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O DEBATE CONCEITUAL SOBRE SAÚDE E DOENÇA: CONTRIBUIÇÕES PARA A EDUCAÇÃO FÍSICA

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O debate conceitual sobre saúde e

doença: contribuições para a

Educação Física

The conceptual debate about health and disease:

contributions for the Physical Education

Resumo: Partimos da análise de duas obras de referência da Saúde Co-letiva, “A doença” de Giovanni Berlinguer (1988) e “O que é saúde?” de Naomar de Almeida-Filho (2011), para tentar mostrar a contribuição diferenciada que tais trabalhos desenvolvem em relação à riqueza de inter-pretações que ‘saúde’ e ‘doença’ podem comportar – para além do olhar biomédico. Foram abordadas categorias explicativas em destaque nessas obras, que permitem dialogar mais contextualmente com questões da vida cotidiana. Nesse sentido, a incorporação de problematizações conceituais afins pode trazer aportes relevantes à Educação Física, sobretudo, em ter-mos de sua inserção nas esferas dos serviços públicos de saúde.

Palavras-chave: Saúde; Doença; Aspectos conceituais; Produção de conhecimento.

Abstract: We start the analysis of two reference works of Public Health, “The disease” by Giovanni Berlinguer (1988) and “What is health?” by Naomar de Almeida-Filho (2011), trying to show the differentiated tribution that such works develop with respect to interpretations and con-textualization that ‘health’ and ‘disease’ can be offer – in addittion to the biomedical paradigm. Featured categories are addressed in these works, which allow further dialogue with relevant issues of everyday life. In this sense, the incorporation of conceptual problematization can bring impor-tant contributions related to Physical Education, especially in terms of their integration in the spheres of public health services.

Keywords: Health; Disease; Conceptual aspects; Production of knowle-dge.

Marcos Bagrichevsky

Doutor em Saúde da Criança e do Adolescente pela UNICAMP. Professor Adjunto da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Coordenador do SALUS - Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas sobre Saúde, Cultura e Sociedade (UFES/CNPq).

Bruna Teixeira

Aluna de Iniciação Científica do Bacharelado em Educação Física da UFES. Membro do SALUS - Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas sobre Saúde, Cultura e Sociedade (UFES/CNPq). Bolsista do Projeto

PRÓ-PET-Saúde/UFES.

Adriana Estevão

Doutora em Ciências Sociais pela

PUCSP. Professora Adjunta da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Membro do SALUS - Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas sobre Saúde, Cultura e Sociedade (UFES/CNPq).

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Caderno de Educação Física (ISSN 1676-2533 | e-ISSN 1983-8883)

1 INTRODUÇÃO

Uma das formas da saúde é a doença. Um homem perfeito, se existisse, seria o mais anormal que se poderia encontrar (Fernando Pessoa)

Os nexos e dissensos entre saúde, doença e sociedade têm sido proficuamente debatidos por áreas distintas do conhecimento e, em particular, pela Saúde Coletiva. Do ponto de vista das rela-ções de produção, existem estudos que privilegia-ram enfoques sobre as condições de vida insalu-bres em classes poinsalu-bres e trabalhadoras (ENGELS, 1988; MOURA, 1989; BREILH, 1991; DEJOURS, 2002). Críticas densas também foram formuladas quanto à dimensão iatrogênica da medicina, ao poder expropriador de grandes conglomerados da indústria farmacêutica, à medicalização social (ILLICH, 1982; CANGUILHEM, 2002; CONRAD, 2007) e às iniquidades sócio-sanitárias que con-dicionam e determinam o perfil coletivo de velhas e novas enfermidades, predominantes em cama-das menos favorecicama-das da população (NOGUEIRA, 2010).

A respeito da pouca tradição que a Educa-ção Física apresenta em relaEduca-ção às tematizações críticas do binômio saúde-doença, se extraem im-portantes observações dos argumentos de Rigo et al. (2007), quando afirmam que “a problemática conceitual adquiriu tamanha relevância que pas-sou a comprometer a maioria dos debates acadê-micos da área [...] principalmente, pel[a]s manei-ras com as quais as divergências conceituais são tratadas [...]” (p. 155). Nesse sentido, os autores seguem, apontando a necessidade de se construir uma discussão mais politizada na área acerca “de uma perspectiva de [...] saúde que não esteja vi-ciada pela linguagem do pensamento dicotômico de saúde versus doenças, normal versus patológi-co, vida versus morte” (p. 169).

Para não se tornar um atividade intelectual esvaziada de sentido, ‘conceber’ que saúde e do-ença não deve representar somente um esforço em prol da compreensão de terminologias e seus significados semânticos e etimológicos. Antes, precisa se constituir como uma prática socialmen-te situada, a partir da qual sejam reconhecidos os aspectos econômicos, políticos, culturais ine-rentes ao processo saúde-doença-cuidado, bem como as repercussões macro e microestruturais

daí decorrentes (BREILH, 1991). E ainda que se adotem determinadas noções para expressá-las (a saúde e a doença), faz-se necessário reconhecer que definições, taxionomias e conceitos são ins-trumentos limitados, empregados para a tentativa de se capturar parcialmente o(s) significado(s) de determinados fenômenos, algo nem sempre factí-vel. Desse modo, por mais ‘elaborado’ que seja o conceito, trata-se apenas de uma representação simbólica imprecisa da realidade.

Ao introduzir esse cenário problematizador, assumindo a dificuldade imposta pela complexa tarefa de se trabalhar com conceitos em um espa-ço textual limitado, buscamos dialogar – de forma esquemática e resumida – com excertos de ideias sobre saúde e doença, contidas em duas obras se-minais do campo da Saúde Coletiva: “A doença” de Giovanni Berlinguer (1988) e “O que é

saú-de?” de Naomar de Almeida-Filho (2011). Delas,

foram tomadas categorias analíticas em destaque nos respectivos trabalhos, que permitem fomentar algumas notas para a reflexão pretendida.

2 CONTRIBUIÇÕES DE GIOVANNI BERLIN-GUER: “A DOENÇA” (1988)

Passados quase 25 anos da publicação em português dessa obra seminal no Brasil (BERLIN-GUER, 1988), sua densidade conceitual e rele-vância relativa às questões cotidianas do campo sanitário continuam absolutamente atuais e im-prescindíveis. Trata-se de um daqueles livros fun-damentais para subsidiar sólido substrato teórico e facilitar a aproximação com concepções e fatos atrelados às dimensões da saúde e da doença e aos seus aspectos condicionantes, que sabida-mente ultrapassam a esfera biológica do saber.

O legado e a influência de Giovanni Berlguer, do alto dos seus 88 anos, tanto como in-telectual (possui vasta produção de trabalhos im-portantíssimos) quanto empreendedor e político (ainda) militante de causas sociais no velho con-tinente e em terras tupiniquins são marcantes. As inúmeras passagens desse renomado sanitarista e bioeticista italiano em solo brasileiro, especial-mente nos anos 1980 – tempos remanescentes de ditadura militar – trouxeram contribuições singu-lares ao Movimento da Reforma Sanitária no país. Entre elas podemos citar o envolvimento efetivo

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em debates/ações embrionárias que conduziram à constituição do Sistema Único de Saúde (SUS).

Prova cabal do reconhecido valor do livro em apreço é ilustrada pela própria iniciativa do CEBES (Centro Brasileiro de Estudos da Saúde, entidade histórica da Saúde Coletiva. www.cebes.org.br) – detentora dos direitos autoriais – que recente-mente o disponibilizou on-line, na íntegra, para download gratuito em seu sítio eletrônico (http:// www.docvirt.com/docreader.net/docreader.aspx?-bib=CEBESLIVROS&Pasta=A).

De modo geral, a obra explicita como é ár-dua a tarefa de conceituar ‘doença’, sobretudo, se levarmos em conta as inúmeras diferenças entre os pontos de vistas existentes (muitos deles, car-regando consigo valores e visões de mundo opos-tos) acerca do assunto. Apesar da complexidade temática que abarca, a obra se destaca por uma escrita fluente, de fácil entendimento, convidativa à reflexão.

Uma questão introdutória é central ao ar-gumento do trabalho. Berlinguer pondera que em relação às civilizações chamadas de ‘primitivas’ seria menos problemático pensar o adoecimento como ausência ou supressão de algum princípio vital. Contudo, no mundo moderno isso se mostra por demais conflitante, segundo ele. Nesse sen-tido, utiliza o exemplo da Organização Mundial da Saúde (OMS) que em 1964 buscou legitimar politicamente uma ‘definição abrangente’ para saúde, trazendo à público a ideia de “completo bem-estar físico, mental e social”. Entretanto, ao retratar saúde de tal modo, por extensão, susci-tou também a existência de um nexo implícito en-tre ‘mal-estar mental e social’ e ‘doenças’. Além disso, a definição da OMS ampliou exponencial e compulsoriamente o rol de atribuições do setor saúde e o potencial de medicalização da socieda-de (isso é, aumentaram as chances socieda-de se transfor-mar qualquer sinal menor de conflito corriqueiro da vida cotidiana e de alteração nas relações en-tre os seres humanos, em ocasião e pretexto para tratamento médico-farmacológico) – tema, aliás, nevrálgico, aprofundado por outros intelectuais de referência do campo (ILLICH, 1982; CONRAD, 2007).

Outra abordagem do autor, em relevo, é o questionamento apresentado às várias definições dicionarizadas, legais e enciclopédicas de doen-ça, destacando as muitas imprecisões contextuais

e a inócua resolutividade dos problemas da vida que esses aportes terminológicos nos oferecem. A partir da apresentação desse panorama de ideias, Berlinguer interroga de modo provocativo: mas afinal, o que seria doença? E o faz com o claro propósito de incitar uma interação dos leitores com sua obra, para que dela sejam emanados, reconstruídos, novos conceitos e percepções.

2.1 Face opressora da vida: doença como so-frimento, diversidade e perigo

Em três capítulos do livro, o autor sublinha a face negativa, dolorosa e opressora da doen-ça. Ela aparece então, dimensionada como ‘sofri-mento’, ‘diversidade’ e ‘perigo’. Berlinguer requer que nos coloquemos no papel do doente, que sintamos/pensemos suas mazelas e que tentemos compreender como a doença é duramente enfren-tada pelos atores que a encarnam.

Quando categorizou o conceito de doença como sofrimento, ele buscava, em particular, en-fatizar que o sujeito dessa ação (aquele que sofre), não pode ser culpado ou punido por seu adoeci-mento. Haveria, por assim dizer, “certa prepotên-cia das pessoas sadias em relação aos enfermos”, fato que acarretaria ampliação de desigualdades/ discriminações sociais. Berlinguer advoga que para modificar tal situação, seria imperativo que a todas as pessoas se viabilizasse: (i) o direito e a liberdade de poder estar doente sem sofrer estig-matização; (ii) e, acesso amplo à tratamento, com cuidados suficientes e adequados – sempre que necessário – independente de classe, idade, gêne-ro, etnia ou crença religiosa. São premissas com-plexas, se levarmos em conta as agudas e profun-das iniquidades econômicas e políticas vigentes no Brasil, embora precisem ser reconhecidas como prioridades urgenciais à nação.

A doença entendida como diversidade é outra elaboração interpretativa sugerida. Contu-do, diferente dessa aposta, Berlinguer admite que a noção de diversidade aparece na história oci-dental, pejorativa e frequentemente, como anor-malidade, desvio ou condição de inferioridade (do enfermo) em relação à média da população. Dentro desse enfoque questionador e propositivo do autor, o tema da norma biológica1 e da

nor-1 A esse respeito, ver Canguilhem (2002) em “O normal e o patológico”.

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ma social2 é trazido à baila, para por em xeque

os modos descontextualizados de ajuizar o pro-cesso saúde-doença-cuidado, em determinadas situações. O sanitarista italiano afirmou que nos enfoques hegemônicos, com certa constância, en-tra em pauta apenas uma das normas para se es-tabelecer o que seria anormal e patológico. Do ponto de vista ético e da justiça social, as doen-ças deveriam ser compreendidas como diferendoen-ças e não como dimensões desviantes (geradoras de preconceito!). Como nem todas as enfermidades são anormais, também seria equivocado afirmar a relação inversa – entre saúde e normalidade.

Noutra parte de sua obra, Berlinguer argu-mentou que em todas as épocas as doenças têm sido consideradas ameaças à humanidade, toma-das como perigo iminente. Alguns fatos históri-cos exemplificam tal interpretação. Entre eles, vale destacar a ideia de polícia médica (instituição que existiu em vários países/continentes do mundo, em registros temporais distintos) que empregava o conceito de ‘periculosidade social’: sob o pretex-to de intervir nas enfermidades, buscava-se pres-crever/moldar posturas, valores e crenças aos/dos cidadãos para controlar, política e socialmente, a vida das coletividades humanas. Nesse perío-do a medicina destacava-se mais por seu cunho punitivo, e menos pelo curativo; a conduta clínica dos médicos destinava-se mais aos julgamentos morais (norteados por um ideário dominante, ‘eli-tista’, excludente) e menos ao enfrentamento de afecções orgânicas.

Para o pesquisador, há que se criticar os res-quícios contemporâneos dessa orientação ideoló-gica, contrapondo como imperativo ético: (i) o de-ver público do Estado de reduzir a incidência das doenças; (ii) a necessidade de se enfatizar as mo-léstias e seus vetores de propagação como perigo, não os doentes; (iii) a premência de se respon-sabilizar ‘instituições emblemáticas’ que possuem aporte para impedir/erradicar certas doenças, mas não o fazem. Um bom exemplo dessa última ques-tão materializa-se no problema de enfrentamento da epidemia mundial de AIDS, e da dificuldade de ‘quebra’ das patentes de antiretrovirais – situação paradoxal, se levarmos em conta, por um lado, o grande investimento de verbas públicas em pes-quisa para descobrir e produzir medicamentos que

2 Também sobre o assunto, existe um interessante texto de Aubrey Lewis (1998), intitulado “A saúde como conceito so-cial” que foi publicado na revista Physis.

combatam a doença e, por outro, a detenção de um expressivo número de patentes de fármacos e insumos, pelas corporações privadas do setor.

2.2 Doença posicionada como sinal e estímulo

A segunda seção do livro mobiliza uma face diferente dos processos de adoecimento. Nela, o pesquisador os problematiza a partir de outras concepções e enfoques: a doença aparece, então, posicionada como “sinal” e como “estímulo”.

Tomar a doença como um sinal implica aceitar sua conotação simbólica, que se traduziria pela soma e pela interpretação de episódios pa-tológicos: um potencial informativo relacionado a questões de natureza econômica, cultural, política e social, fornecendo indícios para compreensão de fenômenos mais complexos que ocorrem nas distintas coletividades humanas (tanto em dimen-são retrospectiva quanto prospectiva). Contudo, Berlinguer alerta que, algumas vezes, esses sinais são apontados por meio de um desequilíbrio tão velado, sutil, distorcido, que se torna praticamente impossível dar alguma providência remediadora ou preventiva aos problemas, quando detectados.

Na análise da doença como estímulo, mes-mo se tratando de eventos inicialmente circuns-critos à esfera biológica e individual e com efeitos indesejados, seria possível estabelecer uma rede ampliada de significações psicossociais, subjeti-vas, ‘em torno-do’ e ‘sobre-o’ processo de ado-ecimento; faria sentido projetar as enfermidades como acontecimentos complexos que também suscitam aquisição de conhecimento, que fomen-tam criatividade (para enfrenfomen-tamento de situações inesperadas), que desencadeiam solidariedade (desde o compartilhamento de afetos até outros sentimentos que emergem de situações-limite do sofrimento humano). Se por um lado, as doenças podem levar pessoas ao isolamento, de outro é igualmente razoável pensar que elas potenciali-zam situações de resistência, geradoras de apren-dizado de novas estratégias para se viver.

Tais enfoquem trazem perspectivas renova-das para o setor saúde. Sem devaneios, é sensato e factível pensar o desafio de reduzir, em número e gravidade, um conjunto de doenças – quer seja pela evolução clínica no combate de agentes pa-tógenos, quer seja pelas consequências sociais em

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termos da diminuição do percentual de pessoas acometidas.

3 RECORTES DAS SISTEMATIZAÇÕES DE

NAOMAR DE ALMEIDA-FILHO EM “O QUE É SAÚDE ?” (2011)

Um dos motes centrais a capitanear o referi-do estureferi-do é mesmo seu espírito indagativo, colo-cado em relevo a partir do título, quando aparece indicada a questão “o que é saúde?”. Essa pro-blematização trabalhada em pesquisas outras do autor, aparece desde meados da década de 1980, revelando a insatisfação de Naomar com a po-breza teórica do campo epidemiológico. Para ele, tal fato se daria em função do conceito de saúde constituir um dos ‘pontos cegos’ das ciências da saúde, em geral e, da epidemiologia, em parti-cular.

São desenvolvidas ao longo da obra, dis-cussões sistemáticas e densas, que impõem ques-tionamentos de diferentes ordens ao conceito de saúde, trabalhados desde uma perspectiva etimo-lógica, filosófica e científica. A saúde é aborda-da como fenômeno individual (fisiopatológico), concepção quase unânime nas referências bio-médicas; como medida, categoria que permite Naomar indagar limites e possibilidades do tra-tamento quantitativo de eventos ligados à saúde, tanto no plano individual quanto econométrico, em função do seu ‘objetivismo’ (mote também de fortes críticas de autores como Canguilhem); como

ideia, cuja incorporação da experiência pessoal

e dos aspectos simbólicos é fundamental, pois a partir deles os sujeitos buscariam ‘administrar’ processos patológicos geradores de sofrimento. Contudo, esses três modelos, segundo Naomar, restringem a perspectiva da saúde à ausência de enfermidade, quando na verdade, ela compreen-de processos e vetores que extrapolam largamen-te tais convenções.

Nos capítulos que se seguem na obra, apa-rece a saúde posicionada como problema. Nes-se tópico, o pesquisador faz emergir criticamente, questões emblemáticas como a oposição concei-tual entre virtude e vício, analogia estendida a partir da polarização entre saúde e doença (essa última, tomada como feiura, fraqueza moral). Para Canguilhem (2002), tais concepções seriam absurdas, pois a saúde se realiza no genótipo, na

história da vida do sujeito, e na relação desse com o meio; daí a razão do filósofo francês defender a ideia de que expressar saúde como um ‘problema filosófico’ não contradiz tomá-la como ‘problema científico’.

Saúde também é trabalhada como valor por Naomar em suas bases lógicas, teóricas e meto-dológicas. Nesse sentido, ele traz contribuições de Christopher Boorse, que questiona a concepção de ‘saúde como valor’ referenciado em dois con-tra argumentos: por um lado, lembra que a medi-cina ‘trata’ muitas condições que não define como ‘saúde’, tais como intervenções cirúrgicas com fins estéticos; e por outro, defende que mesmo fora do alcance da tecnologia biomédica, os problemas das moléstias não tratáveis ou negligenciadas, as condições terminais dos enfermos e os traumas graves são considerados ‘doença’. A partir desses paradoxos é sensato admitir que os gradientes so-cialmente perversos reproduzidos em nossas cole-tividades, refletem, entre outras coisas, interações entre diferenças biológicas, distinções sociais e iniquidades na esfera ético-moral, tendo sempre como expressão concreta deles, as desigualdades injustas em saúde. Jonh Rawls é outro teórico uti-lizado por Naomar, em função de sua valiosa con-tribuição intelectual acerca do conceito de saúde posicionado como valor, que se expressa naquilo que denominou “teoria da justiça”. Rawls enfati-zava a igualdade de oportunidade e também de distribuição de valores, bens e serviços como exi-gências básicas, socialmente inquestionáveis.

Ao final desse tópico, Naomar indica a pre-mência de engajar politicamente essa construção conceitual e metodológica, de modo a torná-la ca-paz de subsidiar uma mobilização nas estruturas de poder decisório, no sentido de pressionar para que as diferenças societárias sejam minimizadas e para que as distinções de gênero, étnico-raciais, e de classe, deixem de se destacar como determi-nantes sociais marcantes no processo de adoeci-mento e mortalidade populacional.

Em outra categoria de análise, a saúde ga-nha destaque como campo de práticas. Por meio dela, são introduzidos os conceitos de ‘paradigma’ e de ‘campo social’. Desse modo, o autor inter-preta a saúde como um espaço convergente de saberes e práticas sociais. Thomas Kuhn é toma-do como referência para balizar conceitualmente a ideia de ‘paradigma’. O pensador propõe dois

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conjuntos de sentidos para o termo. Primeiro, como categoria epistemológica, paradigma constituiria um instrumento de abstração, uma espécie de fer-ramenta auxiliar para o pensamento sistemático da saúde. Segundo, paradigma representaria uma visão de mundo peculiar, geralmente na forma de metáforas, figuras e analogias, próprias do campo social científico. Por sua vez, o conceito de cam-po social pertence a Pierre Bourdieu. Nas episte-mologias pragmáticas contemporâneas, define-se ‘campo’ como espaço coletivo, relativamente au-tônomo, constituído por uma estrutura em redes de relações objetivas. Juan Cesar Garcia é desta-cado por Naomar, como o primeiro intelectual a utilizar o termo ‘paradigma’ no campo da saúde. Empregada contemporaneamente para designar distintas ideologias, a noção tem se apresentado de forma sucessiva na esfera sanitária, conectada aos movimentos da Medicina Preventiva, da Saú-de Comunitária e, mais recentemente da SaúSaú-de Coletiva.

Destacamos, por último, na obra, o posicio-namento do pesquisador baiano, quando reforça a ideia de um ‘campo geral de práticas’ chamado de promoção da saúde, que supõe um repertó-rio social de ações preventivas à morbimortalida-de; mas também e principalmente, de estratégias protetoras e fomentadoras da salubridade, para de certo modo, tentar contribuir na redução dos sofrimentos causados por problemas de saúde nas comunidades. Mais importante do que formalizar métodos vigorosos para medir desigualdades em saúde, é compreender suas raízes e determinan-tes; é envidar esforços concretos para reverter tal quadro e potencializar – mesmo que a longo pra-zo – um projeto coletivo que envolva a felicidade e a dignidade da vida humana, como realidade tangível, no qual também cabem contribuições significativas do setor saúde.

4 DA TRANSPOSIÇÃO DOS LIMITES DISCIPLI-NARES À CONVERGÊNCIA CONCEITUAL DE FRONTEIRAS MESTIÇAS: NOTAS FINAIS PARA PENSAR ALGUMAS QUESTÕES

A despeito do título das duas produções con-ceituais – “A doença” e “O que é saúde?” – apa-rentarem um suposto antagonismo etimológico e, apesar do grande período de tempo que separa suas respectivas publicações, as obras enunciam

muito mais convergências e semelhanças do que diferenças e distanciamentos. Giovanni Berlinguer e Naomar de Almeida-Filho nos ofertam dois be-los trabalhos analíticos, cujos nortes políticos e acadêmicos se entrelaçam, sobretudo, em função do enfoque crítico partilhado e da filiação comple-mentar de algumas matrizes teóricas utilizadas.

Destacamos a significativa colaboração que ambos trazem para as distintas áreas que com-põem o campo da saúde. Apesar da edição brasi-leira do livro de Berlinguer possuir quase vinte cin-co anos de idade, suas abordagens permanecem tão atuais quanto as de Naomar. Em “A doença”, o pesquisador italiano sugere múltiplas conotações adjetiváveis às enfermidades, tal como ocorre em relação ao vocábulo ‘saúde’, no trabalho do epi-demiologista e epistemólogo baiano.

Outro ponto de convergência conceitual im-portantíssimo entre as produções, aparece, à me-dida que os autores identificam, de modo similar, que cada um dos termos, inevitavelmente, leva ao outro. Isso porque as acepções estão igualmen-te implicadas no processo vital humano, seja na esfera biológica, seja na dimensão sócio-cultural; concreta ou subjetiva; de natureza coletiva ou in-dividual. Nessa perspectiva, há mais uma inter-face comum que permeia os dois livros: eles re-jeitam pensar saúde e doença como fenômenos em separado, distantes de uma processualidade imbricada na vida, apartados do contexto cotidia-no das pessoas.

Os autores compartilham também a per-cepção de que qualquer conceito ‘candidato’ a contemplar ‘verdades universais’, esteja fadado a gerar mais inconsistência e ambiguidades do que esclarecimentos e ajuda. Por isso, propõem utilizar a potencialidade que cada modelo, concepção ou teoria explicativa da saúde-doença tem de melhor, admitindo suas falhas e limitações, e trabalhando no sentido de não escamotear tais conflitos.

Nesse sentido, é tarefa imprescindível à co-munidade acadêmica, suscitar mecanismos para que as diferentes áreas do conhecimento estabe-leçam um criterioso e perene exercício de reflexão, na identificação dos juízos que subjazem as con-cepções de saúde e de doença (bem como suas possíveis relações e desdobramentos) defendidas pelos seus profissionais, uma vez que são esses aspectos que norteiam as prioridades nos respec-tivos campos de intervenção social.

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Um dos ‘nós’ que ainda persiste no julga-mento das prioridades investigativas em saúde, em algumas áreas acadêmicas que a subordinam aos seus preceitos definitórios – entre as quais está incluída a Educação Física –, é o uso instrumental indiscriminado de noções hierarquizantes e clas-sificatórias, como forma de se enxergar (ou redu-zir) os problemas que interferem nas condições da vida humana. Isso se torna ainda mais complicado na perspectiva das formulações de políticas públi-cas para enfrentamento dos problemas de saúde, quando os aspectos concretos do cotidiano são, de certo modo, subvalorizados como critérios nortea-dores das preocupações, em detrimento da exul-tação de ‘ferramentas operativas’ abstratas e de caráter perigosamente homogenizador.

Tal quadro evidencia, portanto, opções valo-rativas de parte da comunidade científica, as quais têm determinado um direcionamento preferencial pela ‘operacionalização’ desses conceitos (e pela agregação de seu ‘arsenal utilitarista’), ao invés da exploração de outras possíveis interfaces me-todológicas que tangenciam melhor a realidade, fato este, bastante significativo. Com toda cautela, é preciso lembrar que a ciência constitui-se, antes de tudo, como uma das atividades mais genuínas e representativas da cultura humana, ainda que sua dimensão iluminista utópica de um promissor progresso estendido a toda população mundial te-nha se perdido no seu discurso histórico.

Há tempos já se sabe que as teorizações so-bre nexos e dissensos entre saúde, doença e cui-dado – tanto do ponto de vista coletivo, quanto individual – em suas distintas vertentes acadêmi-cas interpretativas, dependem das ‘lentes para-digmáticas’, a partir das quais enfocamos/enqua-dramos as sociedades, suas tensões e conflitos. A título de ilustração, vale rememorar a importância ocupada pelo debate acerca do ‘conceito amplia-do de saúde’, seus desamplia-dobramentos e significa-dos, no contexto histórico-político do SUS1. Esse

fato, exemplifica e sugere a potente mobilização que questões conceituais empreendem em ações concretas da vida, tanto em nível macroestrutural quanto micropolítico.

A ampliação promissora desse horizonte con-textual depende, sobremaneira, do alargamento

1 A partir do qual, destacamos o Movimento da Reforma Sa-nitária; a VIII Conferência Nacional de Saúde; a proposição das Políticas de Integralidade do cuidado e da Humanização das práticas de saúde.

das fronteiras de criticidade e das arenas acadê-mico-sociais para o (em)debate de tais questões. O exercício de politizar conceitos e ideias em es-paços de formação humana – seja na universida-de, seja nos serviços públicos de saúde – por certo, fortalece e constitui parte vital de tal processo, so-bretudo porque dialoga mais profundamente com aspectos concretos de nossa existência.

A despeito de seu posicionamento como campo disciplinar ‘emergente’ nas políticas públi-cas de saúde no país há mais de uma década, a Educação Física brasileira segue, de modo geral, sustentada por uma incipiente tradição e parcos investimentos em termos de pesquisa/pós-gradu-ação, quanto às necessárias reflexões problemati-zadoras acerca da tríade saúde-doença-cuidado; tais iniciativas, se ampliadas, poderiam, talvez, gerar alternativas singulares em relação ao modo conservador de produzir, pensar e investigar as práticas em saúde, ainda predominante na área.

A compreensão da falsa dicotomia e da com-plementaridade entre os significados, que mais aproximam do que afastam ‘saúde’ e ‘doença’, e do entrelaçamento representativo/mediador que ambas assumem nas práticas do cuidado, trazem aportes epistemológicos, políticos e praxiológicos fundamentais à Educação Física, sobretudo, em termos de sua inserção contemporânea nas esfe-ras dos serviços públicos de saúde.

5 REFERÊNCIAS

ALMEIDA-FILHO, N. O que é saúde? Rio de Janeiro: Fiocruz, 2011.

BERLINGUER, G. A doença. São Paulo: Cebes/Hucitec, 1988. Disponível em: http://www.docvirt.com/docreader.net/docre-ader.aspx?bib=CEBESLIVROS&Pasta=A.

BREILH, J. Epidemiologia: economia, política e saúde. São Paulo: Unesp/Hucitec. 1991.

CANGUILHEM, G. O normal e o patológico. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002.

CONRAD, P. The medicalization of society: on the trans-formation of the human conditions into treatable disorders. Baltimore: The Johns Hopkins University, 2007.

DEJOURS, C. A loucura do trabalho. 5. ed. São Paulo: Cor-tez, 2002.

ENGELS, F. A situação da classe trabalhadora na

Ingla-terra. 2. ed. São Paulo: Global. 1988.

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Caderno de Educação Física (ISSN 1676-2533 | e-ISSN 1983-8883) 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1982.

LEWIS, A. A saúde como conceito social. Physis, v. 8, n. 1, p. 151-174, 1998.

MOURA, D. Saúde não se dá, conquista-se. São Paulo: Hucitec, 1989.

NOGUEIRA, R.P. (Org.). Determinação social da saúde e

reforma sanitária. Rio de Janeiro: Cebes, 2010.

RIGO, L.C.; PARDO, E.R.; SILVEIRA, T.T. Reinventando o con-ceito de saúde. In: BAGRICHEVSKY, M.; ESTEVÃO, A.; PALMA, A. (Org.). A saúde em debate na educação física – volume 3. Ilhéus: Editus. 2007. p. 155-171.

_______________________________________ Correspondência:

Autor: Marcos Bagrichevsky

E-mail: marcos_bagrichevsky@yahoo.com.br

Recebido em 19 de agosto de 2012. Aceito em 28 de setembro de 2012.

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