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Práticas sociais de sustentabilidade e o âmbito do consumo : perspectivas teóricas em disputa (estudo exploratório dentre a comunidade universitária da Unicamp)

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INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

FELIPE BARBOSA BERTULUCI

PRÁTICAS SOCIAIS DE SUSTENTABILIDADE E O ÂMBITO DO CONSUMO: PERSPECTIVAS TEÓRICAS EM DISPUTA

(estudo exploratório dentre a comunidade universitária da Unicamp)

CAMPINAS 2020

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PRÁTICAS SOCIAIS DE SUSTENTABILIDADE E O ÂMBITO DO CONSUMO: PERSPECTIVAS TEÓRICAS EM DISPUTA (estudo exploratório dentre a comunidade universitária da Unicamp)

Dissertação apresentada ao Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas como parte dos requisitos exigidos para obtenção do título de Mestre em Sociologia.

Orientadora: Profª Drª Leila da Costa Ferreira

ESTE EXEMPLAR CORRESPONDE À VERSÃO FINAL DA DISSERTAÇÃO DEFENDIDA PELO ALUNO FELIPE BARBOSA BERTULUCI, E

ORIENTADA PELA PROFª DRª LEILA DA COSTA FERREIRA.

CAMPINAS 2020

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INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

A Comissão Julgadora dos trabalhos de Defesa de Dissertação de Mestrado, composta pelos Professores Doutores a seguir descritos, em sessão pública realizada em 05/06/2020, considerou o candidato Felipe Barbosa Bertuluci aprovado.

Prof.ª Dr.ª Leila da Costa Ferreira (orientadora)

Prof.ª Dr.ª Maria de Fátima Ferreira Portilho

Prof. Dr. Marcelo Pereira da Cunha

A Ata de Defesa com as respectivas assinaturas dos membros encontra-se no SIGA/Sistema de Fluxo de Dissertações/Teses e na Secretaria do Programa de Pós-Graduação em Sociologia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas.

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Este trabalho foi orientado pela Prof.ª Dr.ª Leila da Costa Ferreira, professora titular de sociologia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) e pesquisadora senior do Núcleo de Estudos e Pesquisas Ambientais (NEPAM), ambos da Unicamp. Agradeço imensamente à sua liderança intelectual, acadêmica, mas também moral e afetiva na condução desta dissertação, bem como na coordenação de nosso grupo de estudos.

Agradeço da mesma maneira aos meus amigos e colegas do LABGEC – Laboratory of Social Dimensions of the Global Environmental Changes in the Global South, por todos os valiosos comentários, correções, contribuições e críticas acerca da pesquisa. Todo trabalho científico e intelectual só se torna possível e significativo ao nos apoiarmos no esforço de construção coletiva do conhecimento humano.

Finalmente, agradeço aos meus familiares e amigos, em especial aos meus pais, cujo apoio e incentivo foram as bases fundamentais para tudo o que pude realizar. Os exemplos cotidianos de perseverança, prestatividade e cuidado oferecidos por eles são pontos de referência cruciais para meu posicionamento intelectual e afetivo no mundo.

O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001.

Contamos também com o apoio institucional decisivo do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp, particularmente através de seu Programa de Pós-Graduação em Sociologia. Agradeço ao apoio fundamental destas instituições para a realização e condução desta pesquisa.

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A questão ambiental, definida em termos das mudanças climáticas e ambientais globais, constitui um dos grandes temas de debate e reflexão de nossa contemporaneidade. Desde meados da década de 1960, ela se consolidou como um campo de embates em torno de posições e atores sociais bastante heterogêneos e cada vez mais numerosos, para enfim abarcar virtualmente a “humanidade como um todo”. Nesse contexto, a noção de desenvolvimento sustentável, com destaque para sua definição hegemônica no âmbito do relatório Brundtland (1987), emerge como uma das ideias-chave presentes no esforço de compreensão e enfrentamento do problema. A presente dissertação insere-se neste campo de reflexão e debate, tendo como foco a análise das práticas de consumo ambientalmente orientadas, que aqui são mobilizadas a partir do termo consumo sustentável. Com o processo de alargamento e consolidação da problemática climática e ambiental, o cidadão-consumidor passa a ser considerado peça fundamental para a concretização de mudanças em direção à sustentabilidade. Nosso estudo propõe, então, abordar a maneira como são construídos socialmente e integrados estilos de vida (lifestyles), comportamentos rotineiros (GIDDENS, 1991a, 1991b) e práticas sociais (RECKWITZ, 2002) de consumo cuja preocupação ambiental apareça como elemento de primeira grandeza. Foram realizadas: a análise documental de fontes secundárias e dez entrevistas semi-estruturadas com pessoas atuantes em grupos institucionais (GGUS e GCI) da comunidade universitária da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) como forma de aproximação metodológica ao problema de pesquisa assim colocado. Desta forma, pretendemos aprofundar a compreensão acerca das propostas de sustentabilidade em disputa, em suas articulações com o âmbito do consumo. Palavras-chave: mudanças climáticas e ambientais; sustentabilidade; consumo sustentável; sociologia ambiental.

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The environmental issue, defined in terms of global climate and environmental changes, is one of the major topics of debate and reflection of our contemporaneity. Since the mid-1960’s, it has consolidated itself as a field of clashes around positions and social actors that are quite heterogeneous and increasingly numerous, to finally encompass “humanity as a whole”. In this context, the notion of sustainable development, with emphasis on its hegemonic definition in the scope of the Brundtland report (1987), emerges as one of the key ideas present in the effort to understand and face the problem. This research is part of this field of reflection and debate, focusing on the analysis of environmentally oriented consumption practices, which are mobilized here through the term sustainable consumption. With the process of widening and consolidating the climate and environmental issues, the citizen-consumer is now considered a fundamental element for the realization of changes towards sustainability. Our study proposes, therefore, to approach the way that social routines, lifestyles (GIDDENS, 1991a, 1991b) and social practices (RECKWITZ, 2002) of consumption are constructed socially and integrated, whose environmental concern appears as an element of first importance. The documentary analysis of secondary sources and ten semi-structured interviews with people working in institutional groups (GGUS and GCI) from the Unicamp university community (State University of Campinas) were carried out as a methodological approach to the research problem thus posed. In this way, we intend to deepen the understanding about the sustainability proposals in dispute, in their articulations with the scope of consumption.

Keywords: environmental and climate change; sustainability; sustainable consumption; environmental sociology.

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AEPLAN – Assessoria de Economia e Planejamento ANA – Agência Nacional de Águas

ANEEL – Agência Nacional de Energia Elétrica ANVISA – Agência Nacional de Vigilância Sanitária BCCL – Biblioteca Central César Lattes

CAISM – Centro de Atenção Integral à Saúde da Mulher CEASA/Campinas – Centrais de Abastecimento de Campinas CEB – Centro de Engenharia Biomédica

CETESB – Companhia Ambiental do Estado de São Paulo

CMMAD – Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento CNPEM – Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais

CNUMAD – Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento COMVEST – Comissão Permanente para os Vestibulares

CONSU – Conselho Universitário

COUS – Conselho de Orientação Universidade Sustentável CPFL Energia – Companhia Paulista de Força e Luz

CPQBA – Centro Pluridisciplinar de Pesquisas Químicas, Biológicas e Agrícolas DEPI – Diretoria Executiva de Planejamento Integrado

EMBRAPA – Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária FACAMP – Faculdades de Campinas

FEA – Faculdade de Engenharia de Alimentos FEAGRI – Faculdade de Engenharia Agrícola

FEC – Faculdade de Engenharia Civil, Arquitetura e Urbanismo FEQ – Faculdade de Engenharia Química

GCI – Grupo de Cidadania Integrado (Trote da Cidadania) GEF – Global Environment Facility

GGA – Grupo Gestor Ambiental GGR – Grupo Gestor de Resíduos

GGUS – Grupo Gestor Universidade Sustentável

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IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística IFCH – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas IQ – Instituto de Química

IoT – Internet das Coisas (Internet of Things)

LAPA – Laboratório de Planejamento e Administração NEPAM – Núcleo de Estudos e Pesquisas Ambientais ODS – Objetivos de Desenvolvimento Sustentável ONG – Organização não-governamental

ONU – Organização das Nações Unidas P&D – Pesquisa e Desenvolvimento PGA – Programa de Gestão Ambiental

PGRBQR – Programa de Gerenciamento de Resíduos Biológicos, Químicos e Radioativos PGRSAS – Programa de Gestão de Resíduos Sólidos da Área da Saúde

PUC-Campinas – Pontifícia Universidade Católica de Campinas RU – Restaurante Universitário

SPTec – Sistema Paulista de Parques Tecnológicos UNICAMP – Universidade Estadual de Campinas USP – Universidade de São Paulo

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Sumário

Introdução...13

Objetivos e perguntas de pesquisa...25

Metodologia...27

Capítulo 1 – O percurso histórico da problemática ambiental...31

Período 1970-1990: pobreza e pressão populacional vs padrões de produção...32

A partir da década de 1990: consumo como fator de explicação...36

Capítulo 2 – Sustentabilidade: um projeto em permanente construção...45

Sustentabilidade sob o discurso hegemônico: vertentes “fracas” de definição...50

Sustentabilidade enquanto objeto multidimensional: vertentes “fortes” de definição...60

Sustentabilidade e a dimensão do consumo...69

Capítulo 3 – Práticas sociais e consumo sustentável...74

Práticas sociais como unidade de análise do social...77

Teoria da estruturação e a dualidade da estrutura social...81

Práticas sociais e o âmbito do consumo sustentável...85

Capítulo 4 – Estudo exploratório: a comunidade universitária da Unicamp...94

Atores institucionais: Grupo Gestor Universidade Sustentável (GGUS) e Grupo de Cidadania Integrado (GCI)...98

Perspectivas teóricas sobre sustentabilidade e suas dimensões constitutivas...103

“Hub Internacional para o Desenvolvimento Sustentável” (HIDS)...109

Campanhas de sensibilização e educação ambiental...116

Integração humana para a sustentabilidade: vivências em Biodanza...123

Considerações Finais...127

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Anexo 1...141 Anexo 2...142 Anexo 3...143

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Introdução

As mudanças climáticas e ambientais globais constituem um dos grandes desafios que as sociedades contemporâneas precisam compreender, interpretar e enfrentar na dinâmica da ordem mundial globalizada atual, independentemente da maneira específica com que a questão será trabalhada. Em outras palavras, estamos diante de uma realidade histórica em que as dimensões ecológicas dos processos econômicos, políticos, sociais, culturais que compõem a organização da sociedade já não podem permanecer em segundo plano ou serem tratadas como meras externalidades (BECK, 1992; FERREIRA, 2011, 2017, 2018;

GIDDENS, 1991a, 2009; SPAARGAREN; MOL; BUTTEL, 2000).

Nos mais variados âmbitos, ouve-se um chamado por mudanças, avanços, aperfeiçoamentos ou total reconfiguração das relações entre sociedade e ambiente, em um claro reconhecimento de que a trajetória histórica de desenvolvimento socioeconômico da espécie humana enquanto tal encontrou limites importantes, associados à capacidade biofísica do planeta em sustentar padrões intensivos de uso dos recursos e ecossistemas naturais. Tal condição é a que se convenciona, com cada vez mais força e legitimidade, a chamar de nova era geológica do Antropoceno (BIERMANN, 2014; BIERMANN et al., 2012; STEFFEN et al., 2011), na qual a capacidade de intervenção humana no equilíbrio e regulação dos próprios processos biogeoquímicos do planeta adquiriu patamares de magnitude nunca antes igualados, de tal maneira que o ser humano passa a se colocar como força atuante em escala geológica. Neste cenário, o desafio que se coloca em termos de construção e implementação de possíveis soluções a um problema tão complexo e profundo é de correspondente escala de grandeza.

Desta maneira, a problemática ambiental consolida-se como tópico de interesse geral na realidade histórica do século XXI, como temática a ser enfrentada de modo inescapável. Pode-se dizer, neste sentido, que a preocupação com os impactos ambientais das atividades humanas desenvolveu-se em um sentido crescente desde meados do século passado (a década de 1970 como marco importante no avanço de tais pautas), até atingir um patamar de cristalização que nos permite identificá-la entre um dos temas-chave a serem cotejados por virtualmente a humanidade como um todo (BECK, 1992; DUNLAP; BRULLE, 2015; FERREIRA, 2011, 2017, 2018; PORTILHO, 2005; YEARLEY, 1996). Sendo um problema de ordem global, que se manifesta e se relaciona com fatores que transcendem as realidades

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locais e nacionais em referência ao nível mundial (GIDDENS, 1991a), a temática da crise ambiental mobiliza, em maior ou menor grau e sob circunstâncias diferentes, o conjunto das sociedades e nações ao redor do globo. “A preocupação com os danos ao meio ambiente está agora difundida, e é um foco de atenção para os governos em todo o mundo” (GIDDENS, 1991a, p.169). Dando-se necessariamente ênfase ao caráter desigual e heterogêneo com que tais mudanças climáticas e ambientais se manifestam (BECK, 1992; DUNLAP; BRULLE, 2015; FERREIRA, 2011, 2017, 2018; YEARLEY, 1996), trata-se de algo que interessa a todos e cada um de nós.

Em estreita relação com este seu caráter geral, a problemática ambiental também envolve o interesse, participação e atuação de uma ampla variedade de atores sociais (HANNIGAN, 2006), com destaque para os agentes governamentais, os setores econômicos e empresariais, instituições sociais, organizações não-governamentais (ONGs), associações civis e cidadãos-consumidores considerados individualmente, sendo estes últimos o objeto privilegiado de investigação da presente dissertação. Em virtude de sua complexidade e abrangência características, é importante que todos os grupos ou setores sociais envolvidos na questão ambiental, o que abarca em termos práticos a organização social como um todo, estejam mobilizados na consideração dos problemas a enfrentar e das propostas políticas vislumbradas como alternativas para tal propósito. Neste ponto, aproximamo-nos da noção central de governança multiatores (BARBI; FERREIRA, 2017; BULKELEY; KERN, 2006; BULKELEY; NEWELL, 2010; DEWULF et al., 2015; FERREIRA, 2017, 2018; GUPTA, 2007), que busca compreender justamente as dinâmicas e processos de decisão política que lidam com a participação legítima e necessária de múltiplos agentes e setores sociais.

O papel do Estado como ator de destaque e preponderância na governança ambiental é consolidado no âmbito da literatura, muito embora este seja tema de prolongada discussão e controvérsia (BUTTEL, 2000; CAHN, 1995; OPHULS, 1977). Ainda que não optemos rigidamente por uma posição em torno do debate acerca dos princípios de centralização x descentralização do processo de governança ambiental, é preciso reconhecer que, tradicionalmente, o Estado tem sido considerado como ator privilegiado no que se refere à proposição de linhas de ação no âmbito desta problemática, em áreas-chave como legislação, regulação e fiscalização, por exemplo. Apesar disto, o processo de desdobramento das atividades humanas e seu impacto nos ambientes físicos globais levou a questão a novos

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patamares, tanto em termos de efeitos deletérios das atividades antrópicas como dos arranjos sociopolíticos necessários à sua administração (DUNLAP; BRULLE, 2015; REDCLIFT; WOODGATE, 1997; SPAARGAREN; MOL; BUTTEL, 2000; YEARLEY, 1996).

Isto amplia o escopo da questão para além de uma perspectiva na qual a esfera estatal ou governamental figure como única relevante e decisiva na consideração dos dilemas ambientais e sociais a serem enfrentados. Desde meados da década de 1990, o avanço dos processos liberalizantes e de globalização colocou em xeque a noção de que a problemática ambiental resume-se no âmbito governamental, sendo que tal visão mostra-se paulatinamente cada vez mais deslocada (FERREIRA, 1998, 2011, 2017, 2018; GIDDENS, 1991a; VIOLA; LEIS, 1995; YEARLEY, 1996). Como observavam Viola e Leis (1995), analisando especificamente o caso do ambientalismo brasileiro nos anos 1990, “haverá de aumentar a responsabilidade do setor empresarial em conjunto com os setores das associações ambientalistas e do socioambientalismo, já que as perspectivas estatistas de desenvolvimento sustentável serão cada vez menos viáveis” (VIOLA; LEIS, 1995, p.95).

Neste processo, uma gama de diferentes atores sociais passa a compor o quadro de distribuição de papéis, responsabilidades e posições no interior dos processos de governança dos problemas ambientais. São chamados a atuar e assumir posições de influência e/ou decisão uma ampla variedade de grupos ou setores, com destaque para os agentes governamentais, os setores econômicos e empresariais, instituições sociais, organizações não-governamentais (ONGs), associações civis e mesmo os cidadãos considerados individualmente (DEWULF et al., 2015; GUPTA, 2007; HANNIGAN, 2006). Para nossos objetivos na presente dissertação, este último “grupo” é o de maior relevância analítica, uma vez que nos dedicamos a abordar a temática do enfrentamento às mudanças climáticas e ambientais a partir da perspectiva do consumo e, mais especificamente, das práticas sociais prevalecentes entre os cidadãos-consumidores, individualmente considerados, quando estes agem orientados por preocupações e motivações pró-ambientais. A forma como se organizam as relações de atribuição de papéis entre estes diferentes atores, públicos e privados, estrutura o modo específico de governança a ser estabelecido frente a determinada área de atuação política, sendo que, ao considerarmos as responsabilidades alocadas no âmbito privado, nós devemos mencionar a opção da ação autônoma e individual (DEWULF et al., 2015).

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Como veremos no Capítulo 1, a problemática das mudanças climáticas e ambientais globais é dotada de uma trajetória histórica específica e gradativamente foi construída como questão cada vez mais abrangente e urgente. A este respeito, Portilho (2005) nos esclarece alguns dos sentidos envolvidos neste processo de alargamento das discussões e embates acerca da questão ambiental, identificando dois momentos importantes de transição discursiva: em meados da década de 1970, quando a questão deixa paulatinamente de ser interpretada em termos neomalthusianos de pressões demográficas e populacionais sobre os recursos naturais e o ambiente (especialmente entre os países chamados então de “subdesenvolvidos”) para ser alocada nos padrões de produção ambientalmente degradantes que prevaleciam sobretudo a partir da realidade econômica dos países ditos desenvolvidos; e, em um segundo deslocamento, aproximadamente a partir dos anos 1990, a atenção deixa de ser focalizada no âmbito exclusivo da produção para se voltar também, e com destaque, para a esfera dos padrões e níveis de consumo dos bens e serviços industrialmente produzidos. Desta maneira, a questão ganha uma dimensão e um alcance cada vez maiores, incluindo novos atores como integrantes dos esforços de pensar e atuar sobre o impacto ambiental:

Ações individuais no mercado, motivadas por preocupações ambientais, passam a ser consideradas estratégicas para provocar as mudanças necessárias em direção à sustentabilidade. As ações e as escolhas individuais passaram a ser vistas como essenciais e o consumidor como o responsável, através de suas demandas e escolhas cotidianas, por gerar mudanças nas matrizes energéticas e tecnológicas do sistema de produção (PORTILHO, 2005, p.115).

Deste modo, atentando-nos para as possibilidades e potencialidades associadas a novas formas de pensar a governança ambiental (BECK, 1999; DEWULF et al., 2015; FERREIRA, 2011, 2017, 2018; GUPTA, 2007), em um contexto histórico de crescente complexidade e intensidade quanto aos impactos antrópicos no equilíbrio ecossistêmico terrestre, tomamos o âmbito do consumo como recorte específico de investigação e análise. Mais particularmente, interessa-nos observar a maneira como esta importante dimensão da organização da vida social passa a ocupar, com cada vez mais força e protagonismo, as discussões e propostas relacionadas ao encaminhamento de alternativas políticas à crise ambiental. A ação individual de sujeitos autônomos, enquanto cidadãos-consumidores, compõe, assim, o enquadramento temático e conceitual de primeiro plano desta pesquisa.

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Voltaremos a tais questões, relativas à construção histórica do consumo enquanto ambientalmente relevante, no escopo do Capítulo 1 da presente dissertação.

O debate a respeito das possibilidades de reorganização e construção de padrões de produção e consumo ambientalmente favoráveis nos remete diretamente à discussão correlata em torno da ideia de desenvolvimento sustentável, que figura como ponto de apoio central na reorientação das perspectivas sociais e políticas sobre as mudanças climáticas e ambientais globais, marcadamente a partir da década de 1990 (FERREIRA; VIOLA, 1996; GUIMARÃES, 1995; VEIGA, 2008; VIOLA; LEIS, 1995). O marco de maior destaque que, pode-se dizer, inaugura a consideração das mudanças climáticas sob o viés do desenvolvimento sustentável é o relatório da Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (CMMAD) da ONU, publicado em 1987 com o nome Nosso Futuro

Comum (também conhecido como Relatório Brundtland). Neste documento, a preocupação

em se incorporar as dimensões dos impactos ambientais nos processos econômicos ganha a formulação que se tornaria referência principal para a discussão: desenvolvimento sustentável define-se por ser aquele que “satisfaz as necessidades do presente sem comprometer a habilidade das futuras gerações de satisfazerem suas próprias necessidades” (BRUNDTLAND, 1987, p.24, tradução nossa). Tal definição aparentemente simples e consensual dá ensejo a múltiplas abordagens ou pontos de vista que se ancoram sob esse conceito, muitas vezes com orientações teóricas ou práticas conflitantes e mesmo contraditórias entre si (FERREIRA, 1998, 2011; REDCLIFT; WOODGATE, 1997; YEARLEY, 1996). Neste particular, nosso interesse gira em torno da distinção estabelecida entre processos de sustentabilidade “fraca” em contraposição àqueles da sustentabilidade “forte” (FERREIRA, 1998, 2011; PORTILHO, 2005; SILVA JÚNIOR; FERREIRA; LEWINSOHN, 2015; VEIGA, 2008).

Portilho (2005) desenvolve uma interessante distinção acerca de propostas de consumo ambientalmente orientadas no sentido da sustentabilidade. Trata-se da separação entre “consumo verde” e “consumo sustentável” e que, segundo observamos, está bastante próxima da oposição entre sustentabilidade “fraca” e “forte”. A autora sustenta que, enquanto as propostas de “consumo verde” relacionam-se mais diretamente às dimensões tecnológicas e gerenciais dos padrões de produção e consumo, vinculando-se portanto a mudanças no âmbito administrativo e nos comportamentos individuais, a noção de “consumo sustentável” emerge

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como uma ação de alcance mais amplo, que pensa também acerca de estratégias de políticas públicas na esfera do consumo, em um sentido de nítida pretensão política e transformadora. “A preocupação se desloca, portanto, do desenho e tecnologia dos produtos e serviços consumidos e do comportamento individual para os desiguais níveis de consumo” (PORTILHO, 2005, p. 134).

Também Dunlap e Brulle (2015) fornecem uma visão que nos parece especialmente interessante e elucidativa. Ao elaborarem a revisão crítica da literatura científica em ciências sociais, com destaque para a produção norte-americana, em suas articulações com a questão das mudanças climáticas e ambientais globais, os autores identificam um eixo analítico importante que é denominado de perspectiva “pós-política” dos estudos sociológicos ambientais. Com isto eles procuram se referir àquelas orientações de pesquisa que, em seus resultados, terminam por despolitizar a discussão acerca da mudança climática e reforçam as estruturas do contexto social, econômico, cultural e político atualmente vigentes. Isto não significa, seguramente, desconsiderar a importância de um tratamento rigoroso e cientificamente bem fundamentado a respeito das dimensões sociológicas das problemáticas ambientais, mas reconhecer que estas necessariamente envolvem questões de conflito e controvérsia que constituem precisamente o próprio objeto de investigação neste campo do conhecimento. Conforme apontam tais autores,

O enquadramento dominante da mudança climática ignora o “inevitável caráter político de nossas visões e escolhas climáticas” (Reusswig and Lass 2010:167). Ao invés disso, a mudança climática é apresentada como “um imaginário completamente despolitizado, que não gira em torno de escolher uma trajetória em detrimento de outra, que não é articulado com programas políticos específicos ou projetos socioecológicos” (Swyngedouw 2011: 263-264) (DUNLAP; BRULLE, 2015, p. 12, tradução nossa).

Temos, assim, delineada mais uma importante chave analítica de sustentação à presente dissertação. Tomando como ponto de alicerce da investigação as práticas sociais associadas à noção de consumo sustentável, intentamos observar e analisar a abrangência que tais propostas de sustentabilidade apresentam com relação ao objeto de estudo aqui em questão (a ser desenvolvido nas páginas seguintes). Em outras palavras, nosso objetivo será o de aproximar tais perspectivas teórico-analíticas sumariamente apresentadas acima, no que tange à distinção entre abordagens do desenvolvimento sustentável e da sustentabilidade em

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um sentido “fraco” ou “forte” (FERREIRA, 1998, 2011; FERREIRA; VIOLA, 1996; PORTILHO, 2005; SILVA JÚNIOR; FERREIRA; LEWINSOHN, 2015; VEIGA, 2008), com os levantamentos empíricos a serem realizados por meio de nossa pesquisa. Desse modo, teremos condições de compreender até que ponto as práticas e visões observadas inserem-se numa perspectiva mais ampla ou mais restrita de reflexão e enfrentamento aos problemas ambientais atuais. Reservamos o espaço do Capítulo 2 para uma discussão mais detida e cuidadosa a este respeito.

Muito antes, porém, de emergir como dimensão relevante para a problemática ambiental, a esfera do consumo enquanto atividade social já apresenta uma extensa literatura que se dedica a compreender suas dinâmicas e bases explicativas, proveniente dos mais diversos campos de estudo (Economia, Sociologia, Antropologia, Estudos Culturais, Marketing e Propaganda, Psicologia, História, para citar as de maior destaque) (JACKSON, 2005; MILLER, 1995). É preciso chamar a atenção, neste ponto, para a multiplicidade e abrangência de vertentes teóricas, conceituais e empíricas que se debruçam sobre tal âmbito da vida social, configurando-se um quadro bastante rico e complexo acerca dos diferentes papéis, significados e sentidos que o consumo assume na organização da vida social moderna. Jackson (2005), em um esforço de revisão das principais abordagens de investigação a este respeito, apresenta um quadro amplo, embora não exaustivo, a respeito das diferentes possibilidades de conceber as atividades de consumo e seus papéis sociais. Isto inclui, além da atribuição funcional de satisfazer necessidades básicas por alimento, habitação, transporte, vestuário, lazer e assim por diante, processos fundamentais de estruturação de rotinas e hábitos cotidianos, práticas sociais, formação de identidade, distinção social e identificação, criação de significado simbólico, busca de prazer hedonista, entre muitos outros (JACKSON, 2005; MILLER, 1995)1.

Chamamos a atenção para a existência de tal panorama de múltiplas possibilidades de investigação a fim de situar o foco analítico da presente dissertação em arcabouços conceituais bem definidos e específicos. Nosso objetivo aqui não se pauta por uma discussão e tratamento pormenorizados a respeito da esfera do consumo em geral, a partir das diferentes maneiras de compreendê-la em sua inserção na organização e

1 Para uma visão mais completa e aprofundada das múltiplas vertentes disciplinares e teóricas que tomam o consumo como campo de investigação privilegiado, referir-se à Jackson (2005) e Miller (1995), bem como à bibliografia complementar apontada por estes autores.

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estruturação da vida social moderna. Antes, buscamos aporte em determinadas orientações de cunho eminentemente sociológico, como forma de nos aproximarmos da problemática das atividades de consumo em suas repercussões e articulações estreitas com a dimensão ambiental. Como veremos no Capítulo 3, as elaborações teórico-conceituais em torno de noções centrais como práticas sociais (RECKWITZ, 2002), estilos de vida (GIDDENS, 1991a, 1991b) e individualização (BECK, 1999; BECK; GIDDENS; LASH, 1997) ocupam lugar privilegiado na consecução de tal objetivo de pesquisa.

Ao tratarmos especificamente das ações e atitudes dos indivíduos, enquanto cidadãos-consumidores, para a consideração dos impactos ambientais dos padrões de produção e consumo dos bens e serviços, encontramos a tendência dominante nas ciências sociais das mudanças climáticas e ambientais de referir-se à questão em termos circunscritos e individualizantes. Isso significa pensar a questão no âmbito dos comportamentos e práticas diretamente relacionados ao indivíduo, como se este fosse um agente independente e autônomo das condicionantes que se remetem ao contexto e às estruturas sociais, culturais, econômicas, políticas que o envolvem e conformam a organização de sua existência social.

Nesse sentido, o indivíduo é entendido em suas escolhas de consumo como dotado de grande margem de liberdade e soberania, pautando suas ações e decisões no exercício autônomo de pensamento e cálculo de vantagens, benefícios e prejuízos. Sob esta perspectiva, ao comparar os bens e produtos à sua disposição segundo critérios e valores que julgue os mais adequados, como preço, qualidade, eficiência e assim por diante, o consumidor cumpre papel central na organização do sistema produtivo, sendo tomado como “a principal fonte de poder nos sistemas econômicos capitalistas” (PORTILHO, 2005, p.94). Com isso, tais análises do comportamento humano e da mudança social tendem a apresentar resultados apenas parciais e restritos, uma vez que falham em considerar detidamente a estrutura social mais ampla por meio da qual os indivíduos pensam e agem (DUNLAP; BRULLE, 2015; JACKSON, 2005). Aqui, a conceituação da ação individual remete-se à noção de homo economicus, que constrói uma abstração teórica segundo a qual os agentes sociais (cidadãos-consumidores, no nosso caso) agiriam orientados fundamentalmente por valores e princípios econômicos de utilidade, eficiência, maximização de ganhos e de bem-estar pessoal. Tal perspectiva encontra-se agrupada no modelo teórico da “Escolha Racional” (Rational Choice), que desfruta de grande abrangência e legitimidade nas instituições políticas, econômicas,

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culturais das sociedades ocidentais (EHRHARDT-MARTINEZ et al., 2015; JACKSON, 2005; NOBRE; AMAZONAS, 2002; PAAVOLA, 2001).

Como podemos observar, estas abordagens tomam como pressuposto fundamental a ideia de que o indivíduo é autônomo para exercer livremente seu poder de escolha e, nesse sentido, buscar atender satisfatoriamente suas necessidades, desejos e preferências no espaço do mercado, por exemplo. A unidade de análise, então, circunscreve-se ao nível dos processos e condicionantes que estão presentes na zona de abrangência deste sujeito isolado e autossuficiente, sendo marcantes neste sentido os fatores que dizem respeito ao nível de

informação disponível aos indivíduos e os mecanismos que determinam a definição dos preços praticados nas operações de compra e venda. Importante destacar o fato de que

semelhantes proposições são as que predominam nas iniciativas de políticas públicas que buscam atingir mudanças significativas em direção à adoção, por parte da sociedade, de comportamentos de consumo ambientalmente favoráveis e, nesse sentido, sustentáveis (EHRHARDT-MARTINEZ et al., 2015; JACKSON, 2005; PORTILHO, 2005).

Entre as muitas críticas e propostas alternativas que foram elaboradas em contraposição às conceitualizações do modelo da Escolha Racional2, enfatizamos na presente

dissertação especialmente um ponto decisivo: o lugar analítico atribuído ao indivíduo, suas atitudes e escolhas na orientação das propostas sociais e políticas de enfrentamento às mudanças climáticas e ambientais globais. Em lugar de conceber um agente social soberano e isolado, defendemos a importância de nos atentarmos para o contexto mais amplo de condicionantes institucionais, políticas, sociais, culturais, normativas que informam, dão sustentação e significado às atividades e comportamentos realizados individualmente. Isso não significa negar o espaço de iniciativa disponível aos indivíduos enquanto tais, com sua importante margem de autonomia e capacidade de escolha, mas tão somente indicar a característica relativa de tal autonomia.

Este ponto nos leva diretamente a um dos debates mais fecundos e duradouros no interior da literatura sociológica, tanto clássica quanto contemporânea, a saber: a questão acerca da preeminência explicativa da ação ou da estrutura para a adequada apreensão dos fenômenos e processos sociais. Em virtude de sua sofisticação, abrangência e riqueza, não

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será nosso objetivo aqui adentrar tal seara de debate e investigação3. Em lugar de semelhante

esforço, adotamos no escopo desta dissertação determinadas orientações teórico-conceituais que nos situam de maneira geral no interior deste debate e oferecem, de maneira específica, elementos de análise para a problemática das práticas de consumo ambientalmente orientadas, seus impactos e repercussões. Como forma de introduzir nossa problemática, vamos apresentar brevemente cada um destes referenciais, que serão aprofundados ao longo do

Capítulo 3.

Em primeiro lugar, temos o arcabouço conceitual que se denomina “teoria da prática” (practice theory), muito embora não se trate de uma orientação teórica que se tenha desenvolvido de maneira sistematizada, coerente ou unificada, no sentido de oferecer à análise da realidade social um conjunto completo de elaborações e chaves de leitura (FERREIRA, 2011; RECKWITZ, 2002; WARDE, 2005). Antes, tal linha de investigação reúne a produção de diferentes autores, tais como Bourdieu, Giddens, Foucault (fase tardia), Latour, Butler, Garfinkel, entre outros (RECKWITZ, 2002). O que permite a aproximação de perspectivas tão variadas, segundo Reckwitz (2002), é uma abordagem semelhante com relação a novas maneiras de conceber a teorização acerca do mundo social e da agência humana, a partir de um vocabulário relativamente comum. Tal vocabulário gira em torno da conceitualização de prática social, como unidade básica de análise. Nas palavras do autor,

Uma ‘prática’ (Praktik) é um tipo rotinizado de comportamento que consiste em diversos elementos, interconectados uns aos outros: formas de atividades corporais, formas de atividades mentais, ‘coisas’ e seus usos, um conhecimento de fundo na forma de compreensão, saber-fazer [know-how], estados de emoção e conhecimento motivacional. Uma prática – uma maneira de cozinhar, de consumir, de trabalhar, de investigar, de cuidar de si mesmo ou de outros, etc. – forma por assim dizer um ‘bloco’ cuja existência necessariamente depende da existência e específica interconexão destes elementos, e que não pode ser reduzido a nenhum destes elementos singulares. (…) Uma prática é assim uma maneira rotinizada em que corpos são movidos, objetos são manipulados, assuntos são tratados, coisas são descritas e o mundo é entendido. (RECKWITZ, 2002, p. 249-250, grifo nosso, tradução nossa)

Em nosso trabalho, a categoria de prática social assume então um papel de destaque, como eixo fundamental à reflexão. A partir desta perspectiva, pode-se lançar um

3 Como forma de situar o leitor no alcance e riqueza do referido debate, indicamos como referência inicial Giddens e Turner (1999) e Alexander (1987).

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novo olhar sobre os processos de reprodução e/ou mudança sociais e o consumo – aqui incluso o consumo sustentável – é entendido como o resultado de uma configuração específica e dependente das práticas sociais prevalecentes (EHRHARDT-MARTINEZ et al., 2015; JACKSON, 2005). Ressaltam-se, neste particular, dois aspectos cruciais: em primeiro lugar, o caráter rotinizado de tais padrões de comportamento, marcante para a configuração de

hábitos cotidianos; e, por outro lado, a formação histórica e socialmente situada de tais

práticas, função da dinâmica das relações sociais e do conhecimento coletivamente compartilhado. O indivíduo é entendido como o ponto de intersecção de múltiplas práticas sociais e sua participação envolve a performance de tais comportamentos socialmente rotinizados, em detrimento da tomada de decisões puramente autônomas e independentes (EHRHARDT-MARTINEZ et al., 2015; JACKSON, 2005; RECKWITZ, 2002; WARDE, 2005).

Sob este prisma, é possível compreender melhor alguns dos processos e condições que tornam árdua e difícil a mudança para padrões mais sustentáveis de condução da vida diária e, em última instância, do desenvolvimento socioeconômico. Isso porque o foco da análise deixa de se concentrar exclusivamente no indivíduo e em suas atitudes isoladamente consideradas, para buscar entender o domínio das práticas sociais, em si mesmo, como chave de reflexão. O interesse, então, concentra-se em investigar como práticas sociais emergem, persistem e desaparecem (SHOVE, 2003, 2010). Sua definição, como já observamos, envolve uma série de elementos interconectados e inseparáveis, tais como modos de atividade corporal, categorias de pensamento, estados emocionais, objetos materiais e seus usos, formas de conhecimento prático. Desta maneira, ao cotejarmos práticas sociais que podem ser consideradas de alto impacto ecológico, como o uso de transporte individual motorizado ou consumo intensivo de energia elétrica doméstica (com ênfase no caso das matrizes de produção que utilizam combustíveis fósseis), a análise adquire contornos mais refinados e aprofundados. Em lugar de uma visão demasiado simples ou voluntarista, que apele diretamente ao indivíduo e à sua “consciência” no intuito de promover alterações na ordem social, a perspectiva das práticas sociais considera a inscrição histórica, geográfica, econômica que tais modos de comportamento necessariamente trazem consigo.

Em sua capacidade de ação relativamente autônoma, o indivíduo se vê circunscrito pela “dualidade da estrutura” social (GIDDENS, 1989, 1991b), por meio da qual

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ele deve se adequar às regras e recursos existentes para conformar suas atitudes, mas, ao mesmo tempo, exerce o papel ativo de confirmar, reforçar ou alterar estas mesmas regras através de suas ações. Isto permite que, teoricamente, haja espaço para a construção de projetos narrativos do eu (self) e estilos de vida que busquem integrar uma variedade de práticas sociais em uma forma coerente e unificada, no intuito de erigir padrões de comportamento ambientalmente favoráveis e equilibrados (FERREIRA, 2011, 2017, 2018; GIDDENS, 1989, 1991b; SPAARGAREN; VAN VLIET, 2000). Este é, portanto, o segundo ponto de apoio à investigação e que está intimamente relacionado com os desenvolvimentos teóricos de Beck (1992, 1999) a respeito dos processos de individualização característicos da fase da modernidade tardia nas sociedades contemporâneas. Nas palavras de Beck,

“individualização” significa que a biografia padronizada torna-se uma biografia escolhida, uma biografia do tipo “faça-você-mesmo” (Ronald Hitzler), ou, como diz Giddens, uma “biografia reflexiva”. Independente do que um homem ou uma mulher foi ou é, o que ele ou ela pensa ou faz constitui a individualidade do indivíduo. Isso necessariamente não tem nada a ver com coragem civil ou personalidade, mas sim com opções divergentes e com a compulsão para apresentar e produzir esses “filhos bastardos” das decisões tomadas por si mesmo e pelos outros como uma “unidade” (BECK; GIDDENS; LASH, 1997, p.26).

Conforme tal perspectiva, a tradição e as instituições que marcaram fortemente a organização da existência social em condições pré-modernas ou mesmo na “modernidade simples” (GIDDENS, 1991a) perdem lugar ou força na modernidade reflexiva ou tardia, característica das sociedades contemporâneas. Isso significa dizer que ao indivíduo são delegadas muitas das atribuições e responsabilidades de definição que antes eram encontradas já relativamente fixas ou consolidadas nas mais diversas áreas da vida social, tais como família, trabalho, relacionamentos amorosos, religião, escolaridade e assim por diante. Nesse contexto, a noção de estilos de vida (lifestyles) ganha papel de destaque, na tentativa de apreender semelhante esforço de (re)construção contínua da própria forma de viver e atuar no mundo, que passa pela consideração reflexiva de escolhas ou opções à disposição e destina a erigir um projeto pessoal, coerente e unificado, de afirmação da identidade individual (GIDDENS, 1991a, 1991b). Com base nos variados modelos institucionais e condições estruturais disponíveis, é possível e necessário ao indivíduo que “consinta em se constituir

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como um indivíduo, para planejar, compreender, projetar e agir – ou sofrer as consequências que lhe serão auto infligidas em caso de fracasso” (BECK; GIDDENS; LASH, 1997, p.27).

Tal “construção reflexiva” do eu (self) não implica, por outro lado, a afirmação da absoluta livre decisão ou autonomia dos sujeitos sociais. Tanto para Giddens como para Beck, tais exercícios de escolha a respeito da própria biografia e das trajetórias pessoais estão circunscritos ao âmbito das configurações sociohistóricas características da modernidade reflexiva, tais como os modelos do welfare state (Beck) e os sistemas especialistas (Giddens). Isso significa que, ao contrário do que poderia parecer à primeira vista, o processo de “individualização” assim descrito não representa a independência ou o ‘desgarramento” completo dos indivíduos dos condicionantes sociais. Em contraposição às perspectivas da Escolha Racional, aqui a ação social (e individual) considera as interações recíprocas entre as dimensões sociológicas da agência e da estrutura. Como dissemos, tal discussão será retomada e aprofundada no escopo do Capítulo 3 da presente dissertação.

Objetivos e perguntas de pesquisa

Nossa pesquisa visa, desta maneira, compreender a ocorrência e constituição de práticas sociais associadas à temática da sustentabilidade no âmbito do consumo, reunidas sob a denominação de consumo sustentável. Como observamos, trata-se de um debate relativamente consolidado na arena política e social do enfrentamento à questão das mudanças climáticas e ambientais, sendo marcado também pela heterogeneidade de posições e pontos de vista em disputa (temática do Capítulo 1). Sob o grande entendimento expresso pela definição hegemônica de desenvolvimento sustentável, presente no relatório Nosso Futuro Comum da ONU, podemos encontrar versões mais “fortes” ou mais “fracas” das proposições estabelecidas, conforme o alcance e profundidade das mudanças ou transformações defendidas como fundamentais à consideração do problema (DUNLAP; BRULLE, 2015; FERREIRA, 2011, 2017, 2018; GUIMARÃES, 1995; PORTILHO, 2005; REDCLIFT; WOODGATE, 1997; SILVA JÚNIOR; FERREIRA; LEWINSOHN, 2015; YEARLEY, 1996). Desta maneira, nosso objetivo aqui reside em apreender empiricamente e compreender a diversidade de posições atualmente existente com relação às práticas de consumo sustentável, no campo específico de investigação que aqui desenhamos (a ser detalhado na seção seguinte).

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A noção-chave que orienta tal empreendimento pauta-se na literatura acerca das

práticas sociais enquanto unidade de análise, que expusemos sumariamente acima

(aprofundadas no Capítulo 3). Isso significa buscar aqueles tipos de comportamentos rotinizados atrelados às dinâmicas de consumo que os indivíduos reconhecem como importantes do ponto de vista dos impactos ambientais gerados, identificando ao mesmo tempo sua prevalência no campo de estudo considerado. Como exemplo de tais práticas, podemos citar aquelas de grande difusão e circulação social, tais como economizar água e energia elétrica, evitar o desperdício, reutilizar recursos e bens, aderir a ações de reciclagem, bem como comportamentos mais “radicais”, como utilizar serviço público de transporte em detrimento do individual, reduzir o nível (quantidade) de bens e serviços consumidos, participar de ações e iniciativas coletivas em prol do ambiente. O interesse, nesse ponto, está em conhecer as práticas sociais entendidas como fundamentais para o enfrentamento adequado ao desafio colocado pelo desenvolvimento sustentável, em associação com o domínio específico de atuação do indivíduo (cidadãos-consumidores). O corpo teórico-conceitual articulado através da “teoria da prática” (practice theory) (FERREIRA, 2011; RECKWITZ, 2002; WARDE, 2005) fornece as bases sociológicas fundamentais para a adequada compreensão e tratamento dos dados observados.

Por fim, nosso objetivo associa-se igualmente à consideração das práticas de consumo sustentável sob o quadro analítico da definição de estilos de vida (lifestyles) diferenciados, conforme processos de “individualização” (BECK, 1992; BECK; GIDDENS; LASH, 1997) social e construção reflexiva da identidade pessoal (self) (GIDDENS, 1989, 1991a, 1991b). Em outras palavras, a análise estará atenta também para a possibilidade de que tais práticas sociais de consumo sustentável, registradas ou defendidas, conformem determinados projetos específicos de condução da própria vida em um sentido coerente e coordenado. Tais comportamentos rotinizados ambientalmente orientados poderiam, então, contribuir para a construção de estilos de vida específicos e condizentes com o desafio de enfrentamento à crise climática e ambiental.

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Metodologia

Como proposta metodológica para nossa investigação, abordamos a problemática apresentada a partir de algumas estratégias conjugadas, a saber: a análise documental e a realização de entrevistas semi-estruturadas. A seguir, detalhamos cada etapa estratégica assim delineada. Antes, porém, convém estabelecer igualmente o recorte temporal e espacial da investigação.

A pesquisa, ao tratar de um objeto tão amplo como as práticas sociais de consumo, necessita de uma aproximação analítica bem definida e justificada. Nossa proposta, nesse sentido, é a de limitar o universo de observação à comunidade universitária que conforma a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), em um sentido exploratório de investigação4. A opção por eleger tal instituição como objeto de análise, para além do fator de

conveniência com relação à sua localização como lugar sede da investigação, reside em sua representatividade e grandeza como importante espaço social, em termos científicos e acadêmicos, mas também sociais e econômicos. Segundo informações recolhidas no portal oficial da universidade, a Unicamp “conta com aproximadamente 37.500 alunos matriculados em 66 cursos de graduação e 158 programas de pós-graduação”5. Desta maneira, apenas esta

parcela de sua comunidade já constitui um grupo social de tamanho considerável, mais numeroso que muitos municípios brasileiros.

No contexto da preocupação crescente com os impactos ambientais advindos das atividades humanas (BIERMANN, 2014; BIERMANN et al., 2012; STEFFEN et al., 2011), a Unicamp busca colocar-se em uma posição de referência e liderança acerca das mudanças necessárias em direção a arranjos socioeconômicos e práticas sociais sustentáveis. A partir de tal enfoque, desde 2014 a universidade conta com um grupo técnico especializado designado especificamente para tratar da temática da sustentabilidade, com a atribuição de “construir, desenvolver e implementar políticas, diretrizes e normalizações para uma Universidade sustentável, tendo como fundamentos a melhoria contínua e o desempenho ambiental,

4Segundo Gil (1999), as pesquisas exploratórias “têm como principal finalidade desenvolver, esclarecer e modificar conceitos e ideias, tendo em vista a formulação de problemas mais precisos ou hipóteses pesquisáveis para estudos posteriores” (GIL, 1999, p. 43).

5 Cf. o portal oficial da universidade, disponível em: http://www.unicamp.br/unicamp/ensino . Acesso em: 25 jun. 2018.

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econômico e social”6. Trata-se do Grupo Gestor Universidade Sustentável – GGUS, órgão

instituído por resolução da reitoria e que tem como finalidade planejar, desenvolver, viabilizar institucionalmente e gerenciar as ações, projetos e campanhas institucionais que digam respeito à sustentabilidade socioambiental. É digna de destaque, neste particular, a proposta de situar a discussão em termos amplos, no sentido de abarcar não apenas a dimensão ambiental ou ecológica, mas também – e com igual importância – os aspectos sociais e econômicos relativos aos espaços físicos e sociais, ao uso de recursos, às atividades praticadas e à qualidade de vida nos campi da Unicamp7.

Deste modo, notamos um esforço unificado, coerente e integrado por parte desta instituição em promover práticas e políticas cujo centro seja a estruturação de atividades sociais, de ensino, pesquisa e extensão mais alinhadas ao compromisso e ao projeto de construção da sustentabilidade. Para nossos propósitos na presente investigação, é importante sublinhar, no escopo das atribuições designadas ao GGUS, o conjunto de valores e princípios relacionados ao grupo, entre os quais destacamos: preservação ambiental, valorização dos saberes, responsabilidade socioambiental, uso eficiente de recursos, qualidade de vida e

consumo socioambientalmente consciente e responsável. Este último ponto, como podemos

notar, está em articulação direta com o objeto de investigação e objetivos da presente pesquisa, o que nos fornece o recorte analítico e metodológico privilegiado da dissertação.

Assim, buscamos empreender em primeiro lugar a análise documental de projetos, campanhas, normas e outros materiais produzidos ou veiculados pelo Grupo Gestor Universidade Sustentável da Unicamp, no desenvolvimento de suas atividades e designações. O foco está em compreender o modo como são mobilizadas as práticas sociais de consumo sustentável, em suas articulações com as concepções subjacentes de sustentabilidade, de orientação mais forte ou fraca, conforme situamos tais termos nesta investigação (Capítulo 2). O papel dedicado à ação individual como recurso de destaque e de primeira grandeza no desafio de promoção de mudanças substantivas em direção à sustentabilidade também compõe eixo analítico fundamental da pesquisa. Para isso, campanhas informativas, iniciativas de conscientização, materiais impressos ou audiovisuais representam objetos importantes como forma de aproximação metodológica ao problema assim formulado.

6 Cf. o site do GGUS, disponível em: http://www.ggus.depi.unicamp.br/?page_id=83 . Acesso em: 24 jun. 2018. 7 GGUS (2018a).

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Como estratégia complementar e de aprofundamento das tendências e relações observadas, a técnica das entrevistas semi-estruturadas compõe o quadro de desenho da metodologia. Sua mobilização cumpre o papel de conhecer, a partir do contato com pessoas de atuação significativa no âmbito do GGUS e da Unicamp, de modo geral, as propostas, posições e fundamentos que embasam a atuação do grupo na temática da promoção da sustentabilidade e suas articulações com a dimensão das práticas sociais de consumo. Com relação ao caráter semi-estruturado, isso significa a construção de uma sequência de questões que alterne entre as de tipo fechado, que organiza possíveis respostas de antemão, e as

abertas, cuja elaboração é essencialmente de iniciativa do respondente. Isso permite conjugar

os questionamentos em torno de perguntas de cunho factual, como sexo, idade, naturalidade, estado civil, e de conteúdo acerca das práticas, comportamentos, opiniões e concepções associados às dinâmicas de consumo sustentável (MARCONI; LAKATOS, 2003). O roteiro com as perguntas elaboradas consta no “Anexo 1” e foi construído com base na revisão bibliográfica presente especialmente nos Capítulos 1 e 2 da dissertação.

A pesquisa contou com a participação de dez entrevistados diretos, bem como conversas e encontros informais com demais pessoas atuantes na temática socioambiental da Unicamp. É importante destacar que o desenho metodológico assim definido (investigação exploratória e qualitativa) não nos permite realizar inferências gerais para todo o universo social compreendido pela comunidade universitária da instituição. Isso porque a abordagem proposta não está fundamentada em critérios amostrais probabilísticos, de maneira que os resultados encontrados não são dotados de representatividade estatística (GIL, 1999). Tal dado, porém, não retira o interesse ou validade da investigação aqui empreendida, uma vez que as técnicas de pesquisa eminentemente qualitativas oferecem outro conjunto de possibilidades e vantagens. Em nosso caso, elas nos permitem traçar um panorama mais detalhado e aprofundado das posições, perspectivas e orientações em disputa acerca de temática tão fundamental como é o caso da questão ambiental, da sustentabilidade e do desenvolvimento sustentável nas sociedades contemporâneas. Além disso, buscamos discutir e explorar iniciativas relevantes por sua característica de modelo e ilustração acerca das perspectivas, posições e práticas em disputa no campo empírico analisado.

Dentre o corpo de estudantes de graduação e pós-graduação da Unicamp, a temática da sustentabilidade é refletida e mobilizada, de forma voluntária, pelo “Grupo de

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Cidadania Integrado” (GCI). Tal grupo se propõe a organizar e participar de projetos que busquem dialogar com a comunidade discente e de funcionários da universidade, com o objetivo de contribuir para o processo de conscientização e mudança de hábitos em direção a práticas sociais mais sustentáveis. Entre tais projetos, destaca-se a semana de recepção aos calouros (Trote da Cidadania pelo Consumo Consciente), em que são organizadas atividades com os alunos ingressantes que “visam acolher os novos estudantes da Unicamp, integrá-los com a comunidade de Campinas e construir sua visão de si mesmos como agentes transformadores da sociedade”8.

Entre os valores do grupo, destacamos o eixo da sustentabilidade, por meio do qual “agimos buscando sempre garantir que a geração presente satisfaça suas necessidades nos âmbitos sociais, econômicos e ambientais sem privar as próximas”9. Ao dialogarmos com

os atores que participam ativamente das iniciativas do grupo, nossa pesquisa poderá aprofundar a compreensão acerca das perspectivas, visões e práticas sociais de consumo ambientalmente favorável, considerado segundo a ótica dos objetivos de desenvolvimento sustentável. Além disso, podemos desenvolver alguns apontamentos analíticos associando a dimensão da sustentabilidade com a construção de projetos reflexivos e estilos de vida cuja preocupação socioambiental apareça como elemento de primeira grandeza. Os resultados e considerações analíticas obtidos por meio de tal trabalho de investigação estão reunidos e apresentados ao longo do Capítulo 4 da presente dissertação.

8 Grupo de Cidadania Integrado (2018). 9 Id., Ibid.

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Capítulo 1 – O percurso histórico da problemática ambiental

No esforço de compreensão das práticas e discursos sociais relacionados ao âmbito do consumo ambientalmente favorável, ou consumo sustentável na terminologia aqui adotada10, é fundamental que nos situemos em termos da trajetória sociohistórica que a

problemática ambiental percorreu, nos diferentes círculos sociais por meio dos quais esta foi mobilizada, alimentada, impulsionada e transformada. Nesse sentido, estamos preocupados em observar neste Capítulo 1 o movimento geral de articulação dos discursos e formas de interpretar a crise ambiental em escala global, que foi conjuntamente construído por setores governamentais, comunidades de pesquisadores e cientistas, associações civis ambientalistas, grupos econômicos, organizações não-governamentais (ONG’s), opinião pública e, mais recentemente, indivíduos considerados isoladamente. Em uma direção de crescente alargamento das questões e preocupações com as relações entre sociedade e ambiente, a crise ambiental gradualmente vai sendo formulada enquanto tema e problema que interesse parcelas cada vez mais amplas das sociedades modernas, até abarcar virtualmente a humanidade como um todo (BECK, 1992; DUNLAP; BRULLE, 2015; FERREIRA, 2011, 2017, 2018; PORTILHO, 2005; YEARLEY, 1996).

Certamente, este percurso de construção social da problemática ambiental (HANNIGAN, 2006; REDCLIFT; WOODGATE, 1997) é profundamente complexo, multifacetado e extenso, de modo que não vislumbramos abarcá-lo de maneira completa e exaustiva. Podemos sublinhar dois propósitos centrais para procedermos de tal modo: em primeiro lugar, a trajetória de construção da problemática ambiental não é um tema recente, nos seus diferentes níveis de relevância (internacional, nacional, regional, local), e já conta com grande produção bibliográfica especificamente debruçada sobre sua análise, compreensão e sistematização11; para além disto, nosso intento não deve escapar do recorte

10 No escopo da presente dissertação, adotamos a expressão ‘consumo sustentável’ de forma bastante abrangente, sem procurar situá-la segundo um tratamento conceitual estrito e rigoroso. Apesar de reconhecermos a multiplicidade de sentidos e orientações abarcados por tal termo, acreditamos que tal abordagem se justifica em associação com nosso interesse de apreender os sentidos que os próprios atores sociais (cidadãos e consumidores, em nosso caso) mobilizam e sustentam em referência a esta expressão. Deste modo, a expressão é aqui entendida como qualquer iniciativa ou prática de consumo ambientalmente orientada, em termos de equilíbrio ou redução de seu impacto deletério. Uma relevante discussão a este respeito será recuperada no Capítulo 2 desta dissertação.

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temático de pesquisa aqui apresentado, a saber: o processo de reorientação das discussões e propostas em direção à esfera do consumo e dos agentes sociais que tipicamente a representam, os consumidores individuais. Isso significa recuperar marcos importantes da trajetória sociohistórica da problemática ambiental segundo objetivos analíticos bem definidos, a partir do olhar atento acerca das transformações decisivas que nos levaram à configuração atual da questão ambiental, com um relevante espaço reservado à participação e atuação dos cidadãos-consumidores e suas práticas de consumo ambientalmente orientadas.

Desta forma, percorreremos ao longo deste capítulo dois momentos cruciais de transição ou deslocamento no discurso relacionado à problemática ambiental: o primeiro, em meados da década de 1970, quando a questão deixa paulatinamente de ser interpretada em termos neomalthusianos de pressões demográficas e populacionais sobre os recursos naturais e o ambiente (especialmente entre os países chamados então de “subdesenvolvidos” ou de terceiro mundo) para ser alocada nos padrões de produção ambientalmente degradantes que prevaleciam sobretudo a partir da realidade econômica dos países ditos desenvolvidos; e, em um segundo deslocamento, aproximadamente a partir dos anos 1990, a atenção deixa de ser focalizada no âmbito exclusivo da produção para se voltar também, e com destaque, para a esfera dos padrões e níveis de consumo dos bens e serviços industrialmente produzidos (PORTILHO, 2005). Assim, estaremos em melhores condições de cotejar a configuração atual dos desafios compreendidos pela questão ambiental, em suas articulações com a esfera do consumo.

Período 1970-1990: pobreza e pressão populacional vs padrões de produção

A década de 1970 é tida como marco inicial da construção da problemática ambiental em nível internacional, em termos de articulação e consolidação de um discurso específico a respeito das relações de desequilíbrio crescente entre sociedade e ambiente (MCCORMICK, 1992; PAEHLKE, 1989; VIOLA, 1987; VIOLA; LEIS, 1995). Todo o caldo cultural de contestação política, experimentação social e renovação de ideias que marcou grande parte das sociedades industrializadas durante a década de 1960 forneceu as bases para a emergência de um movimento social cuja razão de ser estava no questionamento e problematização do lugar ocupado pela dimensão ecológica e ambiental no projeto de

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civilização e desenvolvimento socioeconômico em curso nas diferentes nações e à escala da humanidade como um todo (VIOLA, 1987). “O ambientalismo, surgido como um movimento reduzido de pessoas, grupos e associações preocupados com o meio ambiente, transforma-se num capilarizado movimento multissetorial” (VIOLA; LEIS, 1995, p.76).

A Conferência de Estocolmo e o Relatório Meadows (“Os Limites do Crescimento”) datam ambos do ano de 1972, constituindo-se cada um como elemento decisivo para a estruturação dos caminhos e orientações que definiram a trajetória da problemática ambiental nas décadas seguintes. Naquele contexto, explicações para a crise ambiental, expressa em problemas como níveis alarmantes de poluição do ar, da água e do solo e intensa depleção de recursos naturais não-renováveis, fundamentavam-se em grande medida na associação direta entre degradação ambiental e pobreza/subdesenvolvimento. Tais correntes de pensamento de verniz neomalthusiano estavam em voga como matriz de explicação legítima e encaminhamento de propostas políticas, entre as quais destacava-se a necessidade de se desarmar a “bomba populacional” em atividade nos países chamados então de subdesenvolvidos ou em desenvolvimento. A pressão demográfica das altas taxas de crescimento populacional sobre os recursos naturais, somada à questão da pobreza crônica e extensa nestes países, era tida como um dos principais fatores responsáveis pelos desequilíbrios observados na relação deteriorada entre ambiente e sociedade. Expressão clara desta maneira de conceber a questão é encontrada no clássico texto de Garrett Hardin (The

tragedy of the commons, 1968), na qual prevalece a ideia de que bens comuns públicos (os

recursos naturais, por exemplo) tenderiam inexoravelmente a sofrer superexploração e intensa degradação a partir de certo limite de aumento populacional, dado o caráter racional e auto-interessado da atividade humana em si (HARDIN, 1991; PORTILHO, 2005).

Em Os Limites do Crescimento (MEADOWS et al., 1978) tal ênfase também está presente, embora não seja a única. Além do papel desempenhado pelas altas taxas de crescimento da população mundial, também são projetados os impactos relativos ao crescimento exponencial da produção agrícola, exaustão de recursos naturais, produção industrial e poluição, culminando na advertência de que a manutenção de tais padrões de desenvolvimento resultaria na extrapolação dos limites biofísicos do planeta, com consequências adversas catastróficas (MEADOWS et al., 1978; PORTILHO, 2005). Neste sentido, o emergente debate internacional a respeito das alternativas possíveis e disponíveis a

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fim de lidar com uma crise ambiental de complexidade e dimensões crescentes toma impulso cada vez mais vigoroso. A Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano (Conferência de Estocolmo), também em 1972, é referenciada como ponto fulcral em que tais posições estavam em disputa, buscando-se a construção de uma maneira hegemônica de definir e encaminhar a problemática ambiental (FERREIRA; VIOLA, 1996; MURPHY; COHEN, 2001; PORTILHO, 2005; VIOLA; LEIS, 1995).

Segundo Murphy e Cohen (2001), as nações de industrialização mais avançada lograram obter tal domínio hegemônico da interpretação da problemática ambiental durante as décadas de 1970 e 1980, o que lhes conferiu a vantagem de influenciar decisivamente a agenda política neste âmbito. Tratava-se, então, de uma definição estreita da questão ambiental, com forte influência das orientações neomalthusianas na atribuição dos principais fatores responsáveis pela deterioração ambiental (elevado crescimento populacional e pobreza crônica). Com isso, “ao definir os problemas ambientais globais em termos de crescimento populacional, as nações ricas foram bem-sucedidas, durante várias décadas, em relegar ao segundo plano sua própria cumplicidade” (MURPHY; COHEN, 2001, p.21). No entanto, é preciso destacar que semelhante hegemonia de discurso não quer dizer que esta era a única maneira existente de conceber o problema, uma vez que os países em desenvolvimento ofereciam outra perspectiva e buscavam, na medida de suas capacidades à época, fazer valer seus interesses e percepções acerca da atribuição de responsabilidades quanto aos desequilíbrios ambientais. O que Murphy e Cohen (2001) nos apontam, neste particular, é para o predomínio do poder político e capacidade de influência das nações ditas desenvolvidas (as nações mais ricas) em pautar e organizar o debate a nível internacional.

Com relação à posição das nações em desenvolvimento, seus discursos e resoluções tendiam a ter um caráter de ambiguidade. Por um lado, negavam a centralidade das explicações de cunho neomalthusiano, redirecionando o foco para as relações de iniquidade econômica entre os dois blocos de países (Norte e Sul globais, em termos atuais) e para o impacto ambiental advindo do modelo de produção industrial tipicamente constituído nas nações ricas. A atribuição de responsabilidades, nesse sentido, deveria recair principalmente sobre as nações de industrialização avançada, onde se produziam e consumiam a maior parte dos recursos e energia do planeta e se causavam os mais graves impactos ambientais, principalmente aqueles de âmbito global (aquecimento global, depleção da camada de ozônio,

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