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Direito brasileiro e o reflexo da cultura patriarcal nas decisões judiciais que envolvem crimes de natureza sexual: uma análise do caso João de Deus

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Academic year: 2021

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INSTITUTO DE CIÊNCIAS DA SOCIEDADE DE MACAÉ CURSO DE DIREITO

TALITHA OLIVEIRA GHETTI

DIREITO BRASILEIRO E O REFLEXO DA CULTURA PATRIARCAL NAS DECISÕES JUDICIAIS QUE ENVOLVEM CRIMES DE NATUREZA SEXUAL:

Uma análise do caso João de Deus

MACAÉ 2019

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TALITHA OLIVEIRA GHETTI

DIREITO BRASILEIRO E O REFLEXO DA CULTURA PATRIARCAL NAS DECISÕES JUDICIAIS QUE ENVOLVEM CRIMES DE NATUREZA SEXUAL:

Uma análise do caso João de Deus

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Curso de Graduação em Direito, do Instituto de Ciências da Sociedade em Macaé, da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para obtenção do grau de Bacharel em Direito.

Orientadora: Professora Doutora Andreza Aparecida Franco Câmara

MACAÉ 2019

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TALITHA OLIVEIRA GHETTI

DIREITO BRASILEIRO E O REFLEXO DA CULTURA PATRIARCAL NAS DECISÕES JUDICIAIS QUE ENVOLVEM CRIMES DE NATUREZA SEXUAL:

Uma análise do caso João de Deus

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Curso de Graduação em Direito, do Instituto de Ciências da Sociedade em Macaé, da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para obtenção do grau de Bacharel em Direito.

BANCA EXAMINADORA

Prof.ª Dr.ª Andreza Aparecida Franco Câmara - UFF

Prof.ª Dr.ª Fernanda Andrade Almeida - UFF

Prof. Me. Charles da Silva Nocelli - UFF

MACAÉ 2019

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Dedicado à Michele, minha assistida na Defensoria Pública, que, desamparada, relatou o abuso sexual sofrido por sua filha adolescente, surda e muda, no ônibus a caminho da escola. Estendo a essa filha que, mesmo tão jovem, experimentou uma das mais trágicas formas de violência a que estamos destinadas.

Espero que sua dor só não seja maior do que sua força e sua fé.

(6)

AGRADECIMENTOS

Gostaria de agradecer ao meu pai, Constâncio, por saber que todos os seus sacrifícios, todos os machucados que você carrega e nunca vai dizer, e todo amparo nunca foram dados para que eu cumprisse as suas expectativas, mas para que eu fosse livre - para trilhar o meu próprio caminho e para lutar pelo que eu acredito. Não há nada que mais signifique amor do que a própria liberdade. Escrever sobre violência de gênero é, antes de tudo, reconhecer que você é exceção nesse mundo masculino e torcer, de modo esperançoso, para que mais mulheres possam ter pais como você.

À minha mãe, Margarete, minha maior referência de sensibilidade e empatia, que me apresentou uma visão de mundo além do preto no branco e me ensinou a colocar amor em tudo que me propusesse a fazer. Você plantou em mim a semente do amor à justiça e pretendo dedicar a minha vida para que o maior número de pessoas possa colher esses frutos. Era você que dizia, desde os meus 10 anos, que um dia eu me tornaria a próxima ministra Ellen Gracie, pois aqui me encontro, por alguma razão, seguindo seus passos em defesa das mulheres. Talvez para acalentar suas almas tanto quanto você acalenta a minha.

Ao meu irmão, Pedro Angelo, uma das pessoas mais bondosas e respeitadoras que eu conheço, que mais compreende a ideia de que a humanidade possui duas asas - o feminino e o masculino - e para que esse pássaro voe, é necessário que essas duas forças sejam equivalentes. Talvez você não perceba, mas você é 50% da nossa força de luta nessa transformação. E, por isso, espero que minhas filhas do futuro se deparem com rapazes como você.

À minha irmã e melhor amiga, Maria Luiza, por sermos as irmãs “Razão e Sensibilidade” de Jane Austen, por nossas vidas terem se entrelaçado por completo, por encararmos todos os desafios juntas e não só por você ter se tornado minha companheira de curso, mas por você ser a minha companheira de vida. Se um dia eu sucumbir à sua teoria das almas gêmeas, será para dizer que você é a minha. Você será eternamente a minha pessoa.

A toda minha família e amigos, que foram aconchego, que acreditaram em mim e que entenderam o meu eterno conflito entre a saudade de casa e a necessidade de partir.

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Às Defensoras Públicas, servidoras e estagiárias com as quais convivi ao longo desses cinco anos e que, mesmo diante da discriminação estrutural ao terem sua competência contestada e sua voz, por vezes, cassada, me ensinaram a não medir esforços para um atendimento humanitário, para compreender o Direito como um meio de transformação social e para tornar o acesso à justiça mais democrático.

À minha orientadora, Andreza, por ter sido luz no momento da escolha desse tema, por ser uma mulher de fibra, mãe de gêmeos e referência no meio acadêmico. Eu espero ser tão inspiradora para as meninas que passarem pelo meu caminho quanto você foi pra mim nesses anos de curso.

A todos vocês que, de alguma forma, fazem parte de quem eu sou e pretendo levar suas experiências comigo durante toda a minha trajetória pessoal, profissional e acadêmica: eis aqui o primeiro passo.

(8)

Hoje fui estuprada. Subiram em cima de mim, invadiram meu corpo e eu não pude fazer nada. Você não vai querer saber dos detalhes. Eu não quero lembrar dos detalhes. Ele parecia estar gostando e foi até o fim. Não precisou apontar uma arma para a minha cabeça. Eu já estava apavorada. Não precisou me esfolar ou esmurrar. A violência me atingiu por dentro.

A calcinha, em frangalhos no chão, só não ficou mais arrasada do que eu. Depois que ele terminou e foi embora, fiquei alguns minutos com a cara no chão, tentando me lembrar do rosto do agressor. Eu não sei o seu nome, não sei o que faz da vida. Mas eu sei quem me estuprou.

Quem me estuprou foi a pessoa que disse que quando uma mulher diz “não”, na verdade, está querendo dizer “sim”. Não porque esse sujeito, só por dizer isso, seja um estuprador em potencial. Não. Mas porque é esse tipo de pessoa que valida e reforça a ação do cara que abusou do meu corpo. Então, quem me estuprou também foi o cara que assoviou para mim na rua. Aquele que, mesmo não me conhecendo, achava que tinha o direito de invadir o meu espaço. Quem me estuprou foi quem achou que, se eu estava sozinha na rua, na balada ou em qualquer outro lugar do planeta, é porque eu estava à disposição.

Quem me estuprou foram aqueles que passaram a acreditar que toda mulher, no fundo no fundo, alimenta a fantasia de ser estuprada. Foram aqueles que aprenderam com os filmes pornô que o sexo dá mais tesão quando é degradante pra mulher. Quando ela está claramente sofrendo e sendo humilhada. Quando é feito à força.

Quem me estuprou foi o cara que disse que alguns estupradores merecem um abraço. Foi o comediante que fez graça com mulheres sendo assediadas no

(9)

transporte público. Foi todo mundo que riu dessa piada. Foi todo mundo que defendeu o direito de fazer piadas sobre esse momento de puro horror. Quem me estuprou foram as propagandas que disseram que é ok uma mulher ser agarrada e ter a roupa arrancada sem o consentimento dela. Quem me estuprou foram as propagandas que repetidas vezes insinuaram que mulher é mercadoria. Que pode ser consumida e abusada. Que existe somente para satisfazer o apetite sexual do público-alvo. [...]

Quem me estuprou foram aquelas pessoas que, mesmo depois do ocorrido, insistem que a culpada sou eu. Que eu pedi para isso acontecer. Que eu estava querendo. Que minha roupa era curta demais. Que eu bebi demais.

Ainda sou capaz de sentir o cheiro nauseante do meu agressor. Está por toda parte. E então eu percebo que, mesmo se esse cara não existisse, mesmo se ele nunca tivesse cruzado o meu caminho, eu não estaria a salvo de ter sido destroçada. Porque não foi só aquele cara que me estuprou. Foi uma cultura inteira.

Esse texto é fictício. Eu não fui estuprada hoje. Mas certamente outras mulheres foram.1

Aline Valek

1

(10)

RESUMO

O presente trabalho abordará a temática referente ao impacto da cultura patriarcal na interpretação pelo Poder Judiciário dos crimes de natureza sexual praticados contra as mulheres. O objetivo é demonstrar que a cultura que controla o comportamento e sexualidade feminina submete a mulher à autoridade do homem, o que faz com que os abusos sexuais sejam tolerados a partir de justificativas morais, tanto pela sociedade, quanto pelos magistrados, perpetuando a violência praticada. O problema de pesquisa apresentado é se, mesmo diante da incorporação das demandas femininas pelo Legislativo através da elaboração de leis garantindo maior proteção, as mulheres continuam se deparando com a inacessibilidade ao sistema judicial. A hipótese verificada é que, apesar da garantia ao acesso de direito à justiça, as mulheres encontram o conservadorismo do Judiciário, fruto das estruturas de poder entre os sexos, como óbice ao acesso de fato a esse sistema. A metodologia utilizada será a revisão de literatura, bem como a análise de decisões judiciais, entre eles, o emblemático caso do médium João de Deus, a fim de evidenciar o reflexo que essas assimetrias absorvidas pela sociedade têm nas decisões judiciais, violando a imparcialidade do Poder Judiciário.

Palavras-Chaves: Cultura Patriarcal. Crimes Sexuais. Decisões Judiciais. Acesso à Justiça. Violência Contra a Mulher. Caso João de Deus.

(11)

ABSTRACT

This work will address the issue of the impact of patriarchal culture on the interpretation by the judiciary on sexual crimes against women. The aim is to demonstrate that this culture that controls female behavior and sexuality submits women to the authority of men, which makes sexual abuse tolerated from moral justifications by both society and judges, perpetuating the violence practiced. The research problem presented is whether, even in the face of incorporation of female demands by the Legislature through the drafting of laws guaranteeing greater protection, women continue to face inaccessibility to the judicial system. The hypothesis is that, despite the guarantee of access to the right to justice, women find the conservatism of the judiciary, as a result of power structures between gender, as an obstacle to the facto access to this system. The methodology will be the literature review, as well as the analysis of judicial decisions, among them, the emblematic case of the medium John of God, in order to highlight the reflection that these asymmetries absorbed by society have in judicial decisions, violating the impartiality of law.

Keywords: Patriarchal Culture. Sexual Offenses. Judicial Decisions. Access to Justice. Violence against Women. John of God Case.

(12)

LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

CNJ CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA CP CÓDIGO PENAL

IPEA INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA JECRIM JUIZADO ESPECIAL CRIMINAL

OEA ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS ONU ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS

(13)

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ... 13

CAPÍTULO I - O IMPACTO DOS MOVIMENTOS SOCIAIS EM DEFESA DA MULHER NO DIREITO BRASILEIRO ... 15

1.1 A cultura do estupro como fator gerador do feminismo norte-americano ... 15

1.1.1 A incorporação das demandas sociais de maior proteção à mulher pelo Poder Legislativo Brasileiro...19

1.2 O estupro como decorrência das condições socioculturais ... 23

1.2.1 A representação da mulher no mundo masculino ... 24

1.2.2 Culpabilização das vítimas ... 30

CAPÍTULO II - O PODER JUDICIÁRIO COMO EXPRESSÃO DA CULTURA PATRIARCAL ... 34

2.1 O Judiciário continua sem representação nos diversos segmentos sociais...34

2.2 O conservadorismo no discurso judicial e seus efeitos para as mulheres vítimas de estupro ... 36

CAPÍTULO III - ANÁLISE DE DECISÕES JUDICIAIS ... 45

3.1 Do caso de estupro mediante ameaça verbal...45

3.2 Do caso de equiparação da união estável ao casamento...50

3.3 Do caso do médium João de Deus ... 56

3.3.1 Da construção discursiva de sua imagem ... 57

3.3.2 As denúncias de abuso sexual ... 58

3.3.3 A instabilidade emocional como interdição do discurso da mulher ... 61

3.3.4 Da vítima acometida por síndrome de pânico ... 62

3.3.4.1 Das decisões judiciais ...64

CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 69

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ... 72

ANEXO A - SENTENÇA DE 1º GRAU ... 80

(14)

INTRODUÇÃO

O presente trabalho monográfico propõe-se a discorrer sobre o reflexo que a cultura patriarcal tem no Poder Judiciário, especificamente em relação aos crimes de natureza sexual, perpetuando a violência contra a mulher.

O trabalho apresenta como objetivo demonstrar que a cultura que controla o comportamento e sexualidade feminina submete a mulher à autoridade do homem, o que faz com que os abusos sexuais sejam tolerados a partir de justificativas morais, tanto pela sociedade, quanto pelos magistrados, perpetuando a violência praticada.

Por isso, a violência de gênero será apresentada como resultado das estruturas de poder e dominação entre os sexos, sendo o fator determinante para os altos índices de violência doméstica, de feminicídio e de estupros no país.

O problema de pesquisa apresentado é se, mesmo diante da incorporação das demandas femininas pelo Legislativo através da elaboração de leis garantindo maior proteção, as mulheres continuam se deparando com a inacessibilidade ao sistema judicial. A hipótese verificada é que, apesar da garantia ao acesso de direito à justiça, as mulheres encontram o conservadorismo do Judiciário, fruto das estruturas de poder entre os sexos, como óbice ao acesso de fato a esse sistema.

Com o escopo de comprovar essa premissa, inicialmente, será abordada a cultura do estupro como fator responsável pelo desencadeamento de movimentos feministas norte-americanos em defesa das mulheres, através dos quais se denunciou a subordinação feminina à autoridade do homem em todas as esferas, tanto na vida pública quanto na privada.

Os aspectos que demonstram a existência de uma cultura tolerante aos atos de agressão sexual à mulher envolvem a ideia defasada de que o estupro é provocado por impulsos sexuais masculinos incontroláveis, gerando a culpabilização da vítima por algum comportamento considerado desvirtuado, pelo simples fato de não atender ao estereótipo feminino imposto socialmente. Isso evidencia o controle social sobre o corpo, comportamento e sexualidade da mulher, mesmo quando ela é a vítima em questão.

O primeiro capítulo destina-se a tornar incontroversa a existência dessa cultura, já que é a base - e, portanto, deve ser a mais sólida possível - de onde

(15)

decorreriam os julgamentos machistas proferidos pelos magistrados brasileiros em casos de violência sexual apresentadas ao Estado.

Rompendo o mito da imparcialidade judicial, será analisado de que maneira o Judiciário se comporta diante das denúncias de abuso sexual, ocasião em que se verifica a inversão da lógica jurídica criminal, de modo que há maior repreensão ao comportamento adotado pela vítima, às suas características individuais e ao seu histórico e hábitos sociais do que ao fato delituoso cometido.

É nesse ponto que ocorre o reflexo da cultura em que estão inseridos esses juízes que, representando segmentos sociais específicos, julgam influenciados por suas convicções pessoais e, também, por seus preconceitos culturais, obstando o acesso feminino de fato à justiça, em clara violação a diversos princípios constitucionais.

Os casos concretos a serem abordados no terceiro capítulo, principalmente o emblemático caso do médium João de Deus, exprimem claramente a visão que prepondera no Judiciário, em especial nos tribunais superiores, quando de encontro a um relato de agressão sexual, desestimulando as mulheres a processarem seus agressores. Essas decisões, certamente, se comportam como uma violência no aspecto omissivo, trazendo reais prejuízos a toda coletividade feminina.

(16)

CAPÍTULO I

O IMPACTO DOS MOVIMENTOS SOCIAIS EM DEFESA DA MULHER NO DIREITO BRASILEIRO

Este capítulo destina-se a definir a consciência da cultura do estupro como originador dos movimentos feministas em defesa das mulheres, os quais foram essenciais para a incorporação de normas em sua proteção ao ordenamento jurídico pelo Poder Legislativo.

Apesar dessas leis, que serão abordadas de forma geral, representarem os primeiros freios estatais impostos a essa cultura, observa-se que elas não foram suficientes para a transformação da realidade social. A perpetuação dessas assimetrias de gênero que coloca a mulher em uma posição de vulnerabilidade será demonstrada a partir do modelo de sexualidade masculino formado, bem como a representação da mulher no mundo patriarcal e dados de violência sexual.

Importante ressaltar que o recorte a ser utilizado para revisão da literatura do tema será apenas sob o aspecto do gênero, não sendo adentrado em questões como raça2, classe e sexualidade, de modo a demonstrar qual perfil feminino seria mais afetado pela cultura de violência contra a mulher, até para evitar tratar de maneira superficial essas questões que demandariam uma análise mais profunda e complexa.

Será analisada a mulher de forma geral, desconstruindo falácias sobre a vestimenta feminina ser responsável pelos casos de abuso sexual, sobre as agressões serem praticadas por estranhos e em locais públicos, de modo a verificar que os abusos decorrem das estruturas de poder existentes entre os gêneros.

1.1 A cultura do estupro como fator gerador do feminismo norte-americano

A consciência social de que vivemos uma cultura de estupro - em que o tratamento jurídico e social manifesta-se pela culpabilização da vítima - foi desenvolvida pelas norte-americanas em 1970, quando o grupo denominado New

2

Sobre isso, Angela Davis defende que as mulheres negras são triplamente oprimidas, primeiro em razão do gênero, já que são mulheres, segundo em razão da raça, por serem negras, e, terceiro, em razão da classe, já que os negros foram submetidos à exploração histórica, sendo atingidos até hoje pelo racismo estrutural, ocupando, por conseguinte, em sua maioria, classes sociais mais baixas. Para mais, cf. DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. São Paulo: Boitempo, 1ª d., 2016.

(17)

York Radicals Feminists promoveu, pela primeira vez, um diálogo aberto sobre

experiências femininas como vítimas frequentes de assédio sexual e estupro.3

Kate Millet argumentava ser o estupro uma política sexual e não da natureza biológica masculina, visto que a adoção do papel de dominação do homem sobre a mulher dá-se a partir de questões socioculturais de atribuição de papel, condição e temperamento a cada um dos sexos4. Nesse sentido, afirma:

[...] seria conveniente reexaminar as características definidas como «masculinas» ou «femininas» e reconsiderar o seu valor no aspecto humano: a violência encorajada como manifestação de virilidade e a excessiva passividade definida como característica feminina, inúteis em ambos os sexos; a eficiência e o intelectualismo do temperamento «masculino» e a ternura e a consideração ligadas ao temperamento feminino, recomendáveis a ambos os sexos sem distinção.

Ao passo em que a sociedade objetifica a mulher e estimula um comportamento passivo - que não se relaciona com a natureza feminina -, a cultura do estupro a culpabiliza pela violência sofrida, como se tivesse transgredido padrões morais da sociedade, mesmo tendo sido vítima de um ato criminoso cometido por outrem. Angela Davis ressalta que há forte representação midiática acerca do perfil do agressor, mormente sobre sua motivação, que seria ora atribuída ao instinto sexual masculino, ora a possíveis transtornos antissociais - posições que revelam a insistente responsabilização de terceiros ou de fatores externos, em vez do próprio agressor.5

A própria História do Direito corrobora com a ideia de que o estupro não decorre de impulsos sexuais incontroláveis, mas sim da necessidade socialmente imposta de dominação e controle do feminino através da violência.

Davis relembra que, durante o período da escravidão, o corpo das mulheres negras era considerado de domínio dos senhores, estando à sua livre disposição, bem como de seus substitutos.6

Também ressalta que o estupro era utilizado como tática de guerra, em que os soldados americanos recebiam instruções para missões de busca e destruição, incluindo a violação sexual das mulheres. Trata-se de um instrumento frequente de

3 DAVIS, Angela. Mulheres, cultura e política. São Paulo: Boitempo, 1ª. ed., 2017, p. 40. 4

MILLET, Kate. Política sexual. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1970, p. 10.

5

DAVIS, op. cit., p. 42.

6

(18)

tortura7 de prisioneiras políticas, principalmente em governos fascistas. Essa arma de terror político também foi empregada no contexto da Ditadura Militar Brasileira.8

É, principalmente, esse ponto que o movimento anti estupro do início da década de 70 refutou, questionando a condição da vítima que pertence ao gênero feminino estar sempre em posição prejudicial pela lei, mas também pela doutrina e pela prática jurídica, de modo que a legislação, por vezes, exerceu controle sobre a sexualidade feminina, restringindo-a, até então, à reprodução. A doutrina, por sua vez, já levantou inúmeros questionamentos sobre o comportamento da vítima, sobre consentimento ou defendendo a não intervenção estatal em casos de estupro marital.9

Por essa razão, o movimento feminista sustenta que relatar um caso de estupro a esse tipo de justiça criminal é submeter a vítima a mais uma forma de violência - nesse caso, a psicológica.10

Esse foi o fundamento utilizado para as reformas legais ocorridas nos Estados Unidos na década de 80, as quais se pautaram em incluir o estupro marital, ao passo em que fosse suprimida a necessidade do uso da força física e da resistência como requisitos para configuração do crime de estupro. O segundo ponto abordado foi a necessidade de fornecer um tratamento adequado aos profissionais do ramo que lidassem com denúncias de estupro, promovendo a sensibilização e a concepção de que a violência sexual decorre das condições socioculturais, não cabendo imputar qualquer grau de responsabilidade à vítima.11

7

No contexto da ditadura fascista do Chile, as torturas impostas às mulheres envolviam queimar seus mamilos e genitais, tratamentos de choque em todas as partes do corpo e o estupro coletivo. (DAVIS, 2017, p. 44)

8 “Segundo o relatório final da Comissão Nacional da Verdade, divulgado em 2014, o número total de

mortos e desaparecidos durante os 25 anos de regime militar é de 434 pessoas - mais de 6.500 colegas de farda também foram perseguidos pelo regime, e muitos também foram torturados. Não foram poucos os métodos utilizados nas sessões de torturas praticados por cerca de 377 agentes da repressão contra pessoas consideradas inimigas do regime. Nas horas intermináveis de "interrogatório", presos políticos denunciaram em seus relatos durante a Comissão Nacional da Verdade (CNV) espancamentos, choques elétricos, pau-de-arara, afogamentos, torturas psicológicas e, claro, estupros. A violência sexual, inclusive, era algo corriqueiro nos porões da ditadura. Especialmente contra mulheres.” (DECLERCQ, 2019).

9

CAMPOS, C. H. et al. Cultura do estupro ou cultura antiestupro. São Paulo: Revista Direito GV,

2017, v. 13, n. 03, p. 986. Disponível em:

<http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/revdireitogv/article/view/73339/70474>. Acesso em: 30 out. 2019.

10

Ibid., p. 986.

11

(19)

É nesse panorama que o feminismo brasileiro surge, nos anos 70, sendo fortemente influenciado pelo movimento norte-americano, favorável à discussão sobre a condição feminina e, ao mesmo tempo, no contexto das ditaduras latino-americanas - que repreendiam qualquer manifestação discordante.12

Ainda assim, os pensamentos conseguiram ser propagados principalmente nos meios acadêmicos, quando debatida a tortura recém vivenciada pela Ditadura Militar, oportunidade em que os depoimentos femininos foram categóricos em demonstrar que o meio de tortura empregado nas mulheres revelava como a sociedade as enxergava.13

O reconhecimento da questão da mulher como problema social pela ONU permitiu que essa ideologia saísse da clandestinidade, dando espaço para a criação de diversos grupos políticos, como o Brasil Mulher, o Nós Mulheres e o Movimento Feminino pela Anistia.14

Com a criação da organização SOS-Mulher, que objetivava atender mulheres em situação de violência, fornecendo serviço voluntário que abarcava um grupo de psicólogas e advogadas, foi possível realizar um levantamento de dados concretos sobre a violência de gênero, além desse serviço proporcionar a familiarização de novas mulheres - principalmente as de classes desprivilegiadas - com os ideais feministas.15

Essas organizações foram responsáveis também por influenciar, no ano de 1980, a criação de Delegacias Especiais de Atendimento ou Defesa das Mulheres - ficando marcadas como a primeira incidência do movimento feminista nas políticas públicas, ante as exigências perpetradas.

A implementação dessas Delegacias é uma das formas mais visíveis da politização da justiça na garantia dos direitos e proteção da mulher, já que pressionavam o sistema a criminalizar questões que eram tidas como privadas.

12

SARTI, Cynthia A.. Feminismo e contexto: lições do caso brasileiro. Cadernos Pagu, Campinas: 2001, n. 16, p. 32.. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/cpa/n16/n16a03.pdf>. Acesso em: 10 set. 2019.

13

OLIVEIRA, Tatyane Guimarães. Feministas ressignificando o direito: desafios para alcançar a Lei Maria da Penha. Revista Direito & Práxis, v. 8, n. 1, Rio de Janeiro, 2017, p. 623. Disponível em:

<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_abstract&pid=S2179-89662017000100616&lng=en&nrm=iso&tlng=pt>. Acesso em: 20 de set. 2019.

14

SARTI, op. cit., p. 36.

15

(20)

1.1.1 A Incorporação das demandas sociais de maior proteção à mulher pelo Poder Legislativo brasileiro

Mesmo com esse avanço, as questões tratadas na Delegacia de Defesa da Mulher sofreram um processo de reprivatização a partir da Lei 9.099/95, que criou os Juizados Especiais Cíveis e Criminais, onde praticamente todos os casos denunciados pelas mulheres tramitavam.16

Considerando que, no JECRIM, a Audiência Preliminar de Conciliação é realizada antes da instauração de um processo criminal, a representação contra o agressor só poderia ser feita após a tentativa de conciliação, que, na prática, induziria a mulher a não dar prosseguimento ao feito, retornando à ideia equivocada de que se trata de um problema familiar a ser resolvido, em casos de abusos físicos e sexuais no ambiente doméstico, em vez de uma questão da seara da justiça criminal.

Além disso, o JECRIM também se pauta em substituir penas repressivas por penas alternativas, tais como prestação pecuniária e serviço comunitário. Isso significa que a agressão contra a mulher no âmbito doméstico poderia ter como consequência o pagamento de meras cestas básicas, aumentando os casos de reincidência e promovendo a invisibilidade desses delitos.17

Após uma década de críticas do movimento feminista, por conta desses aspectos, à competência atribuída ao JECRIM dos casos de violência doméstica e, principalmente, com a denúncia do caso Maria da Penha à Corte Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA), foi editada uma lei específica, retirando, inclusive, a competência dos Juizados para processamento desses casos.18

O caso Maria da Penha19, ocorrido em 1983, foi emblemático na denúncia de tolerância da justiça brasileira com a violência de gênero, tendo o Estado Brasileiro

16

DEBERT, Guita Grin; OLIVEIRA, Marcella Beraldo de. Os modelos conciliatórios de solução de conflitos e a "violência doméstica". n. 29, Cadernos Pagu, Campinas, 2007, p. 308. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010483332007000200013&lng=pt&nrm=is o>. Acesso em: 10 set. 2019.

17

Ibid., p. 326.

18

OLIVEIRA, Tatyane Guimarães. Feministas ressignificando o direito: desafios para alcançar a Lei Maria da Penha. Revista Direito & Práxis, v. 8, n. 1, Rio de Janeiro, 2017, p. 628. Disponível em: <

http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_abstract&pid=S2179-89662017000100616&lng=en&nrm=iso&tlng=pt>. Acesso em: 20 de set. 2019.

19

(21)

sido responsabilizado politicamente por negligência, omissão e tolerância em relação à violência doméstica, recomendando a adoção de medidas para prevenção, punição e erradicação da violência contra a mulher. A partir desse caso, o Estado Brasileiro promulgou a Lei nº 11.340/2006.

Trata-se de uma lei extensa, contando com 46 artigos, em que foi definido como violência doméstica qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento - físico, sexual ou psicológico - e dano moral ou patrimonial.

A lei 12.015/2009, por sua vez, trouxe inúmeras modificações no Título VI da Parte Especial do Código Penal Brasileiro, alterando a denominação de “Crimes contra os Costumes” para “Crimes contra a Dignidade Sexual”.20

A modificação de nomenclatura tem um grande impacto na demonstração do bem jurídico a ser tutelado pelo legislador, de modo que, se antes buscava-se proteger os costumes e a opinião pública, agora pretende-se proteger tão somente a dignidade da vítima.

Em continuidade da tutela especial conferida à mulher a partir da Lei Maria da Penha, foi tipificado, no ordenamento jurídico brasileiro, o feminicídio. Trata-se de um homicídio em sua forma qualificada, que foi incluído no Código Penal através da Lei 13.104/2015.

Parte-se da ideia de que a violência de gênero, seja física, psicológica ou sexual, ocorre porque o homem se sente encorajado a proferir agressões, por se sentir superior à mulher, pela inferioridade da força física feminina, pela subjugação cultural, pela dependência econômica e pela redução da mulher à condição de serviçal do homem.

Na mesma linha de pensamento, segue Cleber Masson:

o critério da discriminação é objetivo e positivo: repousa na necessidade

de maior proteção nos crimes cometidos contra a mulher por razões de gênero, especialmente nas sociedades ainda contaminadas pelos impulsos machistas. (...) Com o merecido respeito, não podemos nos

basear em discussões meramente teóricas e filosóficas, em descompasso com a realidade fática, na qual milhares de mulheres são tratadas como

objetos masculinos em um mundo pontuado pela crueldade. Qualquer

pessoa, independentemente do sexo, deve ter o direito de viver a própria

20

VILAÇA, Augusto. Crime de estupro: análise em face das modificações decorrentes da Lei 12.015/2009. Revista Jus Navigandi, ano 21, n. 4599, Teresina, 2016. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/46245>. Acesso em: 10 out. 2019.

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vida, e de um dia, quando chegar a hora, morrer a própria morte.21 (grifos nossos)

Urge destacar que a taxa de feminicídio no Brasil é registrada como a 5ª mais alta do mundo, entre 83 países, representando 48 vezes mais homicídios femininos do que o Reino Unido, 24 vezes mais homicídios femininos do que a Irlanda ou a Dinamarca e 16 vezes mais homicídios femininos do que o Japão ou a Escócia.22

Do total de homicídios de mulheres cometidos no país em 2013, a taxa de 50,3% foi perpetrada por um familiar direto da vítima, do qual 33,2% eram parceiros ou ex-parceiros.23

Esses dados demonstram que a naturalização da violência contra a mulher na sociedade patriarcal justifica - e encoraja - os homens continuarem praticando as agressões, com a finalidade de punir e corrigir comportamentos femininos que não atendam ao papel esperado de mãe, esposa e dona de casa.

Portanto, a tipificação desse ato criminoso como uma qualificadora do homicídio é de extrema relevância para a demonstração da tolerância estatal com a violência de gênero.

Por sua vez, o crime de importunação sexual foi disposto no art. 215-A do Código Penal, a partir da Lei 13.718/2018, o qual versa da seguinte maneira.

Art. 215-A. Praticar contra alguém e sem a sua anuência ato libidinoso com o objetivo de satisfazer a própria lascívia ou a de terceiro:

Pena - reclusão, de 1 (um) a 5 (cinco) anos, se o ato não constitui crime mais grave.

A tipificação desses atos através da indigitada lei preenche lacunas existentes no sistema penal brasileiro, em que mulheres eram constantemente apalpadas em partes íntimas ou em locais de conotação sexual, sem seu consentimento, além do caso de grande repercussão do homem que ejaculou em uma mulher dentro de um

21

MASSON, Cleber. Direito Penal: parte especial. Rio de Janeiro: Editora Método: 2016, 9ª ed., v. 2, p. 47-49.

22

WAISELFISZ, Julio Jacobo. Mapa da Violência 2015: Homicídio de mulheres no Brasil. Brasília:

Mapa da Violência, 2015, 1. ed., p. 27 Disponível em:

<https://www.mapadaviolencia.org.br/pdf2015/MapaViolencia_2015_mulheres.pdf> Acesso em: 30 set. 2019.

23

(23)

ônibus na Avenida Paulista - que serviu de catalisador para a edição da norma incriminadora.24

Até o ano de 2018, esses comportamentos não eram punidos como crime pelo Direito Penal. Eventualmente, condutas semelhantes eram adequadas ao crime de “ato obsceno”, previsto no art. 233 do Código Penal, cuja infração penal é contra o ultraje ao pudor público, em vez de ser considerado um ato atentatório à dignidade sexual da mulher.25

Um ano após a entrada em vigor da lei, o estado de São Paulo registrou 3.090 casos do tipo, sendo que 31% ocorreram em vias públicas, 26% nas residências das vítimas e 12% em transportes públicos. A título de comparação, no mesmo período, foram registrados 2.980 boletins de ocorrência de estupro no estado, como apontam os dados da Secretaria de Segurança Pública.26

É notório que a tipificação dos delitos supracitados caracterizam um avanço para o Direito Penal patriarcal e que, em nome da ausência de proporcionalidade, implicava em situações de impunidade.

É importante ressaltar que nenhuma dessas normas é inconstitucional por garantir uma maior proteção à mulher, ao passo que não o fazem com os homens, embora o crime de importunação sexual garanta proteção a ambos os sexos.

A ideia do legislador é tutelar desigualmente os desiguais, já que as mulheres, que continuam a ser vítimas frequentes de violência doméstica e abusos sexuais, encontram-se em situação de vulnerabilidade no contexto sociocultural do país. O mesmo raciocínio é atribuído à tutela do idoso e das crianças e adolescentes. Isso não significa, de modo algum, violação ao princípio da igualdade.

Constitucionalmente, todos são iguais perante a lei, mas as mulheres nunca se encontraram em posição de igualdade com os homens, apontando para uma

24

MENDONÇA, Renata. O que o caso do homem que ejaculou em mulher no ônibus diz sobre

a lei brasileira? São Paulo: Jornal Eletrônico BBC Brasil, 2017. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/brasil-41115869>. Acesso em: 25 out. 2019.

25

BITENCOURT, Cezar Roberto. Anatomia do crime de importunação sexual tipificado na Lei 13.718/2018. [s.l.]: Revista Consultor Jurídico, 2018. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2018-set-30/cezar-bitencourt-anatomia-crime-importunacao-sexual>. Acesso em 26 out. 2019.

26

ZAREMBA, J.; GOMES, P. Lei de Importunação Sexual completa 1 ano com 3.090 casos em

SP: demora na atualização de sistemas da Justiça e falta de conhecimento são desafios no

combate ao crime. São Paulo: Folha de S. Paulo, 2019. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2019/09/lei-de-importunacao-sexual-completa-1-ano-com-3090-casos-em-sp.shtml>. Acesso em: 26 out. 2019.

(24)

cultura de naturalização da violência contra a mulher, mormente no que se refere à violência doméstica e aos abusos sexuais.

Embora sejam verificados avanços na supressão de textos legislativos discriminatórios, a cultura do estupro mostra-se ainda de grande impacto na sociedade até os dias atuais, razão pela qual é importante demonstrar de que modo ocorre sua perpetuação, a partir das demonstrações do modelo de sexualidade masculino formado, bem como a representação da mulher no mundo patriarcal e os dados de violência sexual. As leis apresentadas, que são fruto das demandas sociais, representam os primeiros freios estatais impostos a essa cultura, mas que ainda não foram suficientes para transformação da realidade social.

1.2. O estupro como decorrência das condições socioculturais

Importante destacar que há forte tendência a acreditar que a maior parte dos estupros ocorre de maneira repentina e por estranhos, o que não corresponde à realidade.

De acordo com pesquisas27 realizadas pelo IPEA, estima-se que ocorram em torno de 300 a 500 mil casos de estupro por ano no país, embora apenas 49.497 estupros tenham sido relatados à polícia no ano de 2016.

Em 30% desses crimes contra crianças de até 13 anos, o agressor era um amigo ou conhecido e, em outros 30%, um familiar próximo, como pai, padrasto, avós, tios e irmão, tendo a violência ocorrido dentro da casa da vítima em 78% das vezes.

Em estudo feito pelo Instituto de Segurança Pública no ano de 2018, aponta-se que doze mulheres, em média, foram estupradas por dia no Estado do Rio de Janeiro. Ao todo, foram mais de 4,5 mil casos registrados na polícia apenas desse estado. Trata-se do maior número de casos desde 2015.28

27

IPEA. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Atlas da Violência 2018. Rio de Janeiro: 2018,

p. 56. Disponível em:

<http://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=33410&Itemid=432 >. Acesso em: 15 out. 2019.

28

RODRIGUES, Matheus. RJ teve 12 mulheres estupradas por dia em 2018, aponta Dossiê

Mulher. Rio de Janeiro: Jornal G1, 2019. Disponível em:

<https://g1.globo.com/rj/rio-de- janeiro/noticia/2019/04/30/rj-teve-12-mulheres-estupradas-por-dia-em-2018-aponta-dossie-mulher.ghtml>. Acesso em: 15 out. 2019.

(25)

De acordo com o estudo, cerca de 70% das mulheres eram menores de 17 anos e grande parte dos crimes teria ocorrido no interior da residência por pessoa que, de alguma forma, participa do convívio das vítimas.

A perpetuação dessa ideia pode ser observada a partir do relatório elaborado pela Ouvidoria Externa da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro que denuncia uma série de violações - dentre estes, estupro de mulheres - praticadas por militares durante a Intervenção Federal na Segurança Pública do Estado,

assinada pelo então Presidente da República Michel Temer no ano de 201829.

Tais situações alertam para o fato de que o estupro está associado a todas as estruturas de poder existentes em determinada sociedade. Isso explica tanto os relatos frequentes de violência sexual cometida por policiais em desfavor de presas sob sua custódia, quanto os casos mais comuns de estupro no ambiente familiar - como demonstram as estatísticas acima.

O primeiro exprime relação de poder decorrente da autoridade policial, enquanto que o segundo exprime o conceito historicamente consolidado de homem como chefe da família30, tendo pleno poder sobre cada um dos membros.

Os dados históricos e estatísticos acima invocados refutam a concepção de que homens seriam estupradores em potencial. Se assim fosse, estaríamos atribuindo a violência praticada à natureza masculina e, consequentemente, consideraríamos um comportamento inevitável - ocasião em que as mulheres teriam que sucumbir à ideia de que seus corpos seriam constantemente violentados frente à força da natureza humana do homem.

1.2.1. A representação da mulher no mundo masculino

29 “Em uma dessas invasões, teriam ocorrido os estupros, conforme conta um morador: ‘Eles

entraram numa casa que era ocupada pelo tráfico. Lá tinha dois garotos e três meninas. As meninas eram namoradas de traficantes. Era pra ser todo mundo preso, mas o que aconteceu é que os policiais ficaram horas na casa, estupraram as três meninas e espancaram os garotos. Isso não pode estar certo’.” (STABILE, 2018).

30

A instituição do pater familias conferia ao homem todo o poder sobre a mulher, filhos e escravos. Ressalte-se que, até o ano de 2002, o Código Civil Brasileiro adotava essa ideia do pátrio poder, cabendo exclusivamente ao homem as decisões familiares, tais como administração dos bens particulares da esposa e autorização para que ela exercesse uma profissão, cf. art. 233 do Código Civil de 1916.

(26)

Diante das informações traçadas até esse ponto, resta evidente que a violência sexual praticada em larga escala contra a mulher não decorre dos instintos masculinos.

Não é a exposição dos corpos femininos, através da própria liberdade da mulher em escolher sua vestimenta, que desperta um desejo sexual incontrolável nos homens. O cerne da questão é de que forma foi moldado o olhar masculino para o corpo feminino. Para entender essa problemática, faz-se necessário analisarmos como ocorre a representação feminina no mundo masculino.

Georgia Amitrano destaca que ao corpo feminino foi, desde sempre, imposta uma identidade, da qual se deriva seu papel social. Essa identidade pode ser observada na mitologia grega, em que Pandora representa um “ser” criado sob encomenda por Zeus como punição aos homens, possuindo características como beleza, poder de sedução e capacidade de mentir e enganar os outros - sendo a responsável pela liberação de todos os males da humanidade, como doenças, mentiras e ciúmes, ao abrir a conhecida “caixa de Pandora”.31

Por outro lado, o papel atribuído à mulher tomou nova roupagem com a formação das sociedades civilizadas e o forte impacto das religiões no controle social, ocasião em que definem a origem da mulher como a costela do homem - o que serviu de base para interpretações de que cabia à mulher tão somente servi-lo.32

Assim, o feminino jamais foi representado como um ser de vontades próprias e um existir pessoal. Sua existência é condicionada ao ser de um outro - no caso, o homem - e com a função de ora destruí-lo, ora auferir-lhe vantagens e subserviência33.

O mesmo ocorre em relação à sexualidade. O prazer sexual feminino não atende aos desígnos culturais de uma sociedade falocêntrica34. O corpo feminino

31

AMITRANO, Georgia Cristina. Posições e disposições de um corpo: o erótico e o pornográfico na ótica feminina: práticas de submissão ou de resistência nos dispositivos de poder. Voluntas:

Revista Internacional de Filosofia, 2019, v. 10, n. 1, p. 77. Disponível em:

<https://periodicos.ufsm.br/voluntas/article/view/37882>. Acesso em: 05 out. 2019.

32

Ibid., p. 77.

33

Ibid., p. 78.

34

Falocentrismo é a convicção baseada na ideia de superioridade masculina, na qual o falo, leia-se, órgão sexual masculino, representa o valor significativo fundamental.

(27)

não lhe pertence e, por isso, deve estar à disposição como oferendas para satisfazer aos prazeres masculinos.35

Essa objetificação é disposta nas revistas, comerciais e histórias de ficção. Sendo assim, o processo de transformação da mulher em mercadoria a ser consumida integra a nossa base social e cultural.36

Isso é refletido explicitamente na pornografia, que promove a desumanização da mulher ao transformá-las em artefatos sexuais cuja finalidade é atender exclusivamente aos desejos masculinos, mantendo as estruturas sociopolíticas de subordinação.37

Catharine MacKinnon defende a censura de certos materiais pornográficos em razão da associação de sexo com violência e coerção praticadas em detrimento da mulher, ao passo em que favorecem o homem·.

A repreensão não decorre das cenas de nudez ou de um ato sexual propriamente dito no material pornográfico, já que isso também seria uma forma de violar a liberdade de escolha da mulher em dispor do próprio corpo. Não se trata de uma questão moral, mas de um meio de combater a estrutura misógina38 em que a mulher é um mero objeto em cena para levar o homem ao ápice do seu prazer, já que raramente a experiência sexual é abordada sob o ponto de vista feminino.39

Nesse sentido, MacKinnon (2016, p. 801) afirma:

A sexualidade é para o feminismo o que o trabalho é para o marxismo: aquilo que mais nos pertence, e o que mais nos é tomado [...] Assim como a expropriação organizada do trabalho de alguns para o benefício de outros define classe e trabalhadores, a expropriação organizada da sexualidade de algumas para o uso de outros define sexo e mulheres.40

35

AMITRANO, Georgia Cristina. Posições e disposições de um corpo: o erótico e o pornográfico na ótica feminina: práticas de submissão ou de resistência nos dispositivos de poder. Voluntas:

Revista Internacional de Filosofia, 2019, v. 10, n. 1, p. 78. Disponível em:

<https://periodicos.ufsm.br/voluntas/article/view/37882>. Acesso em: 05 out. 2019.

36

Ibid., p. 79.

37

Ibid., p. 80.

38

Misoginia significa aversão ao gênero feminino, estando diretamente ligada às formas de violência contra as mulheres - dentre elas, a coisificação.

39

AMITRANO, op. cit., p. 82.

40

MACKINNON, Catharine. Feminismo, Marxismo, Método e o Estado: Uma agenda Para Teoria. Rio de Janeiro: Revista Direito & Práxis, 2016, vol. 07, n. 15, p. 801. Disponível em: <https://webcache.googleusercontent.com/search?q=cache:AAStfbtlljgJ:https://www.epublicacoes. uerj.br/index.php/revistaceaju/article/download/25361/18228+&cd=2&hl=pt-BR&ct=clnk&gl=br>. Acesso em: 02 nov. 2019.

(28)

Além disso, a desumanização da mulher também pode ser observada com a fragmentação41 do seu corpo, em que a mulher é reduzida a uma parte corporal - geralmente seios, vulva e ânus. O foco não é a pessoa como um todo - na realidade, muitas das vezes, ao menos se reconhece a pessoa - mas apenas as partes femininas que se pretende consumir, estando disponíveis para uso e posse.

A retirada da humanidade é um mecanismo que enseja nos casos de violência de gênero, principalmente sexuais, pois, à medida em que não se reconhece o outro como ser humano, o que ocorre de modo inconsciente pelos homens na cultura em que estão inseridos, torna-se mais fácil a perpetração de atos agressivos.42

No que concerne ao consentimento, a pornografia ainda mostra a disponibilidade da mulher mesmo quando não há consentimento expresso. O seu silêncio é visto como anuência e sua negação significa uma vontade velada. Por essa razão, reforça-se a falaciosa ideia de que a mulher sempre quer, mesmo que não se manifeste nesse sentido43.

A pornografia é considerada um fator que naturaliza a violência contra a mulher e constrói um imaginário social. Trata-se, majoritariamente, da primeira representação feminina no âmbito da sexualidade masculina.44

Para compreender essa realidade com maior propriedade, e considerando os poucos estudos sobre esse assunto no Brasil, foi desenvolvido e aplicado o questionário “Hábitos no consumo de pornografia” 45

, que consistiu em 23 perguntas, fechadas e abertas, de escolha simples ou múltipla escolha, englobando as seções “pornografia”, “nudes” e informações gerais, sendo aplicado entre os dias 24 de agosto a 27 de setembro de 2016. Foram recebidas 400 respostas completas, que forneceram uma base de dados de quase 10 mil itens, permitindo conhecer como, onde e com que frequência brasileiros consomem conteúdo pornográfico.

41

RIBEIRO, Raisa Duarte da Silva. Corporalidade e pornografia: uma análise crítica à luz dos estudos de David Le Breton. In: Congresso Internacional Interdisciplinar em Sociais e

Humanidades. Foz do Iguaçu: 2015, p. 78. Disponível em:

<http://www.aninter.com.br/Anais%20Coninter%204/GT%2012/05.%20CORPORALIDADE%20E% 20PORNOGRAFIA.pdf>. Acesso em: 20 set. 2019.

42 Ibid., p. 79. 43 Ibid, p. 84. 44 Ibid., p. 87.

(29)

Na ocasião, 98,5% das pessoas afirmaram já ter assistido, ainda que não procurem de modo espontâneo, em diversas situações o consumo ocorre involuntariamente, como através de aplicativos de telefone celular e websites convencionais da internet. Ainda assim, 80,25% ativamente o procuram. A média de idade com que os homens tiveram seu primeiro contato com esse tipo de material foi com 12 anos, tornando-se na adolescência - entre os 13 e 17 anos - consumidores frequentes. Verifica-se que os homens acessam muito mais do que as mulheres – numa relação de 79,18% para 29,41%.

Um outro estudo, realizado em 2011, analisou os efeitos da pornografia nas atitudes de 787 universitários de fraternidades na região Centro-Oeste dos Estados Unidos. 99% dos participantes tinha entre 18 e 23 anos. O método consistia em questionar aos universitários se eles acreditam que estariam propensos a ter determinados comportamentos. Entre estes, 83% relatou ter consumido pornografia convencional nos últimos 12 meses, enquanto que o restante não. Os que fizeram uso desses materiais descreveram uma maior propensão a cometer agressões sexuais, caso tivessem a certeza de que não seriam descobertos, do que os que não consumiram46.

Os pesquisadores deixam claro que esses dados não significam que todos os homens que consomem pornografia têm uma intenção velada em cometer abuso sexual.47 Os dados colhidos levantam o debate sobre o risco aumentado que a pornografia convencional – na qual a mulher é um mero objeto em cena –, como expressão da cultura patriarcal, tem para a efetivação dos abusos sexuais como expressão de poder entre os sexos.

Apesar do impacto que essa visão causa aos usuários, esse trabalho não se propõe a defender a censura dessas imagens - o que teria uma eficácia quase nula considerando a alta capacidade de propagação via internet. Em essência, essas imagens são o produto de uma cultura, as quais continuariam sendo produzidas mesmo diante de uma proibição expressa.

46

FOUBERT, John. BROSI, Matthew. BANNON, R. Sean. Pornography Viewing among Fraternity

Men: Effects on Bystander Intervention, Rape Myth Acceptance and Behavioral Intent to Commit Sexual Assault. [s.l.]: Journal of Sex Addiction and Compulsivity, 2011, passim.

Disponível em:

<https://www.researchgate.net/publication/230683362_Pornography_Viewing_among_Fraternity_M en_Effects_on_Bystander_Intervention_Rape_Myth_Acceptance_and_Behavioral_Intent_to_Comm it_Sexual_Assault>. Acesso em: 02 out. 2019.

47

(30)

Há de se observar que essas imagens por si só não possuem a capacidade de manipular a concepção do homem sobre a mulher. Na verdade, isso ocorre quando a violência observada nos vídeos fictícios é confirmada na realidade e no cotidiano do usuário - o que eventualmente irá acontecer, uma vez que se encontra submetido a mesma cultura que produziu os materiais pornográficos.

É a cultura do machismo que esse trabalho se propõe a denunciar, visto que é a responsável por produzir estupradores quando também estimula os homens a expressarem valores como dominação, raiva, agressão, competitividade e insensibilidade e os desencoraja a expressar vulnerabilidade.48 O comportamento e, principalmente, o modelo de sexualidade masculina são moldados de maneira agressiva, causando-lhes sofrimento - que será revertido em prejuízo das mulheres posteriormente.

Desse modo, embora as mulheres sejam destinatárias final dessa violência que ocorre de modo mais brutal, os homens também experimentam um certo tipo de violação quando lhes incumbe assumir o papel de opressor, a partir de um único modelo imposto de masculinidade, como destaca Simone de Beauvoir49, ao ressaltar o tratamento conferido aos homens desde cedo, notadamente em relação à perpetuação da ideia do falo estar associado a ser macho e, assim, superior, ocasião em que o pênis infantil é tratado com uma complacência singular, em observância à sociedade falocêntrica.

A partir dos 13 anos de idade, os meninos são ensinados a utilizarem-se da violência, desenvolvendo sua agressividade, sua vontade de poder, seu gosto pelo desafio, enquanto as meninas são ensinadas a renunciar aos jogos brutais e a assumir uma postura passiva.50

A mesma lógica é atribuída na esfera sexual, os impulsos eróticos são apresentados, para os meninos, como sinal de orgulho e transcendência de seu poder, ao passo que, para as meninas, seus desejos permanecem sobre o manto do embaraço.51

48

CAMPOS, C. H. et al. Cultura do estupro ou cultura antiestupro. Revista Direito GV, São Paulo:

2017, v. 13, n. 03, p. 986 Disponível em:

<http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/revdireitogv/article/view/73339/70474>. Acesso em: 30 out. 2019.

49

BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009, p. 12-13.

50

Ibid., p. 68.

51

(31)

Assim, é incontroverso que os homens não estupram pelo fato de serem homens, mas por serem socializados a impor a violência sexual às mulheres e, desse modo, exercer o poder sobre elas.

A propósito, foi a partir dessa perspectiva que o Projeto de Lei nº 5.398/2013, de autoria do então Deputado Federal Jair Bolsonaro, foi altamente criticado, já que exigia que o condenado pelo crime de estupro realizasse tratamento químico voluntário para inibição do desejo sexual como requisito para obtenção de livramento condicional e progressão de regime - mesmo não sendo este o cerne da questão.

A adoção dessa lei pelo ordenamento jurídico brasileiro reafirmaria essa relação de causalidade inexistente e outrora já superado no presente trabalho, além de ecoar o temor feminino em ter qualquer parcela de culpa no despertar do desejo sexual masculino, o que a tornaria responsável moralmente pela violência sofrida.

1.2.2 Culpabilização das vítimas

A visão de que as mulheres provocariam o estupro a partir de vestimentas sexualizadas52 é extremamente frágil e facilmente desconstruída quando analisado o perfil das vítimas.

No ano de 2016, 50,9% dos estupros foram cometidos contra meninas de até 13 anos de idade e 17% contra adolescentes entre 14 e 17 anos, perfazendo o percentual esmagador de 67,9% de vítimas que não haviam sequer atingido a vida adulta.53

Além disso, cerca de 10,3% das vítimas possuíam alguma deficiência, seja física, mental, visual ou auditiva - representando também 12,2% do total de vítimas de estupros coletivos.

Isso decorre justamente da capacidade reduzida de resistência dessas mulheres, que se encontram em uma posição de maior vulnerabilidade.

52

Pesquisa divulgada pelo IPEA no ano de 2014, com amostras de 3.810 indivíduos, de ambos os sexos, mostrou que 58,5% dos entrevistados acredita que se as mulheres “soubessem se comportar”, haveria menos estupros. (IPEA, 2014, p. 03)

53

IPEA. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Atlas da Violência 2018. Rio de Janeiro: 2018,

p. 63. Disponível em:

<http://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=33410&Itemid=432 >. Acesso em: 15 out. 2019.

(32)

Do mesmo modo, é cediço que pessoas que apresentam características que expressam introspecção, fragilidade e timidez têm maior propensão a se tornam alvo de criminosos, já que, a princípio, não representam uma ameaça ao agressor. Acredita-se que esse perfil teria uma menor inclinação a reagir ao ato criminoso, bem como a relatar o ocorrido às autoridades policiais.54

Esse perfil alvo de criminosos também se aplica aos casos de abusos sexuais, o que desconstrói a narrativa de que a exposição sexualizada do corpo feminino, bem como eventuais comportamentos não normativos adotados pelas mulheres, seria uma das causas da violência sexual como resposta masculina - corroborando a tese aqui defendida.

Percebe-se, nessa cultura, que a honra masculina e o que se espera do comportamento feminino permanecem interligados, definindo as mulheres como propriedades - ocasião em que passa a ser exigido delas discrição e obediência.

Mesmo com a desconstrução do código relacional de honra incitado por este trabalho, trata-se de ideias enraizadas no seio da sociedade, que dão margem para o entendimento de que as mulheres que se encontrem fora do perfil considerado honroso não sejam dignas de proteção e o ato violento sexual seja transformado simbolicamente em não estupro55, como ocorre com as prostitutas, com as mulheres transgêneros e com as mulheres homossexuais - as últimas vítimas de estupro corretivo56.

A junção da ideia de que o homem estupra em decorrência de impulsos sexuais incontroláveis e da ideia de que a mulher é responsável por isso traduz a chamada cultura do estupro.57 Ela não se refere à chancela do Estado em relação a esses crimes, como ocorre, principalmente, no Oriente Médio e no continente

54

ALENCAR, Eduardo Matos de. Você se comporta como uma vítima? [s.l.]: Proveitos Desonestos, 2016. Disponível em: <https://proveitosdesonestos.com.br/2016/11/23/voce-se-comporta-como-uma vitima/>. Acesso em: 20 out. 2019.

55

CAMPOS, C. H. et al. Cultura do estupro ou cultura antiestupro. Revista Direito GV, São Paulo:

2017, v. 13, n. 03, p. 993. Disponível em:

<http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/revdireitogv/article/view/73339/70474>. Acesso em: 30 out. 2019.

56

Estupro corretivo é uma prática criminosa, segundo a qual uma ou mais pessoas estupram mulheres lésbicas, supostamente como forma de "curar" sua sexualidade, na tentativa de controlar o comportamento social ou sexual da vítima. Cf. art. 226, IV, b, CP.

57

(33)

Africano 58 - mesmo tendo o Estado Brasileiro sido tolerante a inúmeras formas de violação sexual contra a mulher durante bastante tempo.

Embora haja a tipificação penal do crime de estupro e, consequentemente, uma pena a ser imputada ao agressor, a cultura do estupro refere-se à naturalização social da ideia de que as mulheres são constantemente violentadas e, principalmente, ao não reconhecimento de inúmeros comportamentos como ofensa à dignidade sexual feminina.59

Isso é facilmente observado em expressões utilizadas cotidianamente, em que “virar mulher na cadeia” significa ser estuprado. Assim, temos a associação da figura feminina como um objeto sexual disponível para uso.

A cultura do estupro torna-se ainda mais explícita quando analisada a natureza dos protestos alavancados contra o governo Dilma Rousseff no primeiro semestre de 2015. Com o anúncio da ex-presidente acerca do aumento do preço dos combustíveis, iniciou-se uma onda de protestos, o que seria natural e democrático, se não denotasse a violação sexual da presidente, através de adesivos na entrada dos tanques de gasolina com a imagem sexualizada da chefe de Estado, em que o abastecimento com a bomba de gasolina representaria o coito vaginal.60

A onda de protestos contra o aumento da gasolina também esteve presente no governo de Michel Temer. Mesmo tendo sido o aumento superior ao da ex-presidente, os protestos contra Temer não sugeriram qualquer tipo de violência nesse sentido. O que se pretende demonstrar com essas informações é que os

58 “Atualmente, dois terços dos países (140) punem a violência doméstica. Porém, mais de 40 não o

fazem. O Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC) calcula que, no mundo todo, 50% das mulheres assassinadas são vítimas dos cônjuges ou de homens da família. Em sua maioria, os países que não contam com leis que punem a violência contra a mulher no âmbito familiar estão na África Subsaariana – menos da metade dos países tem legislação sobre o tema – , Oriente Médio e Norte da África (um em cada quatro), segundo o Banco Mundial. [...] No mundo todo, ainda há 34 países que não julgam os estupradores se estes forem maridos das vítimas ou se casarem posteriormente com elas [...] Em muitos outros países, especialmente na África Subsaariana e na Ásia, o estupro não é punido se ocorrer dentro do casamento, o que deixa as mulheres desamparadas se o estuprador for o marido. Destaca-se o caso da Índia, onde, apesar da brecha jurídica, a Suprema Corte resolveu que o ato sexual será de fato considerado um estupro se ocorrer dentro do casamento, mas somente se a esposa for menor. Dentro da UE, a Bulgária é o único país que não reconhece as agressões sexuais cometidas pelo marido.” (CASTILLO, 2017).

59

CAMPOS, C. H. et al. Cultura do estupro ou cultura antiestupro. Revista Direito GV, São Paulo:

2017, v. 13, n. 03, passim. Disponível em:

<http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/revdireitogv/article/view/73339/70474>. Acesso em: 30 out. 2019.

60

ALTA de gasolina: por muito menos, Dilma foi alvo de machismo e misoginia. [s.l.]: Revista

Fórum, 2017. Disponível em:

(34)

tratamentos diferenciados nada têm a ver com partidos políticos ou ideologias defendidas. O que os diferencia, nesse caso, é o gênero. A ex-presidente Dilma – mulher – não teve sua competência apenas criticada como aconteceu com o ex-presidente Temer – homem –, ela teve sua dignidade sexual ofendida. Essa não foi uma forma de deslegitimar um partido do qual se é contrário, mas de deslegitimar o mais alto cargo de Estado ocupado pela primeira vez por uma mulher. A natureza das ofensas perpetradas contra a mulher de maior influência do país na época evidencia a cultura do estupro que assola as mulheres.

(35)

CAPÍTULO II

O PODER JUDICIÁRIO COMO EXPRESSÃO DA CULTURA PATRIARCAL

A partir da premissa de que a cultura patriarcal é reproduzida por todos que estão inseridos na sociedade - sejam homens ou mulheres -, o presente capítulo propõe-se a debater o seu reflexo no Poder Judiciário, representando um óbice à efetivação dos direitos conquistados pelas mulheres através do processo legislativo e das políticas públicas implementadas pelo Executivo.

2.1 O judiciário continua sem representação nos diversos segmentos sociais

Diante das pesquisas divulgadas pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) no ano de 2018, o perfil sociodemográfico da magistratura brasileira continua sendo majoritariamente formada por homens brancos, a partir do levantamento feito com 11.348 juízes (62,5%) de um total de 18.168 juízes, desembargadores e ministros dos tribunais superiores.61

As mulheres representam apenas 37% da composição da magistratura. Aponta-se como motivo para a baixa entrada das mulheres no Judiciário pode ser atribuído à divisão social do trabalho, em que as mulheres continuam cumprindo duplas ou triplas jornadas de trabalho, com suas famílias, representando um óbice à inserção na magistratura. Além disso, o processo educacional também contribui para que as mulheres não almejem esses espaços de poder.62

Outro ponto que se destaca é a menor progressão das mulheres na carreira jurídica, uma vez que, quanto mais alto o cargo, menor o número de mulheres.

A título de exemplo, as mulheres ocupam somente 23% dos cargos de desembargadores e 23% de ministros dos tribunais superiores. Sobre esses dados, é necessário destacar a politização e preterição feminina também explícita:

Esses processos internos para outros cargos são bem mais obscuros, e muitas das vezes mais políticos, visto que os critérios não são muito claros.

61

CNJ. Conselho Nacional de Justiça. Perfil sociodemográfico dos magistrados brasileiros. Brasília: 2018, p. 08. Disponível em: <https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2011/02/5d6083ecf7b311a56eb12a6d9b79c625.pdf>. Acesso em 30 set. 2019.

62

ODEVEZA, J; MELLO, M. Censo do Judiciário revela: nada mudou. [s.l.]: Articulação Justiça e Direitos Humanos, 2018. Disponível em: <http://www.jusdh.org.br/2018/09/14/censo-do-judiciario-revela-ainda-somos-os-mesmos/>. Acesso em: 01 nov. 2019.

Referências

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