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DE INIMIGO PÚBLICO A PROTETOR: AS MULTIFACETAS DO PRIMEIRO COMANDO DA CAPITAL

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742 DE INIMIGO PÚBLICO A PROTETOR: AS MULTIFACETAS DO PRIMEIRO

COMANDO DA CAPITAL

Matheus Henrique de Oliveira [1] Resumo: Neste trabalho busca-se analisar, de forma objetiva, o contexto de surgimento e expansão do Primeiro Comando da Capital, para estabelecer um breve diagnóstico sobre o caráter multifacetado da organização enquanto facção criminosa hegemônica no Brasil. A partir das divergências havidas entre os estudiosos e as versões apresentadas pela mídia e pelo próprio Estado, traça-se uma análise crítica da atuação estatal e os resultados práticos de suas políticas criminais no crime organizado. O estudo, de caráter teórico, foi guiado pela abordagem qualitativa e pelo levantamento bibliográfico sobre o tema, buscando esclarecer, ainda que de forma breve, as razões pelas quais o Primeiro Comando da Capital prosperou, inclusive para além dos limites territoriais do Brasil, apesar da forte repressão do Estado por sobre seus líderes.

Palavras-chave: Violência. PCC. Crime organizado. Introdução

Enquanto facção criminosa reconhecida em razão de suas atuação criminosa em âmbito nacional e internacional, envolvendo de roubo a banco a tráfico de armas ou de drogas, é fato que o PCC atualmente transcendeu a fronteira do Brasil, e já opera não só em outros países da América do Sul, importantes na rota do tráfico de cocaína, mas também em outros continentes, como Europa, Ásia e Oriente Médio.

Diante de sua expansão, se comparado a outras facções, o PCC se destaca enquanto facção, justamente pela sua hegemonia dentro do estado de São Paulo, que acabou por transpor os limites fronteiriços do Brasil.

Para entender o fenômeno PCC, antes de mais nada, é de suma importância entender o contexto em que surge, sob quais circunstâncias, e o que levou tal facção a se distinguir das inúmeras outras que existem em território brasileiro. Em duas oportunidades, o Comando colocou em xeque a política de segurança pública do estado de São Paulo, a dizer: a megarrebelião de 2001, e o “salve geral” de 2006, duas situações onde as forças de segurança pública assistiram a uma organizada ação, simultânea, em dezenas de presídios, comandadas e regidas pelas lideranças dessa facção via telefone celular.

O PCC deve ser estudado, ainda, enquanto fenômeno social. Não se trata exatamente da proposta original desse artigo, mas em alguns momentos, tratar-se-á da ineficiência estatal

[1] Estudante de Direito na Universidade Estadual de Londrina. E-mail: matheuss.075@gmail.com. Bolsista

vinculado ao projeto de pesquisa e extensão “Juventude e violência: da violação à garantia de direitos” (MEC/ProExt/SESU).

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743 enquanto razão para surgimento das facções criminosas, e do fracasso de suas políticas de combate enquanto tentativa de desbaratar a facção.

1. Contexto de surgimento, expansão e consolidação da hegemonia do PCC enquanto facção dominante em São Paulo

A violência dentro do sistema prisional é uma constante. O sistema oprime o preso através das péssimas condições de sobrevivência dentro de um presídio, da comida, dos locais vexatórios reservados às visitas de parentes, tudo isso aliado a violência dos próprios agentes prisionais, das polícias, da própria sociedade que exclui e marginaliza o egresso do sistema prisional.

Nos presídios durante período “pré-PCC” a violência, o consumo de drogas, incluindo o crack, dificultavam a convivência dentro das superlotadas celas. Presos disputavam entre si o controle político não só da própria cela e de quem poderia e quem não poderia dormir nas poucas camas disponíveis, mas também o controle político do próprio presídio. Camila Dias delimita essa realidade:

O universo prisional era regido pela chamada lei do mais forte, ou seja, os presos portadores de maior vantagem física, de mais força e corpo avantajado, detinham uma posição social proeminente a partir da qual podiam subjugar os mais fracos, constituir alianças, dar ou vender proteção a alguns, a par de extorquir, violentar e matar aqueles que oferecessem

resistência a seu mando.Além da força física individual, outro elemento que

conferia posição de destaque ao seu detentor era a venda de drogas. Não apenas pelos ganhos financeiros, que abriam oportunidades para uma série de outros ganhos – na dinâmica da economia delinquente para a qual chama atenção Coelho (2005) – mas também pelo exército que formavam a partir dos detentos dependentes de drogas e sem condições de pagar suas dívidas, ficando à disposição do traficante para serem usados da maneira que melhor lhe conviesse. (DIAS, 2011, p. 186)

A forma como o sistema prisional bestializou o preso afasta a prática da teoria. Torna distante e imaginário o ideal de reintegração social previsto pela Lei de Execução Penal (Lei n. 7.210/1984), em seu art. 1º: “A execução penal tem por objetivo efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado”. Dias, sintetiza a dificuldade de aplicação das importantes previsões existentes na LEP:

A promulgação da Lei de Execução Penal (LEP) representou um enorme avanço na garantia dos direitos constitucionais da população encarcerada e, ao mesmo tempo, expressou a impossibilidade prática de cumprimento dos

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dispositivos nela elencados. A LEP emergiu como um conjunto ideal de medidas para a execução penal que nunca se chegou sequer a ser tentado, tamanha a discrepância entre o que está previsto na letra da lei e a realidade das instituições prisionais no Brasil. 98 A promulgação da LEP em 1984 é representativa de um (curto) período em que os direitos humanos estiveram no cerne do debate público[...]. (DIAS, 2011, p. 97)

E a falta de interesse pelos direitos humanos não vinha só do Estado. A própria população apresenta resistência ao uso de práticas de direitos humanos dentro de estabelecimentos prisionais. Há, na visão das massas, a ideia de que o criminoso é a origem do problema, e não mero reflexo de outro, e para a solução do problema, deve-se eliminar a causa (o criminoso). Feltran (2018, p. 177) assevera, assinalando a provável subnotificação de incidentes, que dados oficiais do período, demonstravam um média de 550 mortes cometidas por policiais nos anos de 1989 e 1990, subindo para nada mais do que 1140 casos em 1991 e 1470 em 1992, sendo estas as mais altas taxas de letalidade policial na história do estado de São Paulo.

O aumento da violência policial na década de 1990, em especial contra pobres e pretos, significa nada mais do que o recrudescimento das políticas de direitos humanos, que acaba por ter seu ponto máximo no massacre do Carandiru, onde 111 presos foram covardemente assassinados pela polícia militar. Tal massacre ilustra a forma pela qual esse modo de pensamento atroz alcançou e ganhou força na esfera do Poder Executivo no estado de São Paulo. O responsável pela ação policial que resultou no massacre, o coronel Ubiratan Guimarães, da Polícia Militar de São Paulo, acabou eleito deputado estadual por São Paulo, com 50.000 votos, utilizando como número eleitoral a sigla “14.111”, relativa ao número de mortos no massacre que comandou. (FELTRAN, 2018, p. 178).

O massacre do Carandiru, portanto, é um marco histórico de relevante importância para o surgimento e expansão das ideias do Primeiro Comando da Capital em São Paulo. Em festejada obra, Gabriel Feltran destaca:

Uma parte significativa da população, entretanto, regozijava-se em silêncio sorridente com o episódio. Nos balcões de padaria ou salões de barbearia, era essa a visão dominante. Considerava-se que a morte de bandidos, de presidiários, ainda mais os que se amotinam, era justificável. A sociedade se tornaria mais segura a cada uma dessas mortes. E, acima de tudo, estava-se demonstrando quem mandava: o governo, o Estado, a polícia. (FELTRAN, 2018, p. 177)

Nesse cenário violento e selvagem que era o ambiente prisional, surge, em 1993, de um grupo de internos da Casa de Custódia de Taubaté, após uma violenta briga, com mortes, durante um campeonato de futebol onde se enfrentaram Comando da Capital e Comando do

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745 Interior. Cientes de que seriam fortemente retaliados pela direção do presídio em razão das mortes, uniram-se sob um código de conduta: “Quem ofender um de nós ofenderá a todos, somos o time do PCC, os fundadores do Primeiro Comando da Capital. Na nossa união ninguém mexe”. (DIAS, 2011, p. 167)

Motivados por uma sensível consciência de classe, a ideia original do Primeiro Comando da Capital era de acabar com a violência entre presos. Sua ideologia, de acordo com Feltran, surge com a proposta de resolução dos problemas práticos dos presos:

O uso da força se faz em última instância [...] Para qualquer fita errada, qualquer treta, qualquer opressão de preso contra preso, os irmãos batizados no Comando seriam mediadores de debates, e decidiriam juntos quem estava certo [...] Os efeitos práticos dessa política interessavam aos presos. Na disciplina do PCC foram interditados o estupro, o homicídio considerado injusto, e, anos mais tarde, aboliu-se o crack em todas as cadeias da facção no estado de São Paulo. (FELTRAN, 2018, p. 18) (grifos no original)

Através dos debates e da resolução pacífica de conflitos, usando a pena capital apenas em casos extremos, o Comando não só atuou para resolver uma problemática posta do convívio no presídio, mas também se consolidou no poder de mediador. Os irmãos do Comando passaram a ser vistos como pessoas dignas de respeito, ponderados, justos, e aqueles em quem os demais presos deveriam buscar ajuda em caso de conflito, sendo deles a última palavra sobre o que seria o certo. Feltran, assevera:

O PCC, para elas [pessoas entrevistadas pelo autor], é considerado o instituidor de uma lei justa nas cadeias, que as transformaram em lugares habitáveis. Foi dessa forma – produzindo governo, oferecendo justiça e segurança, mediando conflitos quando possível, matando os considerados inimigos depois de serem decretados em debate e instituindo regras comuns de convivência, bons para a maioria dos presos – que os irmãos do PCC se tornaram populares nas prisões do estado durante os anos 1990. Por conta dessa popularidade, a maioria dos que iam presos declarava proximidade ao Comando, de modo a estar num lugar regrado. (FELTRAN, 2018, p. 184)

Boa parte da ideologia inicial do PCC, e que, portanto, contribuiu de forma considerável para sua expansão dentro dos presídios, é este ideal de que lhe dota seu próprio estatuto, qual seja a criação de alternativas que possibilitem a assistência da facção aos seus membros, assistência essa que oferece, de certa forma, proteção contra as arbitrariedades ou omissões do Estado, seus agentes, e facções rivais. (ADORNO; SALLA, 2007)

O primeiro movimento do Comando que atraiu os olhos da população, através da mídia, foram as rebeliões de 18 de fevereiro de 2001. A novidade era que o presídio rebelado não era o único foco da mídia: em todo o estado de São Paulo, de forma inédita, 29 unidades

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746 prisionais se rebelaram ao mesmo tempo, em 19 municípios. As rebeliões foram a resposta a uma temerária política da segurança pública de São Paulo: a de espalhar as lideranças do PCC em diferentes presídios não só ao redor do estado de São Paulo, mas também ao redor do país. (FELTRAN, 2018, p. 24).

A megarrebelião de 2001, como ficou conhecida, só se tornou possível graças a um forte aliado do crime: o telefone celular. Dias (2011, p. 69) afirma que a articulação e o planejamento necessários para provocar a megarrebelião de 2001 só foi possível com o uso massivo de aparelhos celulares. Feltran (2018, p. 25) atribui a Sombra, uma das lideranças do PCC, o salve, via celular, que iniciou a megarrebelião de 2001.

De 1991 a 2001, estabelece-se a primeira etapa de expansão do Comando, com forte base na violência e em sua espetacularização, em acertos de conta sangrentos e carregados de simbologia, para além do caráter simplesmente instrumental da violência, de eliminação de desafetos, mas também pela sua construção simbólica, como forma de reforçar o poder do PCC. A segunda etapa, que ocorre pela superexposição do Comando pela mídia, após a megarrebelião de 2001, surte dois efeitos imediatos: a tentativa de resposta do governo, através da criação do Regime Disciplinar Diferenciado (RDD) e, de dentro do sistema, o retorno é positivo para o PCC, fortalecendo-o enquanto facção hegemônica e impulsionando sua disseminação dentro do sistema carcerário. (DIAS, 2011)

Em 2006 há novo conflito, de proporção ainda maior: eclode outra megarrebelião, dessa vez simultaneamente em 74 unidades prisionais, além de centenas de ataques às forças de segurança, fora das grades dos presídios. Prédios públicos e privados foram alvejados, ônibus queimados, destacamentos policiais atacados. O acontecimento ficou conhecido como “salve geral”, e foi mais uma resposta do PCC a decisão do estado de transferir suas lideranças para presídios de segurança máxima. Os relatos denotam três dias de “terror”, com grande participação da mídia e de boatos na disseminação do medo. No dia 15 de maio de 2016, houve um toque de recolher tácito, a cidade “parou”. O episódio de maio de 2016 deixou claro que havia uma potência se hegemonizando dentro e fora dos presídios. (DIAS, 2011, p. 174; FELTRAN, 2018, p. 250)

Após o período conflituoso, em especial nos últimos doze anos, o interesse do Comando pela paz é visível. Desde 2006, não houve qualquer crise penitenciária sequer capaz de ser comparada aos eventos de 2001 e 2006. Dias (2011, p. 175) sustenta que a atual estabilidade do sistema carcerário significa nada mais do que a consolidação e estabilização da hegemonia social e política do Primeiro Comando da Capital, e isso não só dentro do

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747 sistema penitenciário, mas também através da neutralização de seus inimigos e a estabilização dos conflitos internos dentro de sua cúpula.

2. As multifacetas da expansão

Por óbvio, as atividades do Primeiro Comando da Capital não se resumem a mediação de conflitos e estabelecimento de uma lógica de debates e regulação das relações entre internos do sistema penitenciário. As atividades desenvolvidas também não se restringem às ilegais. Há uma forte atuação de irmãos do PCC dentro da cadeia comercial, em atividades não necessariamente tangentes ao crime.

Ferro-velho, revendedora de carros usados, hotel. Por trás de qualquer dessas atividades comerciais pode haver um irmão do PCC. Entretanto, a questão não pode nem se deve reduzir à ótica comercial. Há muito mais por trás da ideologia do PCC do que o simples enriquecimento, e com essa ótica reducionista não seria possível analisar a integralidade do que significa o Primeiro Comando da Capital, sob todos os ângulos e perspectivas necessárias para uma real compreensão.

Fato é que nesse artigo, não se busca chegar a uma definição completa desta facção, até porque isso seria impossível. Enquanto seres que dependemos da linguagem para nos comunicar, e o processo de conhecimento está intimamente ligado a interpretação de acontecimentos no mundo fenomênico que são particularísticos a cada ser individualmente considerado, chegamos a inevitável conclusão de que cada interpretação e cada entendimento está submetido e convergirá com a experiência de cada indivíduo. Enquanto para o leitor uma facção criminosa como o Primeiro Comando da Capital possa significar X, um policial militar lotado dentro de uma comunidade do PCC pode extrair desse mesmo objeto a interpretação Y, ao mesmo tempo que um garoto sem-teto, que ocasionalmente faz corres para o Comando para conseguir alguns trocados, vê na facção um abrigo que lhe foi negado pela sociedade. E dessa premissa se pode continuar extraindo infinitos significados, como para um detento que está preso em um presídio submetido à lógica política do PCC, ou para a família de outro detento, bem como para alguém que more há décadas em um bairro controlado pelo PCC.

Nesse sentido, de irretocável clareza é a lição trazida por Aurora Tomazini de Carvalho:

Não há conhecimento sem sistema de referência, pois o ato de conhecer se estabelece por meio de relações associativas, condicionadas pelo horizonte cultural do sujeito cognoscente e determinadas pelas coordenadas de tempo e

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espaço em que são processadas. Conhecemos um objeto porque o identificamos em relação a outros elementos, estabelecendo vínculos capazes de delimitar seu significado. Assim, todo nosso conhecimento do mundo encontra-se determinado pelos referencias destas associações que, por sua vez, são marcadas por nossas vivências. (CARVALHO, 2009, p. 32)

Desta forma, falar em se chegar a uma definição completa a respeito do que seria essa complexa teia de atividades legais e ilegais, permeadas por um código de conduta rígido, por hierarquia, normas internas e sociais, além das próprias relações de poder internas e desconhecidas ao autor e a todos aqueles que não inserido nessa realidade, seria mais do que a limitada possibilidade de debate de um artigo poderia proporcionar.

O debate limitar-se-á, pois, a uma exposição concisa sobre essa intrincada organização criminosa.

2.1 O tráfico de drogas

Principal atividade praticada por boa parte das facções criminosas, o tráfico de drogas encontrou no Brasil, principalmente no início da década de 1970, um corredor de escoamento de sua mercadoria, levando mais alguns anos para enxergá-lo como um mercado consumidor em potencial, lado a lado de países europeus e os Estados Unidos da América. (DIAS, 2011)

O motivo que levou as facções criminosas a desenvolverem o tráfico de drogas enquanto atividade essencial é clara: a alta lucratividade do negócio. Com mercados desregulados, uma atuação estatal quase nula para tratar dependentes e combater o problema das drogas, o tráfico de drogas se encontrou, a partir da difusão e popularização da cocaína, num mercado com altíssimo índice de lucratividade e uma alta demanda.

O tráfico de drogas, enquanto mercado ilícito e altamente lucrativo, dá àqueles que compõem suas fileiras, oportunidades melhores do que aquelas que encontrariam no mercado de trabalho formal. Ganhos expressivos, oportunidades, status: tudo aquilo que o mercado de trabalho tradicional não lhes ofereceria.

Quem são aqueles que respondem ao aceno do Primeiro Comando da Capital? Gabriel Feltran traz essa resposta:

São homens e mulheres, mas também adolescentes e mesmo crianças que passaram anos a fio vendo o sol nascer e sumir na rotina monótona de barracos de madeirite, celas escuras e pátios de concreto; que tiveram vidas jogadas no ócio, no jogo, na rua e na paranoia repetitiva de vingança [...] a cabeça ativada pelos entorpecentes do tempo, do desalento, da erva, do ódio, do pó. (FELTRAN, 2018, p. 48)

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749 A proteção que o Comando pode oferecer é outro elemento atrativo. Crianças e adolescentes sem perspectiva, em situação de completo abandono, de rua, encontram na facção meio de subsistência e um ainda um aliado, um protetor. Feltran (2018) relata que crianças com sete anos já fazem pequenas entregas de drogas na região central de São Paulo; adolescentes, trabalhando como vapores, ganham comissões de 30% a 40% na venda de drogas. Se bem-sucedidos em suas carreiras criminais, podem um dia chegar a estimada posição de gerente da “boca”. A realidade desses jovens é de conflito. Conflito com o cidadão médio, conflito com os policiais, conflito com a realidade e com o sistema que os marginaliza e exclui. Ao citar um jovem de sete anos, que conheceu no centro de São Paulo e chama de “Pingo”, Gabriel Feltran, argumenta:

Pingo, aos sete anos, não pertence, portanto, à mesma comunidade e ao mesmo mundo dos meus filhos ou de tantas outras crianças que passam pelo largo com suas mochilas, no conforto de carros com os vidros fechados e ar-condicionado ligado. Não há democracia. Direitos ou mesmo valores que os posicionem do mesmo lado da fronteira. Ele está do lado de lá, aos sete anos; por isso, a Ronda Escolar vai se fixar nele e em seus parceiros, para proteger a ordem; Bia [uma vapor, de vinte anos] não é uma trabalhadora, não terá emprego formal, embora esteja envolvida em atividades mercantis que gerem renda para muita gente[...] ela não será considera uma jovem empreendedora de sucesso. Não será exemplo de autonomia para as meninas que lutam por igualdade de gênero. (FELTRAN, 2018, p. 68)

Esta problemática escancara e explica agrava os altos índices de violência contra crianças, jovens e adolescentes, que engrossam as fileiras das vítimas de políticas de segurança pública fracassadas, como a política da “guerra às drogas”, que tem um custo multibilionário aos cofres públicos, isso sem mencionar as vidas perdidas em ambos os lados da guerra, além dos inocentes que, diuturnamente, convivem com as mazelas e as dificuldades que lhe são, nada menos, que reflexos dessas políticas. Adorno e Salla, explicam os efeitos dessas políticas nos altos índices de violência no Brasil:

No Brasil, esse cenário é ademais agravado pela crise da segurança pública, que vem se arrastando ao menos por três décadas. Os crimes cresceram e se tornaram mais violentos; a criminalidade organizada se disseminou pela sociedade alcançando atividades econômicas muito além dos tradicionais crimes contra o patrimônio, aumentando as taxas de homicídios, sobretudo entre adolescentes e jovens adultos, e desorganizando modos de vida social e padrões de sociabilidade inter e entre classes sociais. (ADORNO; SALLA, 2007, p. 4)

Enquanto a sociedade os ignora, a polícia os persegue, Pingo vê, em quem está no

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corres, uma sustentação num mundo de abandono, uma oportunidade para sair de sua

condição de rua, da miséria, talvez a única oportunidade disponível. (FELTRAN, 2018) Desta maneira, enquanto toda uma sociedade abandonou Pingo, o PCC abriu-lhe portas. Trata-se, obviamente, de um investimento de longo prazo. Dando oportunidades dentro de sua cadeia criminosa para esse garoto de sete anos, em menos de dez anos o PCC possuirá em suas fileiras um jovem com vasta experiência no mundo do crime. Um injustiçado, excluído, marginalizado, que encontrou no crime, em toda a violência e riscos inerentes a essa forma de vida, uma maneira de ter melhores condições de vida. Seria possível esperar de uma criança de sete anos, que viveu ao menos metade de sua vida na rua, sofrendo violência policial, violência de lojistas e comerciantes, violência simbólica da sociedade que finge que ele não existe, uma atitude diferente? Que encontrasse um caminho diferente para sobreviver, que não este?

Esta forma que o PCC encontrou para aliciar menores, é apenas mais uma das “zonas cinzentas” de omissão do Estado, na qual o PCC encontrou solo fértil para expansão. É a partir do acolhimento de menores que não foram acolhidos pela família, pelo Estado ou pela sociedade, que o Comando investe em longo prazo para formar um exército. Trata-se, não de um acerto do PCC, mas antes de tudo, do fracasso das políticas sociais do Estado brasileiro, de inclusão social, de oferecimento de iguais oportunidades e resgate de crianças em situação de rua.

2.2 O roubo de veículos

De acordo com Feltran (2018) o mercado do roubo de veículos, bem como a revenda de peças usadas, compensa, e muito para os envolvidos na cadeia do crime. E compensa muito mais para terceiros que não tem relação direta com o furto ou roubo do que os próprios envolvidos no crime.

Pode-se perguntar: para onde vão os veículos roubados? Os veículos rapidamente deixam a mão do responsável pelo roubo ou furto e se tornam mercadoria. Acionam os atores envolvidos na cena do mercado negro do roubo de veículos: os da desmontagem para venda de autopeças, de revenda de veículos usados e os de tráfico, seja de drogas ou de armas. Entregues a receptadores, metade dos veículos roubados desaparece. Os recuperados, caso possuam seguro, passado o tempo para pagamento da indenização passam a ser propriedade da seguradora (cerca de 80% dos casos), que os levam a leilão. Se o veículo for recuperado, as perdas da seguradora, com o pagamento de indenização, cai de 196 mil reais (usando como

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751 exemplo uma Hilux) para 50 mil reais. Por outro lado, avaliada em 196 mil reais, a mesma Hilux pode render 584 mil reais se suas peças forem vendidas separadamente. (FELTRAN, 2018)

O mercado de veículos roubados envolve diversos atores: os próprios ladrões; o mercado de desmanche; ferros-velhos; as próprias seguradoras e seus leiloeiros. Há toda uma série de envolvidos que lucram, legalmente, com o mercado do crime. Feltran tece um pertinente comentário a respeito da produção desse mercado legal que se alimenta e lucra com o crime:

Quando se apreende maconha ou cocaína, a carga é destruída, evitando a sua revenda. Em outros países, após roubo ou furto de veículos e armas, os bens recuperados são destruídos, evitando a conformação desses mercados. No Brasil, veículos e armas apreendidos alimentam mercados muito importantes economicamente, mas que se transformam numa máquina de produção desigualdade. Basta comparar os lucros dos agentes de topo e os de base da cadeia mercantil para verificar o fenômeno. O leiloeiro ganha 10 mil reais com a Hilux, e vende cem carros por dia. O policial que troca tiros com o ladrão ganha entre 3 mil e 4 mil por mês. O ladrão rouba um ou dois carros por semana e ganha novecentos reais em cada carro, muitas vezes complementando a renda que obtém do tráfico de drogas e trabalhos informais. O trabalhador com a mesma qualificação do ladrão que rouba Hilux trabalha o mês todo por novecentos reais. (FELTRAN, 2018, p. 114)

Dados mostram que apenas no estado de São Paulo, no ano de 2014, 221.532 veículos foram subtraídos. As seguradoras estimam que 60% desses veículos tenham alimentado desmanches, 30% tenham sido direcionados as revendas e 10% tenham sido destinados a fronteira do Brasil. Esses números mostram o tamanho desse mercado, e sua capacidade de gerar riqueza aos envolvidos na sua cadeia mercantil. Se não fosse lucrativo, por óbvio os números não seriam tão elevados.

Há inclusive interesse dos atores legais do mercado dos automóveis nesse mercado de veículos roubados. Feltran (2018, p. 122) aduz que um de seus interlocutores, funcionário de uma montadora sueca de caminhões, frequentava bairros da Zona Leste da cidade de São Paulo, conhecidos pelo mercado ilegal de autopeças, e sua atuação consistia em tomar nota dos preços praticados pelo mercado ilegal, de modo a orientar a política de preços oficial da empresa. Com essa menção, conclui que a existência de um mercado “original” e outro “paralelo” é fictícia: ambos os mercados se inter-relacionam de forma que é impossível separá-los.

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752 Considerações finais

O Primeiro Comando da Capital, diante de todo o exposto neste trabalho, parece ser uma facção criminosa que opera dentro das zonas omissivas do Estado. Muito embora a redemocratização tenha trazido a promulgação da Constituição Federal de 1988, que prometeu a integração nacional e o combate do Estado em prol da construção de uma democracia justa, humana e igualitária, o que se observa é o completo fracasso do Estado e de suas políticas no sentido de mitigar tais desigualdades.

Como no caso de Pingo, apesar de haver uma história por trás da situação do garoto, um fato necessariamente pode ser inferido a partir dessa situação: o garoto não teve acesso à educação, tampouco uma família capaz de lhe dar as mínimas condições de vida. Com sete anos de idade, teve de, por conta própria, encontrar uma forma de sobreviver na metrópole. Sem uma referência familiar, sem a escola, onde deveria permanecer pelo menos até os 16 anos antes de ter de trabalhar para se sustentar, a oportunidade que conseguiu foi a de arriscar sua vida, todos os dias, enfrentando a polícia e se envolvendo em pequenos delitos.

A máquina criminosa do PCC alimenta um exército de jovens vítimas da exclusão social e da falta de oportunidades, seja de educação, seja de trabalhar, dando-lhes as oportunidades de auferir renda que um emprego formal nunca lhes daria. Seja pela falta de estudo, seja em razão da própria idade, como no caso de Pingo.

Buscou-se estabelecer, de maneira genérica, as formas pelas quais o Primeiro Comando da Capital logrou se destacar e hegemonizar entre inúmeras facções existentes. Uma delas foi oferecer oportunidades a quem nunca as teve. A segunda, por exemplo, residiu na sua capacidade de regulamentar o hostil ambiente carcerário, e, dentro dessa realidade, se apresentar como algo interessante para a massa carcerária. Poderia haver mais, como, por exemplo, a rede de contatos que o Comando oferece para seus integrantes, dentro das incontáveis modalidades criminosas: armas, veículos roubados, “know-how” do crime, entre outras inúmeras oportunidades. As outras, inúmeras, não puderam ser abordadas em razão de sua infinitude.

Mais do que isso, um dos objetivos que norteou a produção deste trabalho é a ideia de demonstrar a dificuldade que se é conceituar ou definir o Primeiro Comando da Capital, uma vez que cada pessoa, envolvida ou não no “mundo do crime” terá uma interpretação única para a facção. Um familiar de preso pode ter uma boa visão da facção, uma vez que melhorou as condições de vida de seu parente, o próprio preso apresentará sua versão, enquanto um policial militar pode ter outra interpretação, ao mesmo tempo que o cidadão de classe alta,

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753 assaltado no semáforo, apresentará outra definição acerca do PCC. São questões únicas, relacionadas intimamente as experiências particulares de cada indivíduo, o que dificulta que se chegue num consenso acerca de conceito e definição.

Emerge como principal razão para o surgimento não só do PCC, mas das facções criminosas como um todo, a ineficiência estatal no trato com o ser humano, seja preventivamente, através do serviço social, seja no âmbito da recuperação e reintegração social dentro dos presídios, que é o ideal previsto pela Lei de Execução Penal. A falta de interesse ou fracasso de políticas estatais motivou grupos de lideranças criminosas a se organizarem de modo a suprir a lacuna deixada pelo Estado.

Aponta-se, em razão disso, o Estado como principal responsável pelo surgimento não só do Primeiro Comando da Capital, mas do Comando Vermelho, do Comando Revolucionário Brasileiro Criminalidade, da facção Amigos dos Amigos, Terceiro Comando Puro, e mais uma infinidade de facções que surgem e deixam de existir todos os dias na realidade prisional brasileira.

É preciso uma revolução humanística na forma de pensar e agir do Estado no âmbito de políticas públicas e carcerárias para que essa realidade mude, e não se corra um risco de surgir algo ainda maior do que hoje é o Primeiro Comando da Capital. Antes de ser facção hegemônica no Brasil, o Primeiro Comando da Capital escancara o fracasso do Estado Democrático de Direito no Brasil.

Referências

ADORNO, Sérgio; SALLA, Fernando. Criminalidade organizada nas prisões e os ataques do PCC. Estud. av., São Paulo , v. 21, n. 61, p. 7-29, dez. 2007. Disponível em:

<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40142007000300002&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 18 nov. 2018. http://dx.doi.org/10.1590/S0103-40142007000300002.

BRASIL. Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984. Institui a Lei de Execução Penal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L7210.htm>. Acesso em: 16 nov. 2018. CARVALHO, Aurora Tomazini de. Teoria Geral do Direito: o Constructivismo Lógico-Semântico. 2009. 623 f. Tese (Doutorado em Direito) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2009.

DIAS, Camila Caldeira Nunes. Da pulverização ao monopólio da violência: expansão e consolidação do Primeiro Comando da Capital (PCC) no sistema carcerário paulista. 2011. 386 f. Tese (Doutorado em Sociologia) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011.

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754 FELTRAN, Gabriel. Irmãos: uma história do PCC. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.

Referências

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