A hospitalidade
na construção da identidade cristã
Uma leitura de Lc 24, 13-35, em chave narrativa
Lisboa Universidade Católica Editora 2014
PREFÁCIO
A actualidade de Emaús
Não é exagero chamar ao relato de Emaús (Lc 24, 13-35) a obra-prima narrativa de Lucas, tão requintado é aqui o seu trabalho autoral. Além da excelência literária, porém, esse episódio ocupa na composição teológica do Terceiro Evangelho uma função absolutamente charneira: cabe-lhe nada me-nos que resumir a experiência pré e pós-pascal dos discípulos e esboçar uma primeira catequese narrativa da fé no Ressuscitado. Em torno do caminho, da palavra e da mesa acontece uma verdadeira mistagogia, que a tradição cristã até ao presente não deixará de revisitar e replicar. Não admira, portanto, que este seja um dos episódios mais comentados e escrutinados exegeticamente, havendo sobre ele uma montanha imensa de escritos. Ora, esse facto (o do trabalho ingente que qualquer abordagem ao relato de Emaús hoje supõe), não dissuadiu João Alberto Correia e, terminada a sua pesquisa, temos que agradecer-lhe a ousadia.
O método que elegeu para o seu trabalho é o da narratologia, um método de aplicação relativamente recente no âmbito dos estudos bíblicos e de grande conseguimento na novidade que transporta para a teologia. É certo que a na-tureza literária da Bíblia foi sendo observada desde longa data. E isso como exi-gência da natureza da própria Revelação nela contida. A sua economia, como explicitará depois a Constituição Dogmática Dei Verbum, “realiza-se por meio de acções e palavras intimamente relacionadas entre si, de tal maneira que as obras, realizadas por Deus na história da salvação, manifestam e confirmam a doutrina e as realidades significadas pelas palavras; e as palavras, por sua vez, declaram as obras e esclarecem o mistério nelas contido”. Mas o grande esforço de viragem metodológica que ocorre hoje no campo das ciências bíblicas, e da qual a emergência do método narrativo é um fortíssimo sinal, permite-nos operacionalizar com renovada intensidade essa compreensão.
Que pretende a abordagem narrativa? Que escolhas fundamentais realiza? Que modo tem de operar? Antes de tudo, onde a exegese histórico-crítica pos-tulava o primado hermenêutico da história, a narratologia condivide o ponto
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de vista das leituras sincrónicas, privilegiando o estado final do texto. De-pois, a narratologia desata o nó que aprisiona de forma unívoca o texto ao seu contexto original (como se a única tarefa da hermenêutica fosse a idealizada reconstrução de um sentido primeiro), afirmando que toda a obra literária é dotada de uma dinâmica autónoma, que lhe permite encontrar um sentido em contextos novos (o potencial de revelação de um texto não se esgota com a primeira geração de leitores). Por fim, a narratologia encara o texto como um processo de comunicação entre autor e leitor. Não o autor e o leitor ori-ginais, que estão além do texto, mas o autor e o leitor implícitos tal qual se encontram intrinsecamente presentes no escrito. No caso dos Evangelhos, a elaboração deste papel tem, certamente, uma dimensão histórica que res-peita ao grupo de leitores a que se referia o autor do século primeiro, mas tem também uma dimensão hipotética: o leitor implícito é uma figura daquele leitor (de qualquer século e latitude) que saiba colher os efeitos do texto, os previstos e os não previstos pelo autor. E o leitor constrói o texto, tal como o texto constrói o leitor.
João Alberto Correia usa o método narrativo com significativo desempe-nho, permitindo ao mesmo tempo a quem o lê a apreensão pedagógica dos vários passos e o contacto com as ferramentas típicas da chamada mecânica narrativa.
O tópico que tematicamente se destaca da sua minuciosa abordagem não podia ser de maior impacto teológico e de mais pertinente actualidade: o lugar da hospitalidade. A hospitalidade no mundo helenístico-romano, com o qual o Novo Testamento, e Lucas em particular, está em intenso diálogo, tinha cer-tamente um enorme ascendente cultural, mas também um inamovível obstá-culo. O filósofo Jacques Derrida anota-o, comentando a antinomia hospitali-dade / hostilihospitali-dade nos diálogos platónicos. Escreve o filósofo: «o estrangeiro… continua a pedir a hospitalidade numa língua que, por definição, não é a sua, mas é aquela imposta pelo dono da casa, o anfitrião, o senhor, o poder, a nação, o estado, o pai, etc. O dilema da hospitalidade começa aqui: devemos pedir ao estrangeiro que nos compreenda, que fale a nossa língua, em todos os sentidos do termo, em todas as extensões possíveis, antes e a fim de poder acolhê-lo entre nós. Ora, se ele já falasse a nossa língua, com tudo o que isso implica, se nós já partilhássemos tudo o que se compartilha com uma língua, o estrangeiro continuaria sendo um estrangeiro e falar-se-ia a propósito dele, em asilo e em hospitalidade?”*1
*1 Derrida Jacques, Anne Dufourmantelle convida Jacques Derrida a falar de Hospitalidade, São
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Prefácio
Ora, retomando este verdadeiro dilema que a hospitalidade encontrava nas sociedades antigas, organizadas em torno ao parentesco, à etnia e ao estado, pode-se talvez perceber melhor a originalidade do projecto cristão, que João Alberto Correia aqui ilumina. Fica bem claro, na estimulante leitura que aqui nos é proposta, que desde a sua primeira configuração, o cristianismo apre-senta-se como experiência e projecto de hospitalidade. O caminho de Emaús (paradigma de todo o caminho crente) continua a explicar porquê.
Índice
Siglas
Agradecimentos
Prefácio de José Tolentino Mendonça
INTRODUÇÃO
1. O texto (Lc 24, 13-35) e os motivos da sua análise 2. A análise narrativa como opção metodológica
2. 1. Instâncias ou categorias da narrativa
2. 2. Critérios, objectivos e limites da análise narrativa 3. A tradição interpretativa de Lc 24, 13-35
3. 1. Leituras patrísticas e medievais
3. 2. Leituras histórico-críticas (o texto como documento) 3. 3. Leituras literárias (o texto como monumento) 4. Objectivos
5. Interesse e actualidade do tema
CAPÍTULO 1. O TEXTO DE LC 24, 13-35
1. Texto e tradução 1. 1. Texto 1. 2. Tradução
2. Variantes textuais (Critica textus) 2. 1. As variantes do v. 13
2. 2. tava ou ete? (v. 17)
2. 3. Hvome ou evome? (v. 21) 2. 4. Dova ou aeva? (v. 26)
2. 5. O momento da abertura dos olhos (v. 31) 2. 6. Outras variantes menores
3. Análise morfo-sintáctica
4. Delimitação narrativa da perícope 4. 1. Um texto em articulação… 4. 2. … e bem delimitado
5. Orgânica interna ou estrutura do relato 5. 1. Estruturas propostas (estado da questão) 5. 2. Propostas de estrutura 8 9 11 15 15 18 22 23 26 27 30 33 38 41 44 45 46 48 50 50 51 52 52 52 52 53 60 60 62 65 66 67
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5. 2. 1. Estrutura dramática
5. 2. 2. Estrutura temático-narrativa 6. Lc 24, 13-35 é um relato especular e aberto?
6. 1. Lc 24, 13-35 em contexto imediato (Lc 24) 6. 1. 1. Correspondências formais
6. 1. 2. Correspondências temáticas
6. 2. Lc 24, 13-35 em contexto remoto (Lucas e Actos) 6. 2. 1. Palavras, expressões e motivos literário-teológicos 6. 2. 2. Textos paralelos em Lucas – Actos
6. 3. Conclusão
CAPÍTULO 2. INSTÂNCIAS E UTENSÍLIOS DA NARRATIVA, EM LC 24, 13-35
1. O narrador: identidade e funções 1. 1. Apresentar os actores
1. 2. Seleccionar e silenciar informação 1. 3. Conduzir e implicar o leitor 2. A trama ao serviço da revelação
2. 1. Conceito e funções da trama narrativa 2. 2. Trama de revelação ou resolução? 2. 3. Da ocultação à revelação
3. Espaço e tempo
3. 1. Um espaço de revelação
3. 1. 1. O conceito literário de espaço 3. 1. 2. O espaço visto através das preposições 3. 1. 3. A simbólica do espaço
3. 2. Um tempo de revelação
3. 2. 1. O conceito literário de tempo 3. 2. 2. Tempo narrado e tempo da narração
3. 2. 3. Marcas da temporalidade e sequência temporal 3. 2. 4. A simbólica da temporalidade
4. Os personagens
4. 1. Importância e identidade narrativas 4. 1. 1. Tipologia
4. 1. 2. Processo de caracterização 4. 2. O protagonista
4. 2. 1. Os “dois deles”? 4. 2. 2. Jesus?
4. 3. Personagens que se relacionam com Jesus
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Índice
4. 3. 1. “Dois deles”
4. 3. 2. “Os Onze e os que estavam com eles” (v.33) 4. 4. Personagens secundários ou evocados
4. 4. 1. “Os Sumo sacerdotes e os nossos chefes” (v. 20) 4. 4. 2. “Algumas mulheres” (v. 22)
4. 4. 3. “Uns anjos” (v. 23) 4. 4. 4. “Alguns dos nossos” (v. 24) 4. 4. 5. Moisés e todos os Profetas (v. 27) 4. 4. 6. Simão (v. 34)
4. 4. 7. Evocações com relevância estrutural e narrativa 5. Conclusão
CAPÍTULO 3. A CARACTERIZAÇÃO DE JESUS
Lc 24, 13-35 como exemplo de cristologia narrativa 1. Em torno da caracterização
2. A identidade narrativa de Jesus 2. 1. As informações do narrador
2. 1. 1. Jesus no caminho (v. 15)
2. 1. 2. Jesus, pedagogo e hermeneuta (vv. 17-27) 2. 1. 3. Jesus à mesa (v. 30)
2. 1. 4. Jesus invisível (v. 31) 2. 2. O que afirmam os “dois deles”
2. 2. 1. “Único forasteiro...” (v. 18)
2. 2. 2. “Jesus de Nazaré, profeta poderoso...” e libertador esperado (vv. 19.21)
2. 2. 3. Hóspedes (v. 29: “Fica connosco...”) 2. 3. Jesus por si mesmo
2. 3. 1. Pedagogo 2. 3. 2. “Messias”(v. 26)
2. 4. Jesus visto por “os Onze e os que estavam com eles”: “Senhor” (v. 34)
3. Retrato poliédrico e multifacetado de um personagem em construção
CAPÍTULO 4. LC 24, 13-35 NA PERSPECTIVA DA HOSPITALIDADE
1. A semântica da hospitalidade 1. 1. Aproximações ao conceito 1. 2. Hospitalidade, relação e linguagem
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