LETRAMENTO LITERÁRIO:
UMA PRÁTICA POSSÍVEL NO ENSINO MÉDIO
Isaquia dos Santos Barros Franco (UFT)
isaquiasbf@gmail.com
1. Considerações iniciais
O ensino da literatura é um dos tantos temas acerca do quais estu-diosos e pesquisadores vêm discutindo, na perspectiva de propor estraté-gias que aprimorem tal ensino, de modo a despertar nos alunos o gosto pela leitura, uma vez que estatísticas e exames indicam que este não atin-giu ainda uma condição satisfatória, posto que, não raramente, é possível encontrar pessoas de nível superior lendo pouco ou quase nada.
Em análises a resultados desses estudos e pesquisas verificamos que embora com abordagens diversificadas a questão a respeito do ensino de literatura de modo geral deixa evidente a necessidade de uma nova metodologia do ensino dessa disciplina, sobretudo no ensino médio onde ele é abstrato, fragmentado e desvinculado da realidade do aluno.
Como forma de refletir sobre essas questões, e propondo cami-nhos para se chegar ao letramento literário no ensino médio, apresenta-mos, nesse artigo, uma proposta didática tomando como referência o modelo de sequência expandida de Cosson (2006). Utilizaremos como corpus literário o conto “Missa do Galo” de Machado de Assis.
2. Letramento literário
O conceito de letramento apresentado por Soares (2006) como “estado ou condição de quem não apenas sabe ler e escrever, mas cultiva e exerce as práticas sociais que usam a escrita e a leitura” (SOARES, 2006, p. 18), já é consenso no nosso país.
O letramento literário seria, então, definido como estado ou con-dição de quem não apenas é capaz de ler texto em verso e prosa, mas dele se apodera deixando a condição de simples expectador para a condição de leitor literário ou mais precisamente “[...] o processo de apropriação da literatura enquanto construção literária de sentidos” (PAULINO & COSSON, 2009, p. 67). Nessa definição, é relevante entender que o le-tramento literário não é apenas uma habilidade pronta e acabada de ler
textos literários, visto que exige uma atualização permanente do leitor em relação ao universo literário.
E é ai que reside o problema nas instituições de ensino, uma vez que em sua maioria elas não têm conseguido instigar a capacidade reve-ladora que a literatura tem de incentivar o aluno a ler sempre mais. A lei-tura literária quando empregada corretamente poderá se transformar no início de uma longa e prazerosa caminhada com outras leituras.
É no ensino médio que essa caminhada deve tomar um rumo que reforce o letramento para que os alunos possam se tornar aptos a absorver o conteúdo colocado no ensino fundamental e transformá-lo em compe-tência linguística.
O letramento literário no ensino médio deve ser feito a partir da construção do gosto do aluno pela literatura. O aluno deve se sentir pró-ximo da literatura para que essa faça parte dele e o ajude a desenvolver suas capacidades de escrita.
O letramento literário existe a partir do incentivo da cultura da lei-tura literária. E isso pode ser feito de várias maneiras diferentes. Uma dessas formas é apresentada por Cosson (2006) em Letramento Literário:
Teoria e Prática, no qual propõe uma sequência de atividades que poderá
orientar o professor no processo de abordagem do texto escolhido. A utilização dessa sequência permite que se vá além da leitura, tornando a atividade uma fonte de conhecimento e de prazer. Tal sequên-cia constitui o objetivo central de nossa proposta didática elaborada para o gênero conto.
3. O letramento literário no ensino médio: proposta didática
Com base nos elementos teóricos aludidos, apresentamos como sugestão uma proposta didática de leitura para o ensino médio baseada nos contos de Machado de Assis.
Essa escolha se justifica porque entendemos que o gênero textual conto apresenta uma facilidade técnica para o seu entendimento, pelo fa-to de se constituir numa narrativa breve, possibilitando aos alunos que não possuem maiores informações literárias adentrarem prazerosamente no mundo encantado da leitura. Neste sentido, Silva (2005) explica que:
A leitura de contos pode estimular o aluno-leitor a encontrar, na leitura li-terária, uma forma lúdica de entender melhor sua própria realidade. Ao ler
narrativas curtas, que exijam uma resposta mais rápida e dinâmica do receptor, o aluno pode se sentir mais atraído pelo texto. (SILVA, 2005, p. 93). Para a escolha do escritor Machado de Assis, considerou-se que este foi e ainda continua sendo, um dos mais excepcionais contistas da nossa literatura, isso se deve ao fato de seus contos apresentarem uma ri-queza de significados que prendem a atenção do leitor, uma vez que po-dem ser estabelecidas relações com o contexto dos leitores da atualidade, pois, a análise da alma humana feita por ele nestes, pode referir-se a qualquer época e povo.
Assim, mediante essas escolhas, interessa explicar o método da proposta didática, nesse sentido, apropriamo-nos das proposições de Ril-do Cosson (2006), proferidas no livro Letramento Literário, as quais, partindo do ato de leitura, sugerem “sequências metodológicas”, sendo uma sequência básica e uma sequência expandida.
No que concerne a nossa proposta, relatamos uma experiência rea-lizada com alunos do primeiro ano do ensino médio que aborda a segun-da sequência que é baseasegun-da em algumas etapas, a saber: motivação,
trodução, leitura, primeira interpretação, contextualização, segunda in-terpretação e expansão.
Por vezes essas etapas deixam de ser idealizadas no planejamento das atividades de sala de aula, sobretudo no que se refere ao item “moti-vação”. Entretanto, preparar o aluno para recepcionar o que ele vai ler é fundamental.
Nesse sentido, a primeira etapa da sequência, consiste exatamente na motivação, que segundo Cosson (2006), deve anteceder todo o pro-cesso referente ao trabalho com o texto. Trata-se, portanto, de despertar o interesse do aluno pela leitura do texto.
Por isso, antes de mais nada, apresentamos ao aluno o conto
Mis-sa do galo em áudio, interpretado no programa "Categorias Literárias: A
Descoberta do Conto", produzido pela Biblioteca Virtual do Estudante de
Língua Portuguesa (BibVirt). O conto está dividido em quatro partes,
cada uma com cinco minutos de duração.
A ideia é apresentar somente a primeira parte aos alunos como forma de motivá-los a ler o texto na íntegra. O áudio completo é de
do-mínio público, todas as partes estão disponíveis para download livre.
Percebemos que essa atividade se constitui num incentivador da leitura, visto que propôs uma maneira mais diversificada de incentivar a leitura.
A segunda etapa é a de introdução. Aqui o objetivo é apresentar o autor do conto aos alunos. Com esse intuito incitamos uma conversa acerca do gênero textual conto e sobre o autor Machado de Assis. Com esta atividade verificamos que os alunos sentiram-se estimulados a ex-pressar opiniões, além de refletirem sobre o que significa a leitura para eles. Também procuramos destacar aos alunos o porquê de Machado de Assis ser um dos mais importantes contistas de todos os tempos, a multi-plicidade de sua obra que conta com mais de 200 contos, e que percor-rendo do tradicional ao moderno ele adotou uma diversidade temática que lhe possibilitou encontrar condições de representar a arte e o artista na sociedade.
Na terceira etapa fizemos a leitura completa do texto. Essa etapa foi interessante porque pelo fato dos alunos já terem tido contado através do áudio com a primeira parte conto e por este abordar o tema da sedu-ção, eles estavam ansiosos para saber o que aconteceria e então concluí-ram que na verdade, nada acontece, mas toda narrativa se desenrola em torno desse nada.
Em seguida os alunos foram levados à sala de informática, local no qual sugerimos que cada um escolhesse um dos contos disponíveis em http://www.dominiopublico.gov.br e fizessem a leitura. O ideal é que os alunos buscassem ler o conto que correspondesse aos seus interesses, às suas expectativas. Destacamos que a diversidade de contos estimulou a curiosidade e desenvolveu o gosto e o interesse pela leitura de outros contos disponíveis no site, suscitando, assim, a prática do ato de ler.
Vale assinalar que a atividade de leitura deve receber a orientação do professor de modo a facilitar o processo de interpretação e consolida-ção da sequência, pois como afirma Cosson (2006) “a leitura escolar pre-cisa de acompanhamento porque tem uma direção, um objetivo a cum-prir, e esse objetivo não deve ser perdido de vista.” (COSSON, 2006, p. 62). Embora o autor trate da leitura literária como um todo, no caso do conto, que é um texto curto, este acompanhamento do professor será no sentido de instigar os alunos para que estes descubram sentidos embuti-dos no gênero.
A quarta etapa é a mais subjetiva entre todas as outras, compreen-de a atividacompreen-de compreen-de primeira interpretação do texto, que, a priori, compreen-deve ser pessoal, à qual apenas posteriormente o professor agrega informações, o momento em que fica explícito o seu papel de mediador, porém, é neces-sário “enfatizar o caráter de atividade prática, de algo que requer a ação
dos alunos e não a simples exposição do professor.” (Ibidem, p. 121). Como forma de levar o aluno a apresentar a impressão geral do que leu, solicitamos uma produção textual em forma de depoimento.
Feita essa primeira interpretação, é o momento de contextualiza-ção, a etapa mais significativa do letramento, já que proporciona ao pro-fessor preparar um repertório de conhecimentos para seus alunos. A con-textualização é desdobrada em diversos itens, todos responsáveis por adicionar informação à leitura. Como nos apresenta Cosson (2006), o número de contextos a serem explorados na leitura de uma obra é teori-camente ilimitado, mas ele indica sete contextualizações.
A primeira contextualização é a teórica, a qual explicita as ideias que sustentam ou estão encenadas na obra. Depois vem a contextualiza-ção histórica, que diz respeito à época ou o período da publicacontextualiza-ção do tex-to, deve-se, portantex-to, relacionar com a sociedade que o gerou ou com a qual ele se propõe a abordar internamente. Em seguida temos a contextu-alização estilística, cujo papel é analisar o diálogo entre obra e o período, mostrando como uma alimenta o outro. Mesmo se tratando de uma narra-tiva curta, o conto apresenta quase todas as marcas estilísticas machadia-nas. Temos também a contextualização poética referente à estruturação e composição do texto e como ele se organiza. Já a contextualização crítica analisa outras leituras que tem por objetivo contribuir para a ampliação do horizonte de leitura da turma. A contextualização presentificadora busca a correspondência da obra com a atualidade e a contextualização temática define o tema ou temas expressos na obra.
Como sempre é possível acrescentar ou ampliar um contexto já dado, nessa etapa é importante realizar pesquisas participativas que le-vem os alunos a fazer registros e assim aliá-la à segunda interpretação, que aborda aspectos específicos do texto literário, podendo centrar-se so-bre uma personagem, um tema, um traço estilístico, questões contempo-râneas, etc. No caso do gênero em estudo, contextualizá-lo com a atuali-dade e produzir o seu próprio conto a partir de um fato significativo e in-teressante vivenciado seria uma boa maneira de perceber se os alunos se envolveram com a leitura.
Por fim, a expansão busca destacar a possibilidade de diálogo que toda obra articula com os textos que a precederam ou que lhes são con-temporâneos ou posteriores. Esta etapa pode utilizar-se de recursos como filmes, documentários, textos, etc. Nesse momento é pertinente apresen-tar o livro Missa do Galo: Variações Sobre o Mesmo Tema, organizado
por Osman Lins. Nessa obra, seis renomados escritores recriam o conto “Missa do Galo” de Machado de Assis, fazendo uma homenagem ao au-tor. No decorrer dessa etapa alguns contos foram superficialmente anali-sados, levando-se em consideração as relações intertextuais
4. Considerações finais
Nesse artigo, apresentamos uma proposta didática com encami-nhamentos metodológicos que julgamos adequados para a leitura de tex-tos literários. E após sua efetivação, podemos afirmar que a mesma é passível de aplicação em sala de aula e atinge um excelente resultado, ha-ja vista o desfecho junto à turma objeto desta intervenção.
Acreditamos tratar-se de uma estratégia interessante com a leitura de contos, as quais podem ser aplicadas em sala de aula, na tentativa de despertar o gosto pela leitura e contribuir para a formação de um leitor com proficiência. Além disso, com essa proposta, desfazemos a concep-ção de que ler um texto literário é difícil e complexo, sobretudo quando se trata de Machado de Assis.
Dessa forma, recomenda-se a utilização deste material, como su-gestão de práticas pedagógicas com a leitura no ensino médio. São ape-nas sugestões que podem ser utilizadas em sala na íntegra ou associá-las a outras propostas, de acordo com a criatividade do professor e interesse da turma.
Sem dúvida alguma, sabemos que as aulas de literatura podem fi-car mais interessantes se o professor motivar seus alunos, seja na maneira como os convida para a leitura do texto, seja nas estratégias que utiliza para abordar a leitura empreendida.
O professor deve promover oportunidades para que haja intenso diálogo entre leitor e texto, especialmente aproximando as questões rela-tivas aos saberes e experiências que se dão no plano ficcional da vivência real de seus alunos. Para conseguir tal intento, seria interessante que ele buscasse conhecer e aplicar novas metodologias que dinamizassem as suas aulas de literatura, como a sugestão que acabamos de apresentar.
Acreditamos poder, a partir desses dados e da reflexão sobre a sa-la de ausa-la, indicar rumos que auxiliem os professores interessados na formação do leitor de literatura a pensar suas práticas: o que delas deve ser mantido, o que ainda precisa ser reformulado e construído.
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICAS
BARBOSA, Begma Tavares. Letramento literário: escolha de jovens lei-tores. Disponível em:
<http://www.anped.org.br/reunioes/32ra/arquivos/trabalhos/GT10-5527--Int.pdf>. Acesso em: 19-08-2012.
BIBLIOTECA Virtual do Estudante de Língua Portuguesa (BibVirt).
Disponível em:
<http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/PesquisaObraForm.do?sele ct_action=&co_autor=44138>.
COSSON, Rildo. Letramento literário: teoria e prática. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2006.
DOMÍNIO Público. Disponível em:
<http://www.dominiopublico.gov.br>.
KATO, Mary. No mundo da escrita: uma perspectiva psicolinguística. São Paulo: Ática, 1986.
PAULINO, Graça; COSSON, Rildo. Letramento literário: para viver a li-teratura dentro e fora da escola. In: RÖSING, Tânia M. K.; ZILBER-NAM, Regina (Orgs.). Escola e leitura: velha crise, novas alternativas. São Paulo: Global, 2009.
SILVA, Ivanda Maria Martins. Literatura em sala de aula: da teoria à prática escolar. Recife: Programa de Pós-Graduação da UFPE, 2005. SOARES, Magda. Letramento: um tema em três gêneros. Belo Horizon-te: Autêntica, 2005.
TFOUNI, Leda Verdiani. Alfabetização e letramento. São Paulo: Cortez, 1995.
TODOROV, Tzvetan. A literatura em perigo. Rio de Janeiro: DIFEL, 2009.