar do aluno com deficiência intelectual.
A proposta de educação inclusiva, preconizada pela política educacional brasileira vigente, é um tema que desperta calorosas discussões, enorme esforço reflexivo sobre a prática educacional e deu origem a muitas pesquisas científicas com o intuito de desvendar esse complexo fenômeno social e escolar.
No levantamento bibliográfico realizado em bancos de dados nacionais, foram encontrados vários estudos sobre o processo de inclusão escolar dos alunos com deficiência intelectual, isto é, sobre a inserção desses estudantes na classe comum. No entanto, não foram localizadas pesquisas que abordassem diretamente o atendimento educacional especializado complementar, o que leva a concluir que há poucos estudos relacionados ao objetivo deste trabalho.
De modo geral, as pesquisas sobre inclusão escolar dos alunos com deficiência intelectual revelam dificuldades para implementar a prática da educação inclusiva e não foi
encontrado nenhum estudo sobre experiências exitosas, como é possível ver na breve apresentação que segue do levantamento bibliográfico realizado.
Em pesquisa realizada por Petrechen (2006), constatouse que existe um processo de mudança em curso na direção da inclusão escolar; no entanto, os dados obtidos com professores de educação especial para alunos com deficiência intelectual, de 22 municípios do Estado de São Paulo, evidenciam que as ações são unilaterais, sem participação ativa e efetiva do corpo docente especializado, nesse sentido, são
[...] ações que não estão trazendo as mudanças necessárias na atuação dos professores e, conseqüentemente, não estão contribuindo nem para a qualidade de ensino nem para permanência dos alunos com deficiência mental na classe comum ou no ensino regular. (PETRECHEN, 2006, p.
110).
No âmbito da ação pedagógica, Schütz (2006), em sua pesquisa com professores do ensino fundamental da rede municipal de Itajaí (SC), constatou que, em relação aos alunos com deficiência intelectual em classe comum, “não há planejamento, nem organização da prática pedagógica por meio da utilização dos resultados da avaliação escolar, visto que na realidade, não há avaliação da aprendizagem desses alunos” (p. 127). A autora destaca ainda que os alunos com deficiência intelectual e/ou déficit cognitivo são excluídos de todo o processo de ensinar e aprender em sala de aula.
Zinole (2006), em pesquisa realizada em escolas de ensino fundamental da rede municipal de ensino de São Luís do Maranhão, constatou que as barreiras atitudinais e a formação de docentes são os problemas mais frequentes para a efetivação da inclusão escolar de alunos com deficiência intelectual no ensino fundamental. E os resultados da pesquisa evidenciaram que, do ponto de vista dos entrevistados, o principal benefício da inclusão escolar de alunos com deficiência intelectual é os demais membros da escola aprenderem a lidar e a conviver com essas pessoas. E a autora salienta que mudanças atitudinais precisam ocorrer em relação aos próprios professores que, muitas vezes, têm ideias preconceituosas em relação ao aluno com deficiência intelectual.
Em pesquisa sobre os diferentes saberes presentes na prática pedagógica de docentes que trabalham com alunos da primeira série, com deficiência intelectual, em escolas municipais de Uberlândia, Santos (2007) constatou, por meio do relato das professoras, que elas não
utilizam uma metodologia específica para ensinar o aluno com deficiência intelectual, pois desenvolvem o trabalho pedagógico a partir de experimentação. A pesquisadora constatou que os conhecimentos que mais influenciam a prática pedagógica, com os alunos portadores dessa deficiência, em classe comum, são os saberes pessoais e os experenciais, fruto de autoformação, pois os professores não possuem formação inicial para trabalhar com esse alunado.
Silveira e Neves (2006) realizaram pesquisa para identificar as concepções de pais e professores sobre a inclusão escolar de crianças com deficiência múltipla e os resultados indicaram que
[...] os pais percebem a deficiência do filho como algo que acarreta grande sofrimento e que traz comprometimentos sociais, principalmente relacionados ao trabalho. Os pais e os professores acreditam não ser possível a inclusão escolar dessas crianças, por conceberem o desenvolvimento delas como inexistente e por considerarem a escola de ensino regular despreparada para recebêlas. (p. 79).
Em pesquisa realizada por Gomes e Gonzalez (2008), tendo como objetivo explorar a configuração de sentidos de um aluno de 16 anos com deficiência intelectual acerca do seu processo de inclusão escolar, foi constatado que
[...] uma das maiores barreiras a ser transposta pelo aluno no processo de inclusão escolar diz respeito à organização simbólica da própria instituição escolar, que atrelada aos padrões massificadores do desenvolvimento humano, vem a se estruturar muito mais como uma prática social e compensatória do que formadora ao aluno, ao dimensionar sua diferenciação e não considerar adequadamente sua singularidade. (GOMES; GONZALEZ, 2008, p. 53).
Veltrone (2008) realizou pesquisa sobre a percepção dos alunos a respeito da inclusão escolar, na qual participaram dez alunos egressos de classe de escola especial e dez colegas de classe desses mesmos alunos com deficiência intelectual. Para a autora,
[...] as experiências de inserção de alunos com deficiências na classe comum não podem ser vistas a priori como algo bom ou ruim em si [...] Nestes casos, parece difícil até mesmo falar de sucesso ou fracasso porque em geral, observase que os alunos com deficiência vêem tanto aspectos positivos
quanto negativos nesta nova forma de escolarização. (VELTRONE, 2008, p 97).
Os resultados evidenciaram que as maiores conquistas dizem respeito à socialização, apesar de alguns alunos relatarem vivências de discriminação; e as maiores barreiras se referem à aprendizagem dos conteúdos curriculares, pois todos relataram dificuldade e sensação de culpa em relação a isso. Merece destaque a aprovação dos alunos ao serviço de apoio especializado, que no contexto desta pesquisa, ocorre por meio da itinerância de professores especializados.
Em pesquisa realizada por Barbosa e Moreira (2009), na qual analisaram 103 resumos de artigos publicados, nas áreas de educação e psicologia, entre 1994 e 2005, em bancos de dados internacionais, sobre a inclusão escolar de pessoas com deficiência intelectual, os autores identificaram escassez de estudos sobre o tema, o que os levou a concluir que “a produção científica analisada não tem gerado massa crítica capaz de facilitar o estabelecimento de arranjos inclusivos para pessoas com esse déficit. No Brasil, as evidências são de que o estado da arte é muito mais limitado” (p. 350).
Em síntese, no Brasil, e em outros países, a educação inclusiva é uma política educacional relativamente recente, que vem gerando mudanças significativas nas escolas e nos sistemas educacionais, contudo é possível afirmar que a prática ainda precisa avançar no sentido de uma educação verdadeiramente para todos. Há um longo caminho a ser percorrido, que requer mudanças na concepção de educação e também na sociedade, pois a vivência da educação inclusiva implica necessariamente em uma comunidade inclusiva, em um entorno de compreensão e valorização dos direitos humanos.
Por esse motivo, nesta pesquisa, fezse necessário um resgate histórico e a análise de alguns aspectos conceituais relacionados à inclusão escolar dos alunos com deficiência intelectual. Para tanto, na primeira parte deste texto, explorase algumas ideias relacionadas a conceitos, tais como ‘inclusão escolar’, ‘educação inclusiva’,‘direito à educação’, ‘educação especial’ e ‘atendimento educacional especializado’.
Na segunda parte, é apresentado um estudo sobre os avanços na compreensão da deficiência – particularmente da deficiência intelectual –, assim como sobre as formas de atendimento a pessoas com tal deficiência, em nosso país, incluindo os pressupostos que fundamentam o atendimento educacional especializado.
Considerando que, neste estudo, temse como objeto de reflexão o atendimento educacional especializado, oferecido pela APAE de São Paulo, para alunos da rede municipal de ensino, explicitouse o trabalho desenvolvido por essa organização e também a política municipal de educação especial.
Na sequência, é apresentada a fundamentação da metodologia utilizada, em que se usou uma abordagem qualitativa e a pesquisaação como opção metodológica, por tratar de um problema que emergiu da própria equipe da APAE de São Paulo e que, necessariamente, envolveria sua participação na busca por respostas, ou seja, na produção de conhecimento.
Logo após a parte que se refere à metodologia, é descrito e analisado o processo que resultou na construção dos referenciais para o atendimento educacional especializado complementar de alunos com deficiência intelectual, o qual inclui o estudo de referenciais teóricos para definir os conteúdos de aprendizagem desse atendimento, e as discussões sobre a interface com o trabalho realizado na escola comum.
Por fim, são apresentadas as considerações finais e as referências adotadas nesta pesquisa.
2 A I NCLUSÃO E SCOLAR DO A LUNO COM D EFICIÊNCIA
I NTELECTUAL
Inicialmente, cabe resgatar o significado de educação inclusiva e inclusão escolar que, comumente, são utilizados como sinônimos ou com sentidos diferentes.
Em janeiro de 2008, o Ministério da Educação publicou a Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (PNEE), na qual a educação inclusiva é entendida como
[...] um paradigma educacional fundamentado na concepção de direitos humanos, que conjuga igualdade e diferença como valores indissociáveis, e que avança em relação à idéia de equidade formal ao contextualizar as circunstâncias históricas da produção da exclusão dentro e fora da escola.
(BRASIL, 2008a).
A proposta de educação inclusiva está diretamente relacionada ao conceito de sociedade inclusiva12
A esse respeito, Mantoan (2006) afirma:
, que garante igualdade de oportunidades, de acesso e participação, valoriza as diferenças e o convívio ético entre todas as pessoas. Isso significa uma mudança de mentalidade na sociedade como um todo, o que requer a construção de outros valores para estabelecer uma nova lógica social, com mais democracia e igualdade.
Nas escolas inclusivas as pessoas se apóiam mutuamente e suas necessidades específicas são atendidas por seus pares, sejam colegas de classe, de escola ou profissionais de áreas afins. A pretensão dessas escolas é a superação de todos os obstáculos que as impedem de avançar no sentido de garantir um ensino de qualidade, preocupado em desenvolver os talentos, as tendências naturais, as habilidades de cada aluno para esta ou aquela especialidade. Em cada turma os talentos se misturam às histórias de vida dos alunos, às suas experiências individuais e coletivas. [...] A intenção é que os alunos percebam a importância de somar esses talentos e reconheçam a
12 A Organização das Nações Unidas (ONU), em 1990, utilizou a expressão ‘uma sociedade para todos’ com sentido muito próximo ao que hoje entendemos, no Brasil, por ‘sociedade inclusiva’. Mas foi, em 1994, na Declaração de Salamanca, que o termo sociedade inclusiva foi utilizado oficialmente pela primeira vez (SASSAKI, 1997).
complementaridade de suas habilidades e vivências, para explorar temas de estudo, para compreender melhor as noções acadêmicas. (p. 5253).
Certamente, a escola tem uma grande responsabilidade para fazer essa mudança, mas é importante salientar que não será apenas por meio dela que conseguiremos transformar a realidade atual de exclusão e desigualdade. São necessárias mudanças estruturais, em vários âmbitos, e também nas escolas.
O Informe Mundial – Mejor Educación para Todos: cuando se nos incluya también13
– aponta que “o êxito da educação inclusiva exige contribuições e trabalhos em três níveis – micronível (aula e comunidade local), mesonível (sistema de ensino) e macronível (políticas, legislação)” (INCLUSION INTERNATIONAL, 2009, p. 141). E, embora, mencione vários exemplos de experiências exitosas em cada um dos níveis, ressalta que na maioria dos sistemas educativos do mundo:
o êxito segue sendo muito limitado, ou inexistente. Onde se tem observado algum êxito, este normalmente é ad doc, e com frequência ocorre graças à grande determinação e dedicação de um professor ou diretor de escola para facilitar a inclusão, sem os recursos e os apoios do sistema de ensino.
(INCLUSION INTERNATIONAL, 2009, p. 141, tradução nossa).
Ao analisar a situação mundial atual em relação às metas da Educação para Todos, estabelecidas no Fórum Mundial sobre Educação, em Dakar, Senegal, em 2000, o Informe Mundial (2009) estabelece que:
A educação de qualidade, simplesmente não está disponível para as crianças, jovens e adultos com deficiência intelectual. Com este estudo definimos a qualidade como composta por quatro dimensões principais – atitudes positivas e facilitadoras para a inclusão, docentes dispostos a proporcionar apoio e bem capacitados, currículo e avaliação adaptados e escolas acessíveis que ofereçam apoio. A ‘provisão’ de todos esses componentes educativos é básica para uma boa educação. Nosso estudo sugere que não existe nenhum desses fatores na medida e grau que se necessita e a
13 Esse informe foi publicado pela Inclusion International, federação formada por 200 organizações de famílias que defendem os direitos humanos de pessoas com deficiência intelectual, e pelo Instituto Universitario de Integración en la Comunidad da Universidade de Salamanca, Espanha, e apresenta um panorama das experiências em educação inclusiva em diferentes países.
consequência é uma exclusão educativa muito arraigada. (INCLUSION INTERNATIONAL, 2009, p. 112, tradução nossa).
Ao reconhecer esse contexto mundial, a Inclusión International, por meio do Informe Mundial (2009), propõe uma agenda mundial para a educação inclusiva, tendo a Convenção Internacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência (2006) como importante ferramenta para atingir esse fim, pois mostra o caminho a ser percorrido. O Informe destaca que ocorreram avanços na prática da educação inclusiva, desde a Declaração de Salamanca, em 1994; no entanto, examinando criticamente a situação, percebese que apesar do compromisso assumido por muitos países, por meio de suas políticas educacionais, os governos, os doadores e os organismos internacionais não têm estabelecido os instrumentos necessários para a mudança na gestão, na estruturação, no financiamento, na aplicação e na supervisão dos sistemas de ensino,
“para fazer da educação inclusiva uma possibilidade universal” (INCLUSION INTERNATIONAL, 2009, p. 154).
No Brasil, é preciso ressaltar que a estrutura e funcionamento dos sistemas de ensino são historicamente excludentes, embora a política educacional oficial, expressa na legislação em vigor, seja a educação inclusiva. Ainda é muito frequente a classificação dos alunos por idade, o ensino organizado por disciplinas e uma prática pedagógica igual para todos, pois é concebida para um aluno padrão. Dessa forma, quem não aprende de acordo com esse modelo, naturalmente, está submetido a um processo excludente. Mudar essa concepção requer também a superação de algumas contradições atuais, como a existência de escola pública e privada, ou escola especial e comum, realidade que atende a interesses e objetivos diversos em razão de diferenças em termos de classe social, nível cultural e necessidades educacionais. Enquanto mantivermos essas diferenciações entre escolas, estaremos perpetuando o atual sistema de ensino, e seus processos de seleção, discriminação e segregação, como mecanismos de exclusão.
No entender de Glat e Blanco (2007), a proposta da educação inclusiva pode ser considerada uma nova cultura escolar, pois
significa um novo modelo de escola em que é possível o acesso e permanência de todos os alunos, e onde os mecanismos de seleção e discriminação até então utilizados, são substituídos por procedimentos de identificação e remoção de barreiras para a aprendizagem. (p. 16).
As autoras fazem outro importante apontamento sobre a educação inclusiva, que é diretriz no Brasil e em vários outros países, ao afirmarem que
a política de educação inclusiva diz respeito à responsabilidade dos governos e dos sistemas escolares de cada país com a qualificação de todas as crianças e jovens no que se refere aos conteúdos, conceitos, valores e experiências materializados no processo de ensinoaprendizagem escolar, tendo como pressuposto o reconhecimento das diferenças individuais de qualquer origem. (GLAT; BLANCO, 2007, p. 16).
Prieto (2006) ressalta alguns desafios para garantir a educação como direito de todos.
Um deles é não permitir que esse direito seja traduzido meramente como obrigação de matricular e manter os alunos com necessidades educacionais especiais14
De acordo com Prieto (2006),
na classe comum.
Outro é aprimorar a proposta pedagógica das escolas, para que elas se constituam como um espaço de aprendizagem para todos os alunos. Outro, ainda, é garantir a oferta de atendimento educacional especializado para estudantes com tais necessidades, na rede regular de ensino, assegurando condições de qualidade de ensino para todos os discentes.
a educação inclusiva tem sido caracterizada como um novo paradigma, que se constitui pelo apreço à diversidade como condição a ser valorizada, pois é benéfica à escolarização de todas as pessoas, pelo respeito os diferentes ritmos e pela proposição de outras práticas pedagógicas, o que exige ruptura com o instituído na sociedade e, conseqüentemente, nos sistemas de ensino.
A idéia de ruptura é rotineiramente empregada em contraposição à idéia de continuidade e tida como expressão do novo, podendo causar deslumbramento a ponto de não ser questionada e repetirse como modelo que nada transforma. Por outro lado, a idéia de continuidade, ao ser associada ao que é velho, ultrapassado, pode ser maldita sem que suas virtudes sejam reconhecidas em seu devido contexto histórico e social. (p.
40, grifo do autor).
Mendes (2006), ao analisar a influência norteamericana no debate sobre inclusão
14 A expressão ‘necessidades educacionais especiais’ faz parte das diretrizes legais oficiais para a educação especial, mas todos os documentos normativos mais recentes, com a chancela do MEC, passaram a definir o públicoalvo do atendimento educacional especializado os alunos com deficiência; com transtornos globais do desenvolvimento e com altas habilidades e superdotação. Neste texto, a expressão será utilizada quando for necessário explicitar o entendimento de uma determinada época e/ou de um determinado autor.
escolar, ressalta que a ideologia da educação inclusiva surgiu nos Estados Unidos, nos anos 80, do século XX, embora não com essa terminologia, mas ganhou notoriedade e adesão internacional, no início na década de 90, do mesmo século. E, desde essa época, há diferentes formas de conceber a inclusão escolar como política educacional para os sistemas de ensino, entre as quais se pode destacar duas posições diferentes. Uma delas defende a inclusão total
“[...] que advoga a colocação de todos os estudantes, independentemente do grau e tipo de incapacidade, na classe comum da escola próxima à sua residência, e a eliminação total do atual modelo de prestação baseado num contínuo de serviços de apoio de ensino especial” (p. 394).
No outro extremo, há uma posição que defende a educação inclusiva e a classe comum como a melhor opção para garantir boas condições de aprendizagem e desenvolvimento, mas admite
“[...] a possibilidade de serviços de suportes, ou mesmo ambientes diferenciados (tais como classes de recursos, classes especiais parciais ou autocontidas, escolas especiais ou residenciais)” (p. 394).
A inclusão total, como é chamada a posição que defende todos os alunos na classe comum, ou seja, uma escola única para todos, parte do pressuposto de que não há inclusão se ela for parcial. Nessa perspectiva, Pontes (2007) afirma que,
pelo princípio da inclusão, a ninguém deve ser negada a sua real e efetiva participação. As escolas devem se ajustar às necessidades dos alunos, quaisquer que sejam suas condições, não se admitindo exceções, daí ser uma educação para todos. Alunos diferentes terão oportunidades diferentes para que o ensino alcance os mesmos objetivos. (p. 163).
Na concepção de inclusão total, Mendes (2006) destaca que a classe comum é para todos os estudantes, independentemente do grau e tipo de incapacidade, devendo a escola encontrar recursos e estratégias para garantir a aprendizagem e desenvolvimento de todos os alunos. Segundo a autora, essa posição aposta na possibilidade da escola se reinventar de modo a contemplar todas as dimensões da diversidade humana, podendo até prescindir de serviços de apoio. A segunda posição, a que admite “a existência e manutenção de um contínuo de serviços e de uma diversidade de opções” (MENDES, 2006, p. 396), considera que a escola comum, mesmo se reestruturando, pode não ser adequada para todos os estudantes.
Essas duas concepções de educação inclusiva permeiam os espaços de discussão e as práticas de profissionais da educação, mas é importante ressaltar que nas diretrizes oficiais mais
recentes, expressas na Resolução CNE/CEB no 4/2009 (BRASIL, 2009a), há recomendações apenas para a oferta de serviços e recursos de apoio especializados, de natureza complementar ou suplementar, isto é, “a concepção da Educação Especial nesta perspectiva da educação inclusiva busca superar a visão do caráter substitutivo da Educação Especial ao ensino comum, bem como a organização de espaços educacionais separados para alunos com deficiência”, conforme Parecer CNE/CEB no 13 de 2009 (BRASIL, 2009b).
Para ampliar a reflexão sobre essas duas posições, vale mencionar o pensamento de Fávero (2008), no qual a educação especial, entendida como substituta do ensino comum, é incompatível com o direito à igualdade de acesso e permanência em escola, previsto no art. 206 da Constituição Federal/88 (BRASIL, 1988). No entanto, argumenta que esse direito não é negado quando a educação especial é entendida somente como atendimento educacional especializado complementar ou suplementar, isto é, como apoio.
No Brasil, o principal argumento utilizado para manter o caráter substitutivo da educação especial se relaciona à crença de que a escola comum não tem condições de suprir as necessidades das pessoas com severos comprometimentos. Esta é uma questão que suscita muitas reflexões, e permanece ainda um campo aberto a debates de todo tipo, pois os sistemas de ensino brasileiros encontram dificuldade para dar respostas educativas às necessidades da maior parte dos alunos com e sem deficiência. Os resultados oficiais de avaliação da educação básica, expressos pelo Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), criado para medir a qualidade de cada escola e de cada rede de ensino, em 2007, quando foi criado, era 4,2 numa escala de zero a dez (BRASIL, 2010). Esse dado mostra que mesmo dentro da escola os alunos não estão aprendendo os conteúdos acadêmicos avaliados por meio de provas padronizadas.
Garantir uma educação de qualidade para todos, além de responder a princípios éticos, respaldados pela afirmação dos direitos humanos, responde também a uma questão de sobrevivência humana em um planeta que vive uma grave crise, tanto em termos ambientais quanto sociais, em razão de um modelo hegemônico de desenvolvimento que fortaleceu a cultura do domínio e da exploração dos recursos naturais e humanos. É preciso de forma urgente criar alternativas em termos de educação escolar, no sentido de oferecer às crianças, jovens e adultos uma formação que possibilite a construção de um mundo mais plural, solidário e responsável.
A esse respeito, vale referir as contribuições de Mantoan (2006):
A escola se entupiu do formalismo da racionalidade e cindiuse em modalidades de ensino, tipos de serviços, grades curriculares, burocracia.
Uma ruptura de base em sua estrutura organizacional, como propõe a inclusão, é uma saída para que a escola possa fluir novamente, espalhando sua ação formadora por todos os que dela participam. (p. 14).
Já na década de 20, do século passado, Vygotsky discutia a separação entre escola comum e especial e propunha uma aproximação entre ambas, com uma pedagogia geral, pois considerava que
[...] embora as crianças mentalmente atrasadas15
tenham ritmo mais lento, embora aprendam menos que as crianças normais, ainda que precisem ser ensinadas de outro modo, aplicando métodos e procedimentos especiais, adaptados às características específicas de seu estado, devem estudar o mesmo que todas as demais crianças, receber a mesma preparação para a vida futura, para que depois participem dela, em certa medida, junto com os demais. (VYGOTSKY, 1997, p. 149, tradução nossa).
Ao mesmo tempo em que há diferenças de entendimento sobre a concretização política e pedagógica da educação inclusiva, também merece destaque o fato de que, muitas vezes, os termos ‘inclusão escolar’ e ‘educação inclusiva’ são utilizados com o mesmo significado.
Bueno (2008), ao analisar a produção científica brasileira sobre os temas ‘inclusão escolar’ e
‘educação inclusiva’, constatou que “no decorrer do tempo o segundo passou a ser mais incidente, assim como a utilização de ambos” (p. 49). Segundo o autor, isso pode expressar um incremento do termo ‘educação inclusiva’, bem como a não distinção entre os dois conceitos, que para ele não são sinônimos, na medida em que “inclusão escolar se refere a uma proposição política em ação, de incorporação de alunos que tradicionalmente têm sido excluídos da escola, e educação inclusiva referese a um objetivo político a ser alcançado” (p. 49)16
A respeito do termo ‘inclusão escolar’, Mendes (2006) afirma que na década de 90, do século XX, quando surgiu, era
.
[...] associado a uma prática de colocação de alunos com dificuldades prioritariamente nas classes comuns, hoje o seu significado aparece
15 Na obra original consta “niño mentalmente retrasado”, expressão que foi traduzida pela autora, deste texto, como
‘criança mentalmente atrasada’.
16 Neste texto, esses termos serão utilizados de acordo com Bueno (2008).
ampliado, englobando também a noção de inserção de apoios, serviços e suportes nas escolas regulares. (p. 402).
Bueno (2008), por sua vez, ao analisar traduções diferentes da Declaração de Salamanca (1994), observa que há uma diferença significativa de uma para outra. O termo ‘orientação integradora’ presente na primeira tradução, realizada pela Coordenadoria Nacional para Integração da Pessoa Portadora de Deficiência (Corde), do Ministério da Justiça, em 1994, foi substituído por ‘orientação inclusiva’ na versão atual do mesmo órgão, de 2007. A esse respeito o autor faz importante consideração, afirmando que não se trata de um mero problema de tradução, mas de uma questão conceitual e política, pois ao deixar de ser fiel ao texto original17
faz pensar que a inclusão escolar é uma proposta completamente inovadora, quando na verdade não o é. De acordo com o autor, a Declaração de Salamanca (1994), simplesmente, reconheceu que as políticas educacionais de todo o mundo fracassaram por não garantir a escolaridade obrigatória para todas as suas crianças e que os países precisavam modificar suas práticas escolares sedimentadas na perspectiva da homogeneidade do alunado. E enfatiza que
[...] ao se colocar a educação inclusiva como um novo paradigma, esconde
se que, desde há décadas, a inserção escolar de determinados tipos de alunos com deficiência já vinha ocorrendo, de forma gradativa e pouco estruturada, em especial para crianças oriundas dos estratos sociais superiores, sob a batuta de profissionais da saúde (médicos, psicólogos, fonoaudiólogos, etc.) e incorporados pela rede privada de ensino regular. (BUENO, 2008, p. 46).
Após 15 anos da Declaração de Salamanca (1994), ocorreu em 2009, na cidade de Salamanca (Espanha), com a participação de 58 países, a Conferência Mundial de Educação Inclusiva – Retorno a Salamanca: enfrentando o desafio, a retórica e a situação atual – que deu origem a uma resolução, aprovada em plenária, em que a educação inclusiva é definida como
[...] um processo no qual a escola comum ou regular e os estabelecimentos dedicados à educação inicial se transformam para que todas as crianças/estudantes recebam os apoios necessários para alcançar suas potencialidades acadêmicas e sociais, o que implica eliminar as barreiras
17 Texto original: “[…] las escuelas ordinarias con esta orientación integradora representan el medio más eficaz para combatir las actitudes discriminatorias, crear comunidades de acogida, construir una sociedad integradora y lograr la educación para todos” (UNESCO, 1994).