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Família acolhedora: contribuições de Winnicott sobre a importância do ambiente familiar para o desenvolvimento infantil

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Academic year: 2021

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO – PUC-SP

Tatiana Bacic Olic

Família acolhedora:

contribuições de Winnicott sobre a importância

do ambiente familiar para o desenvolvimento infantil

MESTRADO EM PSICOLOGIA CLÍNICA

São Paulo – SP 2019

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Família acolhedora:

contribuições de Winnicott sobre a importância

do ambiente familiar para o desenvolvimento infantil

Dissertação de Mestrado apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), como exigência parcial para a obtenção do título de MESTRE em Psicologia Clínica (Núcleo Método Psicanalítico e Formações da Cultura), sob a orientação do Prof. Dr. Alfredo Naffah Neto.

São Paulo – SP 2019

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Família acolhedora:

contribuições de Winnicott sobre a importância

do ambiente familiar para o desenvolvimento infantil

Dissertação de Mestrado apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), como exigência parcial para a obtenção do título de MESTRE em Psicologia Clínica (Núcleo Método Psicanalítico e Formações da Cultura), sob a orientação do Prof. Dr. Alfredo Naffah Neto.

Aprovado em ______/______/______.

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A meu pai, exemplo de inteligência e força. Que ele (e elas) me acompanhem ao longo da vida.

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processo número 88887.163.109/2018-00.

Agradeço ao apoio financeiro da CAPES, tão imprescindível para a realização desta pesquisa.

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Agradeço a meus pais, pela presença e apoio constante. Por acreditarem em mim e ajudar a ser quem sou. Meu pai não pôde ver este trabalho finalizado, mas com certeza teria ficado orgulhoso de mim.

A meu orientador, Alfredo Naffah Neto, que, com sua experiência teórica e clínica, ajudou a aguçar meu olhar analítico.

À Isabel Khan, pelas importantes reflexões apontadas no momento da qualificação.

À Jane Valente, referência sobre família acolhedora, pela rica troca no momento da qualificação. Conversar com alguém especialista e que ama o tema é um impulso para continuar.

À Emília Estivalet Broide, por seu cuidado e carinho, que me ajudaram a organizar o texto e as entrevistas para a qualificação.

À Gabriela Schreiner, que, com sua grande experiência sobre direitos da criança e do adolescente, me ajudou no entendimento da política de assistência social.

À Roseana Garcia, alegria em pessoa, por me ajudar na orientação e organização inicial do capítulo sobre Winnicott.

À Claudia Dias, que de supervisora virou uma grande amiga, uma das pessoas mais generosas que conheço. Obrigada por me formar, por acreditar no meu potencial como analista.

Ao grupo sobre adoção de que faço parte desde o ano passado: Saulo, Gabriela, Roseana, Ilana, Eliane, Flávia e Lúcia, agradeço pelas reflexões e discussão de casos que alimentam.

À Gabriela Gálvan, obrigada pela leitura, o cuidado e a disposição em discutir e refletir comigo sobre Winnicott.

À Veruska Galdini, a quem não tenho nem palavras para agradecer. Amiga-irmã com que a vida me presenteou. Sua força, determinação e presença ao longo desses anos me fez uma pessoa muito melhor, me formou e me guiou. Sem você seria difícil chegar até aqui.

Ao Instituto Fazendo História e, em especial, à Roberta Vialli de Almeida, coordenadora do programa na época, que me acolheu tão bem e possibilitou que eu fizesse a pesquisa.

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como este.

A todas as famílias acolhedoras, que abriram suas casas e histórias, falando de experiências tão fundamentais e profundas que me fazem acreditar na vida.

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Psicologia Clínica). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo.

RESUMO

O objetivo dessa dissertação é compreender como a família acolhedora pode facilitar o processo de amadurecimento e desenvolvimento da criança que precisa ser afastada do convívio com sua família de origem. Para tal, faço um diálogo entre a teoria winnicottiana e esse serviço da política pública de assistência social, buscando, desse modo, auxiliar na discussão da importância do ambiente para a promoção do desenvolvimento infantil. As mudanças na concepção de família e o reconhecimento do seu papel na formação e no desenvolvimento integral do indivíduo fizeram com que o estado e a sociedade transformassem o olhar e as ações em relação à proteção da infância. Isso se deu com a revisão do modelo de atendimento nos casos de crianças afastadas do convívio familiar, a estruturação de políticas de apoio às famílias e o avanço no campo dos direitos, o que coloca a família na centralidade da política, gerando alternativas de acolhimento de crianças e adolescentes, em uma nova prática que propicie o melhor desenvolvimento nessa importante fase da vida. Nesse sentido, a família acolhedora oferece o que é necessário à criança no período de afastamento de sua família, possibilitando a continuidade de seu desenvolvimento, já que proporciona cuidados contínuos e individualizados em um ambiente de apoio e com figuras de referência. Outro aspecto refletido na pesquisa parte da fundamentação teórica de Winnicott a partir da sua Teoria do Amadurecimento, apontando o ambiente como fundamental para o desenvolvimento e o amadurecimento do indivíduo, sinalizando o impacto que o afastamento do convívio familiar pode ter sobre o desenvolvimento e a personalidade futura da criança. Para ele, a estabilidade ambiental e a continuidade dos cuidados oferecidos nos primeiros anos de vida de uma criança são fundamentais para alicerçar a base da saúde mental. As reflexões feitas ao longo desta dissertação, juntamente com as experiências trazidas pelas famílias acolhedoras nas entrevistas realizadas, e o cuidado oferecido pela equipe do serviço formam uma trama capaz de impactar positivamente no desenvolvimento das crianças, confirmando a importância de um ambiente suficientemente bom para o desenvolvimento infantil, principalmente no início da vida.

Palavras-chaves: Winnicott; família acolhedora; desenvolvimento infantil; política de assistência social.

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familiar environment for the infant development. Master (Dissertation in Clinical Psychology) presented to Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo.

ABSTRACT

The purpose of this paper is to understand how the foster family can facilitate the process of maturation and development of the child that needs to be removed from the relationship with their family of origin. For this I make a dialogue between the Winnicottian theory and this service of the public policy of social assistance, in order to help in the discussion of the importance of the environment for the promotion of child development. The changes in the conception of the family and the recognition of their role in the formation and integral development of the individual made the state and the society transform the way they look into it and also changed the actions in relation to the protection of the childhood. This was done by the revision of the care model in cases of children who are away from family life, the structuring policies to support families, and the advancement of rights, which places the family at the center of the policy and creates alternatives to take care of children and adolescents, seeking a new practice that provides the best development in this important phase of life. In this specific sense the welcoming family offers what is necessary to the child in the period of remoteness of his family, allowing the continuity of its development, since it provides continuous and individualized care, in an environment of support and with reference figures. Another aspect reflected in the research is based on Winnicott's theoretical foundation based on his Theory of Maturity, pointing out the environment as crucial for the development and maturation of the individual, indicating the impact that the separation from family life may have on the development and future personality of the individual. For Winnicott, the environmental stability and continuity of care offered in the early years of a child's life are important to underpin the basis of mental health. The reflections made in this dissertation, together with the experiences brought by the foster families in the conducted interviews and the care offered by the service team, form a caring network capable of impacting positively in development of children, confirming the importance of a suitable environment for the infant development, especially in early life.

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Apresentação ... 11

Capítulo 1 “FAMÍLIA É GENTE COM QUEM SE CONTA” ... 14

1.1 Convivência familiar e comunitária como direito ... 14

1.2 Família e políticas públicas ... 17

1.3 Família, para cuidar, precisa ser cuidada ... 25

Capítulo 2 UMA FAMÍLIA PARA UMA CRIANÇA: A IMPORTÂNCIA DO ACOLHIMENTO FAMILIAR ... 36

2.1 Acolhimento familiar como alternativa de proteção ... 36

2.2 O programa Família Acolhedora do Instituto Fazendo História ... 49

Capítulo 3 WINNICOTT E A IMPORTÂNCIA DO AMBIENTE PARA A CONSTITUIÇÃO DO INDIVÍDUO ... 53

3.1 Aspectos gerais da Teoria do Amadurecimento pessoal ... 53

3.2 Família e amadurecimento ... 57

3.3 O efeito da separação da família na criança ... 62

3.4 Manejo adequado das crianças afastadas do convívio familiar ... 66

Capítulo 4 O CUIDADO QUE FAZ A DIFERENÇA ... 72

4.1 Metodologia ... 72

4.2 Análise das entrevistas ... 73

Considerações finais ... 102

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Apresentação

Meu percurso profissional, desde a minha formação, tem as marcas da psicologia clínica e social e, também, do diálogo entre teoria e prática. Essa costura se deu realizando a supervisão e a execução de projetos em uma organização social e em um órgão governamental para o atendimento de usuários de drogas; no atendimento de mulheres que sofreram violência doméstica e, por último, onde me encontro hoje, no diálogo com a política de direitos da criança e do adolescente.

Há 12 anos venho supervisionando programas e equipes dos serviços municipais de todo o Brasil, principalmente os ligados à assistência social, que têm como foco de seu atendimento crianças e adolescentes que sofreram algum tipo de violação de direitos1.

Por conta dessa característica do público que chega aos serviços, é necessário oferecer cuidados para um bom desenvolvimento físico, emocional e social. Essas crianças e esses adolescentes são encaminhados ao atendimento para que haja uma reparação do dano sofrido. Não é simples lidar com crianças, adolescentes e famílias que sofreram algum tipo de violação que causa impacto nas relações. Mais difícil ainda é pensar em formas de atendimento para cada caso, buscando a reconstrução e, em alguns, a construção desses vínculos.

Foi ao longo desses anos em que venho acompanhando as equipes desses serviços que conheci o acolhimento familiar como medida de proteção possível para crianças e adolescentes que precisam ser afastados do convívio familiar.

Ao mesmo tempo, comecei a me aproximar do aparato teórico de Donald Winnicott, e pude perceber o quanto sua teoria pode ajudar na construção de políticas públicas de prevenção e tratamento, possibilitando, assim, um avanço na promoção, na proteção e na importância do direito à convivência familiar.

Sua teoria abre horizonte para a compreensão dos estágios do desenvolvimento humano, bem como para a facilitação do crescimento saudável

1 A violação de direitos constitui-se como uma transgressão dos direitos fundamentais, que

corresponde à vida, à liberdade e à igualdade. As principais violações de direitos à criança e ao adolescente apontadas pelo ECA são: violência intrafamiliar (abuso físico, negligência, abuso sexual), exploração sexual, trabalho infantil e falta de acesso à educação e à saúde. A não efetivação desses direitos constitui violação.

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e da consequente reparação do dano causado por falhas ambientais que podem impactar no desenvolvimento individual.

Para ele, o ambiente ocupa um lugar importante de análise. O relacionamento necessário para um bom desenvolvimento é uma relação integrada do ambiente com o indivíduo. Uma não pode ser pensada sem a relação com a outra. Dessa forma, a psicanálise de Winnicott coloca em evidência os fatores externos na constituição do indivíduo, e estes são predominantes na determinação da saúde e da doença.

Em sua teoria, a presença do ambiente é determinante, como algo que envolve e influencia de forma contínua e constante e se faz presente ao longo da vida, do nascimento à morte. É a busca por um olhar para além do indivíduo, dando importância à família e a como os familiares podem facilitar o desenvolvimento.

Além disso, Winnicott teve em sua trajetória uma grande experiência de atuação social. A Segunda Guerra Mundial marcou sua teoria, quando assumiu a coordenação de um programa de evacuação e reintegração de crianças que estavam afastadas do convívio familiar por conta da guerra. Foi a partir dessa experiência que ele elaborou sua teoria de atendimento a “crianças difíceis”.

Nesta dissertação, pretendo fazer um diálogo entre a teoria winnicottiana e a política pública de assistência social, buscando, desse modo, auxiliar na discussão da importância do ambiente para a promoção do desenvolvimento infantil e a prevenção de problemas futuros.

O objetivo deste trabalho é compreender como a família acolhedora pode facilitar o processo de amadurecimento e o desenvolvimento da criança que precisa ser afastada do convívio com sua família de origem.

Para falar dessas crianças, precisamos refletir sobre sua história e suas relações familiares, daí a importância de buscar um olhar global, e não restrito ao indivíduo.

No primeiro capítulo, apresento a importância da convivência familiar e comunitária para a constituição do indivíduo como direito fundamental e norteador das políticas públicas relacionadas à criança e ao adolescente. Faço um retrato da relação entre a família e o Estado ao longo da nossa história, além de apresentar a complexidade de relações das famílias vulneráveis, buscando

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um olhar que não continue desqualificando-a, aumentando, assim, a desigualdade e a exclusão social.

O segundo capítulo é uma reflexão sobre o acolhimento familiar como política pública e medida de proteção possível, sendo uma estratégia mais efetiva do que o acolhimento institucional para garantir a convivência familiar, tão fundamental para o desenvolvimento.

No terceiro capítulo, apresento a fundamentação teórica que coloca a família (e o ambiente) como locus primordial de desenvolvimento infantil. As mudanças que ocorrem na vida da criança (separação, abrigamento etc.) podem influenciar no seu desenvolvimento. A Segunda Guerra Mundial, fez com que a sociedade passasse a olhar para os efeitos da separação e/ou privação da criança do convívio com sua mãe e o impacto que isso possa ter sobre o desenvolvimento e a personalidade futura da criança. Vários estudos e iniciativas começaram a ser realizados para dar conta dessa problemática. Winnicott é uma das figuras centrais nesse processo pelas contribuições com suas experiências no atendimento a crianças difíceis de tratar por um início de vida conturbado ou pelo afastamento do convívio familiar.

A importância de um bom começo, apontado pelas pesquisas, principalmente após a Segunda Guerra Mundial, impactaram no surgimento de novas leis e políticas voltadas a ações de suporte e orientação ao bom desenvolvimento infantil. No Brasil, mais recentemente, temos o Marco Legal da Primeira Infância (2016), com iniciativas voltadas para a promoção do desenvolvimento integral das crianças de 0 a 6 anos, apontado a importância desse início na formação do ser humano.

Por fim, analiso as entrevistas com as famílias acolhedoras, buscando tecer a linha entre a teoria e a importância do ambiente familiar para o desenvolvimento infantil, demonstrando uma trama de cuidados entre todos os envolvidos, trama essa capaz de impactar positivamente no desenvolvimento infantil, confirmando a importância de um ambiente suficientemente bom principalmente no início da vida.

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Capítulo 1

“FAMÍLIA É GENTE COM QUEM SE CONTA”2

1.1 Convivência familiar e comunitária como direito

O tema da adoção e das formas de acolhimento está ganhando cada vez mais espaço de discussão tanto no âmbito do desenvolvimento de políticas públicas de atenção à criança e ao adolescente quanto no âmbito jurídico e acadêmico.

Particularmente no final do século XX e no início do XXI, as mudanças na concepção de família e o reconhecimento do seu papel na formação e no desenvolvimento integral do indivíduo fez com que o Estado e a sociedade mudassem seu olhar e suas ações com relação à proteção da criança e do adolescente. Isso se deu com a revisão do modelo de atendimento nos casos de crianças afastadas do convívio familiar, a estruturação de políticas de apoio às famílias e o avanço no campo dos direitos.

Muito se vem discutindo sobre a importância dos cuidados à criança no início da vida. Os primeiros anos são como construir a estrutura de uma casa, e é sobre ela que todo o resto se desenvolverá. O que está se formando nesse começo é a constituição do que é ser, é a percepção de si e do mundo:

Desde Freud, a família e, em especial, a relação mãe-filho, tem aparecido como referencial explicativo para o desenvolvimento emocional da criança. A descoberta de que os anos iniciais de vida são cruciais para o desenvolvimento emocional posterior focalizou a família como locus potencialmente produtor de pessoas saudáveis, emocionalmente estáveis, felizes e equilibradas, ou como o núcleo gerador de inseguranças, desequilíbrios e toda a sorte de desvios de comportamento (SZYMANSKI, 1995, p. 23).

Isso aponta para o ambiente familiar como fundamental para o desenvolvimento da criança e do adolescente, devendo ser assegurado e

2 O ano de 1994 foi escolhido pelas Nações Unidas como o Ano Internacional da Família,

definindo que: “família é gente com quem sem conta”, ampliando, assim, os laços para além do parentesco de sangue.

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priorizado pela família, a sociedade e o Estado3. Sendo assim, o acolhimento

institucional deve se constituir como última medida (provisória e excepcional), tendo sido antes consideradas todas as possibilidades de a criança permanecer com seus familiares, já que o melhor para ela é que cresça no ambiente familiar. A Constituição Federal (1988) e o Estatuto da Criança e do Adolescente (1990) marcaram a mudança de olhar em relação à infância e à adolescência. A legislação passa a reconhecer as crianças e os adolescentes como sujeitos de direito e pessoas em desenvolvimento, voltando a atenção para sua proteção. Essa mudança trouxe também uma alteração em relação ao olhar que se tem para as famílias, principalmente para aquelas em situação de vulnerabilidade. É nesse contexto que a convivência familiar e comunitária passa a ser considerada um direito fundamental, impulsionando mudanças na visão da sociedade, nas políticas e nas leis.

Apesar do reconhecimento do importante papel desempenhado pela família na constituição do indivíduo, ainda hoje no Brasil o acolhimento em instituição é a primeira alternativa em caso de afastamento familiar. Crianças são separadas de suas famílias por motivos que poderiam ser evitados desde que houvesse o oferecimento de apoio e suporte à família a fim de superar a situação em que se encontram.

Em razão da desigualdade social, muitas acabam vivendo com poucos recursos, o que gera dificuldades de atender as necessidades básicas de sobrevivência. São essas famílias, muitas vezes, que acabam sofrendo com a retirada de seus filhos de seus núcleos.

Com o intuito de transformar essa realidade social, foi elaborado o Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária (2006), construído conjuntamente por vários representantes do governo, sociedade civil e organismos internacionais. Tal plano afirma o rompimento com a cultura de

3 BRASIL (1990), artigo 227: “É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança,

ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”. Temos, ainda, no artigo 19: “É direito da criança e do adolescente ser criado e educado no seio de sua família e, excepcionalmente, em família substituta, assegurada a convivência familiar e comunitária, em ambiente que garanta seu desenvolvimento integral”.

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institucionalização e a preservação dos vínculos familiares e comunitários. Ele foi elaborado a partir de uma pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), feita em 2004, sobre o abrigamento de crianças e adolescentes. Essa pesquisa apontou o quanto o direito à convivência familiar e comunitária não era cumprido na situação de abrigamento. Nesse sentindo, o plano passa a ser um norteador das políticas para a infância, buscando fazer com que as ações em relação à criança e ao adolescente sejam tomadas de forma indissociável de seu contexto familiar e comunitário.

As reflexões levantadas pelo Plano surgiram para nortear o planejamento das ações focadas na convivência familiar e comunitária, buscando o reordenamento da política nacional de assistência com o foco na família, valorizada como o espaço ideal de convivência infantil. Seus objetivos são a prevenção ao rompimento dos vínculos familiares, a qualificação do atendimento dos serviços de acolhimento – buscando, com isso, um acompanhamento individualizado e com melhor qualidade de relações – e o investimento no retorno da criança à sua família.

Esse Plano constitui um marco nas políticas públicas no Brasil, ao romper com a cultura da institucionalização de crianças e adolescentes e ao fortalecer o paradigma da proteção integral e da preservação dos vínculos familiares e comunitários preconizados pelo Estatuto da Criança e do Adolescente. A manutenção dos vínculos familiares e comunitários – fundamentais para a estruturação das crianças e [dos] adolescentes como sujeitos e cidadãos – está diretamente relacionada ao investimento nas políticas de atenção à família (BRASIL, 2006, p. 14).

Essa transformação do discurso social promove outras formas possíveis de acolhimento e também alternativas de permanência da criança e do adolescente na sua família de origem, buscando romper com a cultura da institucionalização, marcada pelo estigma de que as famílias com crianças e adolescentes que precisam de acolhimento são incompetentes e, por isso, eles precisam ser afastados da convivência com seus pais.

Para trabalhar com uma realidade tão complexa e desigual como a que vivemos no nosso país, e que impacta diretamente na sobrevivência e manutenção das relações, faz-se necessárias outras formas de cuidado (que serão abordadas Capítulo 2), tendo como principal objetivo garantir a

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convivência familiar e comunitária, que é tão fundamental para o pleno desenvolvimento nessa etapa da vida.

1.2 Família e políticas públicas

No Brasil, por muito tempo, a política relacionada à infância e à adolescência esteve pautada em desqualificar as famílias em situação de vulnerabilidade, vistas como incapazes de prover os cuidados e a educação de seus filhos.

Essa visão tinha um caráter discriminatório que associava a pobreza a algo negativo, encobrindo, assim, outras causas sociais e políticas que pudessem interferir no quadro de desigualdade social. Sua característica era a de privilegiar as ações em situações ou indivíduos que se encontrassem em situação de vulnerabilidade.

Nessa perspectiva, o Estado entra com um papel compensatório, já que as famílias são incapazes de exercer sua função, e a pobreza é considerada um mal social. Prevalece um ponto de vista que culpa unicamente as famílias pelas dificuldades de seus filhos, e as crianças que precisam ser afastadas do convívio familiar se tornam, portanto, responsabilidade do Estado, que passa então a assumir seu controle e tutela.

Essa é uma perspectiva de que famílias pobres carecem de recursos financeiros, morais e intelectuais. Instala-se o estigma da incompetência, o que leva a uma desautorização em relação à maneira de educar seus próprios filhos, responsabilizando-a por todos os problemas.

A proteção à infância nesse período era tida como o ato de defender a criança da família, tida como incapaz, e proteger também a sociedade, que a via como um risco. Cuidar da criança que estava moralmente abandonada significava reabilitar o “menor”4 tido como perigoso, contê-lo para não contaminar

a sociedade, e, assim, também criminalizar a família, culpada por ser um mau exemplo aos seus filhos.

4 A palavra “menor”, termo utilizado no Código de Menores (BRASIL, 1979), servia para se referir

tanto à criança como ao adolescente, ligando-os a uma situação de pobreza e desvalorização social e estigmatizando-os.

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As políticas tinham um caráter assistencialista e tutelar e eram dirigidas a um setor específico da população: as famílias pobres.

Através do estabelecimento de uma concepção higienista e saneadora da sociedade, busca-se atuar sobre os focos da doença e da desordem, portanto, sobre o universo da pobreza, moralizando-o. A degradação das “classes inferiores” é interpretada como um problema de ordem moral e social (RIZZINI, 2011, p. 24).

O resultado dessa política abriu espaço para a institucionalização das crianças pobres como única saída, e a família, consequentemente, era deixada de lado no seu direito de educar e cuidar de seus filhos, sem oferecer estratégias para atender suas necessidades e superar suas dificuldades.

Nesse período, a primeira providência ao se constatar uma situação de risco era a de afastar a criança de sua família, encaminhando-a para instituições fechadas, com pouco contato com figuras de referência e, principalmente, com o rompimento de vínculos importantes, oferecendo a eles um atendimento que repetia o ambiente de violência e exclusão social no qual anteriormente estavam inseridos. Eram espaços com cuidados massificados e repressivos, educação rígida e pouco contato social.

A institucionalização como primeira forma de tratamento não era questionada, muito pelo contrário: retirar a criança do convívio com pessoas que não faziam bem a ela era a melhor opção. A instituição iria salvar e formar as crianças, já que a família não era capaz disso.

Com esse viés, as metas da política (ou polícia?) e a visão da sociedade buscavam a prevenção, a educação, a recuperação e a repressão: “Cuidar da criança era cuidar da nação, moralizá-la, civilizá-la. Cuidar da criança e vigiar sua formação moral era salvar a nação” (RIZZINI, 2011, p. 27).

Era um discurso contraditório, pois, ao mesmo tempo que propõe proteger a infância e, consequentemente, a sociedade, a mesma infância também deveria ser contida na sua possibilidade de causar danos:

Por esta razão o país optou pelo investimento numa política predominantemente jurídico-assistencial de atenção à infância, em detrimento de uma política nacional de educação de qualidade, ao acesso de todos. Tal opção implicou na dicotomização da infância: de um lado, a criança mantida sob os

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cuidados da família, para qual estava reservada a cidadania, e do outro, o menor, mantido sob tutela vigilante do estado, objeto de leis, medidas filantrópicas, educativas, repressivas e programas assistenciais, e para o qual, poder-se-ia dizer, estava reservada a “estadania” (RIZZINI, 2011, p. 29).

Assim, a intervenção na família se dá por meio da retirada da criança, e o Estado passa a ter o poder e o dever de atuar e intervir sobre essa parcela da população. Agindo dessa forma, na verdade, o Estado a desprotege, tirando a criança de seu ambiente familiar e impossibilitando a mudança, já que a família é julgada e condenada.

É o que Donzelot (1980) denomina de “complexo tutelar”, no qual qualquer criança em situação de pobreza estava sujeita à intervenção do Estado, que passava a ter autoridade e controle sobre as famílias e as crianças pobres.

Por trás dessas ações de “proteção” havia uma proposta de defesa da sociedade. O futuro da nação precisava ser o oposto do que era vivido por essas famílias.

Tal olhar da política assistencial fez com que muitas crianças fossem afastadas do convívio familiar sem a real necessidade. Essa separação leva ao rompimento de laços de afeto e confiança. Perdem-se elos que não precisariam ser perdidos ou fragilizados.

A mudança da política social em relação à infância vem a partir da Constituição Federal (1988) e do Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA (1990), voltando a atenção para a proteção da família e suas relações. A nova forma de pensar a política pública para a infância, inclusive a afastada do convívio familiar, compreende a necessidade do cuidado integral.

As ações passam, assim, a beneficiar os pais, os familiares e os responsáveis, a fim de promover o necessário para o desenvolvimento da criança, principalmente nos primeiros anos de vida.

A história da criança e do adolescente no país, bem como as ações realizadas pelo Estado e pela sociedade para contemplar as políticas da infância e adolescência, passou do modelo de

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proteção de crianças e adolescentes em “situação irregular”5 para a “proteção integral”. Ou seja, progrediu-se de uma política repressiva e corretiva para uma que reconhece a criança e o adolescente como sujeito de direitos (FERRO; BITTENCOURT, 2018, p. 21).

O paradigma da proteção integral, característica dessa nova fase, parte da concepção de que a criança e o adolescente são sujeitos de direitos e que a família, a sociedade e o Estado devem assegurar a eles, com prioridade absoluta, seus direitos fundamentais: deve garantir-lhes a proteção, a promoção e a defesa de direitos e ações prioritárias, com foco na reintegração familiar. Assegura, assim, o desenvolvimento pessoal e social, voltando-se à importância do convívio familiar para o desenvolvimento infantil.

Segundo Nogueira, o princípio da proteção integral:

[…] norteia a construção de todo o ordenamento jurídico voltado à proteção dos direitos da criança e adolescente. Parte do pressuposto de que crianças e adolescentes não são detentores de capacidade de exercício, por si só, de seus direitos, necessitando, por isso, de terceiros (família, sociedade e Estado) que possam resguardar os seus bens jurídicos fundamentais, consagrados na legislação, até que se tornem plenamente desenvolvidos física, mental, moral, espiritual e socialmente (NOGUEIRA, 2012).

Com isso, o início da década de 1990 trouxe mudanças significativas, com a ênfase dada à importância do cuidado oferecido pela família e a garantia em lei dos direitos das crianças e dos adolescentes.

Essas conquistas foram asseguradas por discussões e tratados internacionais, sendo o primeiro deles a Declaração dos Direitos da Criança da ONU (1959). A partir desse documento, todos dirigiram um olhar diferenciado para a família e reconheceram a criança e o adolescente como sujeitos de direitos, necessitando de proteção e de cuidados especiais.

Essa transformação de olhar em relação à criança, ao adolescente e à família coloca o poder público no lugar de assegurar as condições necessárias

5 O código de menores não fazia distinção entre a criança carente, abandonada ou infratora;

classificava todos como pessoas em situação irregular, colocando a criança não como sujeito, mas como objeto devido à sua condição de incapaz.

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para que o ambiente familiar seja garantido e priorizado. O Estado, a partir de suas ações, apoia a família, e não mais a substitui.

Atrás da criança excluída e em situação de violação de direitos existe uma família desassistida e que precisa de ações de apoio. A política social deve oferecer intervenções que ajudem a família a cumprir seu papel de socialização, proteção e cuidado. A ênfase recai, portanto, no contexto familiar como o melhor lugar para o desenvolvimento da criança e do adolescente.

Como política, a assistência social se estrutura com base na matricialidade sociofamiliar, ou seja, coloca a família como centro da concepção e implementação de benefícios, serviços, programas e projetos (BRASIL, 2004). Tendo como foco de suas ações a família, junto com o paradigma da proteção integral, a política da assistência inaugura uma nova forma de cuidar da infância, levando em conta o seu contexto familiar como unidade de intervenção e buscando fortalecer laços e vínculos sociais entre seus membros. Assim, a política de assistência social, em que o Estado cumpre seu papel de garantir direitos sociais a todos que deles necessitam, favoreceu o rompimento do paradigma do assistencialismo e da caridade que até então era o que orientava as ações assistenciais.

A implementação do Suas (Sistema Único da Assistência Social), em 2005, foi pensada como um modelo baseado no controle social, na descentralização e no compartilhamento de responsabilidade entre União, Estados, municípios e Distrito Federal. Com ele, surge a oferta de serviços à população que se orientam pelos princípios da equidade, universalidade, gratuidade, integralidade de proteção social, intersetorialidade e respeito às diversidades, em ações de proteção social destinadas a famílias e a indivíduos em situação de risco e vulnerabilidade social e violação de direitos.

A população que busca atendimento no Suas, em grande parte, já passou por situação de violação de direitos, tais como negligência, várias formas de violência, trabalho infantil, abuso sexual, entre outros.

Diante disso, o trabalho dos profissionais que atendem essa população deve ter como foco orientador o fortalecimento de potencialidades e capacidades dos cidadãos e dos territórios, a autonomia e o protagonismo social e a perspectiva estrutural das vulnerabilidades e dos riscos sociais e pessoais. O

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trabalho desenvolvido no Suas deve contribuir para a aquisição e o fortalecimento de direitos e a superação das situações de violação e violência.

Essa alteração em relação ao papel da família na política de assistência social traz mudanças na metodologia de atendimento da criança e de sua família, com o objetivo de trabalhar para o fortalecimento de vínculos familiares e comunitários:

Ao eleger a matricialidade sociofamiliar como pilar do Suas, a Política Nacional de Assistência Social enfoca a família em seu contexto sociocultural e em sua integralidade. Neste sentido, para realizar o trabalho social com as famílias, é necessário focar todos os membros e suas demandas, reconhecer suas próprias dinâmicas e as repercussões da realidade social, econômica e cultural vivenciadas por elas (SOUZA, 2010, p. 2).

Esse novo olhar para o fazer social permite que a família seja pensada independentemente de suas configurações e para além dos laços consanguíneos, ampliando os vínculos de afetividade e afinidade.

A definição de família para a política de assistência social (BRASIL, 2004) corresponde a um grupo de pessoas que se acham unidas por laços consanguíneos, afetivos e/ou de solidariedade. Ela independe dos formatos ou modelos que assume e é mediadora das relações dos sujeitos e do coletivo. Por conta disso, é um espaço contraditório, marcado por conflitos e desigualdades.

Diante desse contexto, a política deve espelhar as várias possibilidades de relações e a pluralidade dos vínculos, focando suas ações na capacidade de mudança da condição de vida e buscando ações emancipatórias que garantam os direitos necessários.

As políticas, os programas e os serviços de apoio às famílias devem estar voltados para ações de suporte, para que consigam dar afeto e proteção a seus membros. Para isso, os trabalhos voltados a elas devem apontar suas competências, diagnosticar suas necessidades e contribuir para seu processo de inclusão e proteção social. O olhar deve estar para além das vulnerabilidades, buscando nelas seus recursos disponíveis.

Frente a essa realidade, é imprescindível saber de qual família estamos falando, e é a partir das várias formas possíveis de arranjos familiares que a política pública deve ser referenciada. Essas questões são essenciais para a

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elaboração das políticas, na estruturação dos programas e serviços e para o suporte da família e seus membros.

A Política Nacional de Assistência Social (PNAS) (BRASIL, 2004) considera que a família deve ser vista como espaço privilegiado e insubstituível de proteção e socialização primárias, como provedora de cuidados a seus membros, e ela mesma também precisa ser cuidada e protegida.

A política estabelece uma parceria com os programas, serviços e projetos nos quais a família, e seus membros circulam em busca de cuidado, para que esse tipo de parceria atenda suas necessidades, garantindo, assim, condições para que ela consiga dar conta de suas dificuldades.

Essa nova visão desfaz as práticas autoritárias e de caridade e funda uma nova ordem, em que os direitos das crianças e dos adolescentes geram responsabilidades para a família, para o Estado e para a sociedade, o que implica a criação e a implementação de políticas sociais que correspondam a esse novo olhar.

Condena-se a institucionalização, principalmente por motivo de pobreza, algo que fica proibido por lei (BRASIL, 1990, artigo 23)6. A condição econômica

e social não deve ser a única explicação para a incapacidade da família de cumprir seu papel. As dificuldades vividas por ela devem ser identificadas como uma incompetência das políticas sociais e de suas estratégias de ação para a superação da questão.

O desafio para as políticas sociais é oferecer formas de apoio e intervenção que ajudem as famílias em condição de vulnerabilidade a contar com os recursos necessários para cuidar de seus filhos.

Deve-se evitar estabelecer um modelo correto de família que leve a preconceitos e à exclusão social. A elaboração da política social deve levar em consideração as diversidades de arranjos familiares existentes, respeitando as diferenças para, assim, ser eficaz. Compreender a família descolada de seu contexto e valores leva a generalizações.

Essa nova forma de elaborar a política social tendo como foco central a família significa, segundo Mioto (2003), a superação da atenção focada em segmentos ou situações de risco, significando considerar a família

6 ECA, 1990, artigo 23: “A falta ou a carência de recursos materiais não constitui motivo suficiente

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independentemente de sua configuração e como espaço no qual aprendemos a ser e a conviver, apostando em sua capacidade de cuidado e proteção. Essa habilidade está relacionada diretamente à atenção que lhe é garantida por meio das políticas sociais.

Tal configuração vai ao encontro da dinâmica familiar do nosso tempo. Deve-se olhar além da forma e do modelo familiar, direcionando o olhar para a característica da família como âmbito de convivência e socialização:

Estamos diante de uma família quando encontramos um espaço constituído de pessoas que se empenham umas com as outras de modo contínuo, estável e não casual, sobretudo quando este empenho é orientado à defesa das gerações futuras (MIOTO, 2003).

A política deve ser elaborada, desse modo, a partir da necessidade das famílias, promovendo apoio na busca de uma melhor qualidade de vida.

Visando alcançar esse objetivo, alguns pressupostos são fundamentais para a efetivação da política: ter a família real como foco; olhar para sua vulnerabilidade e fragilidade; reconhecer seu potencial; e promover sua autonomia. Não é possível alcançar esses resultados se não tivermos a família como parceira.

Apesar do avanço dessas diretrizes e das leis no atendimento da criança, do adolescente e de suas famílias, as mudanças na forma de olhar e atender essa população ainda têm que avançar muito, visto que entre a lei e a prática o caminho é longo. Vivemos num país desigual e diverso, o que dificulta ainda mais a implementação e o monitoramento das ações.

Há um descompasso entre a importância atribuída ao papel da família – nas leis e pela sociedade – e a realidade vivida por elas com a falta de condições mínimas para prover as necessidades básicas de seus filhos.

Mesmo com as mudanças na política de assistência com enfoque nos direitos sociais, práticas assistencialistas e discriminatórias ainda estão presentes. Por isso, é importante tanto o fortalecimento de potencialidades, autonomia e protagonismo do indivíduo e da família como a responsabilidade do Estado no apoio a estas.

Frente à ainda presente cultura conservadora vivenciada no país, é de extrema importância que o trabalho desenvolvido na assistência social não

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reproduza estigmas e preconceitos, o que contribui para a manutenção do ciclo de violações vividas pela população vulnerável.

1.3 Família, para cuidar, precisa ser cuidada

Essas mudanças ocorridas no campo familiar têm impactos diferentes nos diversos segmentos sociais. No Brasil, existe uma enorme distância entre a condição de vida das diferentes classes sociais. Por essa razão, não se pode tomar como base um único ponto de vista para a aproximação da realidade familiar.

As mudanças familiares têm, assim, sentidos diversos para os diferentes segmentos sociais, e seu impacto incide de formas distintas sobre eles, porque o acesso ao recurso é desigual. Portanto, para abordar o tema das famílias e das políticas sociais, não se pode partir de um único referencial (SARTI, 2011, p. 26).

O planejamento da política pública de atendimento às famílias tem que se abrir para novas alternativas de suporte. É necessário entender os aspectos contemporâneos, possibilitando, com isso, um melhor desenho das políticas públicas.

Para famílias em condições de vulnerabilidade e risco, é necessário um suporte para alcançar a capacidade de cuidar por meio da garantia de direitos fundamentais: saúde, educação, habitação, saneamento básico, entre outros. Como já indicado anteriormente, a família não é apenas um espaço de cuidado, ela também é um espaço a ser cuidado.

A compreensão desses conceitos é fundamental às equipes dos serviços para aprimorar o acompanhamento das famílias que vivem em situação de vulnerabilidade social, risco pessoal e social, violação de direitos e violência.

Os riscos vividos por essa parcela da população decorrem de um cotidiano permeado por violações de direitos que impactam tanto individualmente como em suas relações.

Os conceitos de vulnerabilidade social e risco pessoal e social permeiam a organização das proteções no campo da assistência social, considerando a perspectiva de prevenção e redução de riscos. Algumas situações podem expor

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indivíduos e famílias a situações de maior vulnerabilidade e risco, e geralmente ocorrem em contextos de desigualdade, pobreza, desemprego e fragilização de vínculos familiares, comunitários e sociais (SPOSATI, 2009).

O Brasil é um país socialmente desigual, o que significa que uma parcela considerável da população não tem acesso a bens e serviços para garantir sua sobrevivência. Segundo dados da síntese dos indicadores sociais, 15 milhões de pessoas vivem abaixo da linha de extrema pobreza. Considerando toda essa população, a maior parte dela corresponde a crianças de até 14 anos: são 42% (BRASIL, 2017).

Mas a dificuldade vivida por elas não deve ser creditada somente à pobreza, que é apenas uma evidência que impede a garantia de sua qualidade de vida – assim como o é a falta de acesso aos recursos básicos. Esse é um cenário que, principalmente, leva à exclusão social, ampliando as possibilidades de risco pessoal e social de uma parte grande da população.

A desigualdade e a exclusão sociais afetam as condições de sobrevivência das famílias mais vulneráveis, diminuindo as chances de romperem com o ciclo da pobreza. As dificuldades vividas por elas impõem sacrifícios e renúncias que reverberam no convívio familiar, favorecendo relações abusivas e de falta de cuidado.

As milhares de famílias sem-terra, sem casa, sem trabalho, sem alimento enfrentam situações diárias que ameaçam não só seus corpos – território último do despossuído – mas, simultaneamente, seus vínculos e subjetividades […]. Este estado de privação de direitos ameaça a todos, na medida em que produz desumanização generalizada (VICENTE, 2011, p. 55).

É imprescindível fazer essa análise do retrato de vida da população pobre. A vida familiar, para ser efetiva, depende de condições para sua sustentação e a manutenção dos seus vínculos. O tempo dedicado à sobrevivência deixa pouca disponibilidade para o tempo e os esforços que poderiam ser dedicados às relações.

A consequência desse quadro para a criança e o adolescente é, por exemplo, a evasão escolar e o afastamento do convívio com os pais – indo para a rua ou sendo encaminhados para serviços de acolhimento institucional. Logo,

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deve-se levar em conta a situação de vida e o esforço de educar os filhos nesse contexto:

Em condições sociais de escassez, de privação e de falta de perspectivas, as possibilidades de amar, de construir e de respeitar o outro ficam bastante ameaçadas. Na medida em que a vida à qual se está submetido não o trata enquanto homem, suas respostas tendem à rudeza da sua mera defesa da sobrevivência (VICENTE, 2001, p. 55).

O estado de privação de direitos repercute na manutenção dos afetos e vínculos. Por isso, ter a família como foco central das ações é uma forma de apoiá-la e ajudar a romper o ciclo de desigualdade, dando acesso aos direitos básicos e favorecendo relações mais próximas e saudáveis, além de trabalhar suas potencialidades em busca de sua emancipação, rompendo, portanto, com padrões violadores.

A carência de recursos interfere nas relações individuais e familiares, levando a uma falta de cuidado e proteção. Por isso, é importante ter clareza sobre quais são as dificuldades e os desafios vividos pelas famílias vulneráveis. Algumas características são comuns, como: ausência do pai, mãe chefe da família e vários núcleos familiares convivendo no mesmo espaço. Com a insuficiência de políticas de proteção para essa parcela da população, a família se vê sobrecarregada, tendo que dar conta de determinadas questões para a qual ela não está preparada:

A questão da família pobre reflete a desigualdade econômica e social no Brasil, pois esse estado de privação de direitos e de esgarçamento dos vínculos familiares atinge a todos os seus membros de forma profunda. Diante da ausência de políticas públicas de proteção social para a população carente, é exigido que a família supra essa deficiência sem receber condições para tanto. O Estado diminui sua intervenção na área social e atribui à família uma sobrecarga difícil de ser suportada. Ao negar direitos básicos que deveriam ser assegurados, o Estado também não propicia condições para uma participação satisfatória da família no desenvolvimento de seus filhos (ZAGABRIA; TENÓRIO, 2012, p. 144).

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As crianças que estão sob medida de proteção7, objeto deste trabalho,

são em sua grande maioria nascidas em famílias numa situação de vulnerabilidade e risco. Por conseguinte, é importante compreender sua realidade socioeconômica e, acima de tudo, sua cultura, seus modos de se relacionar, suas diferenças e suas formas de sobrevivência.

A falta de conhecimento pode gerar práticas que tendem a homogeneizar a realidade e não considerar as tensões presentes nos relacionamentos estabelecidos. Além disso, ao não levarmos em conta tais peculiaridades e diferenças, fortalecemos estereótipos e a noção de problema social, tão frequentemente associada à família pobre (FONSECA, 2002).

Desqualificar essas famílias, tratando-as como incapazes, não pode ser o viés da política pública. O estigma sobre a pobreza transforma-se em prática e ações discriminatórias por parte dos técnicos e dos profissionais dos serviços. Elas são consideradas “famílias desestruturadas”, “negligentes”, “incompetentes”, sendo que, na verdade, são desamparadas – pelas políticas, pelos serviços e pelos programas.

Por trás de uma criança que sofre algum tipo de violação de direitos está uma família desassistida ou que não teve alcance da política social. A criança abandonada é apenas a contrapartida do adulto, da família e da sociedade abandonadas (FONSECA, 2004, p. 33).

É preciso olhar para o modelo de organização da família pobre não como uma “desorganização familiar”, mas como uma cultura tradicional dessas famílias em busca do cuidado e da sobrevivência. Diante do cotidiano que lhes é imposto, faz-se necessário uma outra organização familiar, o que muitas vezes pode interferir no exercício de sua função de proteção, afeto e socialização.

Temos que tomar cuidado para não confundir abandono e pobreza. Algumas violações de direitos vividas pelas famílias vulneráveis – negligência, vivência de rua e abandono, por exemplo – dizem respeito a tentativas de sobrevivência a um cotidiano difícil. Não é necessariamente um descaso no

7 As medidas de proteção à criança e ao adolescente são aplicáveis sempre que seus direitos

forem ameaçados ou violados por ação ou omissão da sociedade ou do Estado; por falta, omissão ou abuso dos pais ou responsáveis; e em razão da sua conduta. As medidas aplicadas podem ser socioeducativas e/ou protetivas (BRASIL, 1990, artigos 111 e 112).

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cuidado dos filhos. A situação de fragilidade dos vínculos familiares está diretamente relacionada à situação de vulnerabilidade em que essas famílias se encontram:

As famílias em situação de risco pessoal e social têm sido descritas como famílias cujos membros apresentam baixo grau de escolaridade e recursos econômicos e culturais limitados ou precários. Tais famílias mostram padrões de comunicação e de socialização difíceis em relação às crianças, o que muitas vezes leva ao risco da violência ou da fragilização dos vínculos […] as condições exacerbadas de carência material e cultural são um fator que contribui para a precarização das relações afetivas (MOREIRA, 2013, p. 34).

A política de assistência social deve olhar além da carência, observar a partir da realidade vivida, buscando compreender e legitimar aquele cotidiano permeado por adversidades (econômica, afetiva etc.)

A partir dessas reflexões, deve-se perguntar se os profissionais estão absorvendo essa pluralidade existente nas leis ou se a ideia de família, que guia as ações, continua a discriminar a população mais vulnerável, impedindo, assim, que ela alcance uma melhor qualidade de vida. As famílias nessas condições precisam ser acolhidas e apoiadas em seus problemas, pois têm um importante papel na proteção da criança e do adolescente.

Segundo Sarti (2011), as famílias em situação de pobreza têm uma vivência social que os diferencia, e duas dinâmicas são fundamentais para entender como se constituem: a ajuda para sobreviver (solidariedade) e a circulação de crianças. Ambas as dinâmicas se configuram como padrões de suas relações familiares.

Uma das características das famílias vulneráveis é sua configuração em rede, e não em um núcleo familiar. É essa rede de relações que fornece o que é necessário para seu desenvolvimento e sobrevivência, que propicia os recursos materiais e afetivos com os quais podem contar. Para Sarti (2011), são esses arranjos familiares que viabilizam a existência da família, com o apoio e a sustentação necessários.

Nesse sentido, na elaboração de seus programas, ações e serviços, a política de proteção à família deve levar em conta a unidade familiar e seu entorno, e não os indivíduos isoladamente:

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A família, para os pobres, associa-se àqueles em que se pode confiar […]. Como não há status ou poder a ser transmitido, o que define a extensão da família entre os pobres é a rede de obrigações que se estabelece: são da família aqueles com quem se pode contar, isto quer dizer, aqueles que retribuem ao que se dá, aqueles, portanto, para quem se tem obrigações. São essas redes de obrigações que delimitam os vínculos, fazendo com que as relações e os afetos se desenvolvam dentro desta dinâmica de relações (SARTI, 2011, p. 44).

O percurso de vida das famílias pobres não é linear e conta com inúmeras rupturas, o que implica em trocas constantes das pessoas de convivência e referência. Como aponta Sarti (2011), as dificuldades enfrentadas em uniões instáveis e empregos incertos desencadeiam arranjos que envolvem a rede de parentesco como um todo, a fim de viabilizar a existência da família. Assim, os sistemas de apoio são vitais para a organização da vida familiar:

A rede de obrigações que se estabelece configura, para os pobres, a noção de família. Sua delimitação não se vincula à pertinência a um grupo genealógico, uma vez que a extensão vertical do parentesco se restringe àqueles com quem convivem ou conviveram. Para eles, a extensão da família corresponde à da rede de obrigações: são da família aqueles com quem se pode contar, quer dizer, aqueles em que se pode confiar (SARTI, 2011, p. 33).

Encontram na solidariedade uma estratégia de sobrevivência e uma maneira de continuar existindo que vai além do parentesco. Contam com o auxílio de parentes, compadres e vizinhos para o cuidado de seus filhos, configurando uma prática de ajuda mútua. A rede está para além do elo consanguíneo, levando em conta também as relações de afinidades.

As crianças passam a não ser uma responsabilidade exclusiva da mãe ou do pai, mas de toda a rede de sociabilidade em que a família está envolvida. Há uma coletivização das responsabilidades pelas crianças dentro do grupo de parentesco, caracterizando uma “circulação de crianças”. Essa prática popular inscreve-se dentro da lógica de obrigações morais que caracteriza a rede de parentesco entre os pobres (SARTI, 2011, p. 77).

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Para Sarti (2011), há entre os pobres a noção de família como uma ordem moral, referência para pensar a realidade em que se situam e como essa concepção se articula à sua condição social. As formas como organizam suas relações (familiares e sociais) revelam e são referência de quem são.

É importante acrescentar que, apesar da história da assistência à infância no Brasil ter sido marcada pela facilidade com que se internavam crianças devido a dificuldades financeiras dos pais, há uma forte tradição de “acolhimento” de crianças entre famílias presente na cultura popular. Na chamada “circulação de crianças”, estas passam uma parte da infância ou da juventude em casas de parentes ou familiares.

É uma cultura antiga de ajuda mútua entre famílias brasileiras, que se expressa pelo cuidado familiar de crianças e adolescentes como “filhos de criação”, assumidos por outra família ou por alguém pertencente à família extensa. Esse fenômeno se realiza naturalmente, sem que haja uma afiliação, não chegando a regularizar guarda, tutela ou adoção. Essas ações podem ser reconhecidas como um acolhimento familiar informal (VALENTE, 2013).

Esse tipo de relação torna-se mais necessário na medida em que não existem políticas públicas suficientes e eficazes para atender às questões postas a esses segmentos no Brasil: famílias jovens, empobrecidas, que enfrentam separações e que veem na solidariedade de sua rede de apoio meios para minimizar sérios problemas de subsistência e de sobrecarga no cuidado de seus filhos.

Fonseca (2006) realizou um trabalho com 120 famílias pobres em bairros populares de Porto Alegre e apontou uma alta incidência de circulação de crianças entre essas famílias. Tais crianças passam parte da infância e/ou da juventude na casa de parentes. Percebeu também que esse fenômeno não se limitava à região estudada, sendo uma prática também em outras famílias de baixa renda do Brasil. A pesquisadora observou a prática de circulação de crianças como uma estrutura básica da organização de parentesco em grupos brasileiros de baixa renda, nos quais as atenções de deslocam de “um problema social” para um processo social. Nesse enfoque analítico, “o colapso dos valores tradicionais” muda para formas alternativas de organização vinculadas a uma cultura popular urbana.

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A circulação de crianças não ocorre em situação de crise, e elas não são “menores abandonados”. Como estratégia cultural e de sobrevivência, a população pobre acaba ampliando os laços de cuidado, acolhimento e vinculação. Ela traz consigo outra noção de família, uma maneira não formal (não legal) de adoção. Nesse arranjo, a criança pode ter mais de uma mãe. Como diz Fonseca (2004), o ditado “mãe é uma só” dá lugar à “mãe é quem cria”, já que é comum a criança chamar mais de uma mulher de mãe.

Um ponto importante destacado pela pesquisadora diz respeito ao significado da palavrar “criar”:

[…] costuma-se dizer “o menino que eu criei”, “a mãe que me criou”. A distinção é significativa, pois, linguisticamente, a ênfase é posta na relação mais do que no indivíduo isolado […]. O parentesco aqui não se limita ao aspecto biológico, elemento imanente do indivíduo, mas é algo que se nutre na relação social ao longo da vida (FONSECA, 2002).

Dentro dessa dinâmica, entregar os filhos para outros assumirem seu cuidado cotidiano é uma alternativa aceitável, não significando necessariamente falta de amor ou cuidado. Além de demonstrar sacrifício, o abrir mão da convivência cotidiana surge como uma forma de proteção. É um padrão cultural que permite uma solução para a criação dos filhos e para sua subsistência:

As adoções temporárias – ou circulação de crianças – criam uma forma de apego, uma afetividade distinta das relações estáveis e duradouras. O sentimento de uma mãe ao dar seu filho para criar diz respeito a um padrão cultural no qual as crianças fazem parte da rede de relações que marca o mundo dos pobres. Assim, criar ou dar uma criança não é apenas uma questão de possibilidades materiais, mas se inscreve dentro do padrão de relações que os pobres desenvolvem entre si, caracterizadas por um dar, receber e retribuir contínuos (SARTI, 2011, p. 82).

Tal configuração propicia não somente uma forma de sobrevivência, mas um acompanhamento carinhoso e cuidadoso. É preciso ampliar o olhar para essa prática, que pode ser vista como uma forma possível de convivência em ambiente familiar que é necessário para o desenvolvimento da criança. Ela é reflexo do sistema de trocas e de ajuda mútuas que caracteriza esse universo e,

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portanto, é legítima nesse contexto. Sendo assim, não deve ser vista como sintoma de desestruturação familiar

Perceber tais nuances familiares é fundamental para a análise de sua condição. É a partir das relações constituídas nessas famílias e de como elas se concretizam que devemos investigar seu universo. As ações propostas para elas devem levar em conta essa análise. Não reconhecer essas dinâmicas é passar por cima de sua história, correndo o risco de ser injusto e/ou preconceituoso nas intervenções.

Como diz Sarti, a família

[…] é uma ordem moral que articula o sentido do universo social para os pobres, é a especificidade dessa ordenação do mundo social em termos de obrigações morais que orienta suas ações em qualquer plano de vida social. A família, com seus códigos de obrigações, é uma linguagem através da qual traduzem o mundo, e sendo assim, suas possibilidades de negociação e de atuação no mundo social passam pelos caminhos onde é possível falar essa linguagem. Assim, é esta especificidade que define o horizonte de sua ação política […]. Negar sua importância como tradução do mundo social é falar um idioma incompreensível (SARTI, 2011, p. 140).

Trabalhar com famílias é um grande desafio. É ter clareza de que os problemas por elas vividos são de ordem estrutural, e exatamente por isso as intervenções devem refletir a realidade de desigualdade social. A política não deve ser focada em ações emergenciais, assistencialistas e que separe os pais de seus filhos. Ela deve buscar ações emancipatórias, e não compensatórias, tendo a melhora da qualidade de vida da população como objetivo.

Apesar de todos os avanços nas leis e diretrizes, o que vemos no momento é a criança e o adolescente que, por viverem em condições desfavoráveis, continuam sendo afastados de suas famílias em nome da “proteção”.

Falar das famílias pobres no Brasil é levar em consideração os estigmas firmados na história. É falar da falta de políticas para o enfrentamento da pobreza. A situação de vulnerabilidade de uma família não se restringe à sua condição econômica […]. Além disso, a pobreza, ao aumentar a vulnerabilidade social das famílias, pode potencializar outros fatores de risco, contribuindo para que crianças e adolescentes mais pobres tenham mais

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chances de verem incluídos na sua trajetória de vida episódios de abandono, violência e negligência (VALENTE, 2008, p. 32).

Junto a tudo isso, há propostas de mudanças de leis – Estatuto da Adoção e redução da maioridade penal, para citar alguns8 – que propõem ações opostas

ao trabalho que vem sendo desenvolvido, reforçando o ciclo de culpabilização e criminalização da pobreza.

Como promover o que consideramos o “bem-estar da criança” sem atropelar os direitos de seus pais? Como promover a justiça social sem perpetuar a violência simbólica embutida na história da nossa legislação que, tradicionalmente, tem estigmatizado pais pobres? […] Constatamos uma situação paradoxal em que o princípio igualitário, aplicado a uma sociedade de extrema desigualdade, tende a servir como mecanismo ideológico que reforça a desigualdade (FONSECA, 2002, p. 141).

As alternativas de proteção para crianças e adolescentes afastados do convívio familiar deve levar em conta esse retrato de condição social, sendo necessário pensar em outras possibilidades mais adequadas e saudáveis para o desenvolvimento da criança do que seu afastamento familiar. Esse é um caminho que pune a família e a criança, fragilizando ainda mais os vínculos muitas vezes já instáveis entre elas.

Assim sendo, o acolhimento familiar (que será definido no Capítulo 2) é uma alternativa que prioriza e garante a convivência em ambiente familiar, já provado ser o melhor local para o desenvolvimento da criança, além de proporcionar um ambiente de afeto e proteção. Ser cuidado por uma família acolhedora ou por sua família extensa, desde que esgotadas todas as possibilidades de permanecer com sua família de origem, insere-se no contexto sociocultural em que tais crianças já vivem: a rede de solidariedade e pertencimento.

Nesse sentido, é fundamental o desenvolvimento de políticas públicas que direcionem suas ações levando em conta tais contextos e o que é melhor para o bom desenvolvimento infantil. As intervenções precisam estar voltadas no intuito de favorecer a família para que ela possa exercer o seu papel: “O trabalho da

8 A Lei da Adoção (PL n. 394/2017) inverte o princípio da prevalência da família nas aplicações

das medidas de proteção, já que propõe uma redução dos prazos para adoção, alterando o direito fundamental à convivência familiar e comunitária proposta no ECA.

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rede socioassistencial deve ser sempre o de possibilitar que o cuidado à família transforme em possibilidade de responsabilizar-se pelo cuidado de seus filhos” (VALENTE, 2008, p. 43).

Atestar a irresponsabilidade dos pais no cuidado com seus filhos e a inexistência de um ambiente propício para o desenvolvimento e a proteção não pode ser certificado sem uma análise dos fatores sociais, econômicos e culturais envolvidos nas situações. Sem esse diagnóstico, corre-se o risco de estigmatizar a família e, assim, perpetuar o ciclo da pobreza e da desigualdade.

O exercício que Fonseca (2006) nos propõe em sua pesquisa é de extrema relevância para os profissionais que atendem as famílias em situação de vulnerabilidade e para a elaboração das políticas sociais:

[…] se quiserem entender comportamentos que destoam do nosso ideal, como, por exemplo, certas práticas dos grupos populares brasileiros, é preciso, como passo preliminar, olhar para os nossos próprios conceitos, desmontar a moralidade das nossas categorias de percepção” e complementa: “o famoso ‘estranhamento’ do método antropológico, herdado das nossas andanças em lugares exóticos, nada mais é do que esta desconfiança diante de receitas fixas, esta sensação de que, diante de cada experiência, é necessário construir uma nova análise (FONSECA, 2006, pp. 20-23).

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Capítulo 2

UMA FAMÍLIA PARA UMA CRIANÇA: A IMPORTÂNCIA DO ACOLHIMENTO FAMILIAR

2.1 Acolhimento familiar como alternativa de proteção

O acolhimento de crianças e adolescentes que precisam ser afastados do convívio familiar vem passando por intensas transformações, buscando refletir em uma nova prática que garanta direitos e propicie o melhor desenvolvimento nessa importante fase da vida.

São mudanças de entendimento em relação à infância, à proteção e à importância da família para a formação e socialização da criança e do adolescente e que impulsionam novas configurações das políticas e ações sociais.

Antes da elaboração do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), as instituições existentes para acolhimento eram os antigos orfanatos, educandários, colégios internos e abrigos9, geralmente associados a uma

identidade negativa. Eram espaços ligados à noção de abandono, instituições totais10 e isoladas da sociedade, atendendo muitas crianças ao mesmo tempo e

no mesmo espaço, com cuidados massificados. Estas permaneciam abrigadas por um período indeterminado, passando boa parte de sua infância e juventude confinadas e com pouco contato com suas famílias.

No final da década de 1980 e início da década de 1990, a abertura democrática, pós-período de governo militar, despertou um movimento social em busca da melhoria de condições da infância e da adolescência, em oposição à doutrina da situação irregular. No cenário internacional também se dava um marco significativo, a Declaração Universal dos Direitos da Criança (ONU, 1989),

9 A alteração ao longo do tempo do nome dado ao espaço de proteção de crianças e

adolescentes afastados do convívio familiar (orfanato, abrigo e, atualmente, acolhimento institucional) reflete a transformação pela qual ele vem passando, com alterações metodológicas e um objetivo a ser alcançado.

10 São instituições que não permitem contato com o exterior, oferecendo ela mesma todas as

necessidades do indivíduo: educação, moradia, lazer etc. Goffman define tal instituição total como “um local de residência e de trabalho onde um grande número de indivíduos com situação semelhante, separados da sociedade mais ampla por um período considerável de tempo, levam uma vida fechada e formalmente administrada” (GOFFMAN, 1987, p. 11).

Referências

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