• Nenhum resultado encontrado

Jurema: Raízes Etéreas

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "Jurema: Raízes Etéreas"

Copied!
126
0
0

Texto

(1)

2

Universidade Federal de Campina Grande Campus I - Campina Grande (PB)

Centro de Humanidades

Departamento de Sociologia e Antropologia Curso de Ciências Sociais

Marcos Alexandre dos Santos Albuquerque

DESTREZA E SENSIBILIDADE: os vários sujeitos da Jurema

(2)

DESTREZA E SENSIBILIDADE: os vários sujeitos da Jurema

(As Práticas Rituais e os Diversos Usos de um Enteógeno Nordestino)

Marcos Alexandre dos Santos Albuquerque

Monografia apresentada em atendimento às exigências da disciplina “Estágio Supervisionado em Pesquisa Antropológica II” e para a obtenção do grau de Bacharel em Ciências Sociais, com área de concentração em Antropologia, pela Universidade Federal de Campina Grande, Campus I, Campina Grande em outubro de 2002.

(3)

B A N C A E X A M I N A D O R A

____________________________________________________________ Prof. Dr. Rodrigo de Azeredo Grünewald (DSA – UFCG - Campus I)

(Orientador)

________________________________________________________ Prof. Dr. Márcio de Matos Caniello – (DSA – UFCG - Campus I)

(Examinador)

________________________________________________________________ Prof.ª Dr.ª Magnólia Gibson Cabral da Silva – (DSA - UFCG - Campus I)

(4)

dedicado ao Amor... quando aprendido por Pai Mãe e Ny.

dedicado ao imprescindível Amar...

quando conforta meu coração e alma, Waleska

(5)

SUMÁRIO

AGRADECIMENTOS...1

INTRODUÇÃO...2

CAPÍTULO I – A Jurema Indígena...19

CAPÍTULO I I – Os Juremeiros de Alhandra, a Umbanda e o Maracatu...46

CAPÍTULO I I I– A Jurema no contexto metropolitano contemporâneo...77

CONSIDERAÇÕES FINAIS...111

(6)

AGRADECIMENTOS

AGRADECIMENTOS

AGRADECIMENTOS

AGRADECIMENTOS

Foram muitas as pessoas que me ajudaram ao longo deste trabalho e também no curso de Ciências Sociais (Antropologia) do qual ele é resultado. Gostaria aqui de expressar meus agradecimentos a todos eles. Principalmente ao Programa Especial de Treinamento em Antropologia (PET-Antropologia). Por tudo que vivi e aprendi no tempo que passei junto a bons amigos neste programa. Aos tutores Mércia R. Baptista, Rogério Zeferino Nascimento (também acredito que somos possíveis – Anarquia Sempre), e a Elizabeth Cristina A. Lima (Bebete). A tríade vara – Eduardo Gusmão (vara-mor), Greilson Lima e Martinho Tota. A Malba Kaline, Lídia Arnaud e Karlla Araújo. Aos professores Sávio Rosa e Ubiraci de S. Braga, pelo entendimento de que o desejo é algo viável. Aos protagonistas deste trabalho: Augusto Gustavo de Oliveira, Dona Ana e toda comunidade Atikum. Cacique José Bernardino e ao pajé José Moisés e a toda comunidade Kapinawá. Ao pajé Kariri Júlio Suíra e toda comunidade Kariri-Xocó. Ao pajé Auro e toda comunidade Karapotó. A Maria das Dores da Silva Guimarães (Dona Dora). A Roberta e todos que fazem o Terreiro de Umbanda Oxum Talademi. A Severina Maria da Silva (Dona Biu) a ao Maracatu Rural Cambinda Brasileira. A Philippe Bandeira de Mello, e todos que fazem a Arca da Montanha Azul, Leonor Ramos Chaves e esposo, Ali Zeitoun, Marco Tromboni de S. Nascimento e Boris. Especial agradecimento a Clarice N. da Mota e Estevão Palitot (ensinou-me muito sobre nossos índios). A Sévia Sumaia. Ao LACED/Museu Nacional e Fundação Ford pelos recursos disponibilizados para o survey entre os índios do nordeste. Aos meus pais (Marcos A. Albuquerque e Normândia R. dos S. Albuquerque) por terem me ajudado no esforço da pesquisa. Nycolas (Ny) meu irmão, “por me deixar usar o computador” (sic)! A Waleska de A. Aureliano, inominável paixão, por ter me ajudado na pesquisa de campo, pela viagem compartilhada ao Rio de Janeiro, por me ajudar nas transcrições das músicas. E por fim ao amigo e orientador Rodrigo de A. Grünewald por dividir comigo o esforço da pesquisa de campo, do trabalho de escrever este texto e por me proporcionar conhecer a Jurema Sagrada.

(7)

I N T R O D U Ç Ã O

I N T R O D U Ç Ã O

I N T R O D U Ç Ã O

I N T R O D U Ç Ã O

“Tomei muito cauim (cachaça com jurema) em catimbós nordestinos. A jurema como que potencializa a ação do álcool, dando um sentimento de plena alegria, de paz com o mundo e com nós mesmos, de empatia com todas as criaturas. Acredito que, se tivesse tendência mística, eu poderia experimentar então o êxtase da comunhão celestial.”

Sangirardi Jr. (1983:202)

A jurema é uma planta arbustiva que no Brasil ocorre principalmente na região nordeste. Ela é investida por parte da população local, e por outras de fora, de um profundo entendimento simbólico. A riqueza simbólica da jurema ultrapassa vários contextos sociais. A jurema é reconhecida como planta sagrada e como planta de poderes e mistérios por vários sujeitos em contextos sociais os mais diversos. Este texto interessa em trazer para o campo da antropologia um recorte desta produção simbólica. Aqui se pretende apresentar os símbolos e as representações sobre a jurema em contextos bastante diversos. Como também os ritos nos quais estes símbolos ligados à jurema são apresentados e tematizados. O objeto deste trabalho, então, é a construção cultural, principalmente simbólica, de uma planta chamada jurema, em vários contextos culturais diferentes por inúmeros sujeitos sociais.

Justifica-se a elaboração de trabalho como este, porque a pesquisa relacionada a plantas sagradas e/ou psicoativas, ou seja, que causam alteração de consciência, ou são depositárias de cultos e ritos religiosos por populações específicas, não tiveram ainda a preocupação de catalogar e identificar representações simbólicas sobre a jurema que abranjam estes símbolos para além daqueles ligados aos afro-indígenas. Aqui se relatarão estes símbolos e cultos desde os fornecidos pela cultura indígena, pela afro-descendente, chegando finalmente aos fornecidos pelos metropolitanos contemporâneos. Colocando sob um mesmo discurso etnográfico, uma mesma perspectiva interpretativa, estes vários símbolos. Este texto tem a pretensão de contribuir para o entendimento, para o maior número de exemplos e para a variedade de interpretações acerca do uso e significação

(8)

social de plantas psicoativas ou simplesmente de plantas sagradas. A jurema é o objeto singular deste trabalho, é sobre do que dela falam e fazem seus protagonistas, em vários contextos sociais, que se envereda esta pesquisa.

Escrever este registro é algo que encontra grandes motivações e também enseja muitas dificuldades. Optei por um texto livre, em que a subjetividade dos sujeitos entrevistados e apresentados fosse também a tentativa de meu próprio repertório. Gostaria que este texto fosse lido como um ensaio. Um ensaio antes de qualquer coisa não tem a pretensão de totalizar o conhecimento produzido sobre o objeto de que trata. Também acredita que sistematizar tal conhecimento é esforço ambíguo. E isso porque a subjetividade de cada autor enseja interpretações particularistas acerca do objeto que tratam.

Um esforço de interpretação destes símbolos ligados à jurema me foi a tarefa mais envolvente. Aqui cabe trazer as indicações de Geertz (1978:20), para ele, “fazer a etnografia é como tentar ler (no sentido de ‘construir uma leitura de’) um manuscrito estranho...”. O autor nos ajuda a compreender que fazer etnografia parte de um pressuposto bastante atraente e também ambíguo, relatar é inscrever um discurso, é interpretação, sobre a qual somos já a terceira ou segunda das vozes que a constroem, “Trata-se, portanto, de ficções; ficções no sentido de que são ‘algo construído’, ‘algo modelado’- o sentido original de fictio- não que sejam falsas, não-factuais ou apenas experimentos de pensamento”, (Geertz, ibid:25).

Neste sentido, o sujeito pesquisador deve situar-se, ou seja, tentar atingir o sentido dos símbolos da cultura que tenta relatar no texto. Este movimento não se revela sem algum tipo de constrangimento: “Situar-nos, um negócio enervante que só é bem sucedido parcialmente, eis no que consiste a experiência etnográfica como experiência pessoal”. E mais: “Tentar formular a base na qual se imagina, sempre excessivamente, estar-se situado, eis no que consiste o texto antropológico como empreendimento científico”, (Geertz, ibid:23). Esta ficção, portanto construída pelo sujeito pesquisador deve ser dirigida para “o alargamento do discurso humano”, (Geertz, ibid:24), porque só neste sentido a antropologia (no caso a interpretativa) se revela como produtora de conhecimento.

(9)

Parte daquele que registra estas representações, demonstrar que o encontro de subjetividades, durante o espaço de construção e resgate de informações, tem de assumir o prejuízo, ou será o crédito, de que as informações ao final de tudo serão manipuladas por aquele sujeito final, a autoridade etnográfica, o sujeito pesquisador, como bem apontou Clifford (1998a). Para este autor a produção antropológica, em sua maior parte (incluindo aí o próprio C. Geertz), sempre inscreveu o discurso nativo como uma categoria genérica, uma voz coletiva sem sujeito, uma realidade cultural única, sem ambigüidades, (Clifford, ibid:41). Em conta disto tudo, usei a sugestão deste autor para relatar minha pesquisa e compreensão sobre estes sujeitos, seus símbolos e a jurema: Uma etnografia dialógica foi tentada. Neste tipo de etnografia, aquele que escreve e interpreta o faz trazendo a voz do sujeito, o protagonista, para o corpo do texto: “Um modelo discursivo de prática etnográfica traz para o centro da cena a intersubjetividade de toda fala, juntamente com seu contexto performativo imediato”, (Clifford, ibid:43). Faz isso porque acredita que o autor como autoridade máxima no texto deve proporcionar àquele que o lê, a oportunidade de contrastar as interpretações do autor com aquelas que aquele acha devida.

Um tipo de texto assim é claramente ambíguo, ela revela um sem número de fraquezas. Mas é exatamente aí que um texto neste estilo pode fornecer alguma coisa de novo e por isso mesmo saudável. Um texto nesta categoria não pretende se comprometer com registros verdadeiros e intocáveis. Coloca o próprio autor como protagonista no diálogo fictício que constrói junto ao informante, negando por vezes a presença de outros. Por isso, Clifford (ibid:47) pôde dizer que: “O diálogo ficcional é de fato uma condensação, uma representação simplificada de complexos processos multivocais”, no qual o diálogo apenas apostaria na veracidade de um discurso a dois, quando na verdade o que se apresenta é um discurso construído entre o autor, o informante e o contexto social que os abriga nesta interação. Por isso, nesta proposta: “Uma maneira alternativa de representar essa complexidade discursiva é entender o curso geral da pesquisa como uma negociação em andamento”, (Clifford, ibid:ibidem), como também tentar construir uma etnografia polifônica, (Clifford, ibid:49), - esta mais relevante no entanto para etnografias que desejam dar conta do geral de uma sociedade. Uma posição dialógica, por tanto, é sem dúvida regida por mim, mas esforça-se por ser a tentativa de unir personagem, protagonista, com o autor, literato, no momento em que a vida e a experiência de outros são o conteúdo da narrativa

(10)

daquele de fora, que se intromete e interpreta, e talvez neste esforço sinta, uma autoridade adquirida.

Talvez neste espírito, cobre-se demasiado do leitor. Tanto porque a leitura possa parecer frágil, como também solta. Mas é ainda Clifford (ibid:57) que nos dá uma alternativa de compreensão desta estrutura narrativa, “a recente teoria literária sugere que a eficácia de um texto em fazer sentido de uma forma coerente depende menos das intenções pretendidas do autor do que da atividade criativa de um leitor”. Para não cancelar outras alternativas, pode-se apostar em outros instrumentos à mão de um leitor atento, tal como: “ler a contrapelo da voz dominante no texto, procurando outras semi-ocultas autoridades, reinterpretando as descrições, textos e citações reunidos pelo escritor”, (Clifford, ibid:ibidem). E para mover os mais intransigentes, Clifford, (ibid:58), pretende que uma apresentação textual coerente seja sinal de um modo controlador de autoridade do etnógrafo. Entendendo que para o momento é valida a idéia de que “esta imposição de coerência a um processo textual sem controle é agora inevitavelmente uma questão de escolha estratégica”, (Clifford, ibid:ibidem). Ficando assim a possibilidade de experimentalismo etnográfico, momento oportuno para permitir o enaltecimento das expectativas dialógicas e revelar o contexto relacional da construção do conhecimento.

Dentro deste espírito narrativo, a teoria clássica sociológica ou antropológica, tem uma função minimizada. É Geertz (1978:37) que nos sugere, para uma antropologia interpretativa, os elementos teóricos divergentes da postura clássica:

“a diferença (...) que surge nas ciências experimentais ou observacionais entre ‘descrição’ e ‘explicação’ aqui aparece como sendo, de forma ainda mais relativa, entre ‘inscrição’ (‘descrição densa’) e ‘especificação’ (‘diagnose’) – entre anotar o significado que as ações particulares têm para os atores cujas ações elas são e afirmar, tão explicitamente quanto nos for possível, o que o conhecimento assim atingido demonstra sobre a sociedade na qual é encontrado e, além disso, sobre a vida social como tal (...) Em etnografia, o dever da teoria é fornecer um vocabulário no qual possa ser expresso o que o ato simbólico tem a dizer sobre ele mesmo – isto é, sobre o papel da cultura na vida humana”.

Utilizando esta perspectiva, mas assumindo que ela pode ser radicalizada a partir da alegoria etnográfica indicada por Clifford (1998b), tem-se como determinante

(11)

neste trabalho, a idéia de que os pressupostos teóricos que informam a construção desta etnografia se encontram no contexto relacional da produção do conhecimento. Momento em que a narrativa etnológica e suas interpretações assumem a característica alegórica. Tal como explicado por Clifford (ibid:65):

“Um reconhecimento da alegoria enfatiza o fato de que retratos realistas, na medida em que são ‘convincentes’ ou ‘ricos’, são metáforas extensas, padrões de associações que apontam para significados adicionais coerentes (em termos teóricos, estéticos e morais). A alegoria (de maneira mais forte que a ‘interpretação’) destaca a natureza poética, tradicional e cosmológica de tais processos de escrita”.

Por isto, neste trabalho, as interpretações assumirão esta característica relacional, diminuindo assim o papel de uma teoria clássica, apontando para o intricado esforço das construções explicativas do social. Aposta-se com isso numa perspectiva que crie o entendimento muiti-focal, o tipo de interpretação entendido como metáfora, resguardo empírico das sensibilidades envolvidas. Um sistema interpretativo onde o sujeito das assertivas seja um crítico de suas próprias pretensões. Acreditando que neste movimento ele enseja uma possibilidade de conhecimento também construído nos silêncios e interstícios do discurso narrado, tanto no campo de pesquisa quanto aqui, no texto final.

Para que se dê conta destes enormes sistemas de símbolos e representações, coletaram-se informações junto a comunidades e pessoas que usam a jurema e tem por isso uma produção cultural, e, para mim, os símbolos acerca do controle e entendimento do que é a jurema. Todas as entrevistas foram realizadas em vídeo (VHS). Pretende-se, como desdobramento deste trabalho realizar um vídeo etnográfico. Com os chamados informantes, foram realizadas entrevistas nos locais de moradia destes. Quando a oportunidade se fez, realizaram-se imagens (VHS) dos cultos nos quais os entrevistados administram o conhecimento sobre a planta. Quando não se teve acesso a um destes cultos, o próprio entrevistado os narrou. O uso do vídeo como forma de registrar a fala e imagem do sujeito, do protagonista, demonstrou ser de bastante utilidade, ultrapassando em muito a usual entrevista feita com o gravador sonoro. Esta superioridade do uso do vídeo se deve ao fato de que a imagem guarda muito mais da memória viva do momento ritual ou da entrevista do que qualquer outro meio de registro. Através do uso da imagem, as

(12)

informações dadas passaram a ter uma contemporaneidade incrivelmente mais rica. A memória do pesquisador segue tranqüila os resgates da subjetividade envolvente na interação realizada em prol da produção deste trabalho.

Pequena nota sobre o trabalho de campo1

O trabalho de pesquisa começou no dia 28 de abril de 2002. Neste dia registrei em vídeo (VHS) o trabalho na casa de umbanda do tatalorixá Pai Vicente Mariano. A casa chama-se Terreiro Senhor da Bonfim Ilê de Oxum Ajamim. Localizado na cidade de Campina Grande, Paraíba. Neste dia, Vicente Mariano homenageava o mestre Antonio Pretinho, entidade que há cinqüenta e três anos “recebe”. No dia 29 seguinte, mais um trabalho, agora um Toré, foi registrado em vídeo (VHS) no mesmo terreiro. Por um certo mutismo de Pai Vicente, apenas conversas informais foram possíveis de realizar. No dia 04 de maio do mesmo ano, foi feita visita a Alhandra. Esta localidade situa-se no litoral norte da Paraíba. No local chamado de Acais, mora Maria das Dores da Silva Guimarães, conhecida por Dona Dora, ela é a memória viva dos tempos em que se faziam sistematicamente trabalhos com jurema em Alhandra. A cidade ficou conhecida nacionalmente como a “cidade dos juremeiros” (Vandezande, 1975), ela tem uma história significativa dentro do contexto religioso popular. Dona Dora mantém nítida lembrança daqueles tempos, ela é uma das últimas herdeiras da família mais importante no registro histórico do uso da jurema nos chamados “catimbós”.

No dia 23 de maio fiz visita a Feira Central de Campina Grande, neste local vendem-se subprodutos da jurema fornecidos para casas de umbanda. Conversas informais, sem nenhum tipo de registro mecânico, foram feitas com vários “erveiros”. No dia 24 do mesmo mês, realizei entrevista com a mãe de santo Roberta. Ela dirige a casa de umbanda chamada Terreiro de Umbanda Oxum Talademi, localizada na cidade de Campina Grande, Paraíba. No dia 26 seguinte foi registrado em vídeo uma festa, ocorrida nesta casa, dedicada aos pretos-velhos.

No dia 14 de junho de 2002, realizei entrevista com Philippe Bandeira de Mello na cidade do Rio de Janeiro. Ele é o fundador e diretor da casa A Arca da Montanha Azul,

1 Todas as entrevistas foram feitas em vídeo (VHS) como já falei, exetuando-se casos em que for

(13)

uma casa religiosa sincrética, inter-religiosa. Nesta casa utilizam-se enteógenos (ver o que é adiante) nos cultos, dentre os quais a jurema é um dos principais. No mesmo dia na parte da noite, registrei em vídeo um trabalho que ocorre de forma semanal na casa. No dia 20 do mesmo mês e na mesma cidade, entrevistei Leonor Ramos Chaves. Leonor é psicoterapeuta e faz trabalhos sistemáticos usando a jurema. Ainda na cidade do Rio de Janeiro, entrevistei o antropólogo Marco Tromboni de S. Nascimento no dia 21 de junho de 2002. Tromboni estudou a jurema em contexto indígena no mestrado e agora estuda enteógenos no meio urbano. No mesmo dia e cidade fiz entrevista com Boris, que é um dissidente da União do Vegetal (UDV)2. No dia 21 e 22, mesmo mês e cidade, realizei entrevista com Ali Zeitoun, que é um egípcio, engenheiro de navegação marítima, residente nos E.U.A. e que tem como prática de vida a busca por experiências extáticas usando enteógenos.

No dia 06 de julho de 2002, entrevistei Severina Maria da Silva (Dona Biu) que é mãe de santo do Maracatu Rural Cambinda Brasileira. Dona Biu tem profundo trabalho com a jurema. A entrevista se realizou em sua residência na cidade de Nazaré da Mata, zona da mata de Pernambuco, cidade que também é cede do Cambinda Brasileira. No dia 12 de julho de 2002, na cidade de Sergipe, estado de Alagoas, foi feita entrevista com Clarice Novais da Mota, antropóloga pioneira nos estudos etnobotânicos sobre a jurema indígena.

As visitas às áreas indígenas foram realizadas com o apoio do Laboratório de Pesquisas em Etnicidade, Cultura e Desenvolvimento (LACED) e do Museu Nacional - UFRJ. O LACED financiou um survey, a partir de recursos da Fundação Ford, que tinha como objetivo mapear e registrar o modo de vida do índio nordestino e como este modo de vida deveria ser para que a vida destes indígenas fosse a mais aprazível possível. Como membro da equipe responsável por cumprir este trabalho3, aproveitei a oportunidade e fiz a pesquisa correspondente ao interesse desta monografia. No dia 12 de julho de 2002 na área indígena Kariri-Xocó4 entrevistei o pajé Kariri Júlio Suíra. No dia 13 entrevistei o farmacólogo Ângelo Antoniolli da Universidade Federal de Sergipe (UFS), co-responsável junto com Clarice N. da Mota pelo projeto Farmácia Viva, o qual procura recuperar e

2

UDV é uma casa espírita que usa em seu culto a bebida enteógena ayahuasca.

3 Eram membros da equipe neste trabalho: Rodrigo de A. Grünewald (orientador desta monografia),

supervisor técnico da equipe e Estevão M. Palitot, graduando em Ciências Sociais, UFPB.

4 A área indígena Kariri-Xocó se localiza vizinha à cidade de Porto Real do Colégio, em Alagoas. Possui

(14)

recriar o uso de plantas medicinais na área Kariri-Xocó. Ângelo falou da jurema e seus compostos químicos. No mesmo dia entrevistei Tekainã, índio Kariri-Xocó que promove apresentações rituais de seu grupo em grandes centros urbanos do país, como São Paulo e Rio de Janeiro. No fim da tarde uma apresentação no Ouricuri (ver o que é adiante) do grupo foi feita e registrada em vídeo (VHS).

Em 14 de julho em Karapotó5, a segunda área visitada, foi feita entrevista com o pajé Auro. Fotografias e descrições do trabalho de Ouricuri foram apresentadas. No dia 15 em Kapinawá6, junto com o cacique José Bernardino Barbosa e com o pajé José Moisés, mais um pequeno grupo de índios, foi feita e registrada em vídeo uma coleta de jurema para ser usado no toré que seria realizado à noite. Registrada entrevista com o pajé e cacique citados, não registrada em vídeo, mas sim em gravador. À tarde foi registrado em vídeo (VHS) toré (ver o que é adiante) no local sagrado do grupo conhecido como Furnas. Na parte da noite foi feito registro em vídeo (VHS) do toré com jurema.

No dia 17 de julho de 2002, visitou-se a comunidade indígena Atikum7. Neste mesmo dia realizei entrevista com a ex-cacique Dona Ana. Registrei em vídeo (VHS) uma coleta de jurema junto com o pajé José e com o ex-pajé Augusto Gustavo de Oliveira. Após registrou-se em vídeo (VHS) a preparação da jurema por Augusto em sua casa. À noite foi registrado em vídeo (VHS), um ritual de gentio (ver o que é adiante) na casa de Augusto. Na manhã do dia 18 foi feito e registrado em vídeo (VHS) um pequeno toré na Pedra do Gentio, espaço sagrado Atikum. No dia 19 seguinte conheci uma emergência étnica (processo político de uma comunidade em prol de sua legitimidade étnica diferenciada - no caso indígena) Atikum na Serra do Arapuá, vizinha a Serra do Umã, lá o líder da comunidade, José de Miguel mostrou um pouco do trabalho de gentio e de terreiro (ver o que é adiante) junto com crianças e outros membros adultos. Ele também mostrou o modo como faz e distribui a jurema nos trabalhos espirituais. Neste mesmo dia à noite na base da Serra do Arapuá, conheci Adelmo Pereira Nunes, filho de Vardo Pereira Nunes, conhecido cangaceiro de Lampião chamado pelo grupo deste de Moita Brava. Adelmo contou como

5 A área indígena Karapotó se localiza no município de São Sebastião, no estado de Alagoas. Sua população é

de mais de mil pessoas.

6 A área indígena Kapinawá se localiza no município de Buíque, entrada para o sertão de Pernambuco. Sua

população é de cerca de mil e seiscentas pessoas.

7 A área indígena Atikum se localiza na Serra do Umã, no município de Carnaubeira da Penha, sertão de

(15)

seu pai conhecia a jurema dos índios e como o bando de Lampião usava a jurema. Também Adelmo contou como a jurema é usada pela população branca da área.

O que é a jurema8

Aspectos botânicos.

Nomenclatura: Mimosa tenuiflora (Willd.) Poir.

Sinonímia: Acácia tenuiflora Willd. Mimosa hostilis Benth. Mimosa Cabrera H. Karst. Mimosa nigra Huber. Mimosa limana Rizzini. Acácia hostilis Mart.9

Descrição morfológica

SOUZA (2002:21) dá uma descrição morfológica da jurema-preta, eis o trecho inicial:

“Planta arbustiva de um a oito metros de altura, armada com espinhos dispostos irregularmente nos entrenós, ou inerme. As raízes são longas, se bifurcando no solo, externamente com uma cutícula marrom escura, e vermelho vinho por baixo desta, e internamente amarela, com fraturas irregulares; acentuadamente áspera com pequenas eminências puntiformes; e com sabor amargo adstringente”.

8 Neste trabalho catalogou-se o uso da jurema em diversos contextos, a principal jurema usada na maioria dos

casos é a chamada jurema-preta. É dela que se fazem as descrições a seguir. Foto: http://www.erowid.org/plants/mimosa/mimosa_images.shtml.

(16)

Lima (1946:71) e Sangiraidi (1983:191) utilizam a descrição de Martius que se encontra na “Flora Brasiliensis” (1870-76) de algumas características morfológicas da jurema-preta (M. tenuiflora), o primeiro cita em latim e o segundo em português. “Arbustiva, pubérula (víscida?), acúleos esparsos, fortes e retos; folíolos multijugos, ligeiramente pubescentes; espigas cilíndricas; flores de 4 pétalas e 8 estames; legume quase séssil, chato, víscido, pluriarticulado”.

Seus variados nomes

No México é conhecida como tepescahuite, tepesquehuite; em Honduras, Colômbia e Venezuela como carbón, carbonal, cabrera ou cabrero. Na América Central (Guatemala, El Salvador, Honduras e Nicarágua) ela é conhecida como carbón negro10. No Brasil foram catalogadas até agora dezenove espécies conhecidas por jurema como indica Albuquerque (2002:182).

O nome jurema parece ter vindo do tupi Yu-r-ema, (Mota, 2002:21), Yú-r-ema, (Sangirardi, 1983:191 e Souza, 2002:24) ou Yu’rema, (Andrade e Anthony, 1999:104), que quer dizer, segundo Lima (1946:56) e Sangirardi (ibid), “espinheiro”. Ainda segundo Lima, o pesquisador Oliveira China (1935) designa o termo como “espinho suculento”. Para Lima, o termo jurema viria de “iucema”, que quer dizer “iú- espinho e cema- partícula que indica agrupamento, servindo para formar os substantivos coletivos. A transformação de ‘iucema’ em ‘iurema’ obedeceu a uma índole eufórica tão forte na língua tupi, (...) tais como ‘cemirera’ que passou a ‘remirera’ (resto), ‘cetama’ a ‘retama’ (pátria) e até mesmo a ‘rama’”.

Distribuição geográfica

A jurema é encontrada principalmente em todo o nordeste brasileiro, menos no litoral do que no sertão. Na Bahia e em Minas Gerais, Pio Corrêa, apud Souza (2002:22), em 1926 narrou a presença da planta. Grünewald (2002:100) indica a presença dela além de todo o nordeste brasileiro, também em Minas Gerais11. Simon e Proença, apud Souza

10 Levantamento feito por Camargo-Ricalde citado em SOUZA (2002:21).

11 Grünewald (2002:100), indica que em Minas Gerais, “a jurema é elemento central de rituais Xakriabá”. Na

região, ainda segundo este autor, a jurema seria por hipótese também usada na medicina popular, “e quiçá, em outros rituais não indígenas”.

(17)

(2002:22), indicam a presença da jurema também no Piauí e Bahia, além de México, América Central, Venezuela, Colômbia. Carmago-Ricale, apud Souza (2002:22), indica sua presença em Honduras, Guatemala, El Salvador, Nicarágua e Panamá. No Egito e Norte da África, Palestina e todo o Oriente Médio a jurema tem plantas irmãs, vários tipos de Mimosas.

Princípios ativos

Gonçalves de Lima e a equipe que o acompanhava, foram os primeiros a detectar o alcalóide que provoca alteração de consciência encontrado nas cascas de raiz de jurema preta. Suas pesquisas se deram no dia seguinte a seu retorno de pesquisa em algumas áreas indígenas (Pankararu- Brejo dos Padres e Fulni-ô- Águas Belas). No dia trinta de outubro de 1942 iniciaram-se pesquisas com o intuito de encontrar algum alcalóide na jurema. Os pesquisadores conseguiram junto aos Pankararu algumas raízes frescas de jurema usadas nos trabalhos rituais. Descobriram estes pesquisadores a presença de um alcalóide que recebeu o nome de nigerina (0,31%), (Lima, 1946:72).

Sangirardi (1983:204) dá a conhecer trabalho posterior em 1959 de Patcher, Zacarias e Ribeiro, que isolaram de cascas de raízes de jurema preta (Mimosa hostilis, ou mais contemporaneamente Mimosa tenuiflora (Willd.) Poir.): “um alcalóide com as mesmas características da nigerina, cuja estrutura determinaram como sendo um derivado indólico: a N, N-dimetiltriptamina (D.M.T.)”. Souza (2002:44) relata experiência de Melo e Bandeira (1961) que também comprovaram o resultado dos estudos de Patcher e equipe de 1959. Eles encontraram o alcalóide N,N-dimetiltriptamina (DMT), que apresenta em sua configuração atômica C12-H16-N2. Segundo Corbett (1977, apud Souza, 2002:44) o efeito alucinógeno do DMT é semelhante ao efeito do LSD-25, sendo ele de menor duração que este último.

Souza (2002:45), catalogando trabalhos de Corbett, 1977, Schultes e Hofmann, 1980 e Craing e Sitzel, 1986, indica que “o efeito alucinógeno da N,N-dimetiltriptamina, quando administrada oralmente, é inibido pela ação das monoamino oxidase (MAO), enzimas componentes insolúveis das mitocôndrias que catalisam a remoção de um grupo anima do alcalóide”. O efeito alucinógeno provocado pela DMT só poderia ser liberado se esta substância oralmente ingerida fosse acompanhada da ingestão de “algo que contenha

(18)

inibidores da MAO como as β-carbolinas, permitindo assim a ação da N, N-dimetiltriptamina”. Para Souza (ibid) ainda seguindo estudos de Corbett, (ibid) e Callaway, (1994), existe uma hipótese a ser confirmada de que os efeitos de natureza euforística relatados em algumas experiências com jurema (M. tenuiflora), podem ser explicados pelo fato de que

“As β-carbolinas podem ser formadas endogenamente a partir de triptaminas básicas como a 5-hidroxi-triptamina (serotonina), presente na M. tenuiflora. Com isso, pode ocorrer inibição da MAO, acarretando num aumento de depósitos de catecolaminas (estas constituem a MAO e são por ela ‘protegidas’ de sua ação oxidativa, na ausência de inibidores) no Sistema Nervoso Central e no coração, o que provoca os efeitos euforísticos.”

Grünewald (2002:99-100), discute sobre a possibilidade do DMT ser liberado com a utilização de outras plantas na beberagem feita com a jurema. Cita como exemplos o manacá (Brunfelsia uniflora), o maracujá silvestre (Passiflora sp.), o tabaco, e outras - todos podendo conter inibidores da monoaminoxidase.

Histórico

O uso da jurema tem sido relato desde há muito tempo no Brasil. As variações dos dados são muitas. Não existe um trabalho, que eu saiba, sobre o uso ancestral da planta. Os cronistas que estiveram no Brasil em inícios do século XVI não relataram seu uso. Os dados mais antigos sobre o uso ritual da jurema podem ser indicados nesta ordem.

Os primeiros relatos do uso da jurema parecem ser do século XVIII. Porém, Andrade e Anthony (1999:104) citam o conhecimento da jurema já no século XVI. A referencia destes autores é Huehve, que no seu Botânica e Agricultura no Brasil, de 1932, dá a seguinte descrição, “Geremari é a mesma coisa que Jurema e Juremari e Record nos dá como tais nomes Pithecolobium tortum Mart. (...) Na Fl. Br. encontramos registrado Jurema como aplicado a Mimosa verruca Benth”. Nascimento (s/d:10), citando Leite (1949), afirma que grupos de índios fugiam “de um aldeamento para um outro a fim de participar de festividades anuais pagãs”. Provavelmente onde a jurema estava presente, isso ainda no século XVII. Também Andrade e Anthony (1999:104) citam a presença da jurema no século XVII, porém na referencia que dão, Lima (1946), não encontrei citação deste

(19)

referente ao uso da jurema na Amazônia nessa época (séc. XVII), apenas a indicação de que ela possivelmente era usada já nessa época.

Os relatos mais seguros então, marcam a presença do uso ritual da jurema a partir do século XVIII. Eles são vários, o primeiro é o de Gonçalves Fernandes datado de 1740. Ele é citado por Bastide (s/d:244), sem qualquer referencia mais significativa do que a indicação de Fernandes sobre o tema e o nome do livro onde ela aparece, O Folclore Mágico do Nordeste, à página 07. O outro bastante conhecido e também citado é o caso narrado por Câmara Cascudo em vários ensaios e obras suas. Cascudo (1937:89) cita o caso de um índio preso por fazer magia com a jurema:

“Aos dois de junho de mil setecentos e cincoenta e oito falleceu da vida presente Antonio índio preso na cadeia desta cidade por razão do summario que fez contra os índios do Mopibû, os quais FIZERAM ADJUNTO DE JUREMA, QUE SE DIZ SUPERSTICIOSO, de idade de vinte e dois annos a julgar...” (grifos no original).

Este mesmo trecho é citado por Sangirardi (1983:200), só que de uma outra obra de Cascudo (Tradição, ciência do povo) e por Andrade e Anthony (1999:104), também citado de outras obras de Cascudo (Meleagro, 1951; e Dicionário do Folclore Brasileiro, 1954). Sangirardi afirma que antigamente as reuniões rituais onde se bebia jurema eram chamadas de adjunto de jurema, eram proibidas pelo governo e por isso a nota de Cascudo dá a prisão do índio por ter participado de uma delas.

Tanto Lima (1946:59), quanto Sangirardi (1983:201) e Andrade e Anthony (1999:105) citando Lima (ibid), dão referencia do uso da jurema no século XVIII. A citação de todos é retirada de José Monteiro de Noronha, vigário geral do rio Negro, que no seu Roteiro da viagem da cidade do Pará até as últimas colônias do sertão da província, dá a conhecer a jurema por este relato:

“Os índios da nação Amanajoz (...), não são antropófagos, nem idólatras. A sua religião é nenhuma. Há porém entre elles ‘Pithões’, ou feiticeiros que só o são no nome, fingimento e errata persuasão a quem consultarão para predição de sucessos futuros, (...). Nas cerimônias, ritos, bailes, adornos de pennas na rusticidade e cóstumes, não diferem da Província do Amazonas. Nas suas festividades maiores uzão os que são mais habeis para a

(20)

guerra da bebida que fazem da raiz de certo páo chamado – Jurema – cuja virtude é nimiamente narcotica.”

Monteiro Baena, em comentário a obra de João Daniel, O Thesouro Descoberto no Rio Amazonas, de 1843, citado por Lima (1946:60), cita o uso da jurema, segundo ele, “os janumás, tamuanas, jauanás, tupivás, achouarís, manaós, curutús, serven-se da jurema para passar a noite navegando altos pélagos do sonho, e do ipadú para gozar com ameno deleitamento”. Segundo Lima (1946:65), Estevão de Oliveira questionado por este nega que em alguma parte da Amazônia ter-se-ia usado alguma vez a jurema, acredita que Baena deve ter confundido a jurema com o cipó caapi. Lima, entretanto continua acreditando que se pode realmente tratar-se da jurema nordestina levada por vários fluxos migratórios até a Amazônia.

Sangirardi (1983:196) narra, partindo do trabalho de Pereira da Costa, intitulado Folk-lore Pernambucano, de 1907, o mais impressionante movimento messiânico brasileiro. Em 1836, em Pernambuco, um grupo de pessoas se juntou a João Antonio dos Santos que passara a pregar que Dom Sebastião o havia guiado até uma lagoa encantada onde começa a se erguer duas torres de um templo. Dom Sebastião instituiria um reino onde todos seriam felizes, ricos e poderosos. Foram chegando muitas pessoas ao lugar seguindo a crença inspirada por João Antonio dos Santos. Com a intervenção de um missionário, João Antonio dos Santos renunciou a seu postulado, deixando no seu lugar João Ferreira. Este se tornou monarca e santo. Aparecia vestindo uma coroa de japecanga. Era chamado de sua magestade el-rei. Reuniam-se em um sito chamado de Pedra Bonita ou Reino Encantado, localizado na comarca de Vila Bela, sertão de Pernambuco.

Pela beleza do lugar recebeu o nome de Pedra Bonita, mais tarde pedra do Reino. Existiam vários locais sagrados na pedra. O santuário, o púlpito ou trono, a pedra do sacrifício, onde se executavam pessoas. Por último, a casa santa, local onde era servido o “vinho encantado de jurema e manacá”. Em 14 de maio de 1838 as matanças começam a se tornar mais drásticas por um suposto pedido de Dom Sebastião. Em três dias 30 crianças, 12 homens, 11 mulheres e 14 cães foram sacrificados de forma violenta e torturante. Em 17 de maio, Pedro Antonio dos Santos, irmão do primeiro rei, resolve iniciar o seu reinado. Pedro Antonio dos Santos torna-se rei. Um dos sebastianistas foge e denuncia todos à

(21)

polícia. Um destacamento do governo vai até Pedra Bonita (Reino Encantado) “onde o rei e seus súditos são esmagados”.12

Em 1849, Henry Koster, citado por Lima (1946:56), Aquino (1980:157)- deste último retirada a citação que segue - e Sangirardi (1983:200), viajando por Pernambuco a procura de indígenas para trabalharem em suas terras, estadia em Jaguaribe, um povoado ao norte de Olinda. Lá tem a oportunidade de descobrir índios praticando antigos costumes:

“Ouvi casualmente, conversando com pessoas das classes mais humildes da sociedade, que os indígenas continuam fiéis aos seus costumes. Uma família, que tinha muita amizade com os indígenas, habitava uma plantação nos arredores. (...) uma mocinha indígena levou uma das suas visitas para a cabana em que morava com seus pais, e como essa companheira tudo perguntasse..., sobre as várias cabaças que estavam penduradas no quarto, a indígena muito assustada disse: Não é bom olhar para esse lado. (...) Tempos depois algumas mulatas resolveram espionar alguns índios, sabendo que eles dançavam em suas cabanas. (...) Pouco tempo depois uma jovem indígena disse, em grande segredo, a uma companheira, de classe diversa da sua, que fora mandada dormir, dias antes numa cabana das vizinhanças porque seu pai e sua mãe iam beber jurema. Essa bebida é feita de uma erva comum, mas nunca pude persuadir um indígena para que m’a indicasse, e quando algum assevera desconhecê-la positivamente, seu rosto desmentia as palavras.”

Sangirardi (1983:201), indica a presença da jurema em diversos escritores do século XIX. Arruda Câmara em 1863 “diz que a jurema (Acácia jurema Mart.), espécie das caatingas e dos sertões, ‘os caboclos faziam uma beberagem, com que se encantam e se transportam ao céu’”. Capanema, citado por Caminhoá em 1871, diz: “‘Dizem que a embriagues da jurema traz sonhos fantásticos e agradáveis’. E acrescenta: ‘ os efeitos são semelhantes ao do haxixe’.” José de Alencar também teria descrito a jurema no seu conhecido romance Iracema: “Árvore mãe, de folhagem espessa; dá um fruto amargo, de cheiro acre, do qual juntamente com as folhas e outros ingredientes preparam os selvagens uma bebida, que tinha o efeito do haxixe”.

Andrade e Anthony (1999:105) citam que Pereira de Alencastre em suas Memórias, de 1857, confirma o uso da jurema por indígenas do nordeste brasileiro. Lima

12 Ariano Suassuna tem um romance chamado A Pedra do Reino, no qual me parece que esta história ganha

(22)

(1946:53) cita Melo Morais (que era alagoano) que em sua Phytografia ou Botânica Brasileira, de 1881, descreve características da jurema (Mimosa jurema), “Os sertanejos curam o cansaço e a caqueixa com a casca desta árvore. Os índios extraem da jurema certa espécie de vinho que embriaga com transporte delicioso”. E em 1900, Nina Rodrigues no seu L’animisme fetichiste dês negres de Bahia, citado por Lima (1946:55) fala da árvore jurema usada em cultos africanos na Bahia, ali a árvore “ou era verdadeiro fetiche animado ou ao contrário representava simplesmente a morada ou altar de um Santo”. Também Lima (ibid), seguindo Nina Rodrigues outra vez, Os Africanos no Brasil, de 1932, afirmaria que “pelos seus efeitos narcóticos e alucinógenos evidentes, cedo tomou a jurema um lugar proeminente mesmo nos cultos de mais pura índole africana.”

Artur Ramos, citado por Lima (1946:55) e Sangirardi (1983:201), afirma no seu livro O Negro Brasileiro, de 1931, afirma “A embriaguez da jurema, muito próxima das ricas alucinações visuais da maconha e do haxixe, fazia com que os índios vissem ‘o mistério ou o segredo da jurema’”. Carlos Estevão de Oliveira no seu livro O Ossuário da Gruta do Padre, (1938-41), narra pela primeira vez de modo preciso a festa do anjucá entre os Pankararu. Ele é citado por todos aqueles que passaram a fazer estudos contemporâneos sobre o uso da jurema. Suas descrições são clássicas e influenciaram muitos pesquisadores na investigação do uso indígena da jurema. Bastide (sem data: 245), Sangirardi (1983:193) e Lima (1946:46) citam a famosa passagem em que Estevão de Oliveira conhece a festa do anjucá, da jurema: “esta é a bebida milagrosa feita com a raiz da jurema”. Todo o depoimento segue as indicações clássicas do preparo da jurema para a beberagem, da festa com danças e cantos ao encantados ao som dos maracás. Tudo praticamente igual ao observado em minha pesquisa de campo entre os índios nordestinos (ver cap. um).

Complexo da jurema

A jurema pode ser compreendida de várias maneiras. Este trabalho enfatiza o elemento enteogênico associado ao uso e simbolização da jurema. Enteógeno é um termo cunhado por Gordon Wasson e equipe, apud Mota e Albuquerque (2002:11), que pretende enfatizar com ele a idéia de que existem plantas usadas como “inebriantes xamânicos e que são consideradas pelos que as usam como sacramentos ou plantas-mestre”. Grünewald (2002:102) entende enteógeno como “o advento de Deus no homem”. Ao contrário de

(23)

alucinógeno que produziria apenas alteração de percepção ou consciência, o enteógeno produziria “comunhão e êxtases”. Enteógeno significa En: dentro; Téo: Deus; Geno de Gênese: nascimento. Assim daria o nascimento/advento de Deus no homem. É isto o que a jurema provoca de acordo com os relatos registrados neste texto.

O complexo da jurema é um termo/conceito cunhado por Mota e Barros em 1995, apud Mota e Albuquerque (2002:19), que pretende estabelecer em seu círculo a idéia de “um conjunto de representações que envolvem concretamente plantas chamadas Jurema e as concepções que sobre elas recaem. Este complexo é uma demonstração da mescla e troca entre sistemas de crença, sistemas de classificação botânica, representações e epistemologia”. Para estes autores, o complexo da jurema seria o elemento eficaz de identificação do uso de uma planta por populações marginalizadas no contato de pretensão hegemônica da cultura branca e ocidental frente ao encontro com populações indígenas e posteriormente a população afro-descendente. A jurema seria um símbolo de resistência e atualização cultural diferenciada daquela produzida pelos brancos, o europeu. Este complexo da jurema seria finalmente o elemento instrumental de investigação para detectar os elementos simbólicos e representativos da jurema como símbolo de resistência e adaptação cultural. Resistência porque as culturas indígenas e afro-descendentes manipulando e reinterpretando a jurema conseguiram manter vivas suas distinções culturais. E adaptação porque este mesmo movimento teve de encontrar-se com um sincretismo branco/europeu.

Para este trabalho, o complexo da jurema se restringe como um conceito que tenta abarcar apenas os sentidos simbólicos atribuídos à planta. Como os sujeitos narrados aqui ultrapassam inclusive o contexto indígena e afro-descendente, já que nele estão presentes os usos metropolitanos contemporâneos, o movimento de resistência incorporado ao conceito de complexo da jurema pode ser mais bem identificado em outra ocasião, o que não impede dizer que o uso metropolitano contemporâneo da jurema também é um uso contra-hegemônico (ver adiante no cap. três). Para este trabalho, o complexo da jurema interessa em primeiro lugar porque ele permite colocar sob um mesmo ponto de vista as várias representações da jurema, com isso se pode elaborar um impressionante testemunho da variabilidade e apropriação social de elementos da natureza, com seus intercâmbios culturais e suas criações particulares e coletivas.

(24)

CAPÍTULO I

CAPÍTULO I

CAPÍTULO I

CAPÍTULO I –

– A Jurema Indígena

A Jurema Indígena

A Jurema Indígena

A Jurema Indígena

13131313

Lá nas matas tem um pau Ele se chama de jurema Quando eu chego lá Eu vou beber jurema Vamos meus caboclo Lá pras bandas da jurema.

(linha de Toré Kapinawá)

A jurema no contexto indígena é assunto de muito esforço por parte da antropologia contemporânea. A maior importância da jurema neste contexto deve-se aos processos de emergências étnicas. A jurema é um dos elementos diferenciadores entre o índio e o branco, por isso seu uso ritual é apresentado como o elemento de distinvidade legitimidador da etnia como grupo diferenciado. Em quase todo o nordeste indígena, a jurema é o centro das práticas rituais. O sagrado se faz assumindo a jurema como o veículo que leva o índio ao encontro dos espíritos ou “encantados”. A planta é por isso mesmo resguarda pelos grupos em segredo, ou menos que isso, por um sigilo preventivo.

Existem alguns tipos de rituais nos quais a jurema assume junto a eles a principal expressão do ser índio. Estes rituais demonstram ao branco e também ao próprio indígena o que é o índio. Eles legitimam e reforçam a identidade étnica indígena ao promover uma representação da cultura. O Toré é o principal destes rituais. Caracteriza-se por uma dança em forma circular em volta de um cruzeiro ou pelo centro de um terreiro. Com a dança são cantadas linhas ritmadas ao som dos maracás e dos passos fortes. Quando o toré é forte e faz-se necessário, a beberagem feita com a jurema é colocada no centro e em determinadas horas distribuída para a assembléia. O gentio é uma espécie de toré feito em local fechado e normalmente particular. No centro da casa de gentio encontra-se uma toalha sobre a qual repousam objetos rituais e o aribé, a bacia que contém o anjucá, a beberagem feita com as cascas da raiz da jurema. O Ouricuri é o lugar sagrado de alguns grupos indígenas. O ritual feito nestes locais também é chamado de Ouricuri. Como se

(25)

verá, nos trabalhos de Ouricuri, a presença de brancos é minimizada, sendo bastante incomum algum branco ter conhecimento de como são feitos estes trabalhos. Parece, contudo que no Ouricuri se fazem rituais tipo toré. Há uma separação entre os gêneros e a permanência no local segue uma data mais extensa do que apenas um dia. Em alguns grupos chegando a quinze dias de permanência no local de culto. Por fim, há os trabalhos de particular que tendem a ser compreendidos como trabalhos de mesa. Neste tipo de trabalho, o pajé faz consultas e atende a pessoas que procuram alguma cura ou até mesmo consolo espiritual. Costuma-se atender também a comunidade branca, externa.

Os grupos visitados foram quatro. A cada um, uma característica mais significativa vai ser destacada. Através de depoimentos, entrevistas e participação nos cultos, procuro reunir informações que possam dar uma idéia de como a jurema é representada e simbolizada em contexto indígena. Os grupos assumem diferenças significativas com relação à jurema. Deve-se por isso prestar atenção no modo como a planta é entendida em cada contexto. Em cada lugar também, um sujeito será o “porta-voz” da comunidade sobre o assunto. Nisto deve-se entender a presença tanto da coletividade, como também da criatividade particular de cada um, o que do mesmo modo não desautoriza a entender estas representações ainda como sociais.

ATIKUM

Dona Ana, ex-cacique Atikum, narrou um mito de origem da jurema bastante interessante. Segundo ela, os índios antigos viviam no tempo do Pai. Neste tempo a vida era muito mais difícil do que a de hoje. Viviam os índios na mata comendo a caça que conseguiam, fazendo a comida daquilo mais imediato que atingiam. Era um estilo de vida no qual a culinária não tinha descoberto o sal, o fogo, a carne era comida crua. Estes índios viviam nas pedras, fugindo dos bichos e caçando-os. Um dia, o 1º índio desertou. Foi o primeiro índio que veio ao mundo. Vir ao mundo é passar a conhecê-lo. Este índio saiu do convívio com os outros e se arriscou a conhecer o deserto (caatinga). O mundo era muito grande, quase infinito, e ele queria conhecer o mundo, mas estava aturdido e com medo.

Andando pelo deserto (caatinga), este índio ouviu uma voz debaixo de um pé de jurema, ela perguntava: tu quereis a minha sombra junto de ti? “Quero”, ele respondeu. Quando chegou perto da árvore de jurema, deu-lhe um sono fortíssimo, ele se encostou e

(26)

dormiu. Acordou com a presença de uma mulher, era uma índia, uma santa, era a cabocla Jurema. Suas vestes eram os cabelos, da cabeça aos pés, cobrindo todo o corpo. Ele perguntou: como ireis pra’qui? Ela falou “na idioma”, “na língua”: Deus me mandou pra eu vir ser a sua companhia até o final. O índio não sabia “a idioma”, ele ficou calado. Ela então disse “na idioma”: Se eu não veio, o bicho ia devorar você. Eles ficaram juntos. O índio passou a conviver com a santa, mas sem pecado. Da parte dele ele era como um padre que vive sem pecado. Foi quando inexplicavelmente, “sem pru que pru que não, aumentaram a geração. Toda a geração indígena veio por aí”.

Chegamos ao tempo do Filho. Um dia, o índio tinha saído, a cabocla jurema preparava o café. Neste tempo o café era colocado, depois de amassado no pilão, num copo com água quente. Quando ela botou a água no copo, não ficou o café, ficou sangue! Mas também era outra coisa, era jurema! “A jurema foi transformada por isso aí, a jurema é o sangue de Jesus”. A cabocla ficou assustada e disse que iria jogar fora. Ele falou pela primeira vez “na idioma”: Te cala mulher, aí é segredo. Por aí é que nós vamos receber a força, a força dada do divino. É pecado jogar fora. É pecado Jesus dar um objetivo à criatura e a criatura abrir as mãos e deixar cair. A jurema é o vinho, é o sangue de Jesus. “Se jogasse no mato, o índio ia ficar louco, sem salvação”, complementa D. Ana.

O tempo do Espírito Santo... Este ainda virá!

Este mito é extremamente interessante. Ela aponta para o surgimento da comunidade indígena atual contrapondo-a a uma comunidade indígena ancestral. É como se pudéssemos ter um povo índio ainda “selvagem”, e num outro momento um povo indígena consciente. O mito narra esta passagem de um povo a outro no momento em que Jesus se faz presente no sangue transformado em jurema. Está claro aqui a presença do mito de origem cristão narrado no Gênesis. Lá como aqui um homem vaga pela imensidão solitária quando Deus (o Pai) concede uma mulher para ser-lhe companhia. O tempo do Pai some da narrativa quando então inexplicavelmente o estilo de vida celibatário concede espaço a convivência marital e conseqüente aumento de geração que ocorrecionará na criação da população índia atual.

O tempo do Filho (Jesus) assume papel quando este concede ao casal a graça de comungar-lhe o sangue na jurema. Aturdida, é a mulher, ainda que santa, que tenta livrar-se da jurema. Neste momento irrompe no índio, até então ingênuo “da idioma”, o

(27)

conhecimento da língua indígena secreta, patrimônio anterior exclusivo da cabocla, e fala em defesa do fenômeno, indicando assim a presença de Cristo entre a comunidade indígena que ambos (o casal) haviam fundado.

Para D. Ana, Jesus haveria de ter andado por todo lugar onde houvesse gente, índio ou não. A jurema seria descoberta de dois mil anos pra cá. Deus haveria de dar a jurema como ciência do índio porque o branco14 se aventurara nos domínios da razão e do dinheiro. Ficando para o índio o conhecimento dos mistérios da natureza, dentre os quais a jurema mostraria de forma mais clara quais seriam estes mistérios. Era este índio que continuava tendo a vida no sofrido clima seco, na qual a qualidade de vida era mais precária. Assim, o branco até teria a “diplomação”, mas não a ciência, não “entendendo a organização, o direito secreto de conviver”. O índio já nasceria “diplomado pela natureza”.

A jurema não apenas teria o papel aqui de contrapor um conhecimento indígena (ciência dos mistérios) a um conhecimento branco (ciência/racionalismo ocidental), destituindo assim dos tipos de conhecimento sua preocupação hierárquica, mas também legitimar a emergência étnica nordestina indígena. Pensando o momento em que Jesus assume o cuidado do índio, protegendo-o com a entrega dos mistérios do mundo através da jurema, concedendo assim um conhecimento distinto para ele. É também a jurema que entra como fator distinto entre o índio e o branco quando da reivindicação por direitos indígenas. A jurema será o elemento de caráter religioso mais presente nas emergências étnicas indígenas nordestinas. Junto a ela será também importante o Toré. Mas é na jurema que serão compreendidas as maneiras do ser índio, isso porque ela vai ensinar, mostrar o índio tal como ele era, como deve ser. É por isso que no mito, o homem só passa a falar “na idioma”, quando Jesus concede sua graça. Através da jurema ele aprende a língua secreta que a cabocla Jurema conhecia como santa que era, e que até aquele momento ele aparentemente não havia aprendido. Este é o momento do conhecimento. Este é o momento em que o índio se torna forte. É o momento de reivindicar um direito, um espaço. E a jurema ensina a ser corajoso como os antigos pra lutar.

Se metaforicamente o mito cosmogônico será interpretado também como relevante para o afirmar-se índio neste novo renascimento, não é sem a ciência que Deus,

14 Branco aqui é categoria nativa e indica aquela pessoa que não é índia, isso inclui todas as pessoas não índia,

(28)

O autor no momento em que fazia entrevista com Dona Ana.

passando aos cuidados uma segunda vez para seu filho (Jesus), tornará os índios tão irmãos quanto qualquer cristão, mas sendo, porém diferenciado nos domínios do acesso ao desconhecido. Dando assim aos índios a oportunidade de guardarem como herdeiros eternos de algo incrível, as chaves de aceso ao mundo fantástico de Deus e da jurema.

D. Ana narra trechos do mito “na idioma”. Quando na oportunidade da entrevista, muitos índios a assistiam falar sem, contudo darem opinião alguma. Como a comunidade Atikum não fala uma língua diferenciada do português falado por camponeses nordestinos, “a idioma” funciona como recurso retórico extremamente rico. Perguntada que língua era aquela, D. Ana se limitou a responder que não aprendera “com gente humana, fui buscar em outro lugar. Foi no ritual com a jurema que fui buscar o idioma”. Assim, parece ser a única que sabe trechos de um possível idioma nativo, não sendo visto outro qualquer falar deste tal idioma nativo. Se D. Ana transmite informações num idioma diferenciado, que ela mesma traduz para nós e para os outros índios, o que nos deve ocupar é o entendimento de que a partir do uso da jurema, não só o reconhecimento do discurso índio ganhou força e expressão apelando para os mistérios da jurema, como ainda estes mistérios aparentemente fizeram renascer um idioma índio. Como os mistérios se fazem difíceis de explicar, uma língua distinta surge como prova e evidência, surge como marca, é o sinal externo e legitimitador. Para o branco que quiser saber dos mistérios, basta tomar a jurema com os índios, “porque ela mostra tudo”.

Este mito de origem da jurema só foi encontrado nesta narrativa de dona Ana. Em todos os lugares pesquisados (conferir bibliografia deste trabalho) não se detectou outro mito parecido. Todos os mitos indígenas de origem da jurema têm como tópico comum a

(29)

história de que Jesus estaria fugindo da perseguição romana quando cansado e ferido encostou-se num pé de jurema, seu sangue escorreu pelo tronco da planta alojando-se na raiz. Por este motivo teria a planta tornado-se sagrada, seria ela aquela que abrigou o Cristo e recebeu-lhe o sangue. Note-se que este mito não contradiz aquilo narrado por dona Ana, perece mais evidente que o narrado acima seja um desdobramento deste mito primeiro, a sacralização da planta. Dona Ana nos daria assim a história do modo como os índios recebem então a “ciência” vinda de Deus através da árvore que abrigou seu Filho. Para todos os grupos indígenas citados em seguida neste capítulo, este mito de origem da sacralidade da jurema pelo contato com o corpo e sangue de Cristo é narrado de maneiras semelhantes. Existem pequenas modificações no mito a depender do lugar em que ele for colhido, como aquele que afirma ter sido Cristo enterrado debaixo de um pé de jurema, ou a de que “quando mataram Jesus, \um dos seus apóstolos apanhou o sangue dele e mandou botar no pé da juremeira, era pra ficar a ciência para os índios. Aí o civilizado não tem nada com a jurema, porque não tem o sangue” Grünewald (2002:118), colhido em Atikum a cerca de doze anos.

Os usos da jurema Atikum

Temos para nosso registro em Atikum dois sujeitos da jurema. Preocupou-se basicamente em demarcar sujeitos em espaços sociais, contextos sociais, específicos nos quais o uso da jurema é referendado pela comunidade. Assim é que tanto D. Ana como Seu Augusto, são expressão e exemplo do modo como a comunidade Atikum reverencia a jurema e seus “encantos”.

Estivemos preocupados em entender o mito de origem narrado por D. Ana dentro da idéia de que mesmo aparentemente individualizado este conhecimento do mito, na ocasião narrado apenas por ela, é resultado de esforço coletivo na busca por um entendimento do que é ser índio. Os trabalhos com a jurema têm muitas vezes esta característica individual. A força daquele que leva o trabalho é fundamental para o bom andamento deste. É por isso que não está se fazendo nenhuma extravagância em narrar os ritos de acordo com a impressão que temos daquele que leva o trabalho.

D. Ana cozinha a jurema três vezes. Coisa muito pouco vista em rituais indígenas. Nossa primeira impressão no campo já veio transformada por um elemento novo

(30)

que se surpreende. Este cozimento da jurema não faz parte de muitos feitios indígenas. Segundo D. Ana, ela sempre fez deste modo, porque assim a jurema fica mais forte. Dado interessante porque em quase todas as obras consultadas sobre o uso da jurema por índios, os mesmo relatam que para os grupos indígenas, demarcar o uso da jurema como elemento ancestral se clarifica na não aceitação de qualquer cozimento, fazendo a jurema como se acredita que os antigos índios faziam, ou seja macerada a raiz, colocada na água, espremida e do suco final apenas peneira-lo um pouco. Em todo o caso, D. Ana se demonstrou satisfeita em ter-nos dado a entender que tinha colocado no preparo uma característica sua, coisa que veremos ser recorrente no trato com a jurema.

Cozinhada a raiz da jurema por três vezes (sempre a jurema preta “que é a mais forte”). Ela é coada, encruzada, ou seja, com um cachimbo (na maior parte das vezes feito da madeira da raiz da jurema) ao contrário (a brasa virada para a boca), faz-se uma defumação na bacia (aribé) que contém a jurema (anjucá se na mesma estiver misturado o jucá pra trabalho de cura). A defumação consiste em fazer o sinal da cruz com a fumaça do cachimbo sobre a jurema no aribé de modo a deixar marcado o sinal de uma cruz sobre o líquido. Nesta “encruzação” a jurema se transforma. Esta transformação é a nós vetada, só quem dirige o trabalho sabe no que ela se transforma. Segundo esta transformação, sabe-se quem terá condições de tomar a jurema. “Ela não é pra qualquer um”. A jurema usada é a preta com espinhos, “é a forte mesmo, a da ciência, a Mãe Jurema”. Junto ao preparo final podem ser colocadas raspas de limão e de maracujá. Segundo D. Ana antigamente era usado no ritual o manacá fumado. Tomava-se a jurema e depois fumava o manacá15, “ajudava a subir, viajar”.

Não foi possível assistir a um trabalho de D. Ana, as informações são assim aquelas que ela narrou. O seu trabalho é principalmente com os guias de luz, “a nossa jurema é dos encantados de luz”. Os encantados de luz são as forças, as entidades que humanas uma vez, simplesmente tornaram-se luz, não morreram, mas encantaram-se. Estas vivem nas matas, são os seus encantos, seus mistérios. Tomada a jurema, todos se concentram e começa-se a cantar as linhas que trazem os encantos, circulando-se em volta do aribé (posto no centro do terreiro, no chão) ornamentado com velas e uns poucos objetos

15 O manacá possui princípios psicoativos comprovados Brunfelsia hopeana Benth., altamente tóxico. Ver por

(31)

significativos. “Eu me concentro e fico em outros cantos, é lindo, vejo muitas coisas. É como se estivesse dormindo... êta sonho bom! Não posso contar, tanto porque sinto aqui na mente”. Se for pertinente o depoimento de D. Ana, é porque nele ela deixa claro que a jurema tende a levar a atenção daquele que a toma para conhecer lugares desconhecidos. Parecendo estar em um sonho, aquele que ingere da jurema vai percorrer lugares mágicos de sonhos, lares paradisíacos.

É deste tipo de fenômeno que os mistérios da jurema farão jus. Quando D. Ana narra seu trabalho, é exatamente o momento em que aquele que da jurema não conhece parece mais apartado da narrativa. A parte em que o branco não tem voz, não conhece. É dos mistérios que a jurema mostra ao índio que demarca um limite, este campo já não pode ser narrado, além de vetado, ele não tem tradução. Se a língua falada por D. Ana reconhecida nos trabalhos com a jurema pode ser traduzida, o fenômeno em si é ininteligível, não podendo ser recuperado em sentido por aquele que da jurema não conhece os mistérios.

O trabalho ao qual foi possível acesso se deveu ao empenho de Seu Augusto, ex-pajé Atikum. Através dele o pajé atual, Seu José (filho de D. Ana acima citada) também tomou parte dos preparos dos trabalhos. Junto com os dois, fomos a uma área muito fechada de mata na qual alguns

pés altos de jurema se encontravam. A jurema é sempre retirada de lugares de difícil acesso. Locais onde o tráfego humano é bastante raro. Ao chegar aos pés da árvore jurema (uma jurema preta, sempre se usa a preta que é a mais forte), seu José começa a

cavar com uma enxada, pelo lado em que o sol nasce. Procura uma raiz que seja forte e grande. Enquanto isso seu Augusto trata de preparar um cachimbo e sua farda de índio. Achando a raiz, ela toda é limpa da terra que a cerca antes de ser cortada. Seu Augusto trata

(32)

de cantar umas linhas tocando um maracá nas quais seu José o acompanha em intervalos aleatórios, exemplo de algumas:

Eu vim da juremeira, vim com a juremá Oi meus caboclo índio, oi do centro do mar.

Outra:

Tava sentado em pedra Fina Rei dos índio mando me chamar

Sou rei dos índio, caboclo africano, caboclo Adriano Rei do juremá

Com uma mão peguei na flecha, Com a outra retirei.

Seu Augusto defuma (com o cachimbo invertido, soprando pelo lado das brasas) a raiz nua da terra, bem como a própria árvore da jurema. Após isso, seu José corta com uma faca a raiz exposta. Coberto o espaço ocupado até então pela raiz, a casca desta é retirada com uma faca e

macerada numa pedra ali mesmo.

Na casa humilde de seu Augusto, um cômodo pequeno nos fundos serve de Gentio. Ali a jurema vai ser espremida numa bacia de plástico com água. Vai ser cruzada do mesmo modo que

foi narrado para D. Ana, deixando impressa uma cruz de fumaça na jurema. O líquido resultante é já a bebida, mais um tempo ela deve ficar descansando para encorpar. Chegando a noite, um grupo de pessoas, muitos com farda de índio, estão esperando o inicio do trabalho. Sentados todos em volta do aribé da jurema, colocada sobre uma toalha

(33)

branca estendida no chão, junto a pequenas imagens dos santos protetores, de relíquias encontradas na área pertencentes aos artefatos arqueológicos, e algumas velas acesas, além claro dos maracás. Todos sentados então em volta da jurema, seu Augusto começa a puxar a linha de abertura do trabalho:

Eu vou abrir minha corrente de jurema Traga as tuas forma de licença

Iê, iê, eira, traga as tuas formas de licença.

O ritmo das linhas é dado pelos passos, entonação das vozes e principalmente pelo som dos maracás. Esta primeira invocação é para a jurema, seguida então por uma a Virgem Maria e por fim a Atikum16. Uma espécie de “viva” (salvas) é feita a todos os presentes, aos guias de luz, mestres, santos, à caboclada, e a quem for lembrado, sendo estes “vivas” ilustrados por quem quiser fazer qualquer homenagem. Bebe-se então a jurema. A jurema é servida por seu Augusto, tendo ao seu lado direito o pajé seu José, uma pequena quantidade numa cuia de coco. A cada um é dada uma quantidade definida na hora pelo ex-pajé. Começando da direita para a esquerda. Toma quem quiser, incluindo aí crianças que tomam quantidade menor. Neste momento em que se bebe, canta-se uma linha que fala do beber da jurema:

Vamo berber nosso anjucá

Nosso anjucá das mãozinhas de Jusus Quem bebe, bebe bebendo

Aonde está a ciência dos meus índio.

Após todos beberem, todos se levantam às ordens de seu Augusto. Este começa a puxar uma linha que acha forte e todos passam a dançar o toré em volta da jurema, fazendo este movimento circular da direita para a esquerda:

16

Atikum seria filho de Umã. Umã é a entidade fundadora da comunidade indígena Atikum. A serra onde o grupo mora é chamada de Serra do Umã, serra pertencente a esta entidade. Quando da emergência étnica do grupo nos anos quarenta, num dos trabalhos, Atikum se faz conhecer como filho de Umã. Assim passou-se a se considerar todos da tribo como Atikum, pois todos seriam filhos de Atikum-Umã. O etnômio do grupo foi pois encontrado num trabalho de toré com a jurema. Para maiores detalhes ver Grünewald (2002:110).

Referências

Documentos relacionados

Por isso, quando a quantidade de Oxigênio Dissolvido na água diminui, os peixes não conseguem compensar esta.. Diminuição, ficando prejudicados e,

Equipamentos de emergência imediatamente acessíveis, com instruções de utilização. Assegurar-se que os lava- olhos e os chuveiros de segurança estejam próximos ao local de

O município de São João da Barra, na região Norte do Estado do Rio de Janeiro, Brasil, passa atualmente por um processo de apropriação do seu espaço por um ator que, seja pelo

Definidos os dois eixos do domínio analisado, foram escolhidas três, das onze abordagens mencionadas por Hjørland (2002), a saber: 1) Estudos bibliométricos, no que se

Energy Distribuidora e Transportadora de Derivados de Petróleo Ltda. São Paulo

A prova do ENADE/2011, aplicada aos estudantes da Área de Tecnologia em Redes de Computadores, com duração total de 4 horas, apresentou questões discursivas e de múltipla

[r]

Antes de adquirir uma memória flash USB para usar com este instrumento, visite a seguinte página da Web: http://download.yamaha.com/ OBSERVAÇÃO Outros dispositivos USB, como mouse