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Feminilidade dissonante em cena : uma exploração andrógena e vadia do mito de Helena

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Academic year: 2021

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PAMELLA DE CAPRIO VILLANOVA

FEMINILIDADE DISSONANTE EM CENA:

UMA EXPLORAÇÃO ANDRÓGENA E VADIA DO

MITO DE HELENA

Campinas 2014

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE ARTES

PAMELLA DE CAPRIO VILLANOVA

FEMINILIDADE DISSONANTE EM CENA:

UMA EXPLORAÇÃO ANDRÓGENA E VADIA DO MITO DE HELENA

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena do Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas para obtenção do título de Mestra em Artes da Cena, na Área de Concentração: Teatro, Dança e Performance.

Orientadora: VERÔNICA FABRINI MACHADO DE ALMEIDA

Este exemplar corresponde à versão final de Dissertação defendida pela aluna Pamella de Caprio Villanova

e orientada pela Profa. Verônica Fabrini Machado de Almeida __________________________________________

Campinas 2014

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Ficha catalográfica

Universidade Estadual de Campinas Biblioteca do Instituto de Artes

Eliane do Nascimento Chagas Mateus - CRB 8/1350

Villanova, Pamella de Caprio,

V712 VilFeminilidade dissonante em cena : uma exploração andrógena e vadia do mito de Helena / Pamella de Caprio Villanova. – Campinas, SP : [s.n.], 2014.

VilOrientador: Verônica Fabrini de Almeida Machado.

VilDissertação (mestrado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Artes.

Vil1. Mito. 2. Identidade sexual. 3. Androginia (Psicologia). 4. Performance (Arte). I. Fabrini, Verônica de Almeida Machado,1960-. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Artes. III. Título.

Informações para Biblioteca Digital

Título em outro idioma: Dissonant femininity on stage : an androgynous and slutty exploration

of Helen's myth Palavras-chave em inglês: Myth Sex identity Androgyny (Psychology) Performance (Art)

Área de concentração: Teatro, Dança e Performance Titulação: Mestra em Artes da Cena

Banca examinadora:

Verônica Fabrini de Almeida Machado [Orientador] Isa Etel Kopelam

Luciana de Fátima Rocha Pereira de Lyra

Data de defesa: 18-12-2014

Programa de Pós-Graduação: Artes da Cena

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RESUMO

Uma atriz investiga as performatividades que envolvem os gêneros masculino e feminino. Como rata de laboratório e sujeito científico, experimenta em si e em corpos a seu redor a mitologia da mulher erótica, procurando ultrapassar dualidades em uma exploração andrógena. O mito grego de Helena foi escolhido como campo de provas, material poético estudado principalmente a partir da tragédia As Troianas, de Eurípedes; das pesquisas históricas de Bettany Hughes; das análises do Prof. Junito de Souza Brandão e do romance da francesa Sophie Chaveau. As questões de Helena serão problematizadas pelo viés dos estudos de gênero de Judith Butler e Beatriz Preciado; e da perspectiva do Imaginário, principalmente em Gaston Bachelard e CG Jung. Abordada a partir de suas subversões da feminilidade, como figura dissonante que permanece na arte ocidental desde Homero, a pesquisa busca a exploração andrógena porque os corpos procuram assumir o feminino e o masculino, se propondo a permanecer nas fronteiras, longe das

universalizações, ali onde tudo parece confuso e caótico. Assume-se também uma

exploração vadia porque a forma de organização das ideias permite o ir e vir, sem pudores, entre teoria e prática. Este trabalho é teórico-prático, interdisciplinar e autobiográfico. Palavras-chave: mito, gênero, androgenia, performance, atuação.

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ABSTRACT

An actress investigates performativities involving males and females roles. As a laboratory rat and scientific subject, experiences itself and the bodies around her with the mythology of the erotic woman, looking to overcome dualities in an androgeny exploration. The Greek myth of Helen is the field trials, an engaging poetic material studied mostly from the tragedy "The Trojan Women", by Euripides; the historical research of Bettany Hughes; the analysis of Prof. Junito de Souza Brandão and the novel of the French Sophie Chaveau. Helen's issues will be problematized from gender studies of Judith Butler and Beatriz Preciado; and the perspective of the Imaginary, especially in Gaston Bachelard and CG Jung. Approached from its subversions of femininity, as dissonant figure that remains in Western art from Homer, the research seeks to an androgeny exploration because the bodies seeking to assume the feminine and the masculine, proposing to remain at the border, away from universalizations, where there everything seems confused and chaotic. It is also assumed a slutty exploration because the organization of ideas allows the coming and going between theory and practice shamelessly. This work is theoretical and practical, interdisciplinary and autobiographical.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO...p. 1

Capítulo 1- uma atriz entre opostos: explorando potencialidades andrógenas ...p. 7

I. Feminino e Masculino ... p. 9 II. Sizígias: oposições que se definem pela conjunção ... p. 13 III. Devaneando sobre algumas oposições. Mas serão oposições? :

Lógica e Imagem; Realidade e Fantasia; Verdade e Mito ... p. 15 IV. Natureza e Cultura ... p. 21 V. Ambiguidade ... p. 23 VI. Androgenia... p. 26 VII. Fazendo gênero ... p. 37 VIII. Experimento prático I:

o primeiro encontro ... p. 42 IX. Experimento prático II:

Helenas Acidental– composteira de ideias ... p. 49

X. Trabalho de atriz:

estudando com o LUME ... p. 74 XI. Experimento prático III:

hackers de gênero ... p. 78 XII. Experimento prático IV:

Dispositivos Drag ... p. 86 XIII. Experimento prático V:

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Capítulo 2 – Helena Vadia

Parte I

Helena Vadia, uma Performopalestra sobre gênero e sexualidade a partir do

mito da cadela ... p. 109

Parte II

Notas sobre Helena Vadia – ficção e realidade que movem a arte de atriz: o duplo do teatro que vai além do campo de saber da arte

I. Ser uma mulher feminina não fere o meu lado masculino... p. 145 II. Manifesto das Mulheres Futuristas ... p. 145 III. A masturbação da mulher ... p. 147 IV. As espartanas ... p. 149 V. Relatos de estupro ... p. 152 VI. Helena hollywoodiana ... p. 154 VII. O casamento ... p. 154 VIII. Etra ... p. 155 IX. Concurso de beleza ... p. 156 X. As três deusas ... p. 157 XI. Um parêntese ... p. 158 XII. Revenge Porn ... p. 159

XIII. Cara de cadela ... p. 161 XIV. Encontro de Helena e Ulisses ... p. 162 XV. Condenadas ao fogo ... p. 162 XVI. Helena de Eurípedes ... p. 163 XVII. Andrômaca e Penélope: mulheres exemplares ... p. 166 XVIII. Outros motivos para a guerra ... p. 168

Considerações finais-

Reflexões acerca do trabalho de atriz e os estudos de gênero ... p. 171

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AGRADECIMENTOS

À orientação, Verônica Fabrini, pela inspiração e palavras-guia. A Eduardo

Bordinhon, que ajudou esta pesquisa de tantas formas que nem sei como descrever. A Cauê Gouveia, rata de laboratório pensante, pela disponibilidade e ajuda na edição dos vídeos. A Tatiana Mayumi, pela inspiração feminina e mão na roda com a edição de fotos. A Ivan Montanari e Pedro Machitte, por suas presenças deliciosas e trocas infinitas nesses assuntos de travestimento e práticas queer. A Letízia Patriarca, pela parceria nos estudos teórico-práticos entre teatro e antropologia. Ao Grupo Brilho Livre, coletivo contra institucional interessadas em performatividades de gênero e expressividades trans. Ao amigo Guilherme Schultz, pela ajuda com o conceito de sizígia. A Murilo Campanha, por sua contribuição de psicanalista-designer gráfico.

A Clara Lee Lundberg e Drag Queen Jaqueline Furacão, por me mostrarem algo sobre a prática da desconstrução de gênero. A Dalton YatabeChun pela parceria nos

registros fotográficos e a todas os seres que moram na Casa Amarela, por cederem o espaço para as apresentações de Helena Vadia. A Hugo Abacher, pelo apoio com a produção de Helena Vadia em espaços da Unicamp. À Escola de Capoeira Angola Resistência, por me mostrar um pouco da sabedoria dessa tradição e me ajudar na preparação corporal do trabalho prático.

Às funcionária e funcionários do Departamento de Artes Cênicas e do Instituto de Artes da Unicamp, por me ajudarem com assuntos burocráticos tão difíceis. Ao Estúdio Cênico Escola de Teatro e à Cia de Teatro Acidental, pela parceria de sempre.

À Professora Maria Cecília de Miranda Nogueira Coelho, por suas impressões preciosas sobre Helena. Às amigas e amigos que assistiram à Helena Vadia e leram meus escritos para dar uns pitacos. À minha família, pelo apoio incalculável que me permitiu ter o privilégio de finalizar uma pesquisa em teatro. À toda bibliografia e à boemia de Barão Geraldo, porque ambas apoiaram meus estudos.

À FAPESP, por ter viabilizado esta pesquisa por um ano. À Helena e aos movimentos que me levaram a ela.

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INTRODUÇÃO

Agora recebo você como recebo a plateia que entra pela porta de minha casa para assistir ao espetáculo que compus com este trabalho. Aqui vou tentar compartilhar minhas conclusões e angústias sob a perspectiva de uma atriz, do lado de dentro da cena. No fazer da atriz, vida e obra se misturam em um só corpo, as dicotomias estão em jogo, como este texto que se assume como ficção– posto que falo a partir de minha memória, e se pretende conhecimento, visto que se trata de um trabalho acadêmico.

Ao entrar em minha casa, a plateia é recebida pelos moradores caninos e vê colagens nas paredes. Linhas abstratas em jogo com imagens de passarinhos, homens se beijando, cartazes de teatro, figuras humanas em revistas e catálogos. Gengibre e Pancha – cães –entram e saem da casa; o primeiro, pequeno agitado e cheio de charme; Pancha grande, muito doce com olhar profundo.

Os dados imediatos das histórias que passaram por aqueles cômodos são recebidos por quem lê. Quando abro o portão para que entrem, já estou em cena: as marcas de meu corpo também são cicatrizes das histórias que vivi. O exercício da atriz é habitar suas cicatrizes no instante presente, subvertendo os significados cotidianos em uma arte que só acontece no agora. Teatro não é fotografia de teatro, não é texto de teatro, não é estudo sobre teatro. O teatro existe no momento da cena, entre o corpo da atriz e os corpos na plateia1.

Durante a cena, experimento a partir de mim. Quantas personagens cabem em um corpo? Depende do tamanho? Quantas possibilidades de jogo entre o corpo da atriz e a personagem! Qual parte coincide e qual subverto? Quais as possíveis relações entre o sexo do ator e o gênero da personagem? A partir daqui realizo experimentações que,

polissêmicas, tocam em muitas outras perguntas.

Escolhi trabalhar com um mito, uma história da tradição oral datada da Idade do Bronze Tardio (Pré-História) que se referia a uma divindade ligada à vegetação2. Narrativa

1 “O ator não está no centro [do teatro]; ele é o único lugar onde o teatro acontece e isso é tudo. O teatro acontece dentro

dele e isso é tudo”. Tradução minha de: “The actor is not at the center [do teatro]; he is the only place where it happens, and that's all. It happens within him, and that's all” (NOVARRINA, 1993, p. 100).

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que foi registrada por Homero mais de quinhentos anos depois, como uma das primeiras referências de feminilidade da História da Literatura Ocidental de origem grega3. Uma

antiga rainha da Pré-História que teria vivido na Grécia antes do surgimento do sentimento de nação4. Uma filha de Zeus que era alta sacerdotisa a quem muito se prestou culto, mas que foi considerada indigna de respeito ao longo da escrita da História5. A partir de Homero, muitas Helenas foram representadas na arte. Dentre tantas, gosto daquela de Esparta, que nasceu em uma cidade militarizada, reinou como habilidosa governante e, enlouquecida de tesão, enxergou um caminho político para a união de gregos e troianos a partir de sua vida pessoal. Sua escolha embebida pelos óleos de Afrodite foi considerada a causa da destruição de uma civilização.

A mim, deixei-me embriagar justamente por seu caráter duvidoso – como diriam os moralistas –, por sua ambiguidade insuportável. Porque enfrentando os questionamentos contemporâneos sobre o caráter natural do “ser homem/mulher”, a lógica binária que escolhe um, em detrimento de outro, já não é suficiente para abarcar as expressividades cotidianas. A ambiguidade mitológica de Helena me arrebatou diante do desejo de explorar feminino/masculino sob uma perspectiva andrógena.

Suas subversões daquilo que se considera feminilidade apontam possibilidades do “ser mulher” que escaparam dos modelos ideais de submissão e passividade da plateia da Tragédia Grega6. O que pode uma feminilidade dissonante?Como pode se rsua

representação? O que pode fazer com as estruturas a que meu corpo está sujeito?

Meu corpo que produziu este trabalho foi criado como “mulher”. Minha trajetória educacional começou na escola de freiras (onde pude começar a fazer teatro) e passou pela graduação em Artes Cênicas da Universidade Estadual de Campinas, um curso

majoritariamente focado na prática do trabalho de atriz/ator. De lá, saí acompanhada de parceiras e parceiros de trabalho, a Cia de Teatro Acidental7, que foi fundamental para a realização desta pesquisa.

3A Iíada

4 (CHAVEAU, 1991)

5 Ver obra de Bettany Hughes intitulada Helena de Troia:Deusa, Princesa, Prostituta. 6 Ver tópico Andrômaca e Penélope e Esparta em Notas sobre Helena Vadia. 7 www.teatroacidental.com.br

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A Cia Acidental é formada por atrizes e atores que assumem a maior parte das funções necessárias para a realização dos espetáculos que criamos, em uma forma de produção horizontal, o que pode demandar reuniões extremamente longas. Aos poucos, vamos descobrindo parcerias artísticas e formas de existir como grupo sem esforço para se inserir no “mercado de trabalho”. Por meio de editais públicos de fomento e investimento pessoal, estamos traçando nossas dinâmicas próprias –altamente discutíveis e discutidas.

Acidentalmente reunida pela universidade, jogando com a sorte de tantos acidentes, a companhia vem trabalhando desde 2006. No repertório, criamos espetáculos que

exploram diferentes estéticas teatrais, buscando abordagens bem humoradas e irônicas a obras de autores como Brecht, Ionesco e Nelson Rodrigues. Sinto um gosto comum por um teatro reflexivo, que nos faça pensar e repensar as ações do indivíduo em seus diversos papeis na sociedade – sem a necessidade de estabelecer uma moral que ofereça respostas. Nesta pesquisa, parte da Acidental entra como cobaia-cientista, inclusive a atriz que agora lhe escreve, tentando organizar, dessa forma vadia, as reflexões que surgiram das

experimentações e as experimentações que surgiram das reflexões.

No primeiro capítulo,apresentarei algumas considerações teóricas e cinco

experimentos práticos sobre os assuntos estudados, realizados nas funções de conduzida, condutora, condutora-conduzida e conduzida-condutora. Fui guiada por professores artistas, pelo universo da Tragédia e conheci Helena, apresentei Helena à Acidental e nos tornamos Helenas, digeri Helena e pari Vadia, agora me dirijo e atuo.

Vou mostrar como foi tal processo de pesquisa, acreditando que, na função de atriz, sempre se faz pesquisa para a criação de uma cena, seja mais ou menos superficial. Se vou fazer o papel de uma mulher culpada por uma guerra, vou colocar em cena o que conheço sobre ser uma mulher culpada por uma guerra;trata-se, no mínimo, de um exercício de pesquisa em si mesma. Por isso, este trabalho vai apresentar o resultado poético e a trajetória de uma atriz,jogando com a desconstrução-construção de uma personagem. Os estudos bibliográficos e os experimentos práticos podem apontar possíveis caminhos para a exploração das potencialidades andrógenas da atriz/ator, que enxergue outras possibilidades além do pensamento binário no que tange à relação do sexo do ator/atriz com o gênero da personagem.

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Juntamente com o texto, você vai encontrar fotografias e outros registros em

imagens, peço que se atente à leitura dessas figuras com a mesma atenção que normalmente dedicamos à leitura do discurso. As imagens, com todas as suas ambiguidades, são tão sábias quanto as ideias organizadas pela linguagem escrita.

No Capítulo 2 – Helena Vadia –, mostro o que consegui sintetizar sobre o mito de Helena em um espetáculo de cerca de uma hora, que tenho chamado de uma

Performopalestra8 sobre gênero e sexualidade a partir do mito da cadela.Escolhi

investigar as possibilidades performáticas de uma palestra, ao questionar-me sobre o momento da Defesa desta Dissertação: como falar sobre teatro para a banca, uma pequena plateia de atrizes? Como assumir o caráter performático da defesa pública da dissertação? Como valorizar o conhecimento do teatro que não precisa se explicar de outra forma além do momento em que se faz a cena?

Mas Helena Vadia, a performopalestra que compus para a Defesa, extrapolou as obrigações acadêmicas e já foi apresentada em vários espaços, dentro e fora da

universidade.

Trago o texto dramatúrgico do mencionado espetáculo, bem como as notas

expandidas sobre as referências das obras consultadas. As palavras que enuncio e as ações que realizo aparecem no corpo do texto porque esse é o formato principal de minha análise sobre a personagem Helena, feita a partir das leituras de Eurípedes, da historiadora Bettany Hughes, do romance escrito por Sophie Chaveau no final do século XX, das análises contemporâneas do professor brasileiro Junito de Souza Brandão, mas também consultando outras referências a Helena e imagens que identifiquei com “a essência do mito da beleza que cega e enlouquece” (CHAVEAU, 1991,p. 41).

8 O termo performopalestra é inspiradono trabalho da diretora Chilena Cláudia Echenique, que nomeia de

PERFOCONFERENCIA o seu trabalho Hombre Violento (2012), parte da sua trilogia sobre Violencia (Hombre Violento, Mujeres Violentas e Raza Violenta). Em Hombre Violento, as linguagens de performance e conferência se hibridizam, dando origem a essa terceira forma.

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É importante ressaltar que a performopalestra está em constante reconstrução e que, portanto, mesmo depois da publicação desta dissertação, haverá alterações no texto do espetáculo.

Parte desta pesquisa foi testar no corpo os estudos teóricos. Por isso o texto da

performopalestra foi construído com citações de outras obras, como uma aquarela de

sensações, opiniões, falas, visões sobre aquela que “os homens amam amar e amam odiar” (HUGHES, 2009, p 270). Outra parte da metodologia consistiu em observar como Helena já foi representada na arte, o que se disse a seu respeito desde Homero. Desde as epopeias homéricas, se passou um tempo considerável, então obviamente o panorama que vou fazer sobre a personagem abarca uma pequena parcela do que já foi produzido a seu respeito, apresentando os materiais que contribuíram para fundamentar o que escrevi na

performopalestra. Assim, a segunda parte do segundo capítulo está organizada no formato

de notas expandidas sobre a Helena Vadia, que relacionam a ficção da ambígua com outras referências teóricas e dados contemporâneos.

É perceptivo neste preâmbulo o caráter prático da investigação. A temática da mulher erótica e das questões de gênero é muito sedutora e, por isso, abordada, principalmente, a partir dos experimentos práticos, porque entendo que a maior contribuição deste trabalho está relacionada ao trabalho de atriz/ator, que pode ser interdisciplinar. Algumas reflexões são apresentadas a partir da prática e vice versa. A metodologia da subversão9 inspira os estudos, assim, se encontrar pelo caminho alguma

palavra que você considerar mal educada ou mal conjugada, espero que, de tal desacordo, não surja nenhum tipo incômodo entre nós.

Concluo o trabalho com o estado atual de minhas reflexões sobre a relação entre o trabalho de atriz e os estudos de gênero. Tudo, até aqui, é ficção: partimos da Ficção-Atriz para acompanhar os estudos teóricos junto das práticas que foram desenvolvidas com o objetivo de explorar a potência andrógena dos corpos das atrizes/atores e chegamos à Ficção-Helena para discutir algumas questões relacionadas à representação do arquétipo da mulher erótica. No último capítulo, apresento uma discussão acerca das questões que moveram a pesquisa desde o início.

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Começamos um giro no sentido anti-horário, um giro dissonante que assume o risco de parecer caótico, mas certo de que, ao final, as ideias encontram seus sentidos. Um estudo que propõe reflexões que pulam de cá pra lá e de lá pra cá, avessas a uma lógica causal. Teoria e prática se misturando em uma exploração vadia, organizadas em uma escrita vadia.

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CAPÍTULO 1

UMA ATRIZ ENTRE OPOSTOS:

EXPLORANDO POTENCIALIDADES ANDRÓGENAS

Palavras endereçadas afetuosamente a você que me lê:

Escrevo-lhe do alto da minha ignorância, registrando aqui os passos que dei entre novembro de 2012 e outubro de 2014, culminando na criação de uma obra poética intitulada Helena Vadia. Porque o processo de criação da obra é a pesquisa em si, propus criar com o mito de Helena para poder pesquisá-lo por dentro, com o corpo e pelo corpo. Aqui não há interesse num distanciamento crítico próprio dos momentos de análise. Há entre eu-autora e obra cênica, uma simbiose de saberes e, da minha parte, há sim a profunda necessidade de compartilhamento das angústias e dos encontros potentes que foram

conduzindo a pesquisa.

Se utilizo a primeira pessoa e decido lhe escrever um diário-dissertação, é porque adotei a metodologia da autoexperimentação, antes mesmo de conhecer os fantásticos escritos de Beatriz Preciado: “Toda filosofia é forçosamente uma arte de autovivisecção, quando não de dissecação de outro ou do outro. Uma prática de corte de si, de incisão da própria subjetividade”10 (PRECIADO, 2008, p. 252).Assim como os estudos

bibliográficos, as experiências que vivi são fundamentais para a compreensão do que é esse processo criativo, principalmente porque muitas delas foram compartilhadas com colegas artistas e também com pessoas de outras áreas do conhecimento.

Logo no início da pesquisa, deparei-me com as palavras em inglês de um dramaturgo francês. Endereçada aos atores, a sensível carta de Valère Novarriná fala diretamente a mim: “Realmente, por que uma pessoa se torna ator? Porque não

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conseguimos nos acostumar a viver no corpo que nos foi imposto, no sexo que nos foi imposto”11 (NOVARRINA, 1993, p. 104).

Com certeza, para mim não basta “ser mulher”. Não é suficiente ser a Pâmella. A teatralidade é um tesão e a convenção do teatro é onde tudo é possível. Mas na prática, nem sempre consigo argumentar junto a um coletivo sobre a possibilidade de uma atriz realizar em cena a função de um personagem homem, por exemplo. Quando digo argumentar, não estou me atendo simplesmente à esfera do discurso, mas também falo sobre a experiência da cena em si. Foi esse tipo de angústia sobre a relação do sexo do ator e o gênero da personagem que me trouxe a este texto agora.

Eu queria saber porque muitos diretores e diretoras de teatro promovem a dinâmica de divisão de papéis baseada no ser mulher/homem dos atrizes/atores, quando a convenção teatral nos permite ser tudo. Para isso, precisei pisar em terrenos movediços para perseguir perguntas como: o que é ser homem? O que dizem as teorias sobre o performar o ser mulher?E sobre os atributos do feminino e da masculina? Precisei estudar as questões por mais de um olhar, porque meu desejo era estabelecer diálogos entre o teatro e outros campos do conhecimento, justamente por estar diante de um questionamento que não conseguia responder em “teatrês”, restrito ao campo dos estudos teatrais.

Que respostas encontrei? A certeza de estar mergulhando no caos e poder dançar entre as ideias, mais do que a clareza de alguma conclusão objetiva. Mais a dúvida sobre a verdade inquestionável do conhecimento objetivo(especialmente no caso dos processos criativos em artes), que é sempre fruto do ponto de vista do autor, um ser engendrado, formatado por uma série de fatores históricos e culturais.

Logo nos primeiros estudos, fui tomando consciência da perspectiva

fenomenológica de que me falava Gaston Bachelard (1988), de que a separação entre o eu e o outro não é tão rígida, mas que o outro que vejo é parte de mim.

Eu e o outro, duas existências independentes. Mas não totalmente: o outro sou eu, porque o outro é o que eu enxergo dele. O que eu enxergo é o que eu conheço, o que eu

11Tradução minha da versão em inglês: “Really, why does a person become an actor? Because we can't get

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conheço é o que eu já experienciei, o que eu experienciei é o que eu sou. Fluxo contínuo, a outra se move para dentro de mim, a outro me modifica. O que eu sou é também o que é o mundo e, principalmente, o que eu penso sobre o mundo.

Essas ideias ficam bem fortes se você acabou de ler Simone de Beauvoir,afirmando a posição da mulher em nosso contexto sociocultural (colonizadas pela forma de pensar europeia, branca e outros marcadores que nem consigo identificar no momento) como o “outro”, o objeto (marcado) em relação ao sujeito (neutro) “homem”.

Percebi que alguns autores como Bachelard, Artaud e Jung também relacionam feminino e masculino a outros pares de opostos (como eu-outro de Beauvoir). Encontrei o questionamento dos dualismos em textos feministas, que também relacionam essa visão dicotômica a outras oposições (STERLING, 2001,/2002). No trabalho de treinamento de atriz, muitas vezes me foi sugerido explorar as oposições no corpo, como método para ampliar a intensidade das ações realizadas.

Como uma alquimista, eu quis saber o que é que se diz sobre masculino e feminino, para então poder experimentar as misturas no corpo, porque estou mais propensa a uma androgenia que radicaliza nas contradições do que ao apagar das diferenças.

I. Feminino e Masculino

Existem muitas explicações e muitos questionamentos sobre o que é feminino e o que é masculino. Em várias tradições, fala-se sobre essa oposição, seja definindo

comportamentos e funções sociais, seja relacionando com esferas psíquicas e até mágicas. Não posso negar a sabedoria de nenhuma tradição (apesar de muitas vezes me permitir problematizá-las), também não consigo abarcar tudo que se disse a respeito, volto a lembrar-lhe que escrevo a partir da minha ignorância e inquietações de atriz diante da teatralidade das expressividades culturais, principalmente no que tange ao comportamento mulher/homem. Vou tentar com algumas letras e riscos esboçar um panorama sobre as pistas que encontrei para perseguir definições do que seria masculino e feminino.

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O psicólogo suíço Carl Gustav Jung escolhe usar os termos latinos anima e animus para se referir respectivamente a feminino e masculino com o objetivo de garantir a

compreensão de que o feminino não está restrito à psique da mulher, assim como o animus em relação à psique do homem (BACHELARD, 1988). Tal escolha garante que se

ultrapasse a “simplicidade das classificações de registro civil” (BACHELARD, 1988,p. 62). Inspirado pelos escritos de Jung, Gaston Bachelard é bastante explícito ao garantir a

existência do feminino no homem e do masculino na mulher:

O homem mais viril, com demasiada simplicidade caracterizado por um forte animus, tem também uma anima — uma anima que pode apresentar manifestações paradoxais. De igual modo, a mulher mais feminina apresenta, também ela, manifestações psíquicas que provam haver nela um animus (BACHELARD, 1988,p. 59). Segundo a psicologia analítica que embasa parte de nossas referências teóricas, masculino e feminino não são sinônimos de pessoa que nasceu com pênis e pessoa que nasceu com vagina; nem mesmo de corpo de homem e corpo de mulher. Um discernimento fundamental, pois trataremos de analogias e devaneios poéticos acerca do assunto, sendo a pedra de toque desta pesquisa a aceitação de que as oposições podem dizer respeito a qualquer sujeita inscrita em nossa cultura, em jogo com sua constituição fisiológica e cultural de homem, de mulher e das infinitas possibilidades de subversão.

Em A Poética do Devaneio, Gaston Bachelard devaneia acerca das polaridades

animus/anima, definindo-as a partir de outros pares de opostos no processo de criação do

poeta. Em suas análises, fala sobre a relação entre o gênero das palavras e suas simbologias. Observando a generificação dos vocábulos em francês (sua língua nativa)e em outras línguas, sente-se constrangido ao se deparar com uma palavra que em seus devaneios reside no feminino, mas em outro idioma lhe aparece no masculino (BACHELARD, 1988). Essa percepção demonstra o duplo caráter de realidade (para o sonhador) e fantasia (para o nativo de outra língua) da relação entre a palavra e sua generificação no dualismo masculino-feminino.

Para Beauvoir, a relação homem-mulher não se traduz em oposição, porque o homem é, ao mesmo tempo, o positivo e o neutro (BEAUVOIR, 1970; p. 9). Afirmando que a alteridade é uma categoria fundamental do pensamento humano, ela questiona a

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analogia entre Sol-Lua e Masculino-Feminino, bem como Dia-Noite e Bem-Mal (BEAUVOIR, 1970; p. 11). No entanto,

...basta passear de olhos abertos para comprovar que a humanidade se reparte em duas categorias de indivíduos, cujas roupas, rostos, corpos, sorrisos, atitudes, interesses, ocupações são manifestamente diferentes: talvez essas diferenças sejam superficiais, talvez se destinem a desaparecer. O certo é que por enquanto elas existem com uma evidência total (BEAUVOIR, 1970, p. 9).

Proponho o exercício de dissociar feminino e masculino de corpo de homem e corpo de mulher e olhar para outras oposições em analogia, como material para explorações teatrais sobre as expressividades homem/mulher, já que enxergo esses seres manifestados em alguns corpos ao meu redor, às vezes bastante marcados, outras vezes ambíguos.

Feminino e masculino foram explorados a partir de analogias por alguns autores de nosso arcabouço teórico, seja afirmando as oposições, seja problematizando-as, a saber: Carl Gustav Jung, Gaston Bachelard, Gilbert Durand, Antonin Artaud, Lou Salomé, Anne Fausto Sterling, Alain Daniélou, Elèmire Zolla, Lúcia Romano, Beatriz Preciado, Simone de Beauvoir. Apresentamos a seguir um esquema simplificado dessas analogias, baseado na estruturação de quadros comparativos de alguns desses autores (Artaud, Sterling).

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Olhando para esse esquema, fica claro que os atributos do feminino descritos por tais autores não dizem respeito simplesmente a corpos nascidos com xana que produzam estrógeno e pouca testosterona. A docilidade, a vida interior e o amor também existem em corpos que se identificam como homens. Mesmo a flexibilidade, a tolerância, o talento para o mascaramento e o ser penetrado, também são potencialidades do corpo do homem, ainda que tais características possam ser mais encorajadas nos corpos daquelas que são

consideradas mulheres.

Na impossibilidade de articular com clareza o que significa ter sido criada como “o outro” com a sensação de ser “sujeito” em primeira pessoa, na certeza de que as oposições me seriam úteis como matéria- prima para a cena, mas duvidando do raciocínio binário que elege um “eu” e um “objeto”; encontrei na obra de Jung a palavra sizígia como definição para a relação masculino-feminino.

II. Sizígias: oposições que se definem pelaconjunção.

Em várias simbologias, Sol e Lua representam respectivamente masculino e feminino (BACHELARD, 1988; JUNG, 2000). Na obra de Carl Gustav Jung, a relação entre masculino e feminino é definida com a palavra sizígia, a “união dos opostos quando um deles jamais está separado do outro” (JUNG, 2000, p 113). Sizígia é a conjunção ou oposição de um planeta com o Sol. Mas a expressão é usada principalmente na relação do Sol com a Lua, no contexto da observação das marés. Sol e Lua estão em sizígia quando estão em posições opostas em relação à Terra, o que acontece para quem enxerga a Lua Nova e a Lua Cheia12, no momento em que a Terra cobre o reflexo da Lua totalmente para

uma parte das terráqueas e não cobre nem um pouco para o território do outro lado. A maré de sizígia acontece devido à posição entre Sol-Terra-Lua, pois as forças gravitacionais entre Terra-Sol e Terra-Lua estão no mesmo plano, provocando assim as maiores variações entre as marés altas e baixas. A imagem que Jung usa para definir a

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relação entre masculino e feminino é uma conjunção entre corpos celestes que gera movimento simétrico em duas partes do globo13. Trata-se da dualidade arquetípica.

Essa imagem da conjunção do Sol com a Lua, relação de oposição inevitável para quem vive na Terra – seja relacionando-os a dia e noite, seja observando os efeitos dessas conjunções –- carrega o arquétipo da alteridade, da relação eu-outro.

Na psicologia analítica, masculino-feminino é apenas um dos possíveis pares de opostos, mas na prática “é um dos mais importantes e frequentes” (JUNG, 2000, p. 26). Os escritos de Jung são baseados em suas experiências empíricas da prática clínica, ou seja, dizem respeito ao seu contato com seres de seu contexto contemporâneo e com mitologias de diversas partes do mundo.

A imagem da sizígia para definir a relação dos opostos coloca o ponto de vista do terráqueo diante de uma conjunção que altera as águas do planeta, parte constituinte da maioria dos seres vivos e cuja simbologia se relaciona à alma nos estudos míticos de Jung (JUNG, 2000; BACHELARD, 1988). Pensar os opostos em sizígia permite relativizar a ideia de oposição, lembrando-nos de que ela acontece de acordo com seu ponto de vista e que outros corpos celestes também podem estar em sizígia com o Sol. Uma imagem potente porque aceita os pluralismos, ao mesmo tempo em que apresenta uma oposição dual com efeitos na materialidade da vida terrestre. “Segundo um título de Bachelard, todo

‘pluralismo’ é ‘coerente’, e o próprio dualismo, ao tornar-se consciente, transforma-se numa ‘dualidade’ onde cada termo antagonista precisa do outro para existir e para se definir” (DURAND, 1998, p. 83).

Como definiu Antonin Artaud, o jogo entre os opostos é visto como um eterno movimento entre “côncavo e convexo. Tenso e relaxado. Yin e Yang. Masculino e

feminino” (ARTAUD, 1993,p. 158). Como na imagem do Yin e Yang da cultura chinesa, os opostos se contêm. Para Jung, a sizígia exprime um motivo a que a imaginação está presa (JUNG, 2000; p. 72), essa relação dual que ele define como “o fato de que

concomitantemente ao masculino sempre é dado o feminino correspondente” (JUNG,

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2000,p. 77). Os opostos geram movimento (ARTAUD, 1993). Os opostos em sizígia só se definem como opostos em conjunção.

III. Devaneando sobre algumas oposições. Mas serão oposições? Lógica e Imagem; Realidade e Fantasia; Verdade e Mito.

Estudando A Poética do Devaneio do filósofo Gaston Bachelard, encontrei diversas definições para masculino e feminino, nenhuma delas é lógica. Seguindo os passos do psicólogo CG Jung, Bachelard fala sobre outro tipo de conhecimento, que veio a ser esclarecido por Gilbert Durand em O Imaginário, com a palavra imagem.

O campo de conhecimento das imagens não segue as mesmas regras da lógica. É analógico. Opera da mesma forma que a linguagem poética. Parece, então, difícil de compreender se se pretende racionalizar. A imagem nos apresenta seu saber por meio de fumaças e brumas, de suas dúvidas sobre a “luz ativa dos conceitos bem associados” (BACHELARD, 1988; p. 51).Porém, seu conhecimento se faz de forma material, fala aos nossos sentidos, não a nossa razão. É o corpo que o reconhece. É o corpo que reconhece o conhecimento das imagens.

Durand (1998, p. 10) fala sobre o imaginário como uma categoria de pensamento que pode “se desnovelar dentro de uma descrição infinita e uma contemplação inesgotável. [...]ela propõe uma ‘realidade velada’ enquanto a lógica aristotélica exige ‘claridade e diferença’”.

É possível descrever e contemplar infinitamente a imagem, o arquétipo, o mito; justamente porque eles não se reduzem à sua descrição lógica, à sua manifestação corporal, à versão mais conhecida da história. Seu saber é de outra ordem. Para Jung, os arquétipos são estruturas do inconsciente coletivo, que remontam a tempos primitivos, que se

manifestam de acordo com julgamentos da consciência que o materializa (JUNG, 2000). Estamos entrando no campo do saber da imagem, cuja sabedoria não aparece de forma clara, mas velada.

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Contrapondo lógica e imagem, não pretendo estabelecer ou enrijecer mais uma dicotomia, mas jogar luz em outro tipo de caminho para a construção do conhecimento. Um caminho mais ligado ao feminino no ponto em que permanece pouco explorado pela

ciência hegemônica, tradicionalmente eurocêntrica e falocêntrica (BUTLER, 2003; FABRINI, 2013). Urge a busca de referências que fujam do quadro epistemológico “do norte”.

A atriz, encenadora e Professora Doutora Verônica Fabrini que orienta esta pesquisa, se inspira na metáfora do professor português Boaventura Souza Santos, que propõe trabalhar sobre as “epistemologias do sul”.

A “epistemologia do sul” que venho propor visa à recuperação dos saberes e práticas dos grupos sociais que, por via do capitalismo e do colonialismo, foram histórica e sociologicamente postos na posição de serem tão só objecto ou matéria-prima dos saberes dominantes, considerados os únicos válidos (SANTOS apud FABRINI, 2013,p. 4).

A partir de suas percepções sobre os estudos do imaginário, Fabrini escreve sobre a necessidade de buscarmos as tais “epistemologias do sul” no teatro, para que outras

maneiras de estruturar o conhecimento e a linguagem (consequentemente, nossa

expressividade e identidade cultural) além do falocentrismo do primeiro mundo ocidental “do norte”, sejam trazidas à luz da academia(FABRINI, 2013).

Nossas escolhas epistemológicas tratam de questões “do sul”, mas muitas foram publicadas em terrenos “do norte” (Jung, Bachelard e Durand falando sobre a imagem na Europa; Butler e Preciado falando sobre estudos de gênero nos EUA e Europa; Helena prostituta nos palcos atenienses...). “Sul” e “norte” são também imagens em oposição, altamente subversíveis e passíveis de outras interpretações.Como explica o próprio sociólogo Sousa Santos, há sul dentro do norte e vice-versa.

Fabrini fala sobre o “reconhecimento da episteme das imagens, ou seja, o

reconhecimento de que a imagem per si, sem necessidade de recorrer a conceitos, é capaz de gerar conhecimento” (FABRINI, 2013,p. 2). Os estudos sobre a imagem, o imaginário, o universo mítico, permitem caminhar por esses terrenos contraditórios que estão além do

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raciocínio lógico, literal. Ao invés da necessidade de extrair uma verdade unívoca, desejar a ambiguidade, a androgenia, o ininteligível.

Para Durand, a imagem é ambígua porque aceita a possibilidade de uma terceira opção diante dos binarismos, diante da lógica que exige uma resposta certa em detrimento de uma errada. Vi nos mitos a sabedoria das narrativas ambíguas, daquilo que não é um dos dois lados da polaridade, mas ambos. Hoje me angustia profundamente quando alguém deseja “desmistificar” uma ideia, ou quando perguntam se tal coisa é verdade ou mito. Verdade ou mito?

A maior parte dos autores que estudei problematiza a noção de “realidade”. Judith Butler é filósofa dos estudos de gênero e seus escritos fundamentam minha visão sobre o assunto. Para ela, a fantasia tem a capacidade de alargar o campo do “possível”, porque nos move do momento atual para uma infinidade de possibilidades ainda não atualizáveis (BUTLER, 2004,p. 28-29). Butler defende a importância dos seres que desafiam as normas porque eles questionam o caráter de realidade do “normal”. Observando quem está fora da fronteira, a fronteira torna-se clara. E se se enxerga a fronteira e se aceita a legitimidade de quem está fora dela, a própria existência de fronteiras torna-se questionável.

Aquilo que parece tão “real” e inevitável– a existência de homens e mulheres como seres em total oposição por natureza– é questionado, por exemplo, por pessoas travestis e trans, que se sentem “homem” em corpo “de mulher”, ou que são lidas como “homem” a despeito de guardar uma xana sob as roupas sociais.

A realidade que enxergamos não é independente de nosso ponto de vista. Bachelard (1988, p. 14) afirma como teorema para a fenomenologia, que a imaginação “é capaz de nos fazer criar aquilo que vemos”. Para ser capaz de ver além do real, ele afirma que“certos devaneios são hipóteses de vidas que alargam a nossa vida” (BACHELARD, 1988, p. 35). Antonin Artaud rejeita as “limitações habituais do homem”, tendo como objetivo “tornar infinitas as fronteiras do que chamamos realidade” (ARTAUD, 1993, p. 8). O dramaturgo Valère Novarriná defende apaixonadamente o teatro que “alonga para todas as direções os significados da linguagem antiga que nos é imposta”14 (NOVARRINA,1993,p.99). A

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fantasia, o devaneio, o teatro nos movem para outras possibilidades, alargam o real, rejeitam limitações, alongam significados.

Outra estudiosa apaixonada por Helena, a Professora Maria Cecília de Miranda Nogueira Coelho, da Universidade Federal de Minas Gerais, reflete sobre esse duplo realidade-imaginação a partir da tragédia Helena de Eurípedes. Diante do fantasma da mulher mais linda do mundo que vai para Troia, enquanto a “verdadeira” foge para o Egito, fica evidente “o fato de os objetos não serem independentes de nossa percepção dos

mesmos” (COELHO, 2010,p. 63), afinal as imagens, para que sejam passíveis de reconhecimento, dependem da interpretação, “que passa pela esfera da linguagem e do discurso” (COELHO, 2010,p. 75). Quem encontra a imagem da mulher mais linda do mundo descolada de sua corporeidade, só pode reconhecê-la como Helena,porque a julga de acordo com suas experiências imaginativas relacionadas à rainha “real”.

Para o Professor Doutor Alexandre Nunes, docente titular das Artes Cênicas da Universidade Federal de Goiás, “o termo “real” é quase sempre empregado para elevar um

status ou designá-lo como superior (lembremos da realeza)” (NUNES, 2012,p. 22).

Segundo sua reflexão, a ideia de manter-se com os pés na realidade linear em contraposição à noção de devaneio, não garante coerência com a realidade, afinal “também as fronteiras entre realidade e imaginação são por demais tênues, de modo que, a rigor, não pode existir uma sem a outra” (NUNES, 2012,p. 22-23).

A relação entre realidade e imaginação é um movimento duplo de reconhecimento de formas possíveis e atualizáveis. A ideia de inconsciente coletivo em Jung propõe analisar “as formas que usamos para outorgar sentido” como “categorias históricas que remontam às brumas da Antiguidade” (JUNG, 2000, p 42). Essas formas são definidas como os

arquétipos, imagens psíquicas a partir das quais nos relacionamos com os corpos, com o outro e comigo mesmo.

Os mitos parecem um caminho para acessar esse território tão movediço do inconsciente coletivo. Poderíamos também dizer, apenas para sublinhar a permeabilidade entre real e imaginário, que os mitos são uma caminho para acessar a psique objetiva – outra forma usada por Jung para nomear o inconsciente coletivo, ou seja, os mitos dizem

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respeito à realidade da psique. Na obra de Jung, os mitos são considerados a “estrutura de conscientização dos arquétipos” (LYRA et al, 2012,p. 5). As simbologias, a partir da observação do meio (das relações de espelhamento entre a humanidade e com a natureza), são o léxico que nossa psique tem disponível para se relacionar e criar novas possibilidades de realidade.

O senso comum coloca mito e verdade em oposição, mas a conotação de pura fantasia para os mitos é questionável. Segundo o estudioso Mircea Eliade (1992), os estudos sobre mitologia passaram por reformulações: ao invés de considerar o mito como uma fábula, uma invenção ficcional (como faziam, por exemplo, os teóricos do século XIX), os mitólogos ocidentais passaram a aceitá-lo como uma história verdadeira–como as sociedades arcaicas.

Eliade afirma a dificuldade de se definir o que é o mito, mas garante que, no geral, trata-se da explicação sobre como algum fenômeno da natureza ou do comportamento humano se originou, relacionando-se com “irrupções do sagrado (ou do ‘sobrenatural’) no Mundo” (ELIADE, 1992,p.11). Seu caráter de verdade se prova justamente pela existência do fenômeno cuja origem o mito narra. Desafiando a lógica racional, o estudo do mito exige outra relação com a ideia de verdade. Prossegue Elíade: “...não é absolutamente uma teoria abstrata ou uma fantasia artística, mas uma verdadeira codificação da religião primitiva e da sabedoria prática” (ELIADE, 1992, p.23). A sabedoria da prática não carece de explicação lógica.E a sabedoria prática é fundamental para a atriz/ator.

Para Nunes(2012, p. 42), tanto a fantasia do mito quanto a verdade inquestionável da História “têm validade sempre relativa, como produtos de construção intelectual e imaginativa”. Prossegue apontando outro caminho alternativo em mais uma bifurcação: “a confusão entre história e mito tem podido ser desfeita, exatamente quando reconhecemos que não existe um sem o outro. Em termos psicológicos, isso pode ser expresso na ideia de que o arquétipo provê as bases para que a história possa acontecer como produção da psique”. A aparente oposição verdade versus mito não procede, já que uma influencia o outro e vice versa.

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As narrativas míticas provêm as bases para nossa interação com o outro, a fantasia alarga as possibilidades do real;o saber da ambiguidade, das ambivalências, não se explica pela lógica binária.

Em uma das apresentações da Helena Vadia que realizei na Moradia dos Estudantes da Unicamp, em setembro de 2014, foi levantada a questão dos mitos como instrumento de coerção e legitimação de poder. A obra de Simone de Beauvoir, O Segundo sexo I: fatos e

mitos,discute essa perspectiva. Ela afirma que o mito da mulher, do “eterno feminino”,

serve para validar atitudes dos homens como sujeitos diante das mulheres como objetas. Tal circunstância se explica porque “as mulheres, não se colocando como Sujeito, não criaram um mito viril em que se refletissem seus projetos; elas não possuem nem religião nem poesia que lhes pertençam exclusivamente; é ainda através dos sonhos dos homens que elas sonham” (BEAUVOIR, 1970,p. 182).

Os mitos teriam suas raízes na experiência e, ao passo que transcendem o racional, adquirem um status que ultrapassa a existência, escapando da consciência. Assim, segundo Beauvoir, poderiam funcionar como modelo que delimita a própria experiência, que é necessariamente múltipla de significados. Por exemplo, “declara-se que as mulheres não são femininas e não que a Feminilidade é uma entidade. Os desmentidos da experiência nada podem contra o mito. Entretanto, de certa maneira, este tem sua fonte nela” (BEAUVOIR, 1970,p. 299).

Podemos dizer que as estruturas de poder fazem uso de imagens míticas e

arquetípicas –pois reconhecem sua potência na psique humana – e as manipulam, na maior parte das vezes trazendo luz apenas ao lado que lhes interessa. A observação de Beauvoir sobre o caráter objetificante do “eterno feminino” analisa uma sociedade falocêntrica, mas quem reprime não são as narrativas míticas. A grande dificuldade em lidar com os mitos é compreender sua pluralidade de significados, justamente a ambiguidade e a ambivalência, que interessam a esta pesquisa.

Ao mergulhar na exploração do mito de Helena, encontrei aspectos notáveis da narrativa, como por exemplo a ideia de que as cidades-estado se uniram pela primeira vez formando o que conhecemos por Grécia Antiga em um juramento de proteção mútua por Helena. Talvez o trabalho aprofundado com os mitos seja interessante justamente porque traz àtona detalhes como esse. Se as mulheres sonham os mitos dos homens e se, segundo

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Beauvoir, a própria existência de homens e mulheres é questionável, será o caso de procurar mitos a que se sonhar discutindo tais perspectivas?

Experimentar o mito de Helena – “o eterno feminino” de Brandão – em corpos de homens nos laboratórios práticos desta pesquisa caminha no sentido de afirmar que a tragédia da mulher mais linda do mundo também pode dizer respeito à experiência de seres que são definidos e/ou se definem como homens.“Porque o homem também é carne para a mulher; e esta é outra coisa além de um objeto carnal; e a carne assume, para cada um e em cada experiência, significações singulares” (BEAUVOIR, 1970, p. 301).

IV. Natureza e Cultura

Entramos agora em um debate do campo dos estudos de gênero, que problematiza a relação entre a anatomia e a expressividade cultural.Dos primeiros questionamentos que me trouxeram a este texto, me pareceu fundamental entender a dissociação entre “sexo” e “gênero”, já que a relação entre o corpo da atriz/ator e a personagem é um jogo entre sua anatomia e os comportamentos que se é capaz de assumir a partir disso.

A primeira explicação que me convenceu foi o exemplo de uma transexual chamada Agnes. Dois professores estadunidenses 15escreveram um artigo chamado “Doing Gender”,

dizendo que se reconheço que um ser nascido com pinto pode se comportar tão

mulhermente quanto uma “mulher” nascida com xana, reconheço a separação entre sexo

(anatomia) e gênero (a relação com a identidade e a expressividade social)16. Depois

descobri, lendo a filosofia de Beatriz Preciado, que a separação entre sexo e gênero foi feita pela primeira vez em 1947, por um “pseudopsiquiatra” chamado John Money

(PRECIADO, 2008,p. 28).

A partir da experiência de um “homem” que se “transformou” em “mulher”, o artigo de West e Zimmerman explica a diferença entre anatomia e comportamento social. Quando cheguei às leituras de Judith Butler e às discussões sobre suas obras, a separação entre sexo

15WEST, Candace. ZIMMERMAN, Don H. Doing Gender. Gender and Society.v. 1, n. 2, p. 125-151,jun. 1987. 16Eles também falam sobre categoria sexual, que seria uma leitura social sobre a minha identidade. As palavras pinto e

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e gênero ficou mais complexa, porque aparece o questionamento do pensamento dual. Não é possível dissociar totalmente corpo e performatividade17, afinal um influencia a outra até

o infinito.

Sou mulher porque tenho uma cavidade entre as pernas ou porque gosto de falar com a voz suave? Minha voz é suave porque meu corpo é pequeno ou porque aprendi a falar de determinada forma? A forma do meu corpo influencia minha voz ou a forma do meu corpo foi moldada por meus hábitos culturais? Meus hábitos culturais foram traçados de fora para dentro ou de dentro para fora? Existe uma natureza de mulher diferente de uma natureza de homem? E, se existir, essa natureza se expressa culturalmente a partir de

identificações? Qual a relação entre o sapato de salto e a cavidade entre as pernas? Será que a presença de vagina e estrógeno no corpo influencia o desejo de se equilibrar em um salto fino ou será que o sapato alto constrói o corpo de mulher?“...identidades de gênero

baseiam-se na supressão das similaridades do corpo e no exagero das diferenças corporais, exatamente porque a lógica biológica não pode sustentar as chamadas diferenças sociais” (ROMANO, 2009, p. 68).

Se olharmos para uma oposição fundamental nesse tipo de discussão – ser mulher é uma questão de natureza ou de cultura?,sob a perspectiva da ambiguidade, tudo fica mais claro porque se mantém esfumaçado. Duvidando da lógica binária, a própria noção de construção social como algo exclusivamente de fora do corpo fica comprometida. Muitas vezes, essa expressão dá a sensação de que o que é socialmente construído é fácil de mudar. Mas nossas construções culturais são a base de nossa expressividade, da estruturação de nosso pensamento, de nossas ideias.

Ao apresentar sua definição sobre o que é o gênero, Judith Butler fala sobre uma “estilização repetida do corpo”“no interior de uma estrutura reguladora altamente rígida”, que “se cristaliza no tempo para produzir a aparência de uma substância” (BUTLER, 2003, p. 59). Um conjunto de atitudes, uma estilização corporal, que adquire status de realidade porque é repetido ao longo do tempo. E é a partir dessa realidade oficializada que

estabelecemos as trocas com o outro.

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Beatriz Preciado afirma que a certeza de ser homem ou mulher é uma ficção do corpo junto da estrutura política, que se articula em tecnologias de domesticação desse corpo “por um conjunto de técnicas farmacológicas e audiovisuais que fixam e delimitam nossas potencialidades somáticas, funcionando como filtros que produzem distorções permanentes da realidade que nos rodeia” 18(PRECIADO, 2008,p. 89). O gênero é

explicado como um programa operativo, em analogia a um software informático a partir do qual as percepções sensoriais são produzidas.

Sob essa perspectiva, afirmar que determinada característica comportamental é da

natureza do ser mulher torna-se duvidável, afinal nossa leitura da natureza é feita a partir

dos filtros culturais a que somos submetidas. Também não é possível afirmar que a natureza não interfere na construção das trocas culturais. “O gênero é, antes de tudo, prostético, quer dizer, não se dá além da materialidade dos corpos. É puramente construído e ao mesmo tempo inteiramente orgânico. Escapa das falsas dicotomias metafísicas entre o corpo e a alma, a forma e a matéria”19 (PRECIADO, 2012, p. 25).

A dicotomia natureza ou cultura no que tange à identificação da indivídua como mulher não procede, afinal, não está na natureza o corpo que constrói a cultura? A cultura e a naturezaagem diretamente transformando corpos, ao mesmo tempo, naturais e culturais. Não está na cultura a leitora que observa a natureza?

V. Ambiguidade

Desde o começo da pesquisa estava procurando formas de comportamento que extrapolassem a dualidade homem-mulher, estava tentando encontrar algum distanciamento do meu comportamento cotidiano confortável “de mulher”, sem necessariamente negá-lo, porque não queria simplesmente pular para “o lado oposto”.

18Tradução minha de: “por un conjunto de técnicas farmacológicas y audiovisuales que fijan y delimitan nuestras

potencialidades somáticas funcionando como filtros que producen distorciones permanentes de la realidad que nos rodea”.

1919 Tradução minha de: “El género es ante todo prostético, es decir, no se da sino en la materialidad de los cuerpos. Es

puramente construido y al mismo tiempo enteramente orgánico. Escapa a las falsas dicotomías metafísicas entre el cuerpo y el alma, la forma y la materia”

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Nos primeiros escritos, falava sobre pensar em me travestir ainda que estivesse fazendo uma personagem mulher. A simples ideia de travestir-se me parecia um gatilho para acessar no trabalho de atriz a consciência de algumas construções sociais do ser

mulher/homem. Eu me perguntava: o que o travestismo anedótico da Drag Queen usa como elemento de feminilidade, que atitudes comportamentais são tidas como femininas por quem decide trabalhar uma expressividade “de mulher”? O objetivo inicial era chegar a uma composição “super feminina”, em uma hipérbole (- reveladora de fronteiras?) do que seria a feminilidade. Mas quis observar também elementos de masculinidade que compõem essas figuras, que identifiquei como andrógenas. Como a mistura de feminilidade e

masculinidade traz contradição a essas imagens! E como essa contradição me interessa! Seguindo os estudos, comecei a ver as contradições na bibliografia. Enquanto Artaud, Bachelard, Jung, falavam sobre o movimento dos opostos, Butler estava

questionando nosso raciocínio binário, dicotômico. Em muitos momentos esses diferentes campos do conhecimento me fizeram questionar a metodologia: será que eu posso assumir pontos de vista diferentes em uma pesquisa acadêmica?Como articular perspectivas tão diversas quanto Butler e Jung, sobretudo por que ambas me estimulavam a criar, a agir cenicamente?

Percebi que os estudos da psicologia profunda de Jung afirmam claramente a existência de estruturas inatas a partir das quais se tornam possíveis as relações entre eu e o outro. Tais estruturas estão no inconsciente coletivo (que é compartilhado, ou seja, que está fora e dentro do sujeito) e também, como sugere a obra de Gilbert Durand20, relacionadas

às funções fisiológicas do corpo. Parece coerente que compreendamos o mundo a partir das estruturas que temos. Afinal, como as experiências “poderiam provir exclusivamente de algo externo”? (JUNG, 2000,p.108).

Os trabalhos das filósofas de gênero Butler e Preciado apresentam uma perspectiva que apontam as expressividades estranhas como potências para o alargamento das

possibilidades do real. Dos dispositivos Drag para a experimentação de outras possíveis subjetividades, o exercício de se perguntar como as estruturas sociais disponíveis moldam

20ARAUJO, F. A. TEIXEIRA, M. C. S. Gilbert Durand e a pedagogia do imaginário. Letras de Hoje.v. 44, n. 4, p. 7-13,

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nosso corpo. Um exemplo é a afirmação de Preciado de que não se trata de encontrar uma verdade escondida do sexo, mas, sim, de re/de/sconstruir nossas percepções sobre o sexo e, consequentemente, nossas expressividades, de sex design (PRECIADO, 2008,p. 34).

Para Butler, a divisão entre sujeito e objeto é uma ilusão porque considera o sujeito como quem age sobre o objeto. Mas o sujeito recebe influência do objeto tanto quanto o objeto do sujeito; ou o sexo do gênero e o gênero do sexo. Em Jung, o inconsciente coletivo é a consciência de que “eu sou o objeto de todos os sujeitos, numa total inversão de minha consciência habitual, em que sempre sou sujeito que tem objetos” (JUNG, 2000,p. 32).

Repensando a relação hierárquica entre sujeito e objeto (e sexo/gênero), posso me considerar um ser, ao mesmo tempo, natural e cultural; ao mesmo tempo, passivo e ativo diante dos processos de construção cultural.

Em alguns momentos da pesquisa precisei me lembrar de que meu estudo é em teatro. Isso porque minha capacidade de leitura nas áreas de filosofia e psicologia profunda não são o que me trouxeram à academia. Diante das contradições do campo teórico, nada posso fazer além de aceitá-las e experimentá-las na cena. Lembrando que o que eu quero estudar é o fazer teatral, a relação da atriz com a cena, tenho a permissão de explorar a imagem que unifica “fatores heterogêneos ou até mesmo incomensuráveis” (JUNG, 2000, p. 115).

O caráter perturbador do paradoxo não é universal, na Antiguidade ocidental e nas culturas orientais, “muitas vezes os opostos permanecem unificados na mesma imagem, sem que esse paradoxo perturbe a consciência” (JUNG, 2000,p. 109). Mergulhando nas contradições, fui percebendo que as imagens em sizígia sobre os opostos de Bachelard e Artaud não têm como resultado (para o ator, por exemplo) uma reflexão necessariamente binária, dicotômica, mas esses opostos, como o yin yang, podem servir ao mesmo tempo e alternadamente na figura em cena. “… é duro saber-se ao mesmo tempo opressor e

oprimido21”(PRECIADO, 2008, p. 106).

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Diante das ambiguidades, começo a desejar a androgenia como linguagem. A imagem do andrógeno já me vinha à mente ao observar personagens ambíguas que me interessavam, tanto no campo da arte quanto nas inspirações efêmeras do cotidiano.

VI. Androgenia

As utopias são como o horizonte distante para o qual aponta a bússola; conforme o caminhar, a fusão entre céu e terra se desfaz sob meus pés, mas permanece infinita até onde a vista alcança (SALOMÉ, 1991,p. 14). A teórica feminista Gayle Rubin apresenta sua utopia por um mundo andrógeno, sem gênero, mas não sem sexo: “O sonho que eu acho mais atraente é o de uma sociedade andrógena e sem gênero (embora não sem sexo), na qual a anatomia sexual seja irrelevante em relação a quem se é, o que se faz e com quem se faz amor”22(RUBIN, 1975, p. 204). O questionamento da realidade do gênero no limite leva a sonhar com um contexto em que a anatomia não direcione as práticas culturais, ainda que as influencie. A utopia de um mundo andrógeno, em que a presença de pintos e xanas não sejam determinantes para as práticas sexuais e comportamentais, é um esforço para ver além das realidades inscritas nos corpos.

A cultura formatadora das identidades diz que homem que é homem não chora, não é passivo, não tem prazer anal - mesmo o sujeito que escreve a História é reprimido. Diversas tradições e mitologias falam sobre um andrógino primordial, que reuniria em um único corpo as potencialidades femininas e masculinas. Elèmire Zolla é referência em estudos comparados sobre religiões. Em seu livro The Androgyne, o teórico

italiano-estadunidense apresenta um panorama sobre a simbologia do andrógeno desde a figura pré-histórica de Dionísio até as representações do cinema do século XX.

Mesmo na cultura judaico-cristã, o andrógeno primordial aparece. Do corpo de Adão, o primeiro ser humano, nasce Eva. Antes de Deus tirar Eva de sua costela, ele representa a união dos dois e, se foi feito à imagem e semelhança do divino, o todo poderoso também seria andrógeno (ZOLLA, 1981,p. 20-22).

22Tradução minha de: The dream I find most compelling is one of an androgynous and genderless (though not sexless)

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No misticismo judaico, o feminino é relacionado ao mal (ZOLLA, 1981,p. 22). A parte feminina de Adão é quem prova do fruto proibido. Existe ainda outra personagem mítica presente no Antigo Testamento hebreu, que foi invisibilizada pelos editores bíblicos, porém os registros de sua possível existência como ser mitológico foram estudados pelo antropólogo e professor da Universidade de Brasília, Roque de Barros Laraia, no artigo “Jardim do Éden Revisitado”(1997), a partir de escrituras sagradas aceitas e rejeitadas pelas religiões judaicas e cristãs.

Lilit teria sido a primeira esposa de Adão, criada a partir do barro, como ele. Teria sido também a primeira feminista porque “não se submeteu à dominação masculina” (LARAIA, 1997,p. 152). Revoltada por ficar por baixo na relação sexual, ela foge e se recusa a retornar para perto de Adão, Deus a pune transformando-a em demônio. Vendo Adão sozinho, o poder divino cria Eva de sua costela– essa sim ele pode considerar uma mulher, porque veio de sua carne. Supõe-se que, por isso, Eva aceite a submissão.“Foi para salvar Adão da solidão que êle lha deu, ela tem no esposo sua origem e seu fim; ela é seu complemento no modo do inessencial”(BEAUVOIR, 1970, p. 181).

Na mitologia do Antigo Testamento, o aspecto feminino é um complemento do masculino, seu subordinado e duplamente perigoso: se rebela e dá origem a um demônio e,por acreditar ingenuamente na serpente (seria Lilit?), causa a expulsão da humanidade do paraíso.

A árvore da vida da Cabala judaica apresenta o equilíbrio de forças, assim, ainda que o feminino seja relacional ao mal, o homem perfeito do judaísmo harmoniza os dois polos, dominando seu feminino (ZOLLA, 1981,p. 22). Zolla, a partir da observação demitologias que fundamentam religiões, afirma que os aspectos relacionados ao feminino são reprimidos por nossas sociedades falocêntricas:

Sofremos pela perda das qualidades femininas em nós – a arte de ouvir avisos prévios, de aceitar a fragilidade, de sentir ternura para com o cosmos. A organização masculina, o planejamento, a exploração utilitária, cresceram ao ponto de nos trazer à beira da autodestruição. Desde a infância somos forçadas(os) a assumir que

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o lado esquerdo do cérebro é o nosso único guia digno de valor23(ZOLLA, 1981; p. 31).

O andrógeno conhece as experiências relacionadas ao masculino e ao feminino. Na cultura que floresceu a partir de Dionísio, o mito de Tirésias fala sobre uma menina que, ao trair a confiança de Apolo, foi transformada em menino. Por sua notória experiência de existência, Tirésias é consultado pelo casal mais poderoso do Olimpo, Zeus e Hera. A deusa dos amores legítimos (BRANDÃO, 1989,p.104) e o onipotente discutem sobre que corpo promove mais prazer sexual. Tirésias-homem responde: “…a mulher aproveita nove vezes mais que o homem” (ZOLLA, 1981,p. 18).

Outra lenda sobre transformação garante que quem consegue passar por baixo do arco íris muda de sexo. Ter a experiência dessas diferentes formas de existência parece ser uma simbologia relacionada à obtenção de conhecimento. Ser nem homem nem mulher, mas ambos.

“Eu sou homem e sou mulher, ‘sabe? Eu sou os dois e ó, é um

casal… que não brigam nunca” (Travesti Cláudia Wonder no filme

“Meu amigo Cláudia”, de Dácio Pinheiro).

Zolla relaciona a lenda do arco íris ao estado mais avançado de conhecimento na tradição do budismo tibetano. Tal existência se alcança a partir da hibernação e da perda das lembranças sobre a dualidade básica primordial: luz e sombra (ZOLLA, 1981,p. 57).

Na simbologia egípcia, muitas divindades eram andrógenas. Zolla mostra uma representação divina em que um sossegado caminhar suave, que parece um tipo peculiar de poder, emana de seu equilíbrio andrógeno interior (ZOLLA, 1981,p. 59). Nesse contexto, ele diz que a divindade, ao transcender as oposições, aumenta sua capacidade de

compreensão e supera o medo graças à onisciência, à ausência de ilusão e à superação da dor (ZOLLA, 1981,p. 59).

23Tradução minha de: We suffer for the loss of all the female qualities in us – the art of listening to forewarnings, of

accepting frailty, of feeling tenderness toward the cosmos. Masculine regimentation, planning, utilitarian exploitation have grown to the extent of bringing us to the verge of self-destruction. From childhood we are tortured into asume that the left side of the brain is our only worthy guide.

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A representação de deuses e xamãs como seres andrógenos e/ou bissexuais aparece em várias religiões, como na representação do deus Shiva que, segundo o trabalho do especialista em cultura hindu, Alain Daniélou, tem muitas equivalências com a mitologia de Dionísio. Daniélou escreve Shiva e Dioniso, apresentando à leitora paralelos entre essas divindades que remontam a tempos longínquos. Shiva é hermafrodita; Dioniso é

andrógeno.

“A divindade primordial é essencialmente bissexual” (DANIÉLOU, 1989,p. 51). A partir de seus estudos sobre mitologias, Jung afirma que “o homem, nos mitos, sempre exprimiu a ideia da coexistência do masculino e do feminino num só corpo. Tais intuições psicológicas se acham projetadas de modo geral na forma da sizígia divina, o par divino, ou na ideia da natureza andrógina do Criador” (JUNG apud BRANDÃO, 1989, p. 53). Nesse andrógeno primordial divino, “os contrários coexistem” (DANIÉLOU, 1989,p. 51), a bissexualidade se relaciona com outras formas da “totalidade-unidade que a união dos pares de opostos significa: masculino-feminino, visível-invisível, céu-terra, luz-escuridão, mas também bondade-maldade, criação-destruição, etc” (ELIADE apud DANIÉLOU, 1989,p. 51).

Problematizando a lógica binária que escolhe um ou outro na relação masculino-feminino, podemos problematizar outros binarismos e vice versa. Como por exemplo, a dicotomia esquerda ou direita: “Como Shiva, o primeiro homem (Adão) era homem do lado direito e mulher do lado esquerdo. Todos os ritos tântricos dos quais a mulher participa são chamados ritos da Mão esquerda. O lado esquerdo é o lado fraco do homem, reservado para as tarefas humildes e impuras” (DANIÉLOU, 1989, p. 53).

Quem usa a mão esquerda para as tarefas que exigem coordenação fina, como escrever, é sinistro. O sinônimo de “canhoto” também se relaciona a funesto, mau, que se deve temer, assustador, sombrio24, algo sem explicação, diabólico25. Helena é descrita em palavras contemporâneas como uma “figura sinistra” na tragédia As Troianas, de Eurípedes (HUGHES, 2009,p. 80). Lembro-me de uma amiga canhota que foi forçada a aprender a escrever com a mão direita na escola em que estudava, administrada por freiras. Parece que

24 De acordo com a definição de sinistro em: HOUAISS, Antônio. VILLAR, Mauro de Salles. Dicionário Houaiss

Referências

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