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Famigerado : pela Visão da Linguagem

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Academic year: 2021

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“Famigerado”:

pela Visão da Linguagem

Caroline de Morais*

Considerações iniciais

O conto Famigerado é mais uma comprovação da excelência de Guimarães Rosa em ultrapassar os marcos do espaço regional e aden-trar na universalidade. Esse conto possui inúmeras características que podem reportar a diversas análises e cortes epistemológicos, porém o estudo a seguir terá como foco a perspectiva linguística que a estória transpassa através de seu título e, também, no decorrer da aventura, su-bentendo a distinção que a instrução pode causar na vida das pessoas de classes sociais diferentes. Por sua vez, o conto por ser o segundo do li-vro, também, pode direcionar a leitura dos contos seguintes, indicando ao leitor diferentes abordagens, este poderá optar por diferentes visões, partindo de sua sensibilidade.

Por vários anos Guimarães Rosa trabalhou de forma curiosa em pesquisas feitas acerca da língua do sertão, trabalho esse que era de

al-* Doutoranda em Letras pela Associação Ampla Universidade de Caxias do Sul (UCS) e Centro Universitário Ritter dos Reis (UniRitter). Mestre em Letras, Cultura e Regionalidade na Universidade de Caxias do Sul (UCS), Caxias do Sul, RS.

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cançar o íntimo do sertanejo e compreender a utilização da linguagem própria do sertão. Pela riqueza desses estudos, o leitor tem acesso a obras incríveis de cunho regionalista que atingem o universal, através de uma análise mais apurada.

A obra Primeiras Estórias é formada de vinte e um contos que abordam desde a oposição bem e mal, Deus e diabo, indo a temas como loucura, infância, sentido da vida, violência, amor, também há um lado místico, onde todos os detalhes estão interligados. A obra apresenta um dos melhores momentos de Guimarães Rosa ao reunir diversos contos de caráter que se complementam, os quais dão um sentido único ao ver o livro em seu todo.

Cada conto está ligado ao outro, seja na sua forma, seja no seu de-senrolar, um serve de explicação e espelho ao outro, sendo que as ocor-rências podem ser vistas de muitos ângulos, justificando os caminhos epistemológicos seguidos por diferentes estudos acerca de alguns con-tos. Dessa forma, a obra pode ser observada como interligada, quando se tem a visão de recorrências que vão e voltam em alguns contos, ou como diferenciada, na medida em que se interpela cada conto indivi-dualmente, sem a noção de conjunto. Porém, para essa visão de con-junto faz-se necessário uma análise cuidadosa e muitas vezes fruto de um amadurecimento ao encarar a obra rosiana. Tem-se nas palavras de Daniel (1968, p. 175) esse aspecto:

Apesar do seu título um pouco enganador, apresenta este último volume (Primeiras Estórias) a obra mais profunda e madura do autor, tratando em forma sucinta os conflitos e arrebatamentos do espírito humano no seu caminho ascensional. O fato, porém, de serem escritas várias estórias do livro numa veia satírica e alegre, como leitura divertida, empresta à obra total um tom de desigual (grifo meu)

Portanto, é possível ver Guimarães Rosa ao lado de Machado de Assis, partindo da iniciativa de que ambos têm destaque na literatura pela síntese que fazem de situações e da ideologia que abordam em seus escritos. Dois grandes escritores da Literatura Brasileira que valorizam sua geração e também que reportam a uma visão de universalidade. As-sim, as obras desses autores, podem ser lidas em qualquer momento que ainda estarão perdurando ao longo dos anos, como clássicos atuais.

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O que trata o conto Famigerado?

O conto, inicialmente, traz ao leitor a imagem de sossego que uma paisagem onde nada fora do comum costuma acontecer. No entanto, esse sossego é interrompido pela aparição de cavaleiros com aspectos as-sombrosos. Neste caso, tem-se o doutor em sua vida pacata e sábia, que recebe a não esperada visita de um grupo de cavaleiros. Diante dessa situação, a reação do doutor é ficar nervoso e ter muitas dúvidas ao que trazia tais cavaleiros ao seu recanto.

Com essa primeira impressão o doutor é levado a pensar de forma rápida, valendo-se de que os cavaleiros poderiam matá-lo a qualquer instante. Então, ele deveria se mostrar um homem de pulso firme, mas o que imperava em seu ser era o medo do que pudesse acontecer, já que ele não tinha arma e também se tivesse não faria diferença, pois não tinha a facilidade que seus visitantes têm. Esse medo misturado ao imprevisto é relatado no conto, conforme a passagem: “Senti que não me ficava útil dar cara amena, mostras de temeroso. Eu não tinha arma ao alcance. Tivesse, também, não adiantava. Com um pingo no i, ele me dissolvia. O medo é a extrema ignorância em momento muito agudo. O medo O. O medo me miava” (ROSA, 2001, p. 57).1

Ao começar a se organizar mentalmente o doutor apresenta um enorme jogo de cintura para lidar com a situação a que é exposto. Deixa a covardia de lado e consegue saber o motivo pelo qual trouxe o jagunço ao seu lar. Ainda assim, sente receio que tenham feito invencionices en-tre ele e o jagunço. Não deixa transparecer sua angústia e pensa que se o jagunço tivesse ao menos entrado na sua casa tudo poderia ocorrer de forma mais calma e menos pressionada.

Na continuidade, o que era para ir se esclarecendo acaba se emara-nhando mais, de modo que, no momento que o jagunço se apresentar, o doutor remete a ele toda fama de matador que ele carrega nas costas e se sente ainda mais em apuros e medo, pois se vê enroscado com o sujeito: “Damázio, quem dele não ouvira? O feroz de estórias de léguas, com de-zenas de carregadas mortes, homem perigosíssimo” (ROSA, 2001, p. 58). A sorte do doutor é que o jagunço começa a abrir o jogo e diz que foi à procura dele porque um moço do governo havia lhe procurado.

En-1 Todas as citações subsequentes ao conto Famigerado correspondem ao livro Pri-meiras Estórias (ver referências bibliográficas).

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tretanto, esse fato ainda não era suficiente para o doutor tomar frente da situação, ficando pensativo a respeito do que poderia se suceder. Então, o jagunço pede ao doutor o que significa a palavra “famigerado”, sendo que neste momento fica evidente a falta de instrução do jagunço.

Com menos insegurança, mas ainda receoso o doutor detém por algum tempo a resposta, pensando na melhor maneira de explicar ao jagunço o significado do vocábulo em questão. Logo, poderiam ter feito intriga entre os dois, no entanto, o jagunço dá mostras do difícil acesso ao significado da palavra quando aponta o fato de que onde mora pou-cos possuem dicionário: “Lá, e por estes meios de caminho, tem nenhum ninguém ciente, nem têm o legítimo — o livro que aprende as palavras... É gente pra informação torta, por se fingirem de menos ignorâncias” (ROSA, 2001, p. 59).

O doutor ainda não sente total confiança no jagunço e pensa muito antes de relatar o significado da palavra. Por mais que o doutor fosse uma pessoa de instrução precisava raciocinar na melhor maneira de sair ileso dessa situação, valendo-se que ele se sentia ameaçado pelo jagunço e os seus capangas. Nesse momento, o jagunço acalma-o e diz que eles são apenas para o testemunho.

Assim, o doutor esclarece o seu sentido de forma culta, ou seja, diz seu significado de forma instruída, o que torna a palavra mais confusa ao jagunço, o qual pede seu sentido de maneira mais simples para que possa ser entendida.

O jagunço agora desconfiado do significado dado pelo doutor pede de várias maneiras se a palavra tem sentido ruim ou que traga desaforo. O doutor mais uma vez relata que a palavra não quer dizer ofensa ne-nhuma. Dessa forma, o jagunço solicita que seja garantida como forma de juramento. Com toda a pressão feita do jagunço o doutor acaba por convencê-lo com a seguinte fala: “— Olhe: eu, como o sr. me vê, com vantagens, hum, o que eu queria uma hora destas era ser famigerado — bem famigerado, o mais que pudesse!...” (ROSA, 2001, p. 60).

Ao final do conto, tem-se o jagunço satisfeito com o sentido do vocábulo e o doutor aliviado por ter saído muito bem da situação. Essa estória traz muitas visões, isto é, diversas formas para uma posterior análise, visto que o doutor deu o sentido de famigerado que lhe cabia, contudo, não é necessariamente o mesmo contexto que cabe ao jagunço.

Guimarães Rosa deixa uma abertura de conversa direta entre o leitor e o narrador, logo, o leitor que pode entender ou não o jogo do texto,

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de forma que possa decodificar e se sensibilizar com o conto, tendo en-tendimento em suas metáforas e acontecimentos. Chaves (1978, p. 93) aborda em seus estudos acerca da obra de Guimarães Rosa esse ponto entre narrador e leitor: “jogo entre o narrador e o leitor, uma vez que a escritura possui um valor metafórico, enigmático, cuja decifração ocor-re no ato da leitura.” Por isso, os contos da obra Primeiras Estórias são recheados de sentido nas suas entrelinhas, percebe-se que para a realiza-ção das peripécias encontradas no volume é indispensável o leitor como agente de encontro entre o texto e o mundo fora dele, o qual o texto está baseado. Dessa maneira, temos a passagem do regional ao universal, uma transposição que só é notada pelo conhecimento do leitor.

A desconfiança das personagens

As personagens que figuram no conto são de mundos opostos, sen-do que ao se encontrarem percebem as suas diferenças, porém no ínti-mo de cada um, a fraqueza é a mesma. A realidade e a ficção andam lado a lado, tão próximas que torna impreciso verificar onde termina uma e começa a outra. Em Famigerado as personagens possuem a desconfian-ça pela personalidade do outro, quer o doutor em relação ao jagunço, quer o jagunço em relação ao doutor. Consoante ao relacionamento de personagens em vista do mundo real e da ficção, Santos Nascimento e Covizzi (2001, p. 60) argumentam:

Esses personagens são propícios à invasão do irreal porque ex-tinguem limites precisos entre a realidade e a ficção. A realidade torna-se ambivalente, a história pode tornar-se estória, ou vice--versa. O texto vai ficando cada vez mais mágico, por alegorização ou figuração de abstrações.

De um lado, tem-se o doutor com uma total desconfiança da visita que lhe é atribuída e, de outro, o jagunço que desconfia do real sentido da palavra procurada. Ao fazer esse estudo pela visão paralela das perso-nagens se perceberá que ambas dispõem do sentimento da desconfiança em algum momento no decorrer da narrativa.

É notável no início da estória a desconfiança associada à covardia do doutor. Pois, no momento em que a personagem expõe que está nervosa,

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concebendo uma grande dúvida, a personagem do doutor logo tem cons-ciência que não pode se mostrar temeroso, por se tratar da chegada do jagunço, com essa pressão do que é imprevisto ele faz uma associação entre o medo e a ignorância. Assim, ele sabe que ao sentir o medo que está presente em seu ser, ele acaba de se tornar ao mesmo tempo ignorante.

Em contrapartida ao momento de desconfiança do doutor tem-se do outro lado do jogo o jagunço mostrando total segurança para o que lhe traz ali. O jagunço é apresentado logo no início como uma pessoa de aspecto seco, curto, com isso é percebido o seu temperamento forte, fator que sobressai ao ser observado. Ainda em sequência ele é visto como um cavaleiro solerte, ou seja, sagaz, com ar desprezivo e remetido à figura de um bravo sertanejo, já que ele próprio representa a figura do sertanejo.

O doutor ao olhar a situação em que se encontrava diante do ja-gunço começa a refletir e a organizar o seu pensamento, enquanto isso o jagunço apresenta sinais de ter força física, mas não ter nenhuma ins-trução, ou seja, um conhecimento apurado. Desse jeito, o jagunço passa a ser notado como um estranhão, perverso, avessado, alarve (selvagem), deixando mais próxima uma impressão para o leitor de que o jagunço possui características de temperamento forte que pode amedrontar as pessoas que não convivem com essa personalidade. Ainda mais que o jagunço, o qual é referido no conto, carrega mortes em seu nome e é conhecido por ser um homem perigosíssimo, extraindo máxima vio-lência de seu ser, como é visto no trecho: “Aquele propunha sangue, em suas tenções. Pequeno, mas duro, grossudo, todo em tronco de árvore” (ROSA, 2001, p. 58).

O medo e a fragilidade estão presentes na personagem do doutor, com base em pensamentos que apresentam a tensão que é sentida pelo mesmo, ele se sente pressionado, ou seja, obrigado a atender o que é so-licitado pelo interpelador. No entanto, que se diz apertado e precisando desentalar-se, uma vez que a sua frente está um jagunço que já sente também um pouco de fragilidade, mas esse sentimento é em decorrência de sua indecisão quanto à posição social, diante de alguém tão instruído como o doutor. Logo, justifica-se essa indecisão do jagunço pelas suas atitudes que não condiziam com uma pessoa que estivesse segura de seu papel na situação: “Encarar, não me encarava, só se fito à meia esguelha. Latejava-lhe um orgulho indeciso” (ROSA, 2001, p. 59). Mas, nem esse não saber deixou de intimar o doutor, que se via interpelado por um sujeito que possui muita força.

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Ao final da narrativa, apresenta-se claramente uma inversão do jogo, onde uma personagem apodera-se do lugar do outro, isto é, quem inicia de forma superior termina inferior, neste caso o jagunço; e quem começa na inferioridade e acaba como superior, assim conclui o doutor. Essa troca é dada pela declaração do doutor ao vocábulo “famigerado”, uma vez que ao dizer o seu sentido, ou o sentido que melhor lhe convém, o doutor mostra que é uma pessoa superior ao jagunço por ter vantagens em ser uma pessoa instruída na vida. Mas também fica implícita a força que o jagunço representa, sendo que o doutor estava com medo de dar a outra resposta, que poderia não satisfizer o jagunço.

Com e declaração do doutor, o jagunço aponta uma enorme des-confiança quanto ao real significado da palavra, interrogando o doutor para que esse explique da forma mais clara. Então, nesse instante, a personagem do jagunço é vista e reconhecida como um ignorante ao desconhecer o sentido de uma palavra, fica explícito o medo de ser en-ganado por não ter esse conhecimento. Como ele mesmo, o jagunço, transparece quando diz: “o que é que é, em fala de pobre, linguagem de em dia-de-semana?” (ROSA, 2001, p. 60). Com essa perspectiva, não há dúvidas que o sujeito reconhece as suas dificuldades no âmbito de conhecer os sentidos da linguagem.

Por conseguinte, esses fatores abordados na estória remetem o leitor ao fantástico que a língua pode proporcionar. Ao saber que os dois per-sonagens poderiam realmente se encontrar e discutir sobre a mesma questão, que é o significado de uma palavra ambígua. Cabe, porém o melhor significado para cada situação, valendo-se que o jagunço foi in-sultado pelo rapaz do governo e não respeitado, como argumentou o doutor. Mostra-se, nesse caso, como é dada a organização social de uma região, com pessoas que são extremas umas das outras, e assim, Guima-rães Rosa torna próximo esse encontro entre extremos, não deixando de dar uma pincelada na cultura do povo, estudando sobre os contos observa-se Rosa e Brait:

As personagens que habitam esse mundo artesanalmente con-feccionado com elementos reais e mágicos derivam da organi-zação sócio-econômica da região [...] Os jagunços, os agregados [...] são entidades que a capacidade criadora de Guimarães Rosa transforma em concretizações da sensibilidade, da consciência pré-lógica e da rica cultura popular (1988, p. 103-104).

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Quem é o jagunço?

O jagunço é o capanga, o tão conhecido cangaceiro, que é criminoso e foragido, ou ainda, é conhecido por ser um homem violento contratado como guarda-costas por algum indivíduo influente. E o jagunço do conto Famigerado não é diferente desse conhecimento empírico que qualquer um reconhece. Ele é como os jagunços que se vê retratado no cinema ou no teatro, com todas as armas postas para uma possível desavença.

É por ser um jagunço fiel ao que as pessoas são acostumadas a iden-tificar, que esta personagem causa tanto pavor ao doutor, que não aceita facilmente o motivo da visita, uma vez que, o doutor morando no sertão sabe que naquele território quem manda é o jagunço. Concebe-se através de sua aparência rude, que jamais ele poderia ser uma pessoa ingênua, como é exposto por Bolle: “em ‘Famigerado’: o médico não acredita na ingenuidade do jagunço que vem procurá-lo só para lhe perguntar o significado de uma palavra; logo desconfia que o outro esteja tramando alguma má ação” (1973, p. 106). Portanto, algumas personagens carregam consigo uma tradição vinda de muitos tempos, já que recebem carac-terísticas próprias de um tipo determinado pela sociedade, e não são vistos com facilidade por outros adjetivos que sejam contrários aos que ele deve obter por imposição de um modelo criado.

Nesse conto é possível apreciar a fala do jagunço, desde seu voca-bulário diferenciado até a sua estrutura sintática requintada. O regiona-lismo é apontado pela realidade do interior, como os dois tipos humanos trabalhados anteriormente e os seus problemas sociais, nesse caso, as diferenças de um com o outro. Guimarães Rosa é original ao colocar em circulação situações que valorizam o local, a linguagem e as personagens, na sua obra. Conforme é apresentado por Daniel:

Quando falamos do autor como regionalista, subentende-se que isto se refere não só à sua representação simpática e viva dos ti-pos regionais de Minas mas também à penetração mais profun-da nos problemas perenes profun-da personaliprofun-dade humana tal como estes se revelam nos homens, mulheres e meninos simples que habitam o Sertão, refletindo a influência desse fator na sua vida (1968, p. 8-9).

A personagem do jagunço traz características dos jagunços que existem pelo mundo afora, como ser valentão, com cara de nenhum amigo,

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ao conservar-se de chapéu, ao carregar a celha, ao apresentar uma farrusca, ao possuir uma catadura de canibal, ao estar de bandas de fora, ao ser intimativo. No entanto, no decorrer do conto o jagunço é visto como uma pessoa de bem, que está em busca de esclarecimento para a sua dúvida e a sua reputação. Ele se apresenta no tocante de uma forma ingênua, que prende o leitor, ao se deparar com alguém que é leigo de alguns princí-pios, ou que ainda não tem em seu círculo pessoas que possam servir de exemplo para suas necessidades. A ignorância do jagunço diante da instrução do doutor faz uma espécie de conquista aos poucos dos leitores, que conhecem o enredo a partir da visão do narrador, que é o doutor.

Diferenças de instrução

Fica muito visível e nítida a diferença que é dada ao conhecimento de uma e de outra personagem, valendo-se de que: o que um sabe o outro não sabe, e vice-versa. As experiências e vivências de cada um são diferentes, uma vez que seus mundos não são os mesmos.

O perfil do jagunço é relatado como uma pessoa sem as maneiras simples de etiqueta, tendo dificuldades em pronunciar algumas palavras e apresentando crença em aspectos religiosos. O que se opõe, de certa forma, ao doutor que usa as palavras de modo meticuloso, selecionando quais devem ser utilizadas, pensando antes de proferi-las. Portanto, esse último conhece o significado da maioria delas, traço que o outro não possui no seu cotidiano.

Apresenta-se de um lado uma personagem que é bem vista e acla-mada pela sociedade, que é o doutor, ou seja, o médico, além de que, ele, por sua profissão, é um órgão competente e necessário para a região, visto como uma pessoa com um status social e também é considerado por ele mesmo como sendo um cidadão de paz. Já quando se fala no jagunço, ele é percebido pelo lado negativo que o jagunço e não a pessoa do ja-gunço traz ao meio em que vive. O jaja-gunço é alguém que não tem muito conhecimento e trata tudo de forma áspera, a curto e grosso modo, as coisas devem decorrer de acordo com a sua vontade, sendo que ele, por ser valentão, possui destreza para matar e resolver o que lhe importuna.

No conto as diferenças são gritantes, mas nenhuma das duas figuras admite suas fraquezas de forma humilde, ambas pensam em manter sua

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posição de superioridade em relação ao outro, valendo-se daquilo que falta em seu adversário. Essa dualidade é observada no artigo de Samczuk (2005) “o jagunço não quer demonstrar a fraqueza de sua ignorância; ao passo que o médico, homem instruído, não sabe muito bem como lidar com aquela situação insólita e, ao lançar o convite, busca iniciar um diálogo para compreender a razão da visita.”

A relação estabelecida da forma humana e social é dada como ve-rossímil, pois o fato de Guimarães Rosa juntar personagens tão distintas e tão características do mundo do leitor em um mesmo conto, que abor-da aspectos corriqueiros que poderiam se realizar em qualquer lugar do mundo, traduz-se na imaginação do leitor. Essa facilidade encontrada pelo autor de relacionar aquilo que se viveu com as páginas de um texto une o leitor com o enredo, as personagens e a estrutura dos contos, que muitas vezes apresentam a coexistência do fantástico e do verossímil, do lógico e do absurdo, da infância e de uma idade mais madura. É pela aproximação da vida cotidiana que Famigerado faz o leitor ter noção do nível de ignorância e esclarecimento de cada personagem.

Exatamente o fator contrastante entre a ignorância e o esclareci-mento é que determina as posições das personagens no conto em questão, com isso são levados a um nível mais alto onde as pessoas são pré-julgadas por conhecer ou não conhecer a língua e as suas possibilidades. Em Bolle esse ponto é visto como normalidade e anormalidade, conforme a pas-sagem: “os normais aceitam o comportamento anormal, mas apenas en-quanto não têm outra escolha ou quando dele podem tirar proveito [...] O médico questionado pelo jagunço não tem alternativa senão responder à pergunta” (1973, p. 107).

Famigerado e o seu sentido

Guimarães Rosa não é tão simples ao escrever, ele busca um leitor que saiba interpretar e pensar acerca de seus contos, pois ele vai além da palavra escrita, nua e crua, ele passa do estado denotativo para o encon-tro do sentido conotativo. Aspectos que fazem de sua obra original no quesito linguagem, por mais que busque uma linguagem regional ne-nhum dos dois tópicos, originalidade e regionalidade, são descartados. Caso esse que é muito bem apresentado no conto debatido nesse artigo.

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A palavra “famigerado” é ambígua, ou seja, possui dois significados distintos e opostos. Seus sentidos são de um lado positivos: que remete a célebre, notável, famigero, que tem fama, importante, que merece res-peito, notório. E por outro lado essa mesma palavra assume um lado de sentidos negativos e pejorativos, como: tristemente afamado, maldito, desgraçado. Dessa maneira, o conto mostra visões diferentes variando de uma interpretação para a outra. Chaves como se pode observar trata desse aspecto em seus estudos: “a narrativa de Guimarães Rosa estabe-lece a dialética da linguagem, incluindo a ambiguidade dos signos neste jogo em que decorre a existência das personagens” (1978, p. 89).

Vê-se a qualidade da linguagem e o aprimoramento da mesma, sendo que o autor utiliza muito do processo de criação de novas palavras ou da junção de diferentes palavras, dessa forma, criando um terceiro vocábulo. É através desse aproveitamento do linguajar regional e de uma pesquisa nos recursos estilísticos que o autor se detém, valorizando ainda mais a sua obra, a qual pode ser observada de diversos ângulos.

Como pode ser considerada no conto Famigerado a palavra que dá nome ao conto é explorada estilisticamente quando o jagunço tenta dizê-la: “— Vosmecê agora me faça a boa obra de querer me ensinar o que é mesmo que é: fasmisgerado... faz-me-gerado... falmisgeraldo... familhas-gerado...?” (ROSA, 2001, p. 59). Valendo-se de seu contexto a questão exposta pelo jagunço demonstra que nem ele, que foi insultado pelo vocábulo tinha conhecimento de como se pronunciava, ou qual era exatamente a palavra que haviam lhe chamado.

O jogo de sentidos do vocábulo salva as duas personagens, pois, o jagunço mantém a sua honra e nome, e o doutor consegue estar livre do outro, sem levar nenhum arranhão. O que acaba bem para os dois lados poderia ter tomado o rumo contrário: “o jogo (refiro-me ainda ao jogo com as palavras) é uma atividade tão vital que pode, em determinadas situações, representar até a salvação do indivíduo, surgindo como ma-nifestação última de sua humanidade” (CHAVES, 1978, p. 89. grifo do autor). Logo, Guimarães Rosa deixa o sentido dessa palavra para que o leitor escolha o que melhor traduz o conto. A mesma questão é aborda-da por Bolle: “O fato de Guimarães Rosa não aborda-dar solução, mas deixar o sentido em aberto, evidentemente é programado; trata-se de um código estético que espera ser decifrado” (1973, p. 104). Com isso, justifica-se ainda mais a preocupação do autor em tornar a sua obra de caráter sério e bem finalizada.

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Sistema educacional e posição social

O conto pode então ser cortado em pontos que determinam as perso-nagens quanto à posição social em decorrência de um sistema educacional, que pode favorecer ou ainda preconizar um indivíduo. As figuras, jagunço e doutor, podem ser vistas como o extremo entre as classes sociais, uma com uma vida cheia de facilidades e a outra enfrentando dificuldades por não ter acesso ao estudo.

A manifestação através da linguagem qualifica o doutor como uma pessoa sábia, instruída e esclarecida, mas não se pode esquecer que o doutor tem um conhecimento advindo de estudos para a sua formação, já o jagunço é mostrado pelas suas dificuldades, ou seja, por ser uma pessoa ignorante, criminosa, que só a tem a força brutal para se defender, e de certa maneira é ingênuo ao procurar solucionar uma questão que o aflige e faz vir à tona a sua falta de conhecimento. A linguagem é, então, abordada com tamanha importância, pois determina características profundas de uma personagem e de uma repartição social.

Remete-se essa diferença de posição social ao que foi abordado no presente artigo como sendo a desconfiança apresentada em cada perso-nagem, ou seja, a classe social levada em conta torna um maior que o outro. Assim, o doutor que sente uma desconfiança unida ao sentimento de covardia e fragilidade do início até a metade do conto, ao se mostrar conhecedor das palavras, muda sua posição, devido ao seu conhecimen-to. Já o jagunço começa superior, mas do meio até o final do conto sente uma desconfiança pela sua fragilidade na sua indecisão social, devido à falta de conhecimento. Por consequência, a desconfiança é vivida pelos dois, mas o que possui instrução – doutor – fica seguro ao verificar sua superioridade pela palavra e o que não possui instrução – jagunço – carrega a desconfiança por não possuir o conhecimento da palavra.

É através da linguagem que se determinam as posições sociais. Juntamente com a personagem do jagunço é observado que o povo do interior não possui recurso para conhecer esse mundo que lhe é defici-tário, o das palavras. Dessa forma, as personagens mostram os proble-mas gerados pela tensão que existe entre a sociedade e os cidadãos, com uma linguagem adequada dita de forma objetiva e direta. Com isso, tem-se não apenas a visão do sertanejo, mas também do homem em ge-ral, ou seja, do universal. Temática também abordada em Rosa e Brait:

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“O sertão aparece como uma forma de aprendizado sobre a vida, sobre a existência, não apenas do sertanejo, mas do homem” (1993, p. 101).

O desfecho do conto é totalmente inesperado, valendo-se de que o doutor disse o que lhe convinha e não o sentido que o rapaz do governo usou para o jagunço. Se o doutor tivesse esclarecido que a palavra possui dois sentidos, o jagunço poderia ficar furioso e fazer qualquer coisa para manter a sua fama, porém, através do jogo de cintura do doutor, o desfe-cho foi de satisfação a ambos. Desta maneira, ele manipulou a situação ao seu favor, sem prejudicar o outro. A possível confusão também foi vista por Castro: “por um triz o que termina em comédia teria termina-do em desgraça. E o mais fantástico: quem decide tutermina-do é a noção de uma só palavra!” (1993, p. 27).

Ao finalizar, nota-se que independentemente da posição social e do sistema educacional o doutor – pessoa favorecida na vida – e o jagun-ço – pessoa não favorecida na vida – têm sentimentos como o medo, a desconfiança e a ignorância. O que determina o grau e a permanência desses sentimentos é a instrução dada ao longo da vida, que favorece aos que têm esse acesso, pois eles se deparam raramente com esses senti-mentos, uma vez que já estão preparados para as situações que possam surgir ou como o doutor no conto, que pensou na melhor maneira de resolver o quadro problemático em que se encontrava.

Considerações finais

Mais uma vez é confirmado o fascínio encontrado na obra de Gui-marães Rosa. Seus contos reportam o leitor ao seu subconsciente de modo a refletir sobre como são as peripécias que acontecem nas suas vidas. Como se pode confiar no enredo de Famigerado que transpor-tado a outros lugares pode ocorrer com pessoas que formam parte das diferentes classes sociais de uma sociedade tanto deste país quanto de qualquer outro.

As personagens abordadas são características do sertão, porém, nada impede que outras personagens com suas próprias funções façam parte do mesmo enredo, no entanto, cabe considerar que essas são escolhidas por motivos relevantes pelo autor. É por essa dedicação que as obras apresen-tadas ao público encantam e repercutem no pensamento dos leitores que

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não se contentam em apenas ler o exemplar, eles querem ir além, o que de certa forma é esperado pelo autor, o qual faz com total esmero.

O realismo fantástico está vivo na obra rosiana, onde é pensado tudo previamente para que se possam estabelecer ligações com o lei-tor. Assim, toda a palavra escrita por Guimarães Rosa não é em vão, elas estão presente para realçar elementos vistos como essenciais pelo autor. Daniel destaca esse foco: “preocupação do autor é o elemento de fantasia, superstição, e crença popular que aparece inúmeras vezes nos presentes textos” (1968, p. 9). Nessas escolhas o autor apresenta uma so-ciedade real e corriqueira nos cotidianos mais comuns, porém não per-cebidos se não estão explícitos e bem marcados.

Somente alguém com tamanho respeito pela Literatura Brasileira como Guimarães Rosa para dispor atenção ao fato da linguagem e do sentido de uma palavra que pode trazer tanto a paz quanto a guerra no desenrolar de uma estória, e por que não, de uma vida. É em análises que se encontram as relações estabelecidas nesse artigo, onde um significado de uma palavra sustenta um sistema educacional inexistente no sertão e uma posição social que se faz em base de conhecimentos negados ou dificultados aos desfavorecidos. No conto trabalhado fica marcada uma expressão do doutor enquanto sente medo do pobre jagunço “O medo é a extrema ignorância” (ROSA, 2001, p. 57). Nesse tom, Guimarães Rosa pode estar usando essa frase como um alerta para que seu leitor não tenha medo de correr as linhas de seus contos e perdurar sua leitura sem que se sinta um ignorante.

Referências bibliográficas

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CHAVES, Flávio Loureiro. Brinquedo Absurdo. São Paulo: Polis, 1978. DANIEL, Mary L. João Guimarães Rosa: travessia literária.

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SAMCZUK, Ingrid Bianchini. Famigerada retórica. 11 dez. 2005. Disponível em: <www.paratexto.com.br/document.php?id=2316>. Acesso em: 11 set. 2007.

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ROSA, João Guimarães. Primeiras Estórias. 15. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.

ROSA, João Guimarães; BRAIT, Beth. Guimarães Rosa. 2. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1988.

Referências

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