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OS SONHADORES DE BERNARDO BERTOLUCCI ANALISADO. UM OLHAR BAKHTINIANO EM CINEMA

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Academic year: 2021

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OS SONHADORES DE BERNARDO BERTOLUCCI ANALISADO. UM OLHAR BAKHTINIANO EM CINEMA

Ivo DI CARMARGO JR (PG-UFSCar)

ISBN: 978-85-99680-05-6

REFERÊNCIA:

DI CARMARGO JR, Ivo. Os sonhadores de Bernardo Bertolucci analisado. Um olhar Bakhtiniano em cinema. In: CELLI – COLÓQUIO DE ESTUDOS LINGUÍSTICOS E LITERÁRIOS. 3, 2007, Maringá. Anais... Maringá, 2009, p. 1425-1434.

1 - INTRODUÇÃO

Assim como as obras poéticas dos mais antigos, como gregos e romanos que adoravam se reportar a obras alheias para a criação das suas, o filme Os Sonhadores, a nova obra de Bernardo Bertolucci compartilha desse gosto pela hoje tão saudada e utilizada intertextualidade, motivo este causado pelo novo fenômeno teórico da atualidade, Mikhail Bakhtin, que com suas teorias dialógicas fez surgir um novo campo do conhecimento no estudo das obras literárias e que agora começa a transpor fronteiras e adentrar no território do cinema.

No longa, o jogo de referências – objetos, cenas, falas, musicas, trechos de filmes, situações – constitui os personagens, o Maio de 1968 e o cinema em si, e amplifica sem lhe roubar o foco, a trama de alcova protagonizada por um belo e bizarro triângulo amoroso encampado pelos loucos pela grande tela, Matthew (Michael Pitt), Isabelle (Eva Green) e Theo ( Louis Garrel).

Há alusões escancaradas, tais quais uma nota de rodapé quer fossem incutidas em diálogos explicativos, ora mais ocultas, fetiches para cinéfilos enciclopédicos como este que vos fala. Assim, a obra do diretor italiano acaba, com isso, ganhando ares de homenagem a arte cinematográfica e à cinefilia.

Vendo o filme por este prisma, podemos analisar aqui este sem-número de citações que nos vem à mente e ao estudo da arte, recorrendo às teorias dialógicas de Mikhail Bakhtin, este teórico que com suas teorias nos faz mergulhar no grande mistério das vozes e tessituras internas que compõem as mais diversas criações do ramo literário e agora, cinematográfico, e por outro lado, podemos ver o quanto a análise do discurso

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pode nos ajudar a identificar e costurar melhor estas referências e citações que emergem de dentro do texto fílmico.

O glossário de citações e informações que será apresentado a seguir não tem a pretensão de esgotar as citações que aparecem no filme, pela simples idéia de que são muitas e que algumas deve ter passado despercebida aos olhos do analista, mas pode ajudar o espectador e o estudioso que se propõe a ver este belo filme, a entender a teia de referências armada por Bernardo Bertolucci.

2- A ANÁLISE LINGÜÍSTICA NO CINEMA.

Ao tentarmos passar para a linguagem fílmica um estudo destinado primariamente à literatura, nos deparamos com um problema de transposição de ideais que são pertinentes em uma arte e na outra e que nem sempre são similares ou idênticos. Assim, o cinema e a literatura, que encerram em si muitas partes iguais e outras tantas diferentes, podem ser analisados de certa forma em igualdade pelas teorias dialógicas de Bakhtin, por causa da abrangência das idéias do teórico russo.

Em um filme como Os Sonhadores, onde as imagens e as falas dão um tom de deja vù no momento em que são vistas ou ouvidas, e a linguagem presente no filme se transforma numa espécie de formador de significados para o espectador, que convive assim com uma trama central e várias tramas paralelas que se entrelaçam e formam o filme de Bertolucci. Para se obter uma melhor visão do pensamento do teórico a respeito desse assunto cito Clark & Holquist (1998: 221):

Bakhtin rejeita um dualismo tão simplório e considera a “obra” mais como uma interação de fatores tanto imanentes quanto causais que operam simultaneamente. Por volta de 1919, ele já havia definido a arte como um evento, a execução de uma troca, o choque de valores entre uma obra e sua audiência. Em “O discurso da vida e o discurso na

arte”, argumenta uma vez mais em favor da arte como uma espécie de

relacionamento, um ato de comunicação.

Baseando-se nesta afirmação, podemos pressupor que o pensamento de Bakhtin se enquadra muito bem dentro da análise cinematográfica, onde na sua posição de sétima arte, ter o poder de encerrar em si todas as outras sem prejuízo de sentido e intenção. Para Bakhtin, a obra era uma reunião de fatores e referencias em si que não poderiam ser separados ou analisados isoladamente. É o que tentamos aqui demonstrar com Os Sonhadores, onde a análise de uma simples cena ou citação isolada não nos levaria ao sentido maior do filme, mas o apreenderemos se assistirmos ao filme e captar todas as mensagens que dele numa abrangência total da obra.

Esta facilidade do cinema em passar para sua arte todas as outras vem do simples fato de que ele reúne em si a linguagem tanto visual como auditiva e que a união destas faz com que a linguagem do cinema seja por fim, dialógica e polifônica. Bernadet (1983: 33) nos explicita muito bem esta característica do cinema:

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A linguagem desenvolveu-se, portanto, para tornar o cinema apto a contar histórias; outras opções teriam sido possíveis, que o cinema desenvolvesse uma linguagem cientifica ou ensaística, mas foi a linguagem de ficção que predominou. Os passos fundamentais para a elaboração dessa linguagem foram a criação de estruturas narrativas e a relação com o espaço.

Note-se que o cinema então desenvolveu uma linguagem tão própria que superou a da literatura em alguns pontos, o visual principalmente, e, portanto, pode ser considerada uma reunião da arte literária de contar histórias e de elemento de ligação com a mente humana ao passar para o visual esta história em si.

Veremos agora como a análise do discurso ajuda a compreender estas ligações intertextuais que compõem o filme de Bernardo Bertolucci.

3 - AS GRANDES OBRAS DE BERTOLUCCI: ENTRELAÇAMENTO.

Um apartamento vazio. Dois ou três personagens que criam suas próprias leis neste território livre. Música. Uma câmera que se move como se tivesse vida própria. Estes são os elementos necessários para o diretor Bernardo Bertolucci revirar nossos sentidos e usar o cinema como uma arma poderosa contra o convencionalismo. Estes são os elementos que fazem de O último Tango em Paris e Os Sonhadores experiências únicas na história do Cinema.

Bertolucci tinha 32 anos quando fez O Último Tango em Paris ; e 63 quando fez Os Sonhadores . No primeiro filme, ele mergulha com seus personagens numa viagem sem destino certo; no outro, ele os observa de longe, quase como um pai, ou como um irmão mais velho. Em sua época, O Último Tango foi considerado um marco. Era a primeira vez que os limites do sexo no cinema eram testados de forma tão explícita. Acusado de pornografia (Marlon Brando e Bertolucci chegaram a ser condenados por um tribunal italiano) e saudado como uma “mudança na face de uma forma de arte” pela crítica americana Pauline Kael, o filme é uma experiência que não pode ser entendida através dos parâmetros pelos quais julgamos a maioria dos filmes (trama, personagens, conflito, etc.) É preciso vê-lo algumas vezes para ir além de sua superfície.

Os Sonhadores é, aparentemente, a história de amadurecimento de três jovens. Um filme menos complicado, mais palatável, e, para alguns críticos, menos efetivo e menos ousado; a obra de um antigo revolucionário que se transformou num “velho voyeur”. Mas esta é uma leitura empobrecedora; O Último Tango e Os Sonhadores não são excludentes, são complementares. Um filme é a imagem invertida do outro, ambos se complementam como um quebra-cabeça.

Vinte e um anos separam os dois filmes. O primeiro, quando foi lançado em 1972, foi considerado obsceno para alguns e revolucionário para outros. Era o auge da Revolução Sexual, e Bertolucci levava este fenômeno aos seus extremos. No filme, Marlon Brando é Paul, um viúvo em crise após o suicídio da mulher, e Maria Schneider é Jeanne, uma jovem francesa prestes a se casar com um estudante de cinema, vivido por Jean Pierre Leaud, ator fetiche de François Truffaut – a escalação do ator parece ser

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uma crítica de Bertolucci à tendência francesa de querer “intelectualizar” todas as experiências da vida; Leaud vive quase uma caricatura de um diretor da Nouvelle Vague francesa. Marlon Brando e Maria Schneider protagonizam cenas sem paralelo no cinema dito “sério”: fazem sexo depois de se conhecer a apenas cinco minutos (há quem considere esta primeira relação sexual um estupro), fazem sexo sem se verem, fazem sexo anal enquanto falam de Deus… e o mais importante: fazem sexo sem se conhecerem. Desde o início, Marlon Brando deixa bem claro para Maria Schneider que, naquele apartamento, não haverá nomes, não haverá passado, não haverá história pessoal. Apenas sexo. Mas ao contrário de uma relação entre um cliente e uma prostituta, ninguém dará dinheiro a ninguém. É quase como um experimento científico: pode uma relação afetiva se basear não na troca de sentimentos, mas unicamente na troca de fluidos corporais?

Em Os Sonhadores, a questão a ser respondida é: pode o sexo ser mais que uma troca de fluidos corporais? Ou melhor, pode esta troca de fluidos transcender o animal e chegar ao humano? Matthew (Michael Pitt), Isabelle (Eva Green) e Theo (Louis Garrel) são três jovens cinéfilos que se conhecem durante as manifestações de Maio de 68 em Paris, contra a expulsão de Henri Langlois da Cinemateca Francesa. Matthew é americano; Isabelle e Theo são dois irmãos franceses, filhos de um casal abastado, que prefere não se envolver na atitude “revolucionária” dos filhos. Quando estes pais viajam, Isabelle e Theo convidam (melhor dizendo, “convocam”) Matthew a se mudar para o apartamento deles, onde realizam jogos eróticos de cinefilia. Algum deles dá uma “dica” de um filme clássico, e se o outro não perceber a deixa, tem que pagar um “castigo” erótico. No início, Matthew é o “excluído” do jogo, o inocente, o “americano puritano” em contato com os “liberais europeus”. Mas depois Bertolucci embaralha estas cartas marcadas: nem Matthew é tão inocente, nem Isabelle e Theo são tão experientes. A jornada dos três jovens é de autoconhecimento; trata-se de explorar os limites da própria sexualidade, algo caro à geração dos anos 60.

Ambos os filmes têm um ponto em comum: o estilo de Bertolucci. A maneira como ele move a câmera ou usa a música, por exemplo. Contra todos os manuais de cinema, Bertolucci não compõe estes elementos para “acompanhar a trama”. Os personagens às vezes vão para um lado, a câmera para outro. A música sobe em momentos que não deveria ser tão alta, e desaparece quando menos se espera. É como se a câmera fizesse uma coreografia com as emoções dos personagens; um tango imaginário, onde, como na dança argentina, na maioria das vezes, é não vendo o parceiro de dança que o descobrimos melhor, que adivinhamos seu movimento, que nos jogamos em seus braços.

Os atores também não “representam”; Bertolucci parece não pedir a eles que adotem os nomes que ele lhes dá, mas que lutem contra a personagem. Reside aí a principal superioridade de Último Tango em relação a Os Sonhadores. No primeiro filme, Bertolucci pôde contar com um dos mais inteligentes e instintivos atores do cinema. Marlon Brando se joga sem amarras em seu personagem, se transforma nele; podemos afirmar que O Último Tango em Paris é um filme tanto de Bertolucci quanto de Brando. Já os atores que encarnam os Sonhadores (talvez por sua pouca experiência) não voam tão alto. A diferença entre Brando e Michael Pitt, o ator americano que faz Matthew, é a mesma diferença entre um Fusca e um Mercedes; se podemos medir a performance de um ator a partir da sua capacidade de “mergulhar” no personagem,

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podemos dizer que Michael Pitt apenas enfiou sua cabeça na água de uma banheira, enquanto Brando deu um mergulho em alto-mar.

Mas ainda assim, ambos são complementares. Extrapolando um pouco, podemos considerar Paul e Matthew como o mesmo personagem, em fases diferentes de sua vida. Matthew é o menos “engajado” do trio de Sonhadores. Ele se recusa a falar de política: para ele, a revolução deve acontecer dentro de cada um, em relação à arte, ao cinema. Paul, o personagem de Brando, é como se fosse um Matthew mais velho, fracassado em sua vida, no casamento, em sua revolução pessoal; um homem que se fecha entre quatro paredes para continuar a experiência interrompida daquele outro apartamento de sua juventude. No apartamento de Os Sonhadores, crianças brincam de ser adultos; no apartamento de O Último Tango, adultos brincam de ser crianças. O homem revolucionário, fracassado, nega o nome, o relacionamento, o namoro; Paul não quer saber o nome de Jeanne, quer voltar ao estado animal, negando a sociedade, a civilização, vivendo longe de si mesmo, de sua dor, de seu passado.

O filme Os Sonhadores se apresenta como uma utopia. O apartamento é um “paraíso” onde os jovens se refugiam da realidade, da guerrilha que explode lá fora. Em Último Tango, o apartamento é o próprio palco da guerra contra a civilização; Paul e Jeanne destroem todos os pilares sobre os quais a sociedade se sustenta: a família, a religião, o amor romântico. Para Paul, é o fim da linha, o fim de sua história pessoal para o retorno de uma nova; para Jeanne, é o início de uma nova história, sem nomes, sem cultura, sem a obsessão de captar a realidade pela lente de uma câmera, sem guardar a realidade como um porta-retratos, a única alternativa que seu namorado lhe oferece. Quando Paul se recupera de suas cicatrizes, quando quer iniciar um relacionamento formal com Jeanne, aí é ela quem se recusa: para Paul, a esperança renasce, mas em Jeanne o cenário é de terra arrasada, não há mais o que construir.

Em ambos os filmes, os personagens não dançam conforme a música; é exemplar a cena em que Paul e Jeanne vão a um salão de danças e, em meio a bailarinos de tango, executam uma coreografia inventada, original, dodecafônica, sem ritmo. Para Bertolucci, aqueles que ousam dançar fora do corpo de baile da sociedade, dos parâmetros do certo e do errado, estão condenados a ser expulsos do salão.

4 - ANÁLISE DO DISCURSO E O FILME.

O discurso é uma das instâncias em que a materialidade ideológica se concretiza, isto é, é um dos aspectos materiais da “existência material” das ideologias. Ao analisarmos a articulação da ideologia com o discurso, dois conceitos já tradicionais em análise do discurso devem ser colocados: o de formação ideológica e o de formação discursiva.

Constituindo o discurso um dos aspectos materiais da ideologia, podemos afirmar que o discursivo é uma espécie pertencente ao gênero ideológico. Em outros termos, a formação ideológica tem necessariamente com um de seus componentes uma ou várias formações discursivas interligadas. Isso significa que os discursos são governados por formações ideológicas.

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Os Sonhadores se enquadra nesse quesito ao encerrar em si vários tipos de discursos que formam uma ideologia básica que montam a estrutura intertextual da obra e lhe dão forma e sentido. Todas as citações, referenciais e elementos intertextuais presentes no filme são totalmente inteligíveis porque as formações discursivas que estão presentes no filme estão interligadas pela história em si, em suma, estão coesas e coerentes.

O plano da heterogeneidade mostrada funda-se na suposição de várias vozes possíveis numa mesma fala, sinaliza as condições de suas ocorrências e, com isto, radicaliza essa relação dentro/fora do discurso. É nele mesmo que dois sentidos se anunciam. Basta afinar a escuta ou a leitura. O enunciado não é instância única de evidenciamento de tais vozes que divergem; e não se pode dizer que uma é exterior e a outra é interior. Portanto, numa mesma fala de Os Sonhadores, o discurso nos remete aos mais diversos entendimentos e sentidos. Uma citação pode fazer parte do interior da trama ou do discurso ou resgatar algo que lhe é exterior e incuti-lo na sua tessitura.

O conceito de vozes que aqui empregamos é o mesmo que Bakhtin utilizou para criar as análises literárias que hoje dão o tom nos estudos lingüísticos da intertextualidade. No filme, estas diversas vozes compõem uma obra concisa e coesa, e que resgatam diversos sentidos correlatos ou diversos à intenção original da trama.

5 - DIALOGISMO BAKHTINIANO NO ESTUDO DE CINEMA.

Mikhail Bakhtin em sua extensa obra teórica nos deixou os pressupostos para uma melhor análise da literatura e a compreensão do dialogismo como fator de composição destas obras literárias. O que hoje tentamos fazer é passar estas teorias ao campo do estudo e análise fílmicos, visto que a obra do teórico russo é tão abrangente que atinge nossas expectativas em relação à análise do cinema pelo dialogismo.

Citarei aqui alguns trechos da obra de Bakhtin que servem de base a este trabalho. Nosso teórico estuda as várias nuances do discurso utilizaremos aqui este conhecimento. Ao analisar as relações dialógicas no discurso diz o teórico:

As relações dialógicas deste modo são extralingüísticas. Ao mesmo tempo, porém, não podem ser separadas do campo do discurso, ou seja, da língua enquanto fenômeno integral concreto. A linguagem vive apenas na comunicação dialógica daqueles que a usam. É precisamente essa comunicação dialógica que constitui o verdadeiro campo da vida da linguagem. Toda a vida da linguagem, seja qual for o seu campo de emprego (a linguagem cotidiana, a prática, a científica, a artística, etc.) está impregnada de relações dialógicas. (Bakhtin ,1981: 214)

Nesse aspecto, vemos aqui que a utilização da teoria dialógica no campo do cinema está muito bem empregado e fundamentado pelas idéias de Mikhail Bakhtin, porque o cinema como forma de linguagem viva e dinâmica usa e trabalha a comunicação num nível pessoal, onde uma mensagem é passada diretamente a um destinatário contendo em si, uma gama de significados ocultos e inteligíveis a quem

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recebe. Este é o poder do cinema como difusor de cultura e conhecimento. Não precisamos nos debruçar em estudos para entende-lo. Precisamos apenas vê-lo.

6 - AS REFERÊNCIAS DO FILME OS SONHADORES.

Listarei aqui as referências e citações que estão presentes no filme e que fazem parte do esquema que faz uma homenagem ao cinema mundial e retrata um período histórico de grande importância no mundo contemporâneo, que é a Revolução estudantil de 1968 na França. O diretor Bernardo Bertolucci utilizou vários elementos, falas, objetos e filmes que compõem o enredo do filme somente enriquecendo-o e dando-lhe nuances de obra de arte. Veremos agora estas citações:

 Os cartazes colados a paredes homenageiam Jean-Luc Godard ( A Chinesa, 1967) e Nicholas Ray ( Amargo Triunfo, 1957), um dos diretores americanos que inspiraram a Nouvelle Vague .

 A grande dama da chanson francesa Edith Piaf fecha o filme cantando Non, Je ne Regrette Rien e o fou chantant Charles Trenet comparece com La mer.

 A Cinemateque Française, Meca dos cinéfilos, é citada no filme. Criada por Henri Langlois e Georges Franju nos anos 1930, se constituiu em ponto de convergência de nomes como Godard, François Truffaut, Eric Rohmer e Claude Chabrol, criadores, no final dos anos 1950, da Nouvelle vague, movimento que desprezava certa cinematografia francesa conformista e agregava influencias americanas. Os sonhadores encena os protestos pelo afastamento do excêntrico Langlois do comnado da instituição por André Malraux, ministro da Cultura de Charles de Gaull, em fevereiro de 1968.

 Grandes divas do cinema mundial foram citadas no filme. De brincadeira, Isabelle tenta fazer o irmão Theo, adivinhar que a musica que murmura é a de A Vênus Loira (1932), estrelado pela alemã Marlene Dietrich. Ao perder o jogo de citações cinéfilas, Theo é obrigado a se masturbar na sua frente contemplando a foto de Dietrich em O Anjo Azul (1930). Em outra cena, ao acordar Matthew, Isabelle imita a passagem de Rainha Cristina (1933) em que a sueca Greta Garbo memoriza os contornos de um quarto.

 A musa dos anos 1960 Françoise hardy canta a música Tous lês Garçons et lês filles (1962), o hino de quem é gauche na vida.

 Jean-Luc Godard é o cineasta mais homenageado do filme. A cena em que se apregoa o New York Herald Tribune alude a O Acossado (1959), e os protagonistas homenageiam o diretor ao tentar quebrar o recorde estabelecido pelos personagens de seu Bande à Part (1964), percorrendo o Louvre em disparada. Godard é referência para Bertolucci, que considera a língua francesa o idioma oficial do cinema.

 Jean-Pierre Léaud, o ator que encarnou o mítico personagem do cinema francês Antoine Doinel a partir dos 15 anos em Os Incompreendidos (1959) filme de Truffaut e marco zero da Nouvelle Vague, aparece em cena original de 1968

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a cena como ficção, mais de 30 anos depois. Outro ator histórico, Jean-Pierre Kalfon, que atuou em De Repente, num Domingo (1983), despedida do mesmo Truffaut, também interpreta a si mesmo nos protestos no filme de Bertolucci.  O quadro de Eugéne Delacroix de 1830, La Liberte Guidant le Peuple, aparece

na casa de Theo e Isabelle. Aparece subvertido o original, pois o rosto de Marilyn Monroe, ícone de Hollywood e da Pop Art, substitui o da Liberdade sublevada.

 Personagem de muitos filmes italianos, A lambreta aparece em Os Sonhadores. Filmes como Roma Cidade Aberta (1945) de Rosselini, e Nós que nos Amávamos Tanto (1974) de Ettore Scola que dão importância à lambreta, ela aqui é homenageada em uma Paris Sessentista.

 O maio de 1968 foi o ano de ebulição estudantil em todo o mundo. O evento de 1968 na França conseguiu balançar o governo de Charles De Gaulle. A revolta começou na Universidade de Nanterre, com os estudantes questionando as estruturas do ensino superior. Maio viu confrontos com a polícia, barricadas, a adesão do operariado e uma greve geral. A violenta agitação se arrastou até meados de junho, quando De Gaulle triunfou nas eleições que convocou após dissolver a Assembléia Nacional.

 Mao Tsé Tung é muito citado e aparece muito no filme. O livro Vermelho, um cartaz e um busto de Mao lembram o prestigio que a revolução permanente proposta pelo Maoismo obteve entre jovens intelectualizados europeus e até mesmo cineastas – Godard foi um dos que aderiram ao preceito. Criticado pelos que pendiam para a União Soviética e temendo perder o poder, mão desencadeou em 1966 a chamada Revolução Cultural, que pretendia reorientar os rumos revolucionários da China e rechaçar opositores. Ela durou até sua morte em 1976 e cooptou jovens estudantes e trabalhadores, o que Bertolucci retrata em O Ultimo Imperador (1987).

 Comparecem á trilha sonora do filme, ídolos americanos que morreram cedo, depois de enformar uma poética da transgressão que acabou em overdose; Jimi Hendrix (1942-1970), Janis Joplin (1943-1970) e Jim Morrison (1943-1971). Outro que compõe a trilha sonora de artistas maericanos no filme é Bob Dylan.  As pichações que tomaram Paris no maio de 1968 aparecem no filme em duas

lapidares: “A liberdade é o direito ao silêncio” e Gozem sem Entraves”.

 A revista criada por cineastas na França na década de 1950, Cahiers du Cinema, é citada brevemente no filme.

 Sobre a mesa do quarto de matthew, O livro Tri to Hanói (1968) de Susan Sontag, compõe uma discreta homenagem à ensaísta e escritora norte-americana sempre politicamente engajada.

 A guerra do Vietnã é citada, quando o francês Theo cobra uma posição ciritica do visitante norte-americano Matthew acerca do conflito que envolve o país deste. A guerra do Vietnã foi um revés bélico que durou de 1964 a 1975, e iniciou-se quando a artilharia do Vietnã do Norte comunista atingiu dois destróieres dos Estados Unidos.

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 O filme Paixões que Alucinam, de Sam Fuller é o primeiro filme a ser citado na obra de Bertolucci.

 Theo e Matthew discutem sobre Chaplin e Keaton, dois grandes comediantes norte americanos; uma singela homenagem ao cinema de comédia.

 Citação a Jerry Lewis na fala de Theo.

 O grande dançarino e ator Fred Astaire é citado em um dos jogos de cinefilia de Theo e Isabelle por sua aparição no filme, O Picolino.

 O filme Scarface (1932) de Howard Hawks é citado em outro jogo de cinefilia de Theo e Isabelle.

 Isabelle se veste como a Estatua grega Vênus de Milo em passagem do filme. Aqui citamos a maioria dos elementos referenciais que aparecem estão visualmente claros na tela de Os Sonhadores. Um trabalho mais profundo reconheceria outros tantos, mas ficaremos por aqui nesta análise intertextual e dialógica.

7 - CONCLUSÃO.

Esperamos que este trabalho tenha feito suscitar na mente dos estudiosos a possibilidade do estudo dialógico e da lingüística textual acerca do trabalho de análise fílmica. Sempre que vemos um filme e nos deparamos com algo conhecido, seja uma fala, uma imagem, um objeto, por menor que seja o detalhe, este detalhe não está ali naquela cena sem um motivo aparente.

Os estudos de Bakhtin bem provam que a dialogicidade de uma obra não permite que elementos estejam soltos no contexto de uma obra e sem uma razão ou sentido aparente. O que aqui fizemos foi levantar os diversos elementos que compões a tessitura dialógica e discursiva do filme Os Sonhadores. Portanto, ao se analisar um filme ganhamos sempre que nos dispomos a vê-lo com outros olhos, com olhos de críticos e de analistas da linguagem que somos.

A linguagem é riquíssima no cinema e é nosso dever resgata-la á luz da ciência lingüística, como profissionais que somos e como amantes de uma arte que necessita ser divulgada e ainda mais estudada. Filmes como Os Sonhadores são um bom exemplo de como podemos extrair sentido de uma obra cinematográfica. Esperamos que outras análises venham e que mais e mais o cinema venha a ser analisado como referencial discursivo e lingüístico. Este é o nosso objetivo.

REFERÊNCIAS

BAKHTIN, Mikhail. Problemas da Poética de Dostoiévski. Rio de janeiro. Ed. Forense Universitária. 1981.

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BRANDÃO, Helena H. Nagamine. Introdução à Análise do Discurso. 8ª Ed. Campinas,SP . Editora da Unicamp. 2002.

CLARK, Katerina & HOLQUIST, Michael. Mikhail Bakhtin. São Paulo. Ed. Perspectiva. 1998.

GUIRADO, Marlene. Psicanálise e Análise do Discurso. São Paulo. Summus Editorial. 1995.

MUSSALIM, Fernanda & BENTES, Anna Christina – Introdução à Lingüística: domínios e fronteiras v.2 – 3º ed. – São Paulo – Cortez – 2004.

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