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LER/ESCREVER FRANTZ FANON: PROBLEMATOLOGIAS DA SITUAÇÃO COLONIAL 1

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Academic year: 2021

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LER/ESCREVER FRANTZ FANON:

PROBLEMATOLOGIAS DA SITUAÇÃO COLONIAL

1

READING/WRITING FRANTZ FANON: PROBLEMATHOLOGIES OF THE COLONIAL SITUATION

Cesar Leonardo Van Kan Saad2

https://orcid.org/0000-0003-3950-6132 http://lattes.cnpq.br/4948712567940536

Recebido em: 23 de novembro de 2020 Aprovado em: 3 de fevereiro de 2021

RESUMO: O presente trabalho constitui-se num exercício de leitura a partir da produção

intelectual de Frantz Fanon (1925-1961). Para tanto, me vali de seus textos a fim de inter-rogar as prerrogativas filosóficas e epistemológicas em torno do conceito de situação co-lonial. Nesse sentido, tomei os quatro livros publicados do autor, a saber: Pele negra, máscaras brancas (1952), Sociologia de una revolución (1959), Em defesa da revolução africana (1964) e Os condenados da terra (1961), e estabeleci um exercício de história intelectual a fim de explorar a estrutura interna do argumento de Fanon em torno das implicações do colonialismo, a partir de seus diagnósticos nas referidas obras. Nesses ter-mos, a presente investigação tem por horizonte aventar sobre as redes de problemas que estão na tessitura enunciativa do conceito de situação colonial.

Palavras chaves: Frantz Fanon; situação colonial; descolonização.

ABSTRACT: The present work constitutes a reading exercise towards Frantz Fanon's

intellectual production (1925-1961). To this end, I benefited from his texts in order to question the philosophical and epistemological prerogatives surrounding the concept of colonial situation. In that sense, I took the four published books of the author, namely: Black Skin, White Masks (1952), A Dying Colonialism (1959), Toward the African Revo-lution (1964) and The Wretched of the Earth (1961), and established an intellectual history exercise in order to explore the internal structure of Fanon's argument around the impli-cations of colonialism, based on his diagnoses in those works. In these terms, the present investigation aims at advancing on the problem nets that are in the enunciative fabric of the concept of colonial situation.

Key words: Frantz Fanon; colonial situation; decolonization.

“Ler Fanon é vivenciar a noção de divisão que prefigura – e fende – a emergência de um pen-samento verdadeiramente radical que nunca vem à luz sem projetar uma obscuridade incerta. Fanon é o provedor da verdade transgressiva e transicional. Ele pode ansiar pela transformação total do Homem e da Sociedade, mas fala de modo mais eficaz a partir dos interstícios incertos da mudança histórica: da área da ambivalência entre raça e sexualidade, do bojo de uma contra-dição insolúvel entre cultura e classe, do mais fundo da batalha entre representação psíquica e

1 O presente trabalho foi escrito em sua primeira versão como trabalho de conclusão de disciplina intitulada: Frantz Fanon:

Anticolonialismo, Psiquiatria e Política no programa de pós-graduação em História – UFMG, ministrada pelo Prof. Dr. Alexandre A. Marcussi.

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realidade social. Sua voz é ouvida de forma mais clara na virada subversiva de um termo familiar, no silêncio de uma ruptura repentina: o negro não é. Nem tampouco o branco” (BHABHA, 1998, p. 70).

“Reler Fanon, hoje, é também apropriarmo-nos, nas nossas circunstâncias, de algumas questões que ele colocou no seu tempo e que estavam relacionadas com a possibilidade, para cada ser humano e para cada povo, de se erguerem, de caminharem com os seus próprios pés, de escre-verem – com o seu trabalho, as suas mãos, o seu rosto e o seu corpo – a sua história neste mundo que todos temos em comum e ao qual todos temos direito e dele somos herdeiros. Se de facto existe em Fanon algo que nunca envelhecerá, é exatamente este projeto de ascensão coletiva em humanidade. Esta irrepreensível e implacável procura de liberdade necessitava, aos seus olhos, de mobilizar todas as energias da vida. Empenhava cada pessoa, e cada povo, num incrível trabalho sobre si e numa luta de morte, sem limites, que devia assumir como tarefa pessoal, sem poder delega-lo nos outros” (MBEMBE, 2014, p. 272).

“Leiamos Fanon: descobriremos que, no tempo de sua impotência, a loucura sanguinária é o inconsciente coletivo dos colonizados” (SARTRE, 1968, p. 12).

PRERROGATIVAS

Como entrar na “obra” de Frantz Fanon? Os desafios impostos por esse jogo de leitura, enquanto uma escrita que se constitui na tentativa de objetar sobre um “objeto” que se tomará no horizonte intelectivo, escapa não só pela distância temporal e espacial mas, sobretudo, pelos abismos culturais, pelas posições de fala, pela diferença/differance3 que inscreve aqui a

possibili-dade da escritura que ganhará força e consistência nas páginas que seguem. Respeitando todas essas dificuldades e, ao mesmo tempo, tomando-as como um princípio de enunciação, entrar, ou ao menos suspeitar uma entrada, na produção psiquiátrica e de teoria social de Fanon é um exercício de imediato deslocamento. Deslocamento, antes de tudo, daquele que escreve! Isso porque ele arrebata, não há como sair ileso. Ler, reler, escrever Fanon! Muitas são as possibili-dades desse jogo incessante, não fechado, em abertura peremptória aos desígnios do tempo por vir, da leitura por vir, do tempo futuro. E o futuro, tão caro ao projeto político desse pensador ainda tão pouco disseminado entre nós, historiadoras e historiadores brasileiros. Com uma breve vida – Fanon nascera em 1925 em Forte-de-France, na Martinica, e morrera em 1961, com 36 anos, em Bothesa, Maryland, EUA –, mas com uma produção bibliográfica de potência. Publi-cara apenas quatro livros, Pele negra, másPubli-caras brancas (1952); L´Na V de la Révolution algérienne (1959); variados artigos, como “Le symdrome nort-africain, “Racisme et cultura”, dentre outros, compilados em uma publicação intitulada Pour la Revolution africaine, (1969); e em 1961, dias antes de sua morte, sairia publicado Os condenados da terra.

Com essa breve introdução, esclareço meus exercícios de leitura sobre Fanon: investigar, ou melhor, introduzir o problema da situação colonial, conceito que estará presente já em seu primeiro livro, e que ganha amplitude nos demais, principalmente para se compreender a potência sangui-nária do colonialismo e a produção de corpos enrijecidos, assujeitados, dominados e alienados. Compreender a destruição do outro que é transformado em objeto de exploração. A destruição da cultura deste outro, produzindo a mumificação da diferença e retendo o tempo no impedi-mento da transformação. Logo, destruindo as possibilidades do devir. Assim entendida, esta com-preensão da situação colonial é a comcom-preensão dos desígnios do colonialismo e toda a sua estrutura de dominação que colocou três quartos do globo em inesgotável dominação estrutural (BALAN-3 A esse respeito, ver: DERRIDA, Jacques. Gramatologia. São Paulo: Perspectiva, 2011.

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DIER, 2014, p. 33).

Desse modo, a investigação do conceito de situação colonial em Frantz Fanon impõe, por certo, uma provocação inicial. Qual é o melhor recorte a ser estabelecido? Como dispor de um corpus de análise a respeito do conceito, se o mesmo é ponto estruturante em toda a obra do autor? E, nesse caso, vale dizer, um autor que tem uma trajetória de vida tão intensa, ao mesmo tempo com uma obra tão compacta, mas não sem importância, como destacado anteriormente. Uma “obra”, se assim é possível dizer, que não implica em determinações a priori sobre o seu sentido, pois a mesma é tecida em torno da complexidade que a palavra, bem como o fenômeno do colonialismo e suas múltiplas consequências, pode indicar.

Exposta essa primeira dificuldade, eis que surge uma segunda. Como precisar apenas no plano conceitual, epistemológico, um conceito que é, ele mesmo, situacional à economia do argumento fanoniano e que, ao mesmo tempo, remete sempre para uma incidência emergen-cial - se assim é possível colocar -, de expressão ontológica, fenomenológica? Isso é indicativo de que a situação colonial funciona não apenas como um elemento simples, isolável na obra de Fanon, mas como a produtividade mesma de seu modus operandi enquanto potência analítica da “obra”. Assim, disposta como estrutura discursiva do autor, vê-se pelo menos quatro planos. Primeiramente, a fenomenalidade do conceito, isto é, a situação colonial como fenômeno, definição de uma certa realidade – e, aqui, é preciso colocar: a situação colonial como sendo a especificidade de um plano de realidade que emerge com o colonialismo, sua produtividade máxima, um córtex do real que ao mesmo tempo o determina e é, pelo mesmo movimento intelectivo, determinado por ele. A potência real, nesse caso, insurge na transformação de corpos humanos em objetos, objetos de exploração, e mais do que isso, enquanto produtivi-dade dessa relação, em congelar o tempo, em destruir a cultura, quer dizer, tudo que é humano, a partir do contato com essa “máquina colonial”, dessa máquina da produtividade da situação colonial que se enrijece, petrifica-se, congela-se, e é mumificada4.

4 Faço alusão à associação substantiva de “máquina”, conceito presente em O Anti-Édipo, de Deleuze e Guatarri, e das

“máquinas desejantes”. Apresentar uma análise da situação colonial como máquina colonialista do desejo extrapolaria as páginas deste ensaio, mas fica a hipótese. Nesse caso, pensar a máquina colonialista seria pensar a própria relação dese-jante da produtividade do colonialismo, do que resulta uma vez dessa conectividade, dessa produção. Os autores enten-dem que “Tudo compõem máquina. (...) Já não há nem homem nem natureza, mas unicamente um processo que os produz um no outro e acopla as máquinas. Há em toda parte máquinas produtoras ou desejantes, as máquinas esquizo-frênicas, toda a vida genérica: eu e não-eu, exterior e interior, nada mais querem dizer” (DELEUZE; GUATTARI, 2011, p. 12). Logo, o sujeito é ele mesmo maquínico, logo muito mais do que uma posição acabada, um processo maquínico de subjetivação, a produção mesma de subjetividade, desejada, por outras máquinas também de desejo, isto é –; (...) “isso funciona em toda parte: às vezes sem parar, outras vezes descontinuamente. Isso respira, isso aquece, isso come. Isso caga, isso fode. Mas que erro ter tido o isso. Há somente máquinas em toda parte, e sem qualquer metáfora: máquinas de máquinas, com seus acoplamentos, suas conexões” (DELEUZE; GUATTARI, 2011, p. 11), – como síntese produ-tiva, “a produção de produção, tem uma forma conectiva: “e”, “e depois”... É que sempre uma máquina produtora de fluxo, e uma outra que lhe está conectada, operando um corte, uma extração de fluxo” (DELEUZE; GUATTARI, 2011, p. 16). Nesse caso, valeriam os questionamentos: quais são os cortes produzidos pela máquina colonialista? Quais são os fluxos advindos desse mesmo corte? Quais são as sínteses produtivas, isto é, a produção da produção colonialista? Robert J. C. Young em Desejo colonial: hibridismo em teoria, cultura e raça (1995), intenta algumas respostas para essas questões colocadas. Uma vez que o mesmo, apresenta uma análise crítica, em seu sétimo capítulo intitulado “O colonialismo e a máquina desejante”, em que aproxima uma análise do discurso colonialista e a possibilidade analítica dos conceitos de Deleuze e Guattari. Nas palavras do autor: “A máquina desejante oferece um meio de articular o modo violento pelo qual as práticas foram inscritas, tanto física quanto psicologicamente, nos territórios e povos sujeitos ao controle colonial. [...] o que o Anti-Édipo oferece é um modo de teorizar a geopolítica material da história colonial como, ao mesmo tempo, uma narrativa agonística do desejo. Embora proporcionando um paradigma teórico global, a máquina desejante também leva em conta a especificidade do incomensurável, histórias que, ao competirem entre si, são colocadas lado a lado em uniões artificiais pelo colonialismo” (YOUNG, 2005, p. 213). E por fim, Young aponta as consequências da “máquina

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Em segundo lugar, a definição conceitual na estrutura argumentativa das obras de Fanon. A narratividade fanoniana não seria, ela mesma, em seu conjunto, em sua estrutura, a “história” dessa situação, da situação colonial, que é, em si e para si mesma, anti-histórica?5 E, ao mesmo

tempo, como anti-história, Fanon não estaria com isso, na possibilidade que abrem as suas páginas, intentando a relação de um possível vislumbrar para além, em seu diagnóstico, que é, em si mesmo, um chamado para a vida, para a resistência pela vida e para a libertação dessa máquina de produzir corpos mortos ou zumbis6? Em terceiro lugar, a produtividade da situação

colonial e suas consequências psicológicas na produção das estruturas psíquicas dos sujeitos inscritos no colonialismo. Nesse sentido, a análise fanoniana aponta para uma ambivalente relação, em que os sujeitos colonizados, bem como os colonizadores em situação colonial, sofrem efeitos acachapantes. Em quarto lugar, a produção, por parte da situação colonial, de um verda-deiro epistemicídio, para usar a expressão de Ramón Grosfoguel (2016)7. Apesar de não ser o

horizonte do presente trabalho, o epistemicídio produzido pelo colonialismo em relação à des-classificação geopolítica dos saberes e a politização de formas outras de conhecimento, em detrimento do europeu, deve ser enunciado como decorrente das estruturas ontológicas da situação colonial e de sua máquina desejante da morte.

Todas essas questões acompanham o exercício de leitura da obra de Fanon presente nas páginas que seguem, a fim de compreender a centralidade do conceito e, ao mesmo tempo, entrever os diagnósticos do autor a respeito desse difícil e tortuoso (tortuoso porque san-grento) conceito de situação colonial. Assim, construirei uma estrutura argumentativa progres-siva, o que não quer dizer teleológica, partindo de seu primeiro texto – Pele negra, máscaras brancas (1952) – onde emerge pela primeira vez a noção de situação colonial, para em seguida desejante” ao conceito de raça, e da respectiva taxonomia classificatória (decodificações, redecodificações; reterritoriali-zações, etc.), que faz eco, ainda hoje, ao “desejo colonial”. Cito: “O legado repressivo da máquina desejante da história colonial ficou marcado nas consequências das categorias raciais de hoje, que falam de povos híbridos, vivendo juntos: britânicos negros, asiáticos britânicos, asiáticos quenianos, anglo-indianos, indo-anglos, indo-caribenhos, afro-caribe-nhos, afro-americanos, sino-americanos... Os nomes desses duplos em diáspora testemunham uma desaprovação de qualquer cruzamento entre branco e negro. Em termos políticos de hoje, qualquer produto da união do branco com o negro deve ser sempre classificado como negro. Nas categorias raciais do passado, embora a mesma regra fosse posta em prática, não era assim tão simples. Os traços de miscigenação eram seguidos por um interesse e uma atenção furtivos, mas obsessivos e marcados com um fervor taxonômicos por meio do qual podemos vislumbrar uma etnografia extraor-dinária do desejo colonial” (YOUNG, 2005, p. 213). Portanto, um dos pontos de partida a esses problemas encontra-se inscrito pela noção teorizada por Fanon da situação colonial.

5 Introduzindo um problema que aparecerá nas seções seguintes, em torno da mumificação cultural, em “Racismo e

cul-tura”, Fanon é claro, perante a alienação da produção colonial, isto é, da realidade da situação colonial, ou ao seu anti-historismo (com o perdão do neologismo), resultado do corte na máquina colonial. Cito-o: “Descobrindo a inutilidade da sua alienação, a profundidade do seu despojamento, o inferiorizado, despois desta fase de desculturação, de estranhi-zação, volta a encontrar as suas posições originais. O inferiorizado retoma apaixonadamente essa cultura abandonada, rejeitada, desprezada. Há nitidamente uma sobrevalorização que assemelha psicologicamente ao desse de se fazer per-doar. Mas, por detrás desta análise simplificadora, há bem a intuição por parte do inferiorizado de uma verdade espon-tânea que irrompe. Esta história psicológica desagua na História e na Verdade” (FANON, 1980, p. 45). Essa citação impõe problemas que aparecerão em minha argumentação de modo contundente nas seções seguintes. Um ponto im-portante, que vale o questionamento, é se a construção narrativa de Fanon não seria marcada por uma tentativa de redenção? Um problema que ficará sem resposta, mas que diz respeito à questão da anti-história da situação colonial, do ponto de vista do colonizado, isto é, (re)fazer, vir a fazer, dar por fazer o seu mundo em destruição. Mundo por vir.

6 A esse respeito ver: prefácio de Jean-Paul Sartre, escrito em 1961, quando do lançamento de Os condenados da terra. E

também a análise crítica de Judith Butler, ao mesmo: BUTLER, Judith. Violencia-no violência, Sartre em torno a Fanon. In: FANON, Frantz. Piel negra, máscaras blancas. Madrid: Ediciones Akal, S.A, 2009, p. 193-216.

7 Ver: GROSFOGUEL, Ramón. A estrutura do conhecimento nas universidades ocidentalizadas: racismo/sexismo

epis-têmico e os quatro genocídios/epistemicídios do longo século XVI. Brasília. Revista Sociedade e Estado. v. 31, n. 1. jan/abril, 2016, p. 25-49.

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apresentar respectivas inferências de leituras nas obras subsequentes.

Um último comentário, ainda, sobre a estrutura do ensaio. Dividi ele em três seções, as quais correspondem a problemas próprios de contato com a leitura que desenvolvo a partir dos problemas decorrentes da escrita fanoniana. Por vezes, me vali das notas de rodapé para estabelecer conexões com autores e autoras de outras tradições de pensamento que ajudaram a colocar outras lentes teóricas nos enunciados de Fanon, possibilitando, assim, outros encon-tros escriturários e problematológicos.

PELE NEGRA, MÁSCARAS BRANCAS: UM PRESSUPOSTO

“A explosão não vai acontecer hoje. Ainda é muito cedo... ou tarde demais. Não venho armado de verdades decisivas.

Minha consciência não é dotada de fulgurâncias essenciais.

Entretanto, com toda a serenidade, penso que é bom que certas coisas sejam ditas.

Essas coisas, vou dizê-las, não gritá-las. Pois há muito tempo que o grito não faz parte de minha vida.

Faz tanto tempo...

Por que escrever esta obra? Ninguém a solicitou. E muito menos aqueles a quem ela se destina.

E então? Então, calmamente, respondo que há imbecis demais neste mundo. E já que o digo, vou tentar prová-lo.

Em direção a um novo humanismo... À compreensão dos homens... Nossos irmãos de cor... Creio em ti, Homem... O preconceito de raça...

Compreender e amar...” (FANON, 2008, p. 25-26).

De início, é preciso dizer que Pele negra, máscaras brancas (1952) é um livro de juventude. O que é paradoxal no caso de Fanon, pois o mesmo morrera aos 36 anos. No entanto, foi escrito pelo seu autor, quando ele tinha apenas 25 e publicado dois anos depois. Segundo Lewis R. Gordon, Pele negra, máscaras brancas destinava-se a ser a tese de doutoramento de Fanon em psiquiatria. Contudo, foi recusada pelos membros da comissão julgadora, uma vez que os mesmos, segundo Gordon, “prefeririam uma abordagem “positivista” no estudo da psiquia-tria, exigindo bases mais físicas para fenômenos psicológicos” (GORDON, 2008, p. 13). Desse modo, a escrita de Pele negra, máscaras brancas se consumaria, mas em outra frente. Para o título de doutor, Fanon escreveu sua tese Troubles mentaux syndromes psychiatriques dans l´hérédo-dégénération-spino-cérébelleuse. Un cas de maladine de Friedreich avec délire de possession, defendida em 1951 (GORDON, 2008, p. 13).

Assim, a narrativa presente em Pele negra, máscaras brancas toma a forma de um estudo antis-sistemático, mas com rigor próprio, de modo que Fanon abria mão de uma objetividade ingê-nua, cujo positivismo frio, nu e desinteressado poderia ser a expressão da forma de tratamento de um dado objeto. Ao contrário, Fanon vê-se implicado em suas análises, pois tratar da psi-cologia do negro e compreender os complexos de dependências, as neuroses produzidas e as marcas subjetivas que a expressão da situação colonial provoca, não poderia se dar de outro modo. Cito-o: "Dediquei-me neste estudo a apalpar a miséria do negro. Táctil e afetivamente. Não quis ser objetivo. Aliás, não é bem isso: melhor seria dizer que não me foi possível ser

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objetivo" (FANON, 2008, p. 86). Voltarei a essa passagem mais à frente, por bem elucidar a economia narrativa do autor. O que importa aqui, a título de introdução, é a suspenção que ela provoca na estrutura do livro como um todo.

Um outro problema de cunho epistemológico pode ser somado a essa passagem. Tal pro-blema toca pontualmente as ciências humanas e sua relação com a construção do objeto de investigação. Segundo Fanon:

Há um drama que se convencionou-se chamar de ciências humanas. Devemos postular uma realidade humana típica e descrever as duas modalidades psíquicas, levando em consideração apenas a ocorrência de imperfeições; ou, ao contrário, devemos tentar sem descanso uma com-preensão concreta e sempre nova do homem? (FANON, 2008, p. 37).

De um lado, a impossibilidade do “objetivismo”, em vista de uma defesa das posições da-quele que escreve e das respectivas implicações subjetivas da ação de produzir pensamento. Nesse caso, a função autoral opera como um lugar de inscrição no e do discurso pelas suas posições alicerçadas, pelo lugar que a voz narrativa, a voz analítica, a voz autoral, ocupa na tomada da palavra, na difícil tomada da palavra, dessa palavra outra, dessa tomada da palavra “para-o-outro”, pois, “(...) falar é existir absolutamente para o outro” (FANON, 2008, p. 33). No entanto, que existência é essa que toma a palavra? Que “palavra” é essa que se torna pos-sível por meio desse agenciamento outro enunciativo?

A dificuldade da tomada da palavra aqui expressa-se no problema da linguagem, ali mesmo onde pode-se visualizar a seguinte afirmação: “Todo povo colonizado – isto é, todo povo no seio do qual nasceu um complexo de inferioridade devido ao sepultamento de sua originali-dade cultural – toma posição diante da linguagem da nação civilizadora, isto é, da cultura me-tropolitana” (FANON, 2008, p. 34). É justamente dessa linguagem que Fanon não quer se valer, ou melhor, ele a prescreve como uma linguagem que alicia, que não precisa ser tomada, pois essa linguagem, essa palavra, essa discursividade se impõe, é já uma violência; a linguagem que violenta, a linguagem que violenta a condição desse outro – que faz desse outro uma negatividade, pois, “(...) o negro antilhano será tanto mais branco, isto é, se aproximará mais do homem verdadeiro, na medida em que adotar a língua francesa” (FANON, 2008, p. 34) [grifos meus]. Essa palavra, essa linguagem, ou, podendo ir mais longe ainda, esse “discurso”, essas “formações discursivas ocidentais”8 - e aqui toda a cautela é necessária perante esta

aproxima-8 Em referência à problemática do discurso e das práticas discursivas em A arqueologia do saber, de Michel Foucault. Assim,

na Ordem do discurso, pode-se ler: “(...) em toda sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, seleci-onada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos que têm por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade” (FOUCAULT, 2009, p. 8-9). Assim, vale perguntar: Como se processa essa produção do discurso em/na situação colonial? Não seria a situação colonial a operação de discursos, sendo ela mesma, a produção discursiva que engendra a si própria como instrumento de domi-nação? E como produção do discurso, a situação colonial não poderia ser lida como plano de emergência? Em Arqueologia

do Saber, Foucault, apresenta a seguinte problemática: “Os planos de emergência [do discurso] (...) essas instâncias de

delimitação ou essas formas de especificação não fornecem, inteiramente constituídos e completamente armados, objetos que o discurso da psicopatologia [ou, no caso o colonialismo/situação colonial] só teria em seguida que inventariar, classi-ficar e nomear, eleger, recobrir finalmente de uma trama de palavras e frases: não são as famílias – com suas normas, suas proibições, seus limiares de sensibilidade [ou, no caso da situação colonial/colonialismo, a imprensa metropolitana, a polícia, o exército, os médicos, os intelectuais, a ciência etc., e toda a gama de produções discursivas metropolitanas, que não só justificam, mas fazem emergir esses objetos ou essa rede de objetos da situação colonial, e a própria situação colonial, como tal?] seus limiares de sensibilidade – que determinam os loucos [os colonizados] e propõem “doentes” [inferiores] para a análise ou decisão dos psiquiatras; não é a jurisprudência que denuncia por ela mesma, à medicina mental, um delírio paranoico sob um assassinato, ou que suspeita de uma neurose em um delito sexual. O discurso é algo

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inteira-ção conceitual que veremos à frente como sendo formada por combinatórias exemplares da situação colonial – são, para Fanon, o cerne de um problema. Contudo, eles estão aí, fáceis, prontos, disponíveis em dispersão da outra palavra, a palavra outra; a indisponibilidade da mesma em ser enunciada, sua dificuldade. A violência desse silêncio, eis o problema. E pro-blema que não se dispersa, potencializa-se perante a tomada da palavra, perante a inscrição da mesma enquanto possibilidade de ser, enquanto enunciação, isto é, “lugar de fala”9. De outro

lado, pode-se aventar sobre o trecho anteriormente destacado, em relação às ciências humanas, a crítica de uma convencionalidade, a suspenção da episteme das humanidades, pois o que de fato é o seu estudo, senão suspensão de realidade típicas, arquetípicas, caricaturais por todo um saber/poder que criou para si um espectro, ou melhor, um fantasma sem forma do “ser negro”?10 O que equivale a dizer, ou que é preciso dizer (e Fanon é contundente a esse

res-mente diferente do lugar em que vêm depositar e se superpor, como em uma simples superfície de inscrição, objetos que teriam sido instaurados anteriormente. Mas a enumeração de há pouco é insuficiente também por uma segunda razão. Ela demarcou, um após outros, vários planos de diferenciação em que os objetos do discurso podem aparecer” (FOUCAULT, 1971, p. 57). Logo, que “vontade de verdade”, ou regime do verdadeiro se supõem, quando se enuncia a rede de problemas da ontogênese da situação colonial? Segundo Foucault, em Microfísica do poder, pode-se notar a seguinte afirmação: “Cada sociedade tem seu regime de verdade, sua "política geral" de verdade: isto é, os tipos de discurso que ela acolhe e faz funcionar como verdadeiros; os mecanismos e as instâncias que permitem distinguir os enunciados verdadeiros dos falsos, a maneira como se sanciona uns e outros; as técnicas e os procedimentos que são valorizados para a obtenção da verdade; o estatuto daqueles que têm o encargo de dizer o que funciona como verdadeiro” (FOU-CAULT, 1979, p. 12). E continua na página seguinte: Ele funciona ou luta ao nível geral deste regime de verdade, que é tão essencial para as estruturas e para o funcionamento de nossa sociedade. Há um combate "pela verdade" ou, ao menos, "em torno da verdade" − entendendo−se, mais uma vez, que por verdade não quero dizer "o conjunto das coisas verdadeiras a descobrir ou a fazer aceitar", mas o "conjunto das regras segundo as quais se distingue o verdadeiro do falso e se atribui ao verdadeiro efeitos específicos de poder"; entendendo−se também que não se trata de um combate "em favor" da verdade, mas em torno do estatuto da verdade e do papel econômico−político que ela desempenha. É preciso pensar os problemas políticos dos intelectuais não em termos de "ciência/ideologia", mas em termos de "ver-dade/poder" (FOUCAULT, 1979, p. 13). Assim, essa problemática incide sobre situação colonial para se colocar o questi-onamento da própria “razão de verdade” e da “produção da verdade” enquanto tal na/da situação colonial. Nesse sentido, valeria pensar que o “regime de verdade” na situação colonial é justamente a realidade em negação, uma negatividade em aparência que se nega e se sobrepuja ao não discursivo, ao anti-discursivo enquanto tal, em termos metropolitanos. Nesse caso, e fazendo um paralelo com a psicanálise, um ponto de partida necessário aqui seria o de pensar que a negação da situação colonial, enquanto tal, é o inconsciente coletivo da metrópole, isto é, a violência como estado de normalidade do colonialismo, e seu estado policial imanente é o avesso dos valores ocidentais que funcionam nos regimes de verdade e que sustentam os princípios das democracias liberais. A questão é justamente se há ou não como estabelecer esta dissociação, mas ao mesmo tempo, a sua possibilidade não seria, ela mesma, um sintoma da situação colonial? Sobre a possibilidade da análise arqueológica do discurso e a situação colonial, ou a produtividade da situação colonial por meio dessa possível aproximação com o repertório foucaultiano, ver: MUDIMBE, V.Y. A invenção da África: gnose, filosofia e a ordem do conhecimento. Portugal: Edições Pedago, 2013. Segundo o autor: “Para este ensaio escolhi uma perspectiva arqueológica que me permite abordar a questão da constituição progressiva de uma ordem de conhecimento africana. Todavia, por razões relacionadas com a natureza bizarra de algumas fontes usadas – sobretudo as antropológicas - preferi não distinguir o nível epistemológico de conhecimento do nível arqueológico de conhecimento” (MUDIMBE, 2013, p. 12).

9 A esse respeito, ver: RIBEIRO, Djamila. O que é lugar de fala. Belo Horizonte: Melhoramento, 2017.

10 Aqui vale a menção, a título de exemplo, de como as ciências humanas, muitas vezes contribuíram para um saber/poder

colonialista. Na nota de rodapé, número 2, de “Racismo e cultura”, Fanon, afirma: “Por vezes, aparece neste estádio um fenômeno pouco estudado. Intelectuais, investigadores, do grupo dominante estudam ‘cientificamente’ a sociedade do-minada, a sua estética, o seu universo ético. Os raros intelectuais colonizados vêem, nas Universidades, o seu sistema cultura ser-lhes revelado. Acontece até que os sábios dos países colonizadores se entusiasmam por esse ou aquele traço específico. Surgem os conceitos de pureza, ingenuidade, inocência. A vigilância do intelectual indígena tem de redobrar nesta altura” (FANON, 1980, p. 43). A crítica de Fanon à etnologia pode bem servir de justificativa à discussão das ciências humanas como um todo. Ao criar arquétipos sob um ideal de pureza, não estariam eles investindo a favor de um instrumento de dominação, de mistificação da cultura outra, como inferiorizada? Ou idealizada, como um cadáver sem corpo? Representação sem referência? Nesse caso, Fanon já enunciava o problema que aparecerá décadas depois

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peito), em face do problema da linguagem de encontro com o racismo: “(...) é o racista que cria o inferiorizado" (FANON, 2008, p. 90) [grifos no original]. O que também pode ser lido como: é a linguagem colonialista que cria, enuncia e fabrica um sistema linguístico em que o “coloni-zado” figura como signo de controle e dominação. Logo, o problema da linguagem, problema de entrada em Pele negra, máscaras brancas, é elucidativo: a linguagem não é um neutro. A lingua-gem é ela mesma opaca às estruturas de poder e dominação que as engendram. E, nesse caso, a linguagem pode ser aqui entendida como um primeiro instrumento, talvez o mais violento porque silencioso, que faz da situação colonial uma máquina de produzir assujeitamentos. Pois a linguagem do branco, o discurso branco ocidental, sempre se valeu da invenção de seu outro como um outro menor, um outro que não deve e não foi reconhecido enquanto tal, e, por-tanto, essa linguagem é já aliciadora. Em síntese, a linguagem que alicia cria assim o próprio objeto da sua violência. Logo, a linguagem produz um enquadramento e esse enquadramento é reproduzido, expandido, atualizado toda vez que o colonizado se vale dessa linguagem para (não) comunicar11 - no caso, a história das línguas indo-europeias e sua expansão global é a

própria história linguística do colonialismo. Cito Fanon:

Fazendo referência a outros trabalhos e às nossas próprias observações pessoais, gostaríamos de tentar demonstrar porque o negro se situa de modo tão característico diante da linguagem europeia. Lembremos ainda uma vez que as conclusões às quais chegaremos só são rigorosa-mente válidas para as Antilhas francesas; não ignoramos, entretanto que os mesmos comporta-mentos podem ser encontrados em meio a toda raça que foi colonizada. (FANON, 2008, p. 40)

sobre o nome de epistemicídio, apontado por Ramón Grosfoguel. Ver nota 5. Essa problemática das ciências humanas e sociais colonialistas implica ainda uma outra face do problema, o que o filósofo Lewis R. Gordon chamou de “decadência disciplinar”. Como destaca Grosfoguel, em “Apuntes hacia uma metodologia fanoniana para la decolonización de las ciências sociales”: “La decadencia se produce cuando los métodos disciplinarios evaden/mistifican el análisis de la reali-dade social para salver el método de la disciplina académica, en lugar de subsumir el método en el análises de la realireali-dade. De ahí el desprecio de Fanon por las metodologías dsiciplinarias que solamente buscan reproducir sus próprio cánones dsicplinarios coloniales en lugar de servir a los processos de liberación decoloniales. Es el mundo colonial, el mundo que ha creado la teoria seudo-científica de que el negro es um estádio en la lenta evolución entre el mono y el “hombre”, es el que hay que transformar radicalmente” (GROSFOGUEL, 2009, p. 269). Nesse sentido, Pele negra, máscaras brancas pode ser um exemplo não só de decolonização teórica, mas de enfrentamento disciplinar. Sobre essas questões, ver: GOR-DON, Lewis R. Decadencia disciplinaria: piensamiento vivo en tempos difíciles. Quito: Ediciones Abya-yala, 2013.

11 A sugestão do enquadramento, ou da linguagem como enquadramento na situação colonial, dialoga, do ponto de vista do

colonizado, com a noção de enquadramento discutida por Judith Butler em Quadros de guerra. Segundo Butler: “Como sabemos, to be framed (ser enquadrado) é uma expressão complexa em inglês: um quadro pode ser emoldurado (framed), da mesma forma que um criminoso pode ser incriminado pela polícia (framed), ou uma pessoa inocente (por alguém cor-rupto, com frequência a polícia), de modo que cair em uma armadilha ou ser incriminado falsa ou fraudulentamente com base em provas plantadas que, no fim das contas, “provam” a culpa da pessoa, pode significar framed. Quando um quadro é emoldurado, diversas maneiras de intervir ou ampliar a imagem podem estar em jogo. Mas a moldura tende a funcionar, mesmo de uma forma minimalista, como um embelezamento editorial da imagem, se não como um autocomentário sobre a história da própria moldura. Esse sentido de que a moldura direciona implicitamente a interpretação tem alguma ressonância na ideia de incriminação/armação como uma falsa acusação. Se alguém é incriminado, enquadrado, em torno de sua ação é construído um “enquadramento”, de modo que o seu estatuto de culpado se torna a conclusão inevitável do espectador. Uma determinada maneira de organizar e apresentar uma ação leva a uma conclusão interpretativa acerca da própria ação. Mas, como sabemos por intermédio de Trinh Minh-há, é possível “enquadrar o enquadramento” ou, na verdade, o “enquadrador”, o que envolve expor o artifício que produz o efeito da culpa individual. “Enquadrar o enquadramento” parece envolver certa sobreposição altamente reflexiva do campo visual, mas, na minha opinião, isso não tem que resultar em formas rarefeitas de reflexividade. Ao contrário, questionar a moldura significa mostrar que ela nunca conteve de fato a cena a que se propunha ilustrar, que já havia algo de fora, que tornava o próprio sentido de dentro possível, reconhecível. (...) Algo ultrapassa a moldura que atrapalha nosso senso de realidade; em outras palavras, algo acontece que não se ajusta a nossa compreensão estabelecida das coisas” (BUTLER, 2015, p. 23 - 24).

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Essa discussão da “linguagem branca”, da linguagem do colonizador, está localizada estru-turalmente no primeiro capítulo do livro. No entanto, ela dá consistência às discussões vin-douras12. Nesse ponto da argumentação, quero encaminhar o problema da situação colonial, uma

vez que a problemática da linguagem, ou dessa linguagem violenta de que tratei anteriormente, é uma sintomática analítica da situação colonial, podendo ser considerada seu elemento irredu-tível, pois, como afirma Fanon, “falar uma língua é assumir um mundo, uma cultura” (FA-NON, 2008, p. 50). Pode-se, ainda, tomar essa afirmação como uma generalização da situação colonial como tal. Nesse caso, se uma determinada linguagem é a afirmação de um mundo, de uma cultura, para “o Outro”, para o colonizado, o seu mundo é ele mesmo negação, uma negatividade in absolutum, uma vez que para existir terá que se valer da língua outra, isto é, da língua que o alicia, o enquadra, o violenta, em suma, o transforma e o marca enquanto coloni-zado. E essa marca o acompanhará, pois toda vez que falar, se munir dessa linguagem, a marca da diferença enquanto desigualdade o consumará como fórmula de seu enquadramento como colonializado. E nesse sentido, Fanon exemplifica:

Em uma situação bem específica, quando estudantes antilhanos se encontram em Paris, duas possibilidades se apresentam:

-ou sustentar o mundo branco, isto é o mundo verdadeiro; o francês é então a língua usada, lhes sendo possível enfrentar alguns problemas e adquirir em suas conclusões um certo grau de uni-versalismo;

- ou rejeitar a Europa, “Yo”, e se reunir através do patoá, instalando-se bem confortavelmente no que chamaremos de umwelt martinicano; queremos dizer com isso – e dirigimo-nos princi-palmente a nossos irmãos antilhanos – que, quando um dos nossos amigos, em Paris ou em qualquer outra cidade universitária, tenta considerar com seriedade um problema, acusam-no de se julgar importante, e o melhor meio de desarmá-lo é fechar-se no mundo antilhano, brandido o patoá crioulo. Esta é a causa de muitas amizades desfeitas, após algum tempo de vida europeia. (FANON, 2008, p. 49)

Assim, a aproximação entre o problema da linguagem de um lado, e o das ciências humanas de outro, é indicativo do próprio desenvolvimento argumentativo de Fanon. E na leitura que desenvolvo, ilustra um certo problema teórico de maior alcance, isto é, o reconhecimento da violência no domínio da linguagem e a possível superação desse enquadramento. Ora, quando se passa a reconhecer tal mecanismo violento da linguagem, já se está em reconhecimento da linguagem da situação colonial, ou do funcionamento da língua em situação colonial, ou seja, dessa linguagem em deslocamento duplo. Duplo, pois a própria língua metropolitana desloca-se, deslocando também a língua nativa. Isso possibilita entender a destruição pelo deslocamento da segunda a partir do deslocamento da primeira. No entanto, o deslocamento da primeira, em sua própria condição colonialista, da situação colonial, é a instauração de um “regime de verdade” que é, ao mesmo tempo, a negação da existência do colonizado, pela tipificação de 12 De modo esquemático, Pele negra, máscaras brancas é estruturado em 7 capítulos, sendo o primeiro sobre a relação entre o

negro e a linguagem, o segundo sobre a mulher de cor e o branco, o terceiro sobre o homem de cor e a mulher branca. O quarto capítulo, ensaia o problema do complexo de dependência do colonizado. Na sequência, Fanon discute a ques-tão da experiência vivida do negro, para tratar em seguida da quesques-tão da psicopatologia, apresentando, a partir de sua experiência psiquiátrica, as discussões a partir da psicologia freudiana e da questão do negro, e, por fim, Fanon apresenta a problemática do reconhecimento. Em minha leitura, salientar o problema da linguagem tornou-se chave, uma vez que, se Fanon compreende a linguagem como a abertura para um mundo, para uma cultura, a linguagem torna-se um dos problemas estruturantes das problemáticas presentes na narrativa de Pele negra, máscaras brancas como um todo.

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sua realidade em termos de um engessamento, de um enquadramento13. Mas, nesse caso, ainda

fica um questionamento: como fazer uso da linguagem outra, sem com isso reiterar-se na ob-jetificação provocada pela situação colonial? A resposta para isso pode ser ilustrada pelo uso que Fanon, ele mesmo implicado em sua obra, acaba indicando. Fazer uso da linguagem do branco para subvertê-la. Pelo reconhecimento de sua produtividade enquanto elemento intrínseco da situação colonial, Fanon apresenta os seus limites, criando um lugar e uma fala para si, uma tomada da palavra, que toma a própria fala aliciadora como objeto de investigação e, com isso, dobra-a, subverte, cria, senão um elemento de fuga, ao menos a produtividade do pensamento sobre toda a sua contingência, isto é, a situação colonial.

FANON CONTRA MANNONI: A PRIMEIRA EMERGÊNCIA DA

SITUA-ÇÃO COLONIAL

“O problema do colonialismo não implica somente a interrelação de condições históricas obje-tivas, mas também as atitudes e ações humanas frente a estas condições. O complexo de inferi-oridade nos povos colonizados não é uma característica intrínseca, essencialista, ahistórica, in-terna à cultura e à psique dos indivíduos ditos povos que precedem as relações coloniais, como Fanon critica em Mannoni, senão que são o resultado de uma relação histórica de dominação e exploração capitalista-colonial.” (GROSFOGUEL, 2009, p. 265) 14

Em 1950, Octave Mannoni, psiquiatra francês, publicou um livro chamado La psycologie de la colonisation (1950). O livro de Mannoni, com forte pretensão colonialista, servia como um instrumento de legitimação do discurso colonialista à época, bem como funcionava, do ponto de vista da psicologia, para justificar as ações francesas perante os povos colonizados. Como destaca Antonio Cubillo Ferreira, “Mannoni, igual aos escritores espanhóis da conquista ca-nária, explicava como certos povos estavam preparados para serem colonizados e guiados. Que estes povos não tem futuro vivendo sós e por sua conta e que há povos ou governos como o francês, que estão aí para civilizá-los" (FERREIRA, 2009, s/p.)15.

Em Pele negra, máscaras brancas, Fanon tomará o discurso de Mannoni como ponto de apoio de seus diagnósticos. Compreender a reação de Fanon perante Mannoni é ponto fundamental para se compreender o conceito de situação colonial, uma vez que o mesmo emerge a partir do problema do complexo de dependência do colonizado. Esta seção dedica-se a apresentar a reconstituição da crítica de Fanon e, em decorrência, a emergência do conceito de situação colonial na cena da escritura fanoniana.

Inicialmente, um dos problemas que se pode destacar a partir de minha leitura, diz respeito ao modo como Fanon lê Mannoni, isto é, a condução de sua narrativa que toma “Psicologia da colonização” como objeto de críticas. Por meio de sua análise, Fanon apresenta uma con-13 Ver nota 9.

14 No original: “El problema del colonialismo implica no solamente la interrelación de condiciones históricas objetivas,

sino também las actitudes y acciones humanas frente a estas condiciones. El complexo de inferioridade en los pueblos colonizados no es uma característica intrínseca, essencialista, ahistórica, interna a la cultura y la psique de los indivíduos de dichos pueblos que precede a las relaciones coloniales, como Fanon le critica a Mannoni, sino que son el resultado de una relación histórica de dominación y exploración capitalista-colonial.” (GROSFOGUEL, 2009. p. 265) [tradução livre]

15 No original: “Mannoni, igual que los escritores españoles de la conquista canaria, explicaba cómo ciertos pueblos están

preparados para ser colonizados y guiados. Que estos pueblos no tienen futuro viviendo solos y por su cuenta y que hay pueblos o gobiernos como el francés, que están ahí para civilizarlos.” (FERREIRA, 2009, s/p.) [tradução livre]

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traposição perante uma tradição científica que tem na objetividade neutralizada a construção de um lugar de enunciação, onde o sujeito do conhecimento não se vê implicado no processo, ou seja, se vê como sujeito de enunciação universal, logo, um neutralismo interessado. Essa crítica já foi apontada na seção anterior, e retomá-la aqui tem a intenção de situar duas posturas antagônicas do tratamento de um dado objeto. Isso é dizer que a aproximação da questão da linguagem, de um lado, e da crítica de Fanon a uma dada epistemologia hegemônica das ciên-cias humanas, de outro, não é gratuita, uma vez que a atitude de Fanon intui, em suma, a proposição de uma propedêutica outra, isto é, uma epistemologia anticolonialista.

Desse modo, Fanon destaca o seguinte trecho de Mannoni, que servirá como primeira in-cursão de oposição no referido capítulo: “O fato de que um malgaxe adulto, isolado em um meio diferente do seu, pode tornar-se sensível à inferioridade de tipo clássico, prova, de ma-neira mais ou menos irrefutável, que, desde sua infância, existia nele um gérmen de inferiori-dade” (MANNONI apud FANON, 2008, p. 84) [grifos no original]. Essa passagem dialoga diretamente com o que foi destacado anteriormente pelo comentário de Ferreira no início da seção. Para Mannoni, e pelo modo como o argumento é apresentado, existira um gérmen, ôntico que explicaria a inferioridade do colonizado. Segundo Fanon, ao ler-se a passagem acima do autor de “Psicologia da colonização”, algo parece vacilar e ficar, ao mesmo tempo, em suspenso. E a “objetividade” requerida por Mannoni induz, segundo Fanon, ao erro. Antes de apontar as considerações que Fanon tira de tal crítica a Mannoni, as quais repercutirão diretamente na noção de situação colonial, é importante destacar que em páginas à frente, Fanon afirma contundentemente:

Acredito sinceramente que uma experiência subjetiva pode ser compartilhada por outra pessoa que não a viva; e não pretendo jamais sair dizendo que o problema negro é meu problema, só meu, para em seguida dedicar-me a seu estudo. Mas me parece que Mannoni não tentou sentir de dentro o desespero do homem de cor diante do branco. Dediquei-me neste estudo a apalpar a miséria do negro. Táctil e afetivamente. Não quis ser objetivo. Aliás, não é bem isso: melhor seria dizer

que não me foi possível ser objetivo. (FANON, 2008, p. 86) [grifos meus]

A força dessa passagem é indiscutível. Não há como tratar da “questão negra” - se ela de fato existir nesses termos circunscritos, ou não compete a um branco tratar com objetividade do problema que Fanon desenha nas páginas que enredam Pele negra, máscaras brancas -, sem, com isso, ver-se parte desse mesmo enredamento que estabelece a negação do outro, a negação da humanidade negra enquanto uma humanidade reconhecida e organizada ao reconheci-mento (como consciência de consciência de si), e, ao mesmo tempo, disposta aos vários com-plexos advindos dessa relação, sejam eles de dependência, inferioridade etc. Logo, não adianta se munir de uma “ideologia da objetividade” (branca) para com isso tentar apagar o próprio lugar da enunciação, valendo-se de um cientificismo sem cor. Ao contrário, Mannoni, com sua argumentação, só denota que sua “branquitude” é mais opaca e carregada de preconceitos, muito mais atrelada ao campo da ideologia do que ao do conhecimento, o que extrapola o regime de inteligibilidade que o mesmo parece crer ou reconhecer. Dito isso, passo ao segundo comentário geral.

Pretendo destacar a crítica de Fanon sobre a leitura de Mannoni, em que o segundo tende a naturalizar o complexo de inferioridade e dependência, sem assumir, com isso, as conquências diretas que o corte conceitual da situação colonial implica. O que significa dizer, se-gundo Fanon, que Mannoni estabeleceu o complexo de dependência como anterior à

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coloni-zação (FANON, 2008, p. 85). Nesse sentido, a retomada do conceito de situação colonial é, por assim dizer, um conceito-chave na escritura de Fanon, uma vez que o mesmo estabelece por meio dele o corte fundamental da estruturação dos complexos de inferioridade e dependência, ambos processos indissociáveis. Cito:

O autor fala de fenomenologia, de psicanálise, de unidade humana, mas gostaríamos que esses termos assumissem em seu texto um caráter mais concreto. Todas as formas de exploração se parecem. Todas elas procuram sua necessidade em algum decreto bíblico. Todas as formas de exploração são idênticas pois todas elas são aplicadas a um mesmo “objeto”: o homem. Ao considerar abstratamente a estrutura de uma ou outra exploração, mascara-se o problema capi-tal, fundamencapi-tal, que é repor o homem no seu lugar. (FANON, 2008, p. 87)

A partir dessa consideração, Fanon é enfático em sua análise: não há como graduar as for-mas de exploração, não há como graduar os racismos, pois o racismo colonial não difere dos demais, e com isso ele detecta um problema que será fundamental em sua análise clínica, o qual diz respeito aqui à leitura estrutural do racismo, quer seja, ou uma sociedade é racista ou não o é (FANON, 2008, p. 86).

Assim, algumas consequências importantes dessas considerações: 1. O racismo é um pro-blema estrutural; 2. A situação colonial é um corte conceitual/transversal fundamental para se compreender estruturalmente o racismo colonial; 3. A civilização europeia e seus representan-tes mais qualificados são responsáveis pelo racismo colonial (principalmente quando Fanon vale-se do conceito de Jaspers de “culpa metafísica”16); 4. A partir de Adler e de Kuenkel,

pode-se dizer, sustenta Fanon, que “é o racista que cria o inferiorizado”, logo, o “branco” torna-se signo de uma ferida absoluta. Nesse caso, há uma importância analítica que dá sentido ao capítulo em questão.

Segundo Fanon, Mannoni teria esquecido que o malgaxe não existe mais. Ele não existe em si e para si. Ele existe em si e para si frente a um outro, e esse outro é o branco, o europeu. “O branco, chegando a Madagascar, tumultuou os horizontes e os mecanismos psicológicos. Todo mundo já o disse, para o negro a alteridade não é outro negro, é o branco” (FANON, 2008, p. 93) [grifos meus]. Isso me leva a uma das passagens mais fortes a qual sintetiza o argumento do capítulo quatro de Pele negra, máscaras brancas. Cito-a integralmente, para não perder a com-plexidade do problema:

Se ele é malgaxe, é porque o branco chegou, e se, em um dado momento da sua história, ele foi levado a se questionar se era ou não um homem, é que lhe constavam sua humanidade. Em outras palavras, começo a sofrer por não ser branco, na medida que o homem branco me impõe uma discriminação, faz de mim um colonizado, me extirpa qualquer valor, qualquer originali-dade, pretende que seja um parasita no mundo, que é preciso que eu acompanhe o mais rapida-mente possível o mundo branco, ‘que sou uma besta fera, que meu povo e eu somos um esterco ambulante, repugnantemente fornecedor de cana macia e de algodão sedoso, que não tenho nada a fazer no mundo’. Então tentarei simplesmente fazer-me branco, isto é, obrigarei o branco a reconhecer minha humanidade. (FANON, 2008, p. 94)

Junto a essa passagem, Fanon ironiza Mannoni – e aqui fica clara a relação do branco com o negro –, principalmente pela leitura de Mannoni como destacada por Fanon: “Mas nos dirá 16 A esse respeito, ver: JASPERS, Karl. El problema de la culpa. Barcelona: Ediciones Paidós, 1998.

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Mannoni, vocês não têm potencial, pois existe dentro de vocês um complexo de dependência” (FANON, 2008, p. 94). Estabelecendo uma relação com essa afirmação, e em vista do trecho destacado anteriormente, fica patente que na leitura de Mannoni a situação colonial é mero adorno, pois o mesmo não leva em consideração as consequências, feridas e implicações que o branco e o signo da branquitude acarretam na construção do negro dependente e inferiori-zado, sendo o branco o responsável, produtor e replicador não só da situação colonial, mas da objetivação subjetiva dos complexos de inferioridade e dependência. Isso quer dizer, e vol-tando a uma afirmação já citada, que “é o racista que cria o inferiorizado”, e essa “criação” do racista passa pelas condições de sua possibilidade, ou seja, da situação colonial enquanto tal.

Valendo-se dessas considerações, como Fanon desenha os horizontes para tal problema? Primeiramente, ele aponta a crítica a Mannoni, mas não estabelece uma negação do complexo de dependência, ou seja, ele se utiliza da crítica para uma historicização dela mesma frente aos problemas que o mundo colonial faz emergir. No entanto, o autor não nega a existência do complexo e sua clínica vem atestar tal relação. Com isso, passo ao problema, agora recolocado por Fanon, do complexo de dependência, de um lado, e da situação colonial, de outro.

A partir do exposto até aqui, é elucidativo que para Fanon o “complexo de dependência”, o racismo e a situação colonial sejam elementos determinantes do ponto de vista do colono e do colonizado, sintetizados por meio de uma leitura estrutural. A sua clínica, para ser efetiva, terá de levar em conta não só esses elementos, mas também partir do ponto de vista individual para que tais problemas sejam sanados. A questão central aqui será compreender de que modo Fanon operacionaliza uma clínica psicanalítica que dê conta dos aspectos estruturais objetiva-dos por meio do complexo do inferiorizado e da dependência na subjetividade negra.

Nesse ponto da argumentação, Fanon introduz alguns pontos fundamentais. Primeiramente, o “desejo inconsciente”17. É no domínio do inconsciente que os complexos habitam. Nesse

ponto, vale a pena recorrer às palavras de Fanon: “Meu paciente sofre de um complexo de inferioridade. Sua estrutura psíquica corre o risco de desmantelar. É preciso protegê-lo e, pouco a pouco, libertá-lo desse desejo inconsciente” (FANON, 2008, p. 95). E continua:

Se ele se encontra a tal ponto submerso pelo desejo de ser branco, é que ele vive em uma soci-edade que torna possível seu complexo de inferioridade, em uma socisoci-edade suja consistência depende da manutenção desse complexo, em uma sociedade que afirma a superioridade de uma raça; é na medida exata em que esta sociedade lhe causa dificuldades que ele é colocado em uma situação neurótica. (FANON, 2008, p. 95)

Aqui a grande questão que perpassa a argumentação de Fanon é o “como”: como “desali-enar” essa consciência alienada por um inconsciente que se quer branco, sendo objetivamente negro? Como tornar o negro desalienado de seu sofrimento, como desfazer o dilema de “bran-quear ou desaparecer”? Do ponto de vista psicanalítico, afirma Fanon: “(...) devo ajudar meu paciente a conscientizar seu inconsciente, a não mais tentar um embranquecimento alucinatório, mas sim a agir no sentido de uma mudança das estruturas sociais” (FANON, 2008, p. 95).

Agir em face das mudanças sociais – esse talvez seja o tom paradigmático aqui constituído 17 Importante mencionar que as análises em Pele negra, máscaras brancas estão apoiadas fundamentalmente na clínica

freudi-ana e em alguns textos de Jacques Lacan. Por uma economia de espaço, suprimi as contextualizações específicas da tradição clínica metropolitana em relação à obra de Fanon. No entanto, a esse respeito, ver: VEIGA, Lucas Motta. Descolonizando a psicologia: notas para uma psicologia preta. Dossiê psicologia e epistemologias contra hegemônicas.

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por Frantz Fanon. Mas seria somente essa unilateralidade que a clínica fanoniana apresenta? Seria essa a condição sine qua non para a desestruturação desse desejo inconsciente que produz a neurose? O trecho na sequência esclarece a interpretação:

(...) o negro não deve mais ser colocado diante deste dilema: branquear ou desaparecer, ele deve poder tomar consciência de uma nova possibilidade de existir; ou ainda, se a sociedade lhe cria dificuldades por causa da sua cor, se encontro em seus sonhos a expressão de um desejo incons-ciente de mudar de cor, meu objetivo não será dissuadi-lo, aconselhando-o a ‘manter as distâncias’, ao

con-trário, meu objetivo será, uma vez esclarecidas as causas, torná-lo capaz de escolher a ação (ou a passividade) a respeito da verdadeira origem do conflito, isto é, as estruturas sociais. (FANON, 2008, p. 96) [grifos meus]

Desse modo, parece que o ponto a que Fanon quer chegar estrutura-se por meio de uma tarefa política da psicanálise. Uma vez diagnosticado o problema (as estruturas sociais que produzem a situação colonial e, consequentemente, o complexo de dependência), a saída, do ponto de vista do paciente neurótico (isto é, o negro inferiorizado, dependente, enredado pela lógica do branqueamento), se dá justamente pela escolha: a ação ou a passividade. Mas a pas-sividade aqui não deve ser entendida como a negação da ação, pois o contrário da ação, nesses termos, é a condição neurótica. Logo, a escolha entre a ação e a passividade é já ação em ambas as prescrições e sustenta-se por uma atitude que tem em vista a desalienação, ou seja, a capa-cidade de escolha, a capacapa-cidade de tornar-se consciente dos problemas implicados sobre os próprios complexos interiorizados, e com isso conscientizar-se perante a situação produtora desses mesmos complexos. Assim, a ação está inscrita nesse caso sobre a escolha, antes ne-gada, antes nem posta em questão. Em minha leitura, essa “política psicanalítica” torna-se um dos pontos fulcrais da leitura que Fanon desenvolve do complexo de dependência, de um lado, e do seu diagnóstico e proposições clínicas, de outro. No final da seção seguinte, volto a tratar da questão da desalienação pois, em sintonia com a clínica de Fanon, e em vistas das lutas de libertação, ela se torna o problema e a abertura de um horizonte outro, como processo de superação da situação colonial.

DA MUMIFICAÇÃO À VIOLÊNCIA LIBERTADORA

“Aqui nos têm / Eis-nos / Os Negros / Os Niggers / Os sujos Negros / Já não aceitamos / É simples Acabou-se / Estar em África / Na América / Os vossos Negros / Os vossos Niggers / Os vossos sujos... Negros / Já não aceitamos / Isso espanta-vos / Dizer: sim siô / Ao engraxar as vossas botas / Sim siô padre / Aos missionários brancos / Sim patrão / Ao apanhar para vós / A cana-de-açúcar / O café / O algodão / O amendoim / Na África / Na América / Como bons negros / Como pobre negros / Que éramos / Que nunca mais seremos...” (ROU-MAIN, 1980, p. 108)

A tese da mumificação cultural, provocada pela situação colonial, aparece de modo contun-dente na conferência de Fanon apresentada no primeiro congresso dos escritores e artistas negros em Paris, no mês de setembro de 1956. Publicada no número especial de Présence Afri-caine, em junho-novembro daquele mesmo ano, “Racismo e cultura”18 tem um tom particular.

Se até então pode-se perceber nas narrativas de Fanon, principalmente ao que diz respeito à forma do texto, uma ironia e ao mesmo tempo um tom satírico, em que o formato convenci-18 Utilizo para este ensaio a versão publicada na coletânea intitulada Em defesa da revolução africana (1969) (FANON, 1980).

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onal acadêmico é, muitas vezes, transgredido em tons poéticos, ao exemplo de Pele negra, más-caras brancas, “Racismo e cultura” tem uma forma discursiva direta, com implicações da serie-dade dos problemas tratados, em vista do auditório ao qual o autor se dirigia. Isso não quer dizer que os textos precedentes não fossem sérios, mas é evidente a mudança de tom.

Nas primeiras páginas, Fanon já aponta as respectivas definições para os conceitos que dão sentido ao texto como um todo, “racismo”, de um lado, e “cultura”, de outro. Cito-o: “O surgimento do racismo não é fundamentalmente determinante. O racismo não é um todo, mas o elemento mais visível, mais quotidiano [sic], para dizermos tudo, em certos momentos, mais grosseiro de uma estrutura dada” (FANON, 1980, p. 35). Nesse trecho, pode-se perceber uma tese já recorrente em Pele negra, máscaras brancas, a do racismo entendido como um corte estrutu-ral. A asserção presente na seção anterior, enunciada por Fanon, de que existem sociedades racistas e sociedades não-racistas, para além de manifestações individualizantes, é o modus operandi do argumento. Isso leva à articulação entre racismo e cultura. Segundo Fanon:

Estudar as relações entre o racismo e a cultura é levantar a questão da sua acção recíproca. Se a cultura é o conjunto dos comportamentos motores e mentais nascido do encontro do homem com a natureza e com o seu semelhante, devemos dizer que o racismo é sem sombra de dúvida um elemento cultural. Assim, há culturas com racismo e culturas sem racismo. Contudo, este elemento cultural preciso não se enquistou. O racismo não pôde esclerosar-se. Teve de se reno-var, de se matizar, de mudar de fisionomia. Teve de sofrer a sorte do conjunto cultural que o informava. (FANON, 1980, p. 36)

Logo, cultura, aqui, pode ser tomada como as retenções e as sedimentações que dão forma, através da ação humana, ao meio e que formalizam determinados comportamentos, hábitos, etc. Muito mais do que um simples gesto exterior, cultura é a síntese de comportamentos sociais que dão possibilidade a certa corporeidade, mas que ao mesmo tempo, alicerça uma determinada configuração mental. Desse modo, o racismo, para Fanon, é fator determinante de determinadas configurações culturais. E como ele opera? Ou melhor, como ele se configura em face dessa análise cultural, ou mesmo estrutural? Aqui, o ponto fundamental da leitura que quero estabelecer do texto “Racismo e cultura” começa a tomar forma, isto é, a compreensão, em Fanon, da relação entre racismo e colonialismo, ou melhor, a síntese entre ambos na con-figuração da situação colonial.

O racismo como elemento cultural aparece no texto de Fanon na seguinte afirmação, se-guida de um questionamento: “o racismo, vimo-lo, não é mais do que um elemento de um conjunto mais vasto: a opressão sistematizada de um povo. Como se comporta um povo que oprime?” (FANON, 1980, p. 37). O racismo, portanto, é a síntese desse elemento vasto, cuja opressão sistematizada e generalizada de um povo constituiu-se enquanto projeto. Compre-ender, do ponto de vista cultural, o que significa tal projeto de dominação, que terá por nome “colonialismo”, será fundamental para compreender a relação de produtividade destrutiva da situação colonial em face da cultura.

Vou me valer de um longo trecho que sintetiza de modo claro o argumento fanoniano e aponta a aproximação da discussão até aqui conduzida, em torno do conceito de situação colo-nial, ao mesmo tempo em que enreda os respectivos conceitos de racismo e cultura. Cito:

(...) a implantação do regime colonial não traz consigo a morte da cultura autóctone. Pelo con-trário, a observação histórica diz-nos que o objetivo procurado é mais uma agonia continuada

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do que um desaparecimento total da cultura preexistente. Esta cultura, outrora viva e aberta ao futuro, fecha-se, aprisionada no estatuto colonial, estrangulada pela canga da opressão. Presente e simultaneamente mumificada, depõe contra os seus membros. Com efeito, define-os sem apelo. A mumificação cultural leva a uma mumificação do pensamento individual. A apatia tão universalmente apontada dos povos coloniais não é mais do que a consequência lógica desta operação. A acusação de inércia que constantemente se faz ao “indígena” é o cúmulo da má-fé. Como se fosse possível que um homem evoluísse de modo diferente que não no quadro de uma cultura que o reconhece e que ele decide assumir. É assim que assiste à implantação do [sic] organismos arcaicos, inertes, que funcionam sob a vigilância do opressor e decalcados caricatu-ralmente sobre instituições outra fecundas... (FANON, 1980, p. 38)

Esse trecho requer atenção, pois nele está sintetizado o problema cultural em relação à situação colonial, isto é, a produção, por parte do colonialismo, da mumificação relativa à cultura colonizada. Ora, a situação colonial, a partir dessa chave de leitura, operaria um corte transversal. Há uma ruptura da ordem do tempo produzida, bem como a produção de um presente que se torna imanente a si mesmo por parte do colonizador. Essa imanência do presente seria o funcionamento mesmo, na ordem do tempo, da situação colonial, pois o passado das culturas autóctones, em vista de seu arquivo cultural, estaria, a partir de então, destituído de valor ope-racional, isto é, fadado a sua imprescindível destruição pela nova situação que emerge. No caso, a situação colonial. O futuro também se desfalece em termos de projeto e sentido, uma vez que ele se torna, do ponto de vista desse novo regime temporal aberto pelo colonialismo, de opressão, dominação e desestruturação da humanidade dos povos colonizados, impedido em termos de um porvir, de leitimotiv de um desenvolvimento temporal do ponto de vista dos colonizados. Nesse sentido, o impedimento do futuro é o resultado da destruição do passado pré-colonial e, ao mesmo tempo, a instauração dessa imanência do presente em uma nova configuração ontológica que fabrica o colonizado como tal, bem como produz o regime da colonização em termos da situação colonial. Essa nova situação, essa realidade emergente, en-quanto situação presente de opressão e dominação por parte de uma cultura opressora, torna-se a regra, ontologiza-torna-se, inscreve uma nova atitude e um novo regramento sobre os corpos, institui uma cultura, sendo esta de extermínio, violência generalizada e opressão. Uma cultura da desumanização. Nesse caso, a situação colonial, ou o estatuto colonial, como coloca Fanon, é o aprisionamento mesmo da dinâmica “orgânica” do tempo e, respectivamente, da cultura. Se antes do colonialismo tais sociedades teriam desenvolvimentos próprios, conforme suas pró-prias demandas, problemas e durações do tempo, as quais engendravam a si mesmas como sociedades e culturas independentes, a partir do corte colonial, a partir da instauração da situ-ação colonial, uma destruição dessas dinâmicas de autonomia é processada pela violência da dominação. Assim, do ponto de vista da cultura “indígena” ou autóctone, a situação colonial produz uma mumificação, que nada mais é do que o aprisionamento em um tempo outro; tempo este impulsionado por um corpo estranho que, ao ligar-se ao corpo autóctone, produz o segundo como objeto de exploração do primeiro. Com isso, um novo espaço temporal é aberto: o espaço da inércia, pois a dependência gestada é a chave desse processo.

Ao lado dessas considerações, um outro problema fundamental estará inscrito no processo da mumificação. Do ponto de vista individual, processa-se um assujeitamento do sujeito, isto é, um processo de alienação, que tem como fundamento a situação colonial na produção da mumificação cultural, que nesse caso, acaba conectando as dimensões estruturais às individu-ais, e vice versa. Assim, pergunta Fanon: “Mas como se comportam o homem[sic] visado por

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esse racismo, o grupo social escravizado, explorado, dessubstancializado? Quais sãos os seus mecanismos de defesa? (FANON, 1980, p. 42). Na sequência, Fanon é categórico:

Vimos numa primeira fase o ocupante legitimar sua dominação com argumentos científicos, vimos a “raça inferior” negar-se como raça. Porque nenhuma outra solução lhe é permitida, o grupo social racializado tenta imitar o opressor e com isso desracilizar-se. A “raça inferior” nega-se como raça diferente. Partilha com a “raça superior” as convicções, as doutrinas, e tudo o que lhe diz respeito. Tendo o autóctone assistido à liquidação dos seus sistemas de referência, ao desabar dos seus esquemas culturais, já não lhe resta senão reconhecer com o ocupante que “Deus não está do seu lado”. O opressor, pelo caráter global e terrível da sua autoridade, chega a impor ao autóctone novas maneiras de ver e, de uma forma similar, um juízo pejorativo acerca das suas formas originais de existir. Este acontecimento, comumente designado alienação, é na-turalmente muito importante. Encontramo-la nos textos oficiais sobre o nome de assimilação. (FANON, 1980, p. 42).

O assujeitamento alienante da situação colonial, do ponto de vista do indivíduo, no entanto, “nunca é totalmente conseguid[o]” (FANON, 1980, p. 42), aponta Fanon. “Talvez porque o opressor limite quantitativa e qualitativamente a evolução, surgem fenómenos imprevistos, heteróclitos” (FANON, 1980, p. 43). Assim, uma questão que deve ser colocada neste ponto do argumento diz respeito às possibilidades ensejadas por Fanon em relação à desalienação, de um lado, e da superação da situação colonial, de outro. Isto é, como Fanon compreende a possibilidade de reversão, ou mesmo de destruição, dessa contingência da situação colonial? Quais seriam as possibilidades de abertura de futuro para essas sociedades aliciadas pela situação colonial? Para responder a essas questões, e compreender como Fanon dispõe de um pensa-mento político a respeito da luta pela libertação, ou mesmo de possibilidades outras à da situ-ação colonial, introduzirei tal problema por duas vias. Primeiramente, no que diz respeito à lei-tura da revolução argelina, a partir da Sociologia de una revolución (1959), e, na sequência, a posi-tivação do conceito de violência nos processos de descolonização tendo em vista Os condenados da terra (1961).

Em Sociologia de una revolución (1959), ou L´na V de la revolution algérienne, título da primeira edição, Fanon constrói uma reflexão em torno dos acontecimentos que envolvem a guerra pela libertação da Argélia (1954-1962). Fanon, ele mesmo atuante na FNL e partícipe dos acontecimentos, tece um ensaio cuja prerrogativa é muito mais travar uma reflexão em torno das consequências políticas da luta de libertação e da guerra anticolonial do que, de fato, das historiográficas sobre o conflito. Nesse sentido, a leitura desse texto é fundamental para se compreender, de um lado, certo otimismo de Fanon perante à Argélia, e, de outro, certo ho-rizonte que se abre, isto é, a libertação da situação colonial, como um processo de libertação e construção nacional por parte do povo argelino. Nesse caso, Fanon é contundente. Se o diag-nóstico apresentando em “Racismo e cultura” em torno da situação colonial vê esta como pro-dutora da mumificação cultural, a saída para essa mesma mumificação se dá pela superação revolucionária desse processo de alienação cultural, da qual o colonialismo é a máquina pro-dutora. Assim, muito mais do que retomar o exemplo argelino aqui, minha leitura inscreve-se em compreender a estrutura argumentativa de Fanon em tal narrativa, para, assim, entender a relação entre luta revolucionária e superação da situação colonial. Resta dizer que em Sociologia de una revolución, a situação colonial é já posta em xeque, uma vez que Fanon entrevê no futuro, assim como no presente revolucionário, a própria emancipação. Em suas palavras:

Referências

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