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Professoras autorasProfessoras autorasMaria Elizia BorgesMaria Elizia Borges,,Ludimilia Justino de MLudimilia Justino de Melo Vazelo VazeeIvaina de Fátima OliveiraIvaina de Fátima Oliveira
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Sabemos que as nossas matrizes são muitas e di-versas, plurais. Basta prestar atenção a nossa lín-gua portuguesa e ver a riqueza de palavras que compõem nosso vocabulário: axé, caxixi, abajour, futebol, etc. Você seria capaz de dizer a origem de cada uma delas? A mesma coisa acontece com o nosso vocabulário de representações visuais. No entanto, apesar dessa diversidade, algumas formas foram historicamente mais valorizadas e conside-radas melhores e mais “certas” do que as outras. Ao focarmos esse conteúdo nas três matrizes: in-dígena, africana e européia queremos colocá-las em pé de igualdade como referência para a nossa formação estética visual, enfatizando algumas es-pecicidades, mas também ressaltando processos de hibridizações, sincretismos, mestiçagens, apro-priações, resignicações pelos quais essas matri-zes passaram ao longo desses mais de 500 anos de história. O conteúdo dessa disciplina é formado por um texto base da professora Dra. Maria Elizia Borges (unidades 1, 2 e 4), que apresenta a arte rupestre, in-dígena e as matrizes européias (produção jesuítica e a produção de imagens sacras de vertente popu-lar). Aprofundando a informação sobre arte rupes-tre, temos o texto complementar da professora Ms. Ludimilia Justino de Melo Vaz. Sobre as matrizes africanas, temos o texto da professora Ms. Ivaina de Fátima Oliveira referente à unidade 2 - Matriz africa-na. Como texto complementar temos “A falsa idéia de matrizes culturais” de Dernival Venâncio Ramos Júnior e Allysson García Fernandes.A proposta des-te mades-terial é fornecer aos leitores um conhecimento geral acerca das matrizes culturais da arte no Brasil.
Esta proposta está organizada de forma simples, sucinta e didática. Sabemos das diculdades de encontrarmos materiais didáticos publicados sobre tais assuntos agrupados em um único livro.
Profa. Leda Guimarães - Coordenadora do Curso
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DISCIPLINA
Ementa
Matrizes Culturais da Arte no Brasil: estudo das vi-sualidades dos traços estéticos culturais de diferen-tes povos na formação da nossa arte; sincretismo, retenções, permanência e hibridismos das três ma-trizes na arte brasileira; o museu afro-brasileiro e demais espaços do gênero; a presença dos aspec-tos da herança africana e indígena na produção artística no Brasil; espaço da cultura afro-brasileira e indígena no ensino de artes visuais; discussão da lei 10.639/03 que torna obrigatório o ensino da His-tória e Cultura Afro-brasileira e Africana.
Objetivos
Compreender aspectos das matrizes estético
culturais da arte brasileira;
Entender os processos de sincretismos,
mesti-
çagens e hibridismos na arte brasileira;
Discutir e questionar as relações de poder
en-
tre as diferentes matrizes culturais;
Problematizar o uso das matrizes culturais na
formação do docente de
artes visuais.
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DADOSDADISCIPLINA
UNIDADES
Unidade 1: Matrizes indígenas 1.1 Uma produção artística primordial 1.2 Produções artísticas de caráter coletivo
Texto complementar: Arte rupestre brasileira. Uma viagem ao mundo simbólico da Pré-História.
Unidade 2: Matrizes africanas: religiosidade, resistência e ofícios
2.1 Contribuição da cultura negra na formação cultural brasileira 2.2 Resistência e luta da cultura negra
2.3 Religiosidade africana e sincretismo
2.4 Miradas de universalidade positiva da cultura negra Unidade 3: Matrizes européias: colonizar, catequizar e construir
3.1 Registro artístico de uma terra exótica Unidade 4: Imagens sacras
4.1 Aleijadinho 4.2 Veiga Valle
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4 M A T R I Z E S C U L T U R A I S D A A R T E N O B R A S I L104
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Nota da autora: Material originalmente elabora-do com a ajuda de algumas pessoas, às quais dirijo um agradecimento coletivo. No volumoso trabalho de compilação documental e em momentos vários nas atividades da pesquisa, menciono Henrique de Freitas. No trabalho de processamento do texto, recebi ajuda de Rodrigo Borges Marques. A artis-ta Lucimar Bello Pereira Frange fez a leitura crítica. No zelo com o tratamento didático do livro, contei também com a leitura criteriosa do aluno então, secundarista Ricardo Felício do Nascimento.
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lA literatura arqueológica menciona três catego-rias de trabalhos manuais realizados pelas culturas chamadas de primitivas que habitavam todo o ter-ritório brasileiro, no período denominado Pré-co-lonial, entre 10.000 a.C. e 15.000 a.C., até a chegada dos portugueses. São artefatos líticos, pinturas e
cerâmicas e estão espalhadas em sítios arqueoló-gicos por todo o país. Das regiões pesquisadas até o momento, destacam-se os estados de Minas Ge-rais, Goiás, Piauí, São Paulo e Rio Grande do Sul. Os trabalhos manuais não eram considerados
obras de arte pelas culturas que os produziram, pelo menos não no sentido formal em que é usa-do o conceito. Trata-se, na verdade, de uma pro-dução artística originária de um contexto social completamente diferente da civilização ocidental, que adota tal terminologia.
Para o arqueólogo Ulpiano Bezerra de Meneses (Zanini, 1983), esses produtos devem ser estuda-dos, quanto a suas funções, e aos procedimentos de manufatura, a m de identicar quais deles te-riam prováveis funções estéticas. Sabe-se que toda manifestação estética propicia um aguçamento na sensibilidade das pessoas, logo, o estudo dessa produção tem grande interesse para os historia-dores da arte.
Professora AutoraMaria Elizia Borges*
*Mini-currículo da autora:Professora do Programa de Pós-Graduação em Cultura Visual e do Programa de
Pós-Graduação de História, ambos na Universidade Federal de Goiás, Brasil. Pesquisadora do CNPq com ar-tigos publicados no país e no exterior sobre arte funerária no Brasil. Foi professora e coordenadora do curso de Artes Plásticas da Universidade de Ribeirão Preto (1973-91). Ministrou aulas na Faculdade de Arquitetura da Instituição Moura Lacerda (Ribeirão Preto, 1992) e no curso de pós-graduação em História da Universidade Estadual Paulista (Franca, 1994-95). Foi Secretária da Cultura em Ribeirão Preto (1993). Livros publicados: A pintura na “Capital do Café”: sua história e evolução no período da Primeira República (1999); Arte Funerária no Brasil (1890-1930): Ofício de marmoristas italianos em Ribeirão Preto (bilíngüe, 2002). Integra o Comitê Brasileiro de História da Arte – CBHA, a Associação Brasileira de Críticos de Arte - ABCA, a Associação Brasileira de Estudos Cemiteriais – ABEC, a Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas – ANPAP e a Asso-ciation for Gravestone Studies – AGS. Site: artefunerariabrasil.com.br
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Tanto os arqueólogos como os historiadores da arte se deparam, na coleta do material nos sítios arqueológicos brasileiros, com diculdades de ordem geofísica: variações climáticas, acesso aos sítios, preservação dos materiais como bras, ma-deiras, peles etc. E de ordem geossocial: nancia-mento, sistematização de critérios cientícos e ca-rência de pesquisadores.
O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), fundado em 1937, é o órgão responsável pela preservação do patrimônio dos sítios arqueológicos.
1.1.1 Artefatos líticos
Com lascas de pedras os homens zeram,lâminas de machado com funções múltiplas: furar, cortar, raspar, alisar e pressionar. Nos sítios, é encontrada uma grande variedade desses artefatos, com for-mas arredondadas, planas e côncovas, tendo pon-tas bifaciais e losangulares, e acabamento polido. A estrutura geométrica é o ponto comum de to-dos os artefatos líticos, inclusive to-dos que continu-aram sendo feitos por diferentes tribos indígenas, em períodos posteriores.
Há também os zoólitos, objetos utilitários de pe-dra, de formas geométricas e naturalistas, que representam animais – aves, peixes etc. – assim como os pequenosobjetos líticos– pingentes, ber-loques e talismãs (muiraquitãs), gurados em sa-pos, rãs e pererecas.
1.1.2 Pinturas rupestres
No Brasil, já foram localizadas pinturas rupestres em áreas de Várgea Grande-PI, Lagoa Santa – MG, Jaraguá e Serranópolis – GO, Campos de Lages, São Leopoldo – SC e Montenegro – RS e outras.
São observados dois procedimentos técnicos na feitura dessas pinturas: apictograae opetroglifo. O primeiro consiste na pintura sobre superfícies
Ponta de Flecha. quartzo hialino, cachoeira do Chacorão, rio Tapajós, PA
Muiraquitã, formas diversas. Zoólitos. Tapajós, Santarém – PA. Museu Paraense Emílio Goeldi - Belém do Pará.
Pictograas. Abrigo de Santana do Riacho – MG.
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4 M A T R I Z E S C U L T U R A I S D A A R T E N O B R A S I Lrochosas das grutas, com pincéis de bras ou com os dedos, utilizando-se de cores advindas de pig-mentos de origem mineral – óxido de ferro (ama-relo) – e vegetal – urucum (vermelho), jenipapo (preto) e carvão. O segundo utiliza instrumentos líticos para sulcar, picotear e friccionar as paredes rochosas de grutas e habitações subterrâneas. Independentemente da técnica, os motivos das pinturas rupestres apresentam dois repertórios. Ogeométrico consta de inúmeras linhas e formas.
O orgânico compõe-se de guras humanas e de animais esquematizados e isolados ou associados a cenas de pesca, caça, dança, combate e relações sexuais. Os pormenores, muitas vezes, são natura-listas e o registro do meio ambiente vegetal tor-na-se raro. Da direita para a esquerda, há aspectos ligados ao movimento, ao espaço e a aparência dessas imagens não verbais.
1.1.3 A Cerâmica
A feitura da cerâmica no território brasileiro desen-volveu-se a partir do primeiro milênio a.C., época em que as culturas primitivas já viviam no estágio de sociedade agrícola. A documentação existen-te nos museus antropológicos do país advém das inúmeras peças realizadas com uma matéria-prima farta – a argila. Fizeram-se recipientes utilitários, como vasilhames e vasos; objetos decorativos e de uso, como estatuetas e tangas; recipientes especí-cos, comournas funerárias – vasos onde se depo-sitavam o cadáver ou as cinzas dos mortos.
As principais fases da cerâmica ocorreram, sucessi-vamente, em locais diversos: Ilha de Marajó – AM, Santarém – PA e Maracá – AP.
Acerâmica marajoarafoi produzida por agriculto-res de origem andina, que habitavam as oagriculto-restas tropicais. Formavam uma sociedade em processo de estraticação social, haja vista o valor dado ao ritual da morte, atestado pela produção de grande quantidade de urnas funerárias bem elaboradas. São urnas de grande porte e exibem decoração exuberante, proveniente da técnica epintura, com
fundo geralmente creme claro, e da técnicaexcisa, em que o desenho é ressaltado por linhas de vá-rias espessuras, mediante a retirada da superfície da cerâmica, antes da queima.
Em ambos os casos, a decoração apresenta-se com formas geométricas estilizadas. Muitas vezes, recor-re também à recor-reprecor-resentação zoomorfa de rãs e co-bras, ou antropomorfa, de mulheres e homens. To-das as urnas são bem poliTo-das, assim como os vasos e as tangas, que têm o mesmo processo de manufa-tura. Quanto ao formato, as variações são básicas e simples, variando da forma esférica à cilíndrica.
Acerâmica de Santarémfoi produzida por índios Ta-pajós, com um sistema de organização grupal su-perior aos habitantes da Ilha de Marajó, uma comu-nidade diversicada, hierarquizada e escravocrata. As cerâmicas são menores que as marajoaras e, nas peças, observa-se o emprego da policromia,
de três cores ou mais – daincisa– o uso de artefa-tos líticos para gravar os desenhos – e dos adornos modelados – aplicados na superfície dos vasos. Os Tapajós também empregavam de motivos
geo-Petroglifo. Pedra do Ingá – PB.
Urna antropomorfa marajoara. Cerâmica,Ilha de Marajó – PA. Museu Paraense Emílio Goeldi – Belém do Pará.
4 M A T R I Z E S C U L T U R A I S D A A R T E N O B R A S I L
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métricos estilizados, muito dos quais inspirados nas formas antropomorfas e zoomorfas.
A decoração, sempre sutil e delicada, evidencia o grau avançado da manufatura dessas cerâmicas. As
estatuetas– ídolos do culto da fertilidade – e os va-sosutilizados tanto em ritos cerimônias como nos hábitos do cotidiano, são um bom exemplo disso.
Quanto à cerâmica de Maracá, encontrada em
sí-tios próximos a igarapés do Rio Maracá, dela só restaram algumas peças vinculadas ao ritual da morte – pequenas urnas funerárias destinadas a sepultamentos secundários. O formato é variado com estilização de formas zoomorfas e antropo-morfas complexas, que estão esculpidos até mes-mo em adereços, pulseiras, cocares e braçadeiras. Em outros sítios arqueológicos, como o Tupi-gua-rani, também há exemplos de cerâmica – urnas funerárias, vasos e outros artefatos.
Em resumo, o fenômeno artístico do período pré-colonial reúne grande variedade de artefatos artísticos, produzidos com diferentes técnicas e funções diversicadas por culturas em estágios diferentes de socialização.
Por que todos os objetos de função utilitária apro-priam-se mais da representação antropomorfa e da geométrica? Por que foi dado um maior de-sempenho técnico e artístico às pinturas rupestres e às urnas? Expressam as formas plásticas o fato diferenciador e identicador dos trabalhos manu-ais, quanto ao valor de uso e ao valor cerimonial? Estas e outras indagações serão, por certo, eluci-dadas à medida que essa produção for estudada de um ponto de vista mais global. Peter Pilles, arqueólogo do Serviço Florestal dos Estados Uni-dos, em entrevista ao jornalO Popular , de 9 de
se-tembro de 1997, conrma pesquisas realizadas na África do Sul, que buscam explicar por que a arte rupestre de vários lugares do mundo, inclusive a do Brasil é parecida. Essa semelhança tem sido relacionada às necessidades básicas das culturas, isto é, considera-se que se trata de uma produção artística primordial. Requer “olhar para ver” as se-melhanças entre imagens plásticas, requer aten-ção e treinamento.
SAIBA MAIS
Aonde ir
em Goiás:
Museu de Antropologia da Universidade Federal
de Goiás. Praça Universitária - Goiânia. Fundação Jesco Putkamer – Goiânia.
Sítios arqueológicos: Serra da Mesa - Serranopólis.
Memorial do Cerrado – UCG - Goiânia.
Casa do Índio – Goiânia.
Quando viajar, aproveite e visite os espaços listados: Museu Paraense Emílio Goeldi - Belém – PA.
Parque Zoobotânico – Carajás - PA.
Museu do Estado. Recife – PE.
Museu de Arqueologia e Etnologia da
Universida-
de de São Paulo. Cidade Universitária-SP.
Museu Paulista da Universidade de São Paulo.
Jar-
dim do Ipiranga. São Paulo – SP.
Museu Arqueológico do Rio Grande do Sul.
Ta-
quara – RS.
Museu Universitário. Cidade Universitária.
Trinda-
de. Florianópolis – SC.
Vaso de gargalo com apliques. Zoomorfos. Cultura Cerâmica. Santarém – PA. Museu Paraense Emílio Goeldi – Belém do Pará.
Urna antropomorfa. Maracá. Cerâmica, escultura Maracá –AP. Museu Paraense Emílio Goeldi- Belém do Pará.
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4 M A T R I Z E S C U L T U R A I S D A A R T E N O B R A S I L1.2 Pr
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Quando os portugueses aportaram em terras do Novo Mundo, ele era habitado por várias culturas nativas. O antropólogo Darcy Ribeiro (Zanini, 1983) faz distinção entre as modalidades gerais dessas culturas, em função dos seus sistemas adaptativos de ordem geográca:
Os
silvícolas – vivem em regiões de orestas
com vegetação densa e clima úmido; Os
campineiros – vivem em regiões do
cerra-do, com vegetação mais rasteira e clima seco. A quantidade de animais é mais escassa. Seu sistema agrícola é inferior ao dos silvícolas. Ambas as modalidades são produtoras de uma grande quantidade de artefatos manuais primoro-sos, de cestaria, cerâmica, tecelagem e plumária. Os objetos confeccionados pelos povos indí-genas eram considerados, até há poucos anos, mero documento etnográco. A história da arte moderna começou, então, a avaliar parte desses objetos como fatos artísticos e como pontos de referência estética.
Um estudo global dessas comunidades evidenciou a importância da criatividade artística como ele-mento de integração cultural nessas sociedades. Para os índios, as atividades artísticas fazem parte da vida cotidiana. Todos têm tempo livre, dedica-do ao lazer, ao fazer artístico e ao convívio social. A pintura, a escultura, a arquitetura, a decoração, a música, a dança, são todas, manifestações de igual valor expressivo. Todos os elementos da comuni-dade participam do processo como críticos e como autores. Logo, não existe acervo, pois o produto é feito com função e uso determinados, conrmando, assim, a identidade particular de cada comunidade. Três gêneros artísticos destacam-se pela relevân-cia e meticulosidade estilística. São eles: efêmeros,
perecíveiseduradouros.
1.2.1 Gêneros artísticos efêmeros
Em rituais cerimoniais, muitos se expressam atra-vés da pintura corporal – desenho sobre a pele de
formas abstratas e cores variadas. A arte do corpo não é feita de maneira aleatória, é determinada pelo ritual e é condizente com o signicado de cada um deles. Cabe a cada indivíduo ressaltar sua beleza dentro das normas preestabelecidas.
1.2.2 Gêneros artísticos perecíveis
Alguns povos indígenas dão especial atenção aos
cortes de cabelos, aos adornos de lábios, narinas e
orelhas; outros adotam adornos e diademas plu-máriossobre a cabeça; e muitos utilizam arranjos de decoro– braçadeiras, tornozeleiras, tangas, cin-turões, faixas e colares, que são feitos de miçan-gas, sementes, dentes, plumas, cipós e tecidos. Todos esses adereços colocados no corpo pintado servem para identicar o tipo de ritual realizado. As máscaras são objetos ritualísticos elaborados com palha, madeira, pigmentos, etc. Utiliza-se uma guração grotesca e/ou abstrata para simbo-lizar o imaginário coletivo do bem e do mal, con-forme as manifestações místicas dessas culturas.
Gênero artístico efêmero. Pintura corporal indígena
Máscaras ritualísticas., Índios Tukuna.
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1.2Produçõesartísticas
decarátercoletiv o
Os trançados – cestos, abanos, peneiras, esteiras e redes são produtos elaborados e sua duração também é relativa, pois a matéria-prima empre-gada consiste de folhas, cipós, talos e bras. A complexidade na combinação das tramas resulta num trançado de formas geométricas.
1.2.3 Gêneros artísticos duradouros
Incluem-se, nesse gênero, os objetos cerâmicos e as edicações coletivas. A cerâmica da cultura indígena atual adota processo semelhante ao das culturas pré-coloniais, visto na unidade anterior. Destacam-se aqui, oslicocós– peças pequenas de cerâmica que retratam homens, mulheres e crian-ças com corpos pintados e adornados. Eles são semelhantes às Vênus Esteatopígias, do período paleolítico superior europeu.
As primeiras culturas indígenas deram um caráter próprio e inconfundível aoslicocós: posição estáti-ca, estilizada, desproporção das partes do corpo, movimentos leves e simplicidade temática. Já nas produções atuais, oslicocósretratam os hábitos da vida cotidiana: cenas em movimento de formas estilizadas, vazadas e policromadas. São temas narrativos que procuram o resgate de seus mitos. Asmalocassão moradias edicadas pelos homens. As construções são realizadas da maneira mais ru-dimentar à mais complexa, conforme o estágio cul-tural de cada tribo indígena. Existem malocas cuja função é apenas abrigo. As mais elaboradas
tor-nam-se símbolo da comunidade, pois exprimem a capacidade do trabalho coletivo e o poder da lide-rança tribal. Normalmente, elas têm uma congu-ração com bases circulares ou ovais e o teto cônico, considerados de grande valor arquitetônico.
Outro modelo de moradia é o de formato qua-drangular, telhado de duas águas, podendo abri-gar centenas de pessoas. Os sistemas de cobertu-ra são variados, a depender da matéria-prima de cada região: galhos e palhas, folhas de sororoca, toldos de esteiras de cana e palmas.
A arquitetura moderna emprega o concreto ar-mado em suas edicações e pode apropriar-se de inúmeras formas cônicas como elemento de liber-dade formal e técnica. Um exemplo é a Igreja de São Francisco de Assis de Belo Horizonte projeta-da pelo arquiteto Oscar Niemeyer. Você conhece formas similares em outras construções?
Para reetir
O que signica para você o artesanato indígena? É um objeto de decoração ou de uso? Você já dormiu em uma rede? Como se sentiu?
Cesto Carguerio, katari anon - Índios Wayana-Aparaí
Maloca indígena
Igreja São Francisco de Assis. 1943. Pampulha, Belo Horizonte – MG. Oscar Niemeyer, arquiteto.
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4 M A T R I Z E S C U L T U R A I S D A A R T E N O B R A S I LAs linguagens visuais podem apresentar simi-laridades, mas o que se deve levar em conta é o contexto cultural em que ela foi criada. É preciso querer “olhar para ver” as diversidades, além das semelhanças.
Texto Complementar
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.Ludimília Justino de Melo Vaz
Arte rupestre é o termo cunhado especicamen-te para referir-se ao comportamento do homem deculturas ágrafasde representar grasmos em suportes rochosos. São as pinturas e gravuras ins-critas em paredões rochosos, ou grandes blocos aorados, que algumas vezes proporcionaram ambiente para o abrigo humano.
As inscrições rupestres registram o impenetrável mundo simbólico das populações pré-históricas. Não se sabe o que representavam estes desenhos ou qual a sua função no grupo, mas são admirá-veis as formas e as cores que perduram ocultas nas paisagens rochosas.
No tempo presente o homem contemporâneo permanece utilizando paredes como suporte para se expressar, no entanto, estes grasmos diversos – pichações, grates, palavras de ordem, declara-ções de amor – contém outros signicados sociais, que devem ser compreendidos dentro do contex-to a que pertencem. Comumente esta confusão é feita na intenção de estabelecer parâmetros entre as diferentes manifestações. Contudo, cada siste-ma simbólico deve ser compreendido dentro do seu próprio contexto.
Observe como as classicações que fazemos das formas estéticas do passado são puramen-te convencionais, realizadas a partir do ponto de vista das noções artísticas do nosso tempo. São tentativas de entender culturas das quais temos apenas vestígios.
Apesar de a arte rupestre constituir um objeto xo que está exposto ao consumo visual, a sua função não era a de uma obra artística como entendemos hoje. Ela tinha a nalidade de transmitir e reforçar o conhecimento cultural do grupo, provavelmen-te, em situações rituais.
Para Upiano Bezerra de Meneses (1983), o ponto frá-gil para a apreciação da manifestação artística do pe-ríodo Pré-colonial é fundamentalmente acreditar na existência de uma categoria à parte de objetos de-nidos como artísticos. É assim que alguns objetos que não tem nalidade utilitária são enquadrados no âmbito artístico, tais como os adornos e enfeites. Porém, até estes objetos tiveram um signicado social bastante relevante para as sociedades pré-coloniais, as formas estéticas estavam incorpora-das aos artefatos ou utensílios do uso cotidiano, não havendo a categoria de objeto artístico dis-sociada da função utilitária. Através deles estavam impressas formas estéticas e valores, tais como, posição social, descendência, faixa etária, entre outros. A arte rupestre, como expressão do co-Saiba mais
O que ler:
Maria Heloísa Fénelon Costa. Berta Ribeiro;
Aonde ir:
Lavras e Louvores. Museu de Antropologia da Universidade Federal de Goiás. Praça Universitá-ria. Goiânia – GO
O que assistir:
SérieO povo brasileiro(matrizes indígenas) – you-tube
Exposição sobre Gilberto Freyre – Youtube Casa da cultura da mulher negra –Canal Futura
4 M A T R I Z E S C U L T U R A I S D A A R T E N O B R A S I L
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Arterupestrebrasileira.
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Para reetir
“Antigamente a gente tinha muitos adornos de penas, eram grandes e grossos, muito mais bo-nitos que os de agora. Mas naquele tempo não se precisava de tanto trabalho para conseguir as penas: o pajé cantava e elas vinham voando; vi-nham penas de tucano, de arara, de japu para fa-zer os colares das mulheres e aqueles diademas grossos”. (Ribeiro e Ribeiro, 1957:79).
nhecimento cultural destes grupos, estava mistu-rada à vida cotidiana – ritual, festividade, enterra-mento – sem que os seus autores distinguissem entre um signicado e outro.
Panorama da arte rupestre
no território brasileiro
No território brasileiro são encontrados cente-nas de paredões rochosos com arte rupestre. Os primeiros habitantes nos limites do Brasil viviam da caça e da coleta, seu modo de vida exigia que circulassem em diferentes ambientes ecoló-gicos em busca dos recursos necessários para a manutenção do grupo. Os caçadores coletores estabeleciam-se em acampamentos temporários sob abrigos rochosos, onde manifestavam suas crenças, realizavam rituais, enterravam seus mor-tos. Posteriormente, quando o homem aprende a cultivar plantas, ele se torna sedentário, constrói sua moradia, aumenta o número de membros da comunidade, mas continua fazendo excursões em abrigos rochosos, para a caça, pesca ou coleta de recursos diversos e também para ns rituais. Nas investigações arqueológicas nem sempre é possível encontrar correspondência entre as pin-turas do paredão e os diferentes grupos cultu-rais que ocuparam o abrigo rochoso ao longo do tempo. Isto se dá porque, ao escavar o terreno de um abrigo, são encontrados vestígios de agricul-tores ceramistas, nas camadas superciais do solo e de caçadores coletores nas camadas mais pro-fundas. E o arqueólogo só poderá associar a arte rupestre a um desses níveis temporais se encon-trar vestígios desta atividade, como por exemplo, restos de pigmentos.
As classicações estilísticas baseadas nos critérios formais, técnicos e temáticos dos painéis de arte rupestre, têm sido utilizadas por arqueólogos para compreender as dispersões e mudanças culturais desse complexo universo de imagens.
Para compreender a diversidade da arte rupestre no Brasil vamos apresentar um quadro geral, ba-seado nas investigações e registros arqueológicos sistematizados por André Prous (1992). Conforme vamos observar, algumas áreas especícas conso-lidaram determinados modos ou estilos de fazer grasmos rupestres, baseados em técnicas,
temáti-cas, formas e cores, e que apresentam uma grande distribuição territorial. Nos estudos arqueológicos estes conjuntos são chamados tradições, uma vez que incluem certa variabilidade dentro do conjun-to, provocada pela dinâmica cultural. Esta classica-ção tem sido utilizada como parâmetro de similari-dade a cada vez que um novo painel é identicado e estudado (PROUS, 1992; GASPAR, 2003)
De um modo geral, as gravuras, também chama-das petroglifos, parecem pertencer a contextos sócio-culturais distinto das pinturas, mas algumas vezes se interpenetram.
Para a elaboração da gravura era usada uma rocha que servia de artefato para o picoteamento ou fric-ção do suporte rochoso. Os painéis gravados cons-tituíam desenhos geométricos e formas humanas. Sobre os grasmos geométricos não podemos deixar de dizer que estes participavam ativamen-te dos códigos de linguagem visual encontrados no território brasileiro. As formas, que para nós são abstratas, tinham um signicado reconhecido e aceito pelos grupos pré-históricos, tanto que, muitos desses desenhos se repetem em diversos painéis, demonstrando a aceitação da representa-ção iconográca (VAZ, 2005).
No Rio Grande do Sul um conjunto de gravuras de temática geométrica apresenta-se alinhado nas es-carpas do Planalto, corresponde à Tradição Meridio-nal. A temática pode ser dividida em dois grupos. Um que se caracteriza pela ocorrência de círculos maiores rodeados por círculos menores, sugerindo pegadas de felídeos. E a outra apresenta traços retos paralelos ou cruzados e as vezes curvos. A unidade gráca formada por três linhas que partem do mes-mo vértice, conhecida por “tridáctilo”, é identicada em diversos painéis gravados.
Gravuras da tradição Meridional. Canhemborá. Nova Palma – RS. Fonte: Prous (1992).
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4 M A T R I Z E S C U L T U R A I S D A A R T E N O B R A S I LNas ilhas litorâneas do estado de Santa Catarina os locais sinalizados estão a cerca de 15Km da costa, são de difícil acesso e até mesmo perigosos. Este conjunto foi denido como tradição Litorânea Ca-tarinense. Os painéis rupestres orientam-se para o alto-mar, sugerindo uma mensagem endereçada para quem chega do oceano. Os grasmos são com-postos por linhas sinuosas, círculos concêntricos e guras humanas bastante esquemáticas.
No continente, no planalto brasileiro que vai da região Sul até a Nordeste as gravuras são identi-cadas como Tradição Geométrica, encontram-se nos estados de Santa Catarina, Paraná, São Paulo, Goiás, Mato Grosso e Paraíba. Pode-se dizer que se caracterizam por motivos geométricos inexis-tindo quase completamente representações gu-rativas. São predominantes as depressões esféri-cas, destacando-se também os “tridáctilos”.
As gravuras da tradição Geométrica no Nordeste do Brasil estão nas imediações de rios e cachoeiras, al-gumas vezes sujeitas às enchentes sazonais. A Pedra Lavrada do Ingá, próxima ao município de Campina Grande, na Paraíba é uma obra de tamanho monu-mental, o bloco rochoso tem 24 metros de largura por três metros de altura. A maioria dos desenhos são sinais não identicados, mas existem também guras zoomorfas e antropomorfas.
Os pigmentos empregados na arte rupestre são predominantemente de origem mineral. Os óxidos minerais foram empregados para a obtenção dos pigmentos vermelho e amarelo. O branco, tam-bém de origem mineral, é encontrado em forma-ções calcárias. O preto é proveniente do carvão de vegetais ou de ossos. Os pigmentos penetram nas ssuras da rocha incorporando-se a ela, o que tem proporcionado longa durabilidade (LAGE, 2002) O conjunto classicado como tradição Planalto apresenta guras basicamente monocrômicas, estão espalhadas desde a fronteira entre Paraná e São Paulo até a Bahia. As pinturas foram produ-zidas por pigmentos vermelhos, mais raramente aparece o preto, o amarelo e o branco. A temática representa animais, que ocorrem em maior fre-qüência que os desenhos geométricos, enquanto que as guras humanas são raras.
No Vale do Rio São Francisco em Minas Gerais, Bahia e Sergipe ocorrem painéis rochosos de pin-turas caracterizadas pelo uso intenso da bicromia, agrupados na Tradição São Francisco. As cores vermelha, amarela, preta e branca dão grande in-tensidade aos painéis de grasmos geométricos (Fig. 7). A temática abstrata é predominante em relação às guras de animais e humanos. Os raros
Gravuras da tradição Meridional. Sítio Josefa – RS. Fonte: Prous (1992).
Gravuras da tradição Litorânea Catarinense. Ilha dos Corais. Fonte: Prous (1992).
Gravuras da tradição Geométrica meridional. Morro do Avencal (SC) Fonte: Prous (1992).
Pedra Lavrada, Ingá (PB).
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zoomorfos são quase que exclusivamente peixes, pássaros, cobras, lagartos e tartarugas. Ocorrem representações isoladas de pés humanos, armas (lança, propulsores), instrumentos (cestos, tipiti, panela, maracas).
Nos municípios de Montalvânia e Januária, em Minas Gerais, região do São Francisco as investi-gações arqueológicas revelaram que a ocupação mais antiga da área se deu por volta de 11.000 a.C. Diversos grupos culturais se sucederam ali até o período histórico. O resultado dessa diversidade cultural se manifesta nos paredões rochosos, que apresentam, além das pinturas geométricas poli-crômicas, outros grasmos semelhantes aos en-contrados no Parque Nacional Serra da Capivara – PI, representando humanos em cenas de ação (PROUS et al., 1984, p. 47-58).
O maior acervo de pinturas rupestres está implan-tado no Parque Nacional da Serra da Capivara, no Piauí. A formação geológica composta por uma cuesta – imensa linha de paredões verticais – abri-ga um nicho ecológico favorável à ocupação pré-histórica. Neste contexto e em suas adjacências já foram registrados mais de 500 painéis rochosos com pinturas e gravuras rupestres.
Nesta área podem ser identicados dois conjun-tos de pinturas rupestres. Um deles, denominado tradição Agreste, tem como elemento denidor as guras animais ou humanas isoladas, de grande ta-manho, dando destaque ao painel. O outro conjun-to classicado como tradição Nordeste, caracteriza-se pela abundância de guras humanas agrupadas e formando cenas de expressão dinâmica.
A tradição Agreste é encontrada, além do Piauí, nos estados do Ceará, Rio Grande do Norte, Para-íba e Pernambuco. Os painéis pintados são com-postos por vários sinais acompanhados por ani-mais ou guras humanas, que costumam ser de tamanho grande, destacando-se no conjunto das pinturas. A gura humana pode ser representada de modo isolado ou em raras cenas de poucos personagens. Os animais geralmente são estáti-cos, havendo emas, quelônios e pássaros de asas abertas e longas pernas, alguns com tendência ao antropomorsmo. Há grandes guras geométri-cas bem elaboradas e carimbos
As cenas de temática reconhecível da tradição Nor-deste sugerem caça, dança, guerra, cópula, rituais, etc. As guras humanas seguram armas (bastões, propulsores), cestas e outros. Estas pinturas forne-cem informações sobre a vida cotidiana, as crenças,
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Os desenhos gurativos são chamados de antro-pomórcos quando representam a gura huma-na, e zoomórcos na representação de animais. O antropomorsmo, por sua vez, indica a gura animal com caracterização humana, como, por exemplo, a posição ereta com os membros supe-riores abertos. A frontalidade da gura animal, que sempre é representada de perl, neste caso, seria uma tendência ao antropoformismo. Este termo busca descrever guras de âmbito regional, não sendo, convencional a todos a arte rupestre.
Representações de animais da tradição Planalto. Pinturas. Fonte: Prous (1992).
Grasmos policrômicos da tradição São Francisco. Lapa do Boquete, Januária (MG). Fonte: Gaspar (2003).
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4 M A T R I Z E S C U L T U R A I S D A A R T E N O B R A S I Las manifestações rituais daqueles povos. Entre os animais dominam as emas, os cervídeos e peque-nos quadrúpedes. As cenas de caça são as mais re-presentadas, compostas por um ou mais animais, por caçadores e artefatos utilizados para este m.
As investigações arqueológicas na Serra da Capi-vara têm dado importantes informações sobre a presença humana na pré-história das Américas, re-cuando sua antiguidade a cerca de 50 mil anos. O processo de ocupação da região deu-se de maneira contínua. A manifestação pictural aparece ainda no Pleistoceno, período em que a clima sofria baixas temperaturas, a cerca de 29.000 anos atrás. Mas as expressões parietais constituídas nos padrões esti-lísticos recuam a 12.000 anos (PESSIS, 2003).
A região do Parque Nacional Serra da Capivara pa-rece ter sido o berço da Tradição Nordeste caracte-rizada pelas cenas de ação, considerando a quan-tidade e diversidade dessas pinturas na região. Os grasmos de ação estendem-se pelos estados de Pernambuco, Rio Grande do Norte, Bahia, Ceará, Minas Gerais e Goiás. A dispersão do estilo pode estar ligada à expansão do grupo cultural provo-cada pelo crescimento demográco.
As pinturas da região do Seridó, no Rio Grande do Norte, correspondem a uma variação da tra-dição Nordeste. Os grasmos da região do Seridó destacam-se pela representação humana de boca aberta, talvez simulando um “bico de pássaro”. As guras têm tamanho pequeno, geralmente, pinta-das com traço no com tinta líquida vermelha.
A temática gurativa na composição de cenas se estende até a região de Lagoa Santa, no estado de Minas Gerais. Nesta região são encontrados painéis pintados cuja particularidade está na fre-qüência de guras derivadas da forma de pássaro. Encontram-se aves de asas abertas e pequenas guras antropomorfas de corpos lineares e com bico de pássaro. Na Lapa do Ballet estão represen-tadas duas las de guras humanas com identi-cações de gênero, as mulheres são identicadas pelo volume do ventre e os homens pelo falo.
Pinturas da tradição Agreste. Parque Nacional da Serra da Capivara (PI). Fonte: Gaspar (2003).
Grasmos de reconhecimento. Tradição Nordeste. Serra da Capivara – PI. Fonte: Pessis (2003).
Grasmos reconhecimento. Tradição Nordeste. Serra da Capivara – PI. Fonte: Pessis (2003)
Grasmos de ação. Tradição Nordeste. Seridó – RN. Fonte: Pessis (2003).
Representações de gênero. Lapa do Ballet, Lagoa Santa – MG. Fonte: Prous (1992).
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Os desenhos esquemáticos correspondem àque-les que representam apenas elementos essenciais para o reconhecimento do objeto real. As guras humanas esquemáticas estão representadas por tronco, membros estendidos e cabeça apenas delineada, sem detalhamento de pés, mãos ou articulações que poderiam sugerir movimento.
A Tradição Nordeste também é identicada em situações pontuais no sudoeste do Mato Grosso. Na Bacia do Rio São Lourenço foram encontra-dos diversos abrigos com pinturas e lajeencontra-dos com petroglifos. Em meio às inscrições geométricas predominantes no contexto regional as represen-tações de guras humanas em ação são quanti-tativamente minoritárias. As cenas reconhecíveis mostram parto, caça e situações rituais.
A tradição Amazônica abrange pinturas e gravuras localizadas nos estados do Pará, Roraima, Amapá, Rondônia e Mato Grosso. Só no baixo Rio Ama-zonas foram identicados mais de uma centena de inscrições rupestres, sendo identicados pelo menos dois estilos de pinturas diferentes. Nesta região os painéis estão compostos por guras hu-manas simétricas e geometrizadas, que medem cerca de 50cm de altura. Os antropomorfos estão em posição estática, o tronco é retangular preen-chido por linhas cruzadas. Os diferentes painéis mostram cabeças humanas gravadas, geralmente radiadas, bastões e linhas curvas gravadas, pintu-ras de retas e retângulos preenchidos com traços, além das guras humanas esquemáticas de mãos dadas. São, também, recorrentes os desenhos de mãos, algumas vezes preenchidos com círculos concêntricos (Fig. 13).
Os estudos na Caverna da Pedra Pintada, locali-zada no município de Monte Alegre no estado do Pará, revelam que os caçadores coletores se adaptaram também à oresta tropical. As data-ções radiocarbônicas situaram as primeiras ocu-pações entre 11.200 e 10.000 anos atrás, datas que correspondem às camadas com concentração de pigmento utilizado nas pinturas. As guras rupes-tres são grasmos geométricos, diversos animais e cenas de caça e parto, além de impressões de mãos de crianças e adultos.
A antiguidade das manifestações
rupestre em Goiás
A ocupação do Planalto Central, nas divisas do es-tado de Goiás, teve início a 11.000 anos atrás. Nos municípios de Serranópolis e Caiapônia as forma-ções rochosas de relevo tabular instalam locais que serviram de abrigos para grupos humanos no passado. A estratigraa dos grandes abrigos com arte rupestre indicou a presença dos caçadores-coletores nas primeiras ocupações e de agriculto-res ceramistas nas mais recentes.
No município de Serranópolis estão concentra-dos cerca de 40 abrigos de ocupações humanas, as ocupações mais antigas são datadas em ao me-nos 10.500 ame-nos A.P. As pinturas eram feitas com tinta líquida aplicada com um “pincel” ou dedo ou com pigmento seco riscado na rocha. O tamanho predominante das guras é de 15m a 30 cm, mas existem guras com alguns poucos centímetros e outras que atingem até um metro. A cor mais fre-qüente é o vermelho, mais raramente aparecem o amarelo, o preto e o branco (SCHMITZ, et al.,1984). A temática compõe-se de guras animais, hu-manas e geométricas. Os animais são variados: lagarto, tatu, tartaruga, macaco, veado, ema, se-riema, arara, papagaio e outras aves (Fig. 14). As guras humanas são raras e as pisadas humanas aparecem com certa freqüência. Os grasmos ge-ométricos podem ser círculos, elipses, triângulos, losangos, retângulos, e ainda linhas retas, que-bradas e curvas. As guras podem estar vazias ou preenchidas (SCHMITZ, 1984).
Em Serranópolis as gravuras aparecem nos abri-gos, junto às pinturas. As pinturas eram executa-das, geralmente, sobre as partes mais lisas e duras
Cabeças humanas. Monte Alegre – PA. Fonte: Pereira (2003).
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4 M A T R I Z E S C U L T U R A I S D A A R T E N O B R A S I Lda rocha, enquanto que os petroglifos aparecem nos arenitos mais moles. Existem também abri-gos exclusivamente com gravuras. Neste caso, a temática se caracteriza por geométricos lineares formando ângulos, guras fechadas, círculos pre-enchidos com raios, grades, elipses, pés de felinos e de humanos, folhas, entre outros. Os únicos mo-tivos elaborados a partir das duas técnicas são fo-lhas e pés. A diversidade de motivos gravados não permitiu um indicador de semelhança estilística, porque alguns grasmos têm ampla distribuição no território brasileiro (SCHMITZ, 1981/82, p. 415). Na região de Caiapônia as técnicas de pintura são as mesmas empregadas em Serranópolis – a tin-ta líquida aplicada com “pincel”, a pintura a dedo e o bastão seco. O pigmento mais comum foi o vermelho, raramente aparecem o preto e a poli-cromia do vermelho e amarelo e/ou preto. As -guras humanas, em tamanho pequeno, cerca de 10cm, representam cenas de ação. Entre os ani-mais estão representados os veados, antas, tatus, tartarugas, onças, aves, macacos e peixes. Algu-mas vezes os animais compõem cenas com hu-manos ou são representados em bandos. Os pei-xes, por exemplo, podem estar aos pares ou em cardumes. Os geométricos ocorrem em menor quantidade, correspondendo a círculos concên-tricos, losangos geminados, lineares, entre outros (SCHMITZ, et al.,1984).
Em Caiapônia foram localizados três abrigos com
petroglifos em uma área de inúmeros abrigos pin-tados. Os desenhos lineares e fechados aparecem juntos a pés e guras humanas. As “cruzes” são os únicos desenhos coincidentes nos petroglifos e pinturas. Foram realizados pela técnica de abra-são e picoteamento; os sulcos abra-são preenchidos com pintura vermelha ou preta. O picoteamento parece mais recente do que a técnica de abrasão (SCHMITZ, 1981/82).
Pinturas e gravuras são encontradas ainda em ou-tras regiões do estado de Goiás como em Formo-sa, Serra de Jaraguá, Planaltina de Goiás e Nique-lândia. A arte rupestre nestes locais apresenta um alto nível de degradação provocado por fatores diversos, entre eles, a intervenção nos painéis fei-ta pela população atual com inscrições a carvão e o uso dos locais para atividades atuais.
Signicados da arte rupestre
na contemporaneidade
Depois deste panorama é possível compreender a diversidade dos grupos culturais e a vastidão do território brasileiro por eles ocupado no pe-ríodo pré-histórico. Vale ressaltar, no entanto, a fragilidade deste acervo exposto às intempéries e ao processo de ocupação e usos contemporâ-neos destes locais. Muitos paredões rochosos têm sido destruídos dando perda irreversível à arte rupestre.
A preservação da arte rupestre como patrimônio cultural exige ações e intenções especícas, que lidam com a apreciação da arte, com a conser-vação do patrimônio e com a continuidade das pesquisas. Trabalhando dentro desta dinâmica de interesses é que a Fundação Museu do Homem Americano, juntamente com o IBAMA elaboraram um Plano de Manejo para ser aplicado no Parque Nacional da Serra da Capirava (GUIDON, 2002). Para alcançar o desenvolvimento econômico e social auto-sustentável, que envolvesse a popu-lação local, optou-se pelo turismo. As belezas naturais do Parque aliadas aos vestígios da pré-história foram os grandes atrativos da região. Com este intuito, o Parque foi preparado para a visitação com abertura de estradas e trilhas de acesso, colocação de passarelas para a condu-ção do público nos sítios arqueológicos, além da
Pinturas, Serranópolis – GO. Fonte: Fundação Bienal (1984).
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preocupação com a higienização do Parque e conservação dos painéis de pinturas rupestres. A preservação do patrimônio arqueológico se justica, além de outros fatores, pelas referências que traz do passado pré-histórico e pelo teste-munho do processo de mudança atravessado pela humanidade.
A arte rupestre é um sistema de signicação do passado que emerge na contemporaneidade com outros sentidos. As manifestações estéticas da pré-história podem produzir vínculos afetivos do homem com o seu espaço, com a sua terra mátria, na medida em que é conhecida e entendida como pertencente aos diferentes grupos sociais que constituem o povo brasileiro.