• Nenhum resultado encontrado

No esforço de compreensão das práticas e discursos sociais relacionados ao âmbito do consumo ambientalmente favorável, ou consumo sustentável na terminologia aqui adotada10, é fundamental que nos situemos em termos da trajetória sociohistórica que a

problemática ambiental percorreu, nos diferentes círculos sociais por meio dos quais esta foi mobilizada, alimentada, impulsionada e transformada. Nesse sentido, estamos preocupados em observar neste Capítulo 1 o movimento geral de articulação dos discursos e formas de interpretar a crise ambiental em escala global, que foi conjuntamente construído por setores governamentais, comunidades de pesquisadores e cientistas, associações civis ambientalistas, grupos econômicos, organizações não-governamentais (ONG’s), opinião pública e, mais recentemente, indivíduos considerados isoladamente. Em uma direção de crescente alargamento das questões e preocupações com as relações entre sociedade e ambiente, a crise ambiental gradualmente vai sendo formulada enquanto tema e problema que interesse parcelas cada vez mais amplas das sociedades modernas, até abarcar virtualmente a humanidade como um todo (BECK, 1992; DUNLAP; BRULLE, 2015; FERREIRA, 2011, 2017, 2018; PORTILHO, 2005; YEARLEY, 1996).

Certamente, este percurso de construção social da problemática ambiental (HANNIGAN, 2006; REDCLIFT; WOODGATE, 1997) é profundamente complexo, multifacetado e extenso, de modo que não vislumbramos abarcá-lo de maneira completa e exaustiva. Podemos sublinhar dois propósitos centrais para procedermos de tal modo: em primeiro lugar, a trajetória de construção da problemática ambiental não é um tema recente, nos seus diferentes níveis de relevância (internacional, nacional, regional, local), e já conta com grande produção bibliográfica especificamente debruçada sobre sua análise, compreensão e sistematização11; para além disto, nosso intento não deve escapar do recorte

10 No escopo da presente dissertação, adotamos a expressão ‘consumo sustentável’ de forma bastante abrangente, sem procurar situá-la segundo um tratamento conceitual estrito e rigoroso. Apesar de reconhecermos a multiplicidade de sentidos e orientações abarcados por tal termo, acreditamos que tal abordagem se justifica em associação com nosso interesse de apreender os sentidos que os próprios atores sociais (cidadãos e consumidores, em nosso caso) mobilizam e sustentam em referência a esta expressão. Deste modo, a expressão é aqui entendida como qualquer iniciativa ou prática de consumo ambientalmente orientada, em termos de equilíbrio ou redução de seu impacto deletério. Uma relevante discussão a este respeito será recuperada no Capítulo 2 desta dissertação.

temático de pesquisa aqui apresentado, a saber: o processo de reorientação das discussões e propostas em direção à esfera do consumo e dos agentes sociais que tipicamente a representam, os consumidores individuais. Isso significa recuperar marcos importantes da trajetória sociohistórica da problemática ambiental segundo objetivos analíticos bem definidos, a partir do olhar atento acerca das transformações decisivas que nos levaram à configuração atual da questão ambiental, com um relevante espaço reservado à participação e atuação dos cidadãos-consumidores e suas práticas de consumo ambientalmente orientadas.

Desta forma, percorreremos ao longo deste capítulo dois momentos cruciais de transição ou deslocamento no discurso relacionado à problemática ambiental: o primeiro, em meados da década de 1970, quando a questão deixa paulatinamente de ser interpretada em termos neomalthusianos de pressões demográficas e populacionais sobre os recursos naturais e o ambiente (especialmente entre os países chamados então de “subdesenvolvidos” ou de terceiro mundo) para ser alocada nos padrões de produção ambientalmente degradantes que prevaleciam sobretudo a partir da realidade econômica dos países ditos desenvolvidos; e, em um segundo deslocamento, aproximadamente a partir dos anos 1990, a atenção deixa de ser focalizada no âmbito exclusivo da produção para se voltar também, e com destaque, para a esfera dos padrões e níveis de consumo dos bens e serviços industrialmente produzidos (PORTILHO, 2005). Assim, estaremos em melhores condições de cotejar a configuração atual dos desafios compreendidos pela questão ambiental, em suas articulações com a esfera do consumo.

Período 1970-1990: pobreza e pressão populacional vs padrões de produção

A década de 1970 é tida como marco inicial da construção da problemática ambiental em nível internacional, em termos de articulação e consolidação de um discurso específico a respeito das relações de desequilíbrio crescente entre sociedade e ambiente (MCCORMICK, 1992; PAEHLKE, 1989; VIOLA, 1987; VIOLA; LEIS, 1995). Todo o caldo cultural de contestação política, experimentação social e renovação de ideias que marcou grande parte das sociedades industrializadas durante a década de 1960 forneceu as bases para a emergência de um movimento social cuja razão de ser estava no questionamento e problematização do lugar ocupado pela dimensão ecológica e ambiental no projeto de

civilização e desenvolvimento socioeconômico em curso nas diferentes nações e à escala da humanidade como um todo (VIOLA, 1987). “O ambientalismo, surgido como um movimento reduzido de pessoas, grupos e associações preocupados com o meio ambiente, transforma-se num capilarizado movimento multissetorial” (VIOLA; LEIS, 1995, p.76).

A Conferência de Estocolmo e o Relatório Meadows (“Os Limites do Crescimento”) datam ambos do ano de 1972, constituindo-se cada um como elemento decisivo para a estruturação dos caminhos e orientações que definiram a trajetória da problemática ambiental nas décadas seguintes. Naquele contexto, explicações para a crise ambiental, expressa em problemas como níveis alarmantes de poluição do ar, da água e do solo e intensa depleção de recursos naturais não-renováveis, fundamentavam-se em grande medida na associação direta entre degradação ambiental e pobreza/subdesenvolvimento. Tais correntes de pensamento de verniz neomalthusiano estavam em voga como matriz de explicação legítima e encaminhamento de propostas políticas, entre as quais destacava-se a necessidade de se desarmar a “bomba populacional” em atividade nos países chamados então de subdesenvolvidos ou em desenvolvimento. A pressão demográfica das altas taxas de crescimento populacional sobre os recursos naturais, somada à questão da pobreza crônica e extensa nestes países, era tida como um dos principais fatores responsáveis pelos desequilíbrios observados na relação deteriorada entre ambiente e sociedade. Expressão clara desta maneira de conceber a questão é encontrada no clássico texto de Garrett Hardin (The

tragedy of the commons, 1968), na qual prevalece a ideia de que bens comuns públicos (os

recursos naturais, por exemplo) tenderiam inexoravelmente a sofrer superexploração e intensa degradação a partir de certo limite de aumento populacional, dado o caráter racional e auto- interessado da atividade humana em si (HARDIN, 1991; PORTILHO, 2005).

Em Os Limites do Crescimento (MEADOWS et al., 1978) tal ênfase também está presente, embora não seja a única. Além do papel desempenhado pelas altas taxas de crescimento da população mundial, também são projetados os impactos relativos ao crescimento exponencial da produção agrícola, exaustão de recursos naturais, produção industrial e poluição, culminando na advertência de que a manutenção de tais padrões de desenvolvimento resultaria na extrapolação dos limites biofísicos do planeta, com consequências adversas catastróficas (MEADOWS et al., 1978; PORTILHO, 2005). Neste sentido, o emergente debate internacional a respeito das alternativas possíveis e disponíveis a

fim de lidar com uma crise ambiental de complexidade e dimensões crescentes toma impulso cada vez mais vigoroso. A Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano (Conferência de Estocolmo), também em 1972, é referenciada como ponto fulcral em que tais posições estavam em disputa, buscando-se a construção de uma maneira hegemônica de definir e encaminhar a problemática ambiental (FERREIRA; VIOLA, 1996; MURPHY; COHEN, 2001; PORTILHO, 2005; VIOLA; LEIS, 1995).

Segundo Murphy e Cohen (2001), as nações de industrialização mais avançada lograram obter tal domínio hegemônico da interpretação da problemática ambiental durante as décadas de 1970 e 1980, o que lhes conferiu a vantagem de influenciar decisivamente a agenda política neste âmbito. Tratava-se, então, de uma definição estreita da questão ambiental, com forte influência das orientações neomalthusianas na atribuição dos principais fatores responsáveis pela deterioração ambiental (elevado crescimento populacional e pobreza crônica). Com isso, “ao definir os problemas ambientais globais em termos de crescimento populacional, as nações ricas foram bem-sucedidas, durante várias décadas, em relegar ao segundo plano sua própria cumplicidade” (MURPHY; COHEN, 2001, p.21). No entanto, é preciso destacar que semelhante hegemonia de discurso não quer dizer que esta era a única maneira existente de conceber o problema, uma vez que os países em desenvolvimento ofereciam outra perspectiva e buscavam, na medida de suas capacidades à época, fazer valer seus interesses e percepções acerca da atribuição de responsabilidades quanto aos desequilíbrios ambientais. O que Murphy e Cohen (2001) nos apontam, neste particular, é para o predomínio do poder político e capacidade de influência das nações ditas desenvolvidas (as nações mais ricas) em pautar e organizar o debate a nível internacional.

Com relação à posição das nações em desenvolvimento, seus discursos e resoluções tendiam a ter um caráter de ambiguidade. Por um lado, negavam a centralidade das explicações de cunho neomalthusiano, redirecionando o foco para as relações de iniquidade econômica entre os dois blocos de países (Norte e Sul globais, em termos atuais) e para o impacto ambiental advindo do modelo de produção industrial tipicamente constituído nas nações ricas. A atribuição de responsabilidades, nesse sentido, deveria recair principalmente sobre as nações de industrialização avançada, onde se produziam e consumiam a maior parte dos recursos e energia do planeta e se causavam os mais graves impactos ambientais, principalmente aqueles de âmbito global (aquecimento global, depleção da camada de ozônio,

perda de biodiversidade, poluição do ar e das águas, entre outros) (PORTILHO, 2005; VIOLA; LEIS, 1995). As propostas de intervenção política, segundo tal perspectiva, giravam em torno de mecanismos regulatórios, inovações tecnológicas e processos gerenciais situados na esfera da produção. Por isso, com relação ao confronto de discursos sociopolíticos naquele contexto histórico, “um dos principais legados da Conferência de Estocolmo está relacionado ao estabelecimento de um debate e uma luta entre as percepções sobre meio ambiente defendidas por países ricos e pobres” (PORTILHO, 2005, p.46).

Ao mesmo tempo, o outro polo da posição ambígua sustentada pelos países em desenvolvimento está associado à defesa que estes faziam de seu direito ao crescimento econômico como forma de combater sua condição de pobreza e “atraso”. Isso implicava a adoção de um modelo de desenvolvimento predatório e muito pouco preocupado com a internalização de custos ambientais (e sociais) em seus ciclos de acumulação. O Brasil pode ser tomado como caso exemplar de tal postura, visto o vertiginoso crescimento que registrou durante sua fase de “milagre econômico” no começo da década de 1970. A perspectiva política e socioambiental que fundamentou tal projeto de país, baseado em industrialização acelerada e uso intensivo de abundantes recursos naturais, tidos como ilimitados, permaneceu como horizonte de atuação governamental e institucional mesmo após o período de euforia ufanista (FERREIRA, 1998, 2011; VIOLA; LEIS, 1995). Tal paradigma do crescimento acelerado e predatório, muito marcante durante o domínio político-militar no país, vigorou pelas décadas seguintes como matriz predominante de pensamento a respeito da maneira de impulsionar o processo de desenvolvimento, considerado estritamente em termos econômicos (FERREIRA, 1998, 2011; VIOLA, 1987; VIOLA; LEIS, 1995). Isso gerou fortes pontos de descontinuidade entre o plano retórico de afirmação de relações mais equilibradas entre ambiente e sociedade, sobretudo com vistas ao modelo poluidor de produção industrial dos países ditos desenvolvidos, e a defesa ferrenha do crescimento econômico como vetor de primeira grandeza na busca pelo tão almejado desenvolvimento.

Dado semelhante campo de embates acerca da definição da problemática ambiental, seus fatores explicativos e propostas de intervenção política, o regime internacional de governança nessa temática foi marcado desde o início por intensas controvérsias e conflitos políticos (FERREIRA, 2011). Desde o marco fundamental que foi a Conferência de Estocolmo, o discurso hegemônico foi sendo gradativamente questionado e

reorientado no sentido de conferir maior importância aos processos produtivos, tecnológicos e gerenciais que marcam as atividades de intensa exploração e degradação ambiental, com foco a partir das nações mais ricas. Os argumentos baseados em fatores demográficos e sociais, cujo efeito culminava em atribuir aos países em desenvolvimento a responsabilidade pelos impactos deletérios sobre o ambiente e seus recursos naturais, perdem muito de sua força e legitimidade políticas. Desta forma, ao longo das décadas de 1970 e 1980, muito embora a centralidade dos países industrializados para liderar as discussões não deixasse de se fazer presente, as perspectivas e posicionamentos defendidos pelos países em desenvolvimento foram sendo paulatinamente reconhecidos como pertinentes e necessários na busca de modelos de desenvolvimento socioeconômico e ambiental mais equilibrados e sustentáveis. Como exemplo paradigmático deste movimento, podemos citar, no âmbito dos estudos sociológicos acerca da problemática ambiental, o crescente prestígio e influência que a Teoria da Modernização Ecológica logrou obter nas últimas décadas (PORTILHO, 2005; SPAARGAREN; MOL, 1992; SPAARGAREN; MOL; BUTTEL, 2000). Assim, novas propostas de legislação, agências e instituições ambientais, grandes investimentos e políticas voltados para novas tecnologias e técnicas de produção limpa, ecoeficiência e produtos verdes passam a fazer parte, de modo predominante, dos esforços em torno da redução dos impactos ambientais do sistema de produção econômica (PORTILHO, 2005). A esfera do consumo, por seu turno, teria que esperar até a década de 1990 para também assumir papel de destaque na consideração da crise ambiental e das alternativas para enfrentá-la.

A partir da década de 1990: consumo como fator de explicação

A partir dos anos 1990, um segundo deslocamento discursivo começa a ocorrer na maneira como a questão ambiental é socialmente construída, ressignificada e politicamente encarada. Dentre os variados setores sociais, cada vez mais amplos, que se envolvem direta ou indiretamente na consideração da temática, o discurso da atribuição de um papel relevante também para a esfera do consumo na compreensão dos impactos ambientais adquire crescente influência. Assim, instituições governamentais, núcleos acadêmicos de pesquisa, atores econômicos, organizações não-governamentais (ONG’s) e associações civis passam a atuar mais intensamente no campo de disputas simbólicas e políticas envolvendo a definição dos

problemas (socio)ambientais, sendo que a dimensão das atividades de consumo e estilo de vida modernos ocupa lugar de destaque no leque de novas preocupações políticas.

Cabe destacar, no entanto, que as ideias que tomam como eixo de reflexão uma crítica aos níveis de consumo, estilos de vida hedonistas e consumistas, mercantilização e alienação das necessidades básicas de vida possuem uma trajetória histórica, social e intelectual muito mais remota. Alguns elementos de sustentação de semelhantes posicionamentos podem ser rastreados desde, pelo menos, a filosofia clássica. Nessa miríade de concepções teóricas e normativas, podemos passar (sem a pretensão de sermos exaustivos) pela teoria social crítica do século XIX e começo do XX, o ‘humanismo ecológico’ dos anos 1960 e 1970, a antropologia e filosofia social da década de 1970 e 1980, a sociologia da modernidade, popularizada nos anos 1990 (JACKSON, 2005). Cada movimento intelectual parte de algumas posições e premissas básicas para estruturar alguma forma de reflexão crítica com relação às características de estilo de vida nas sociedades contemporâneas e o papel que o consumo, em geral relacionado a níveis excessivos e conspícuos, cumpre nesta dinâmica. Inúmeros autores poderiam ser citados como figuras de referência nesta seara, como Henry Thoreau, André Gorz, Ivan Illich, Herbert Marcuse, Fritz Schumacher, Nicholas Georgescu-Roegen, entre muitos outros (FERREIRA, 2006; PORTILHO, 2005; VIOLA, 1987). A consideração acerca dos efeitos negativos em relação ao ambiente biofísico e seus ecossistemas representa apenas uma das linhas de crítica dirigidas às práticas de consumo assim entendidas.

Apesar disso, estas críticas permaneceram até a década de 1990 relegadas a uma posição marginal no discurso internacional hegemônico relativo às formas de governança apropriadas a fim de lidar com a problemática ambiental e seus desafios globais. Foi apenas a partir do final do século XX que tal ordem sociopolítica de discursos passou a considerar seriamente a esfera das atividades sociais de consumo como fator relevante na consideração do problema, digna de uma abordagem e atenção específicas. Com isso não queremos dizer que, no processo de deslocamento discursivo em direção às práticas de consumo, aquelas abordagens críticas radicais às formas modernas de organização social foram inteiramente incorporadas e aceitas inequivocamente. Trata-se de conjuntos de enunciados e orientações reflexivas bastante diferentes entre si, mas que, ao tomarem como eixo privilegiado de preocupação a dimensão do consumo e dos estilos de vida contemporâneos, convergem em

algum sentido para uma direção comum. Ao longo do esforço de investigação da presente dissertação, procuramos compreender em que pontos é possível estabelecer semelhantes aproximações, relacionadas às práticas sociais de consumo sustentável empiricamente observadas12.

Vieira (1995), em um trabalho de mapeamento da contribuição das Ciências Sociais no Brasil para a reflexão acerca da problemática ambiental no período 1980-1990, nos aponta de modo muito preciso o deslocamento discursivo que se verificava naquele momento. Segundo tal autor, àquela epóca:

Uma segunda área deficitária na pesquisa socioambiental brasileira diz respeito à abordagem da natureza das relações entre processos de percepção da problemática ambiental e processos de aprendizagem social que implicam

modificações efetivas de comportamento. Em termos de urgência de um

redirecionamento das políticas ambientais num sentido antecipativo- preventivo, seria de especial importância conhecer melhor como se dão as percepções da problemática ambiental em diferentes segmentos sociais e como os atuais estilos de consumo, de interação social e de participação política poderiam ser inflexionados no sentido da criação de hábitos consistentes com um novo projeto de civilização. (VIEIRA, 1995, p.129 – itálicos nossos)

Longe de se tratar de uma especificidade do contexto brasileiro de produção acadêmica, tal lacuna identificada por Vieira (1995) começava a ser abordada justamente naquele contexto histórico. Embora seja arbitrário estabelecer um evento ou acontecimento exclusivo como ponto de virada nas orientações discursivas, podemos dizer que o Relatório Bundtland – Nosso Futuro Comum (Bundtland, 1987) publicado pela Comissão Mundial de Meio Ambiente e Desenvolvimento da ONU cumpriu algo deste papel. Ainda que de maneira inicial, o documento incorpora algumas considerações novas aos já conhecidos fatores do crescimento populacional, pobreza e iniquidade econômica, que também estão presentes. Começamos a ver, aqui, um reconhecimento formal acerca da contribuição desigual dos estilos de vida de tipo afluente para a configuração dos problemas ambientais, o que representa um importante redirecionamento no discurso político hegemônico então prevalecente (MURPHY; COHEN, 2001; PORTILHO, 2005). “O desenvolvimento sustentável global requer que aqueles que são mais afluentes adotem estilos de vida dentro dos meios ecológicos planetários – em seu uso de energia, por exemplo” (BRUNDTLAND,

1987, p.25 – tradução nossa). Apesar disso, o relatório não busca implicar qualquer diretriz no sentido de estabelecer como proposta uma redução do consumo material nas nações mais ricas, procurando inclusive enfatizar o uso de novas tecnologias e a melhoria das organizações sociais para abrir caminho para uma nova era de crescimento econômico (PORTILHO, 2005). Isso significa que, naquele contexto histórico (início da década de 1990), a ênfase ainda estava concentrada predominantemente nos mecanismos produtivos capazes de proporcionar melhorias significativas nos impactos ambientais advindos das atividades sociais, aqui incluídas as práticas de consumo. De modo gradativo, a esfera do consumo passa a ser referenciada como âmbito independente de reflexão e intervenção, com dinâmicas próprias de ordenação. Cinco anos após a publicação do relatório Brundtland, temos mais um marco fundamental na trajetória aqui analisada: a realização da Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento (CNUMAD), no Rio de Janeiro (conhecida como Rio92 ou Eco92). Novamente, o debate travado entre as perspectivas das nações afluentes (Norte global) e daquelas em desenvolvimento e/ou pobres (Sul global) tensiona pontos-chave de definição da questão ambiental. Durante as etapas preparativas para a conferência, “as negociações preliminares formaram o pano de fundo para controversos debates sobre a contribuição relativa das práticas de consumo para os problemas ambientais globais” (PORTILHO, 2005, p.51). Enquanto os países ricos trabalhavam para manter o enquadramento estreito e cada vez menos plausível de atribuição da degradação ecológica internacional ao crescimento populacional exponencial, as nações em desenvolvimento e organizações não-governamentais lutavam para redirecionar a responsabilidade em direção aos estilos de vida intensivos em recursos predominantes nas nações do Norte (MURPHY; COHEN, 2001). Apesar da hegemonia discursiva que estes últimos tradicionalmente desfrutaram, a luta simbólica neste caso mostrou ser bastante difícil a manutenção daquela

Documentos relacionados