• Nenhum resultado encontrado

Fazendo Música pela Cidade: trabalhadores e ritmos em Vila Isabel antes de Noel Rosa

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "Fazendo Música pela Cidade: trabalhadores e ritmos em Vila Isabel antes de Noel Rosa"

Copied!
124
0
0

Texto

(1)

Pedro Maron de Azevedo Severiano

Fazendo Música pela Cidade:

trabalhadores e ritmos em Vila Isabel antes de Noel Rosa

Dissertação de Mestrado Dissertação apresentada como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre pelo Programa de Pós-Gradução em História Social da Cultura do Departamento de História da PUC-Rio.

Orientador: Prof. Leonardo Affonso de Miranda Pereira

Rio de Janeiro Março de 2018 PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512179/CA

(2)

Pedro Maron de Azevedo Severiano

Fazendo Música pela Cidade: trabalhadores e

ritmos em Vila Isabel antes de Noel Rosa

Dissertação apresentada como requesito parcial para a obtenção do grau de mestre pelo Programa de

Pós-Graduação em História Social da Cultura do

Departamento de História do Centro de Ciência Sociais da PUC-Rio. Aprovada pela Comissão Examinadora abaixo assinada

Prof. Leonardo Affonso de Miranda Pereira Orientador Departamento de História - PUC-Rio

Prof. Diego Antonio Galeano Departamento de História - PUC-Rio

Profª Carolina Vianna Dantas Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio – FIOCRUZ

Prof. Augusto César Pinheiro da Silva Vice-Decano de Pós-Graduação do Centro de Ciências Sociais - PUC-Rio

Rio de Janeiro, 14 de março de 2018

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512179/CA

(3)

Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou parcial do trabalho sem a autorização da universidade, do autor e do orientador.

Pedro Maron de Azevedo Severiano

Graduo-se em Ciências Sociais na UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) em 2008. Professor da SEEDUC (Secretaria de Estado de Educação do Rio de Janeiro).

Ficha Catalográfica

CDD: 900

CDD: 900 Severiano, Pedro Maron de Azevedo

Fazendo música pela cidade : trabalhadores e ritmos em Vila Isabel antes de Noel Rosa / Pedro Maron de Azevedo Severiano ; orientador: Leonardo Affonso de Miranda Pereira. – 2018.

124 f. : il. ; 30 cm

Dissertação (mestrado)–Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Departamento de História, 2018.

Inclui bibliografia

1. História – Teses. 2. História Social da Cultura – Teses. 3. Primeira República. 4. Ritmos. 5. Samba. 6. Vila Isabel. I. Pereira, Leonardo Affonso de Miranda. II. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Departamento de História. III. Título.

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512179/CA

(4)

Para Antonio Carlos e Eugenie

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512179/CA

(5)

Agradecimentos

Agradeço a PUC pelo auxílio e aos seus funcionários por darem a estrutura para essa pesquisa.

Também sou grato à secretaria do Programa de Pós-Graduação em História Social da Cultura, Claudio Santiago, Celusa Ventura e a sempre solícita Edna Maria Timbó pelo apoio nesses anos.

Aos professores e professoras do Programa de Pós-Graduação em História Social da Cultura.

Este trabalho não seria possível sem o esforço, colaboração, leitura atenta e paciência de meu orientador Leonardo Affonso de Miranda Pereira a quem sou extremamente grato pelo empenho nesses anos.

Aos meus pais Antonio Carlos e Eugenie por todo carinho e incentivo Ao meu irmão Rodrigo e minha irmã Joana

Aos meus padrinhos Carlos Alberto e Sônia

Em seguida, os amigos que estão aí pra nivelar a vida em alto astral

Aos meus amigos/irmãos Thiago, Rafael “Cabeça”, Leonardo e Marcello “Cocão”, Francisco

Para a galera do Cap-Uerj

Babi, Flávia, Henke, Mariana, Mitz, Pougy, Tamíres, Julia, Luci, Laís o Mano Saideira “Gabriel”, Dani “Zani”, Letícia

Pessoal do IFCS. Pedro Cazes, Juliana, Andre, Rosa Carlos Eduardo “Cadu” e família, Marcelinho e família Rapaziada da Pelada/Churrasco de Terça

Os companheiros de time do B.F.C, churrasco é obrigação Dudu, Branca e Alberto pelo acolhimento e grandes festas

Para os fantásticos amigos de Quinta (e 26) André, Ary (e Gisele), Victor Mano Athirson (e Mariana), Fábio “Bito”, Bozo, Bruno (e Cecília), Camilo, Diego, Bruno “Estrela”, Tiago “Goa” (e Mariana), Diogo “Fininho” Godoi, Gustavo Guindane, Gustavo “Gutti” (e Maíra), Henrique “Cotinha”, Hermano (e Carol), João Francisco, João Paulo “JP” ( e Mônica), Leonardo “Kissi”, Marcelo “Cocão”, Pablo, Pedro Antonio “Romário”, Pedro “PJ” (e Patrícia), Rael, Rafael Abreu (e Isa), meu compadre Reinaldo “Regi” (e Nicole, Sebastião e Elis), Sergio, Pedro Veríssimo, Vinicius “Cabelo”, Julio “Guri”, Lucas “Carrinho”, Bernardo “Presunto”, Tomás “Maestro”, Maurício

Finalizo agradecendo minha companheira Marcela, com quem aprendo todos os dias, por seu carinho e parceria.

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512179/CA

(6)

Resumo

Severiano, Pedro Maron de Azevedo; Pereira, Leonardo Affonso de Miranda. Fazendo Música pela Cidade: trabalhadores e ritmos em Vila Isabel antes de Noel Rosa. Rio de Janeiro, 2018. 124p. Dissertação de Mestrado – Departamento de História, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

No início dos anos 1930, algumas composições de Noel Rosa ajudaram a consolidar uma imagem muito específica para o bairro de Vila Isabel e a musicalidade nele produzida. Esta imagem partia da caracterização distinta atribuída aos habitantes da região, representada de maneira homogênea, para dar forma a um tipo de samba que, ao contrário do modo pelo qual o ritmo apareceria em outros espaços da cidade, se mostraria harmônico e elevado. Nas décadas seguintes, parte da historiografia e da memória do samba incorporou e utilizou as imagens criadas por Noel Rosa para Vila Isabel em suas explicações sobre as transformações do ritmo, definindo os diferentes tipos de samba a partir dos territórios em que eles eram produzidos. Para problematizar essas imagens, que acabam por essencializar espacialmente as formas diversas de expressão daquela musicalidade que se afirmava ao longo daquela década como ritmo nacional, este trabalho volta-se para a região de Vila Isabel nos anos anteriores ao surgimento do compositor no cenário musical. Através da análise do processo de formação social do bairro e da inserção de seus moradores nas redes musicais do Rio de Janeiro da Primeira República, pretende-se apontar o caráter dinâmico e conectado das redes culturais através das quais o samba se afirmava, de modo a discutir certas concepções essencialistas sobre o ritmo.

Palavras-chave

Trabalhadores; Primeira República; ritmos; samba; Vila Isabel.

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512179/CA

(7)

Abstract

Severiano, Pedro Maron de Azevedo; Pereira, Leonardo Affonso de Miranda(Advisor). Making Music in the City: workers and rhythms in Vila Isabel before Noel Rosa. Rio de Janeiro, 2018. 124p. Dissertação de Mestrado – Departamento de História, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

In the beginning of the 1930's, some of Noel Rosa's compositions contributed to consolidate a very specific portrait of the neighborhood of Vila Isabel and the musicality created therein. This portrait was based on the distinct characterization of its inhabitants, represented in a homogenous form, to create a type of samba that, different from the compositions from other parts of the city, was "harmonious and elevated In the following decades, part of the historiography and the memory of samba incorporated and used these musical images created for Vila Isabel by Noel Rosa to understand the transformation in the genre, and to define different types of samba based on the region where the compositions originated from. In order to discuss and confront these images, that spatially essentialize the various forms of expression of this musicality that emerged as the national genre, in this work we focus on the study of Vila Isabel years before the birth of the composer. By analyzing the process of social construction of the neighborhood and how its inhabitants were inserted in Rio de Janeiro's musical networks at the time of the First Republic, we highlight the dynamic and connectivity aspects of these cultural relationships in which samba was strengthen, as a way to discuss some of the essentialists concepts about the genre.

Keyword

Workers; rhythms; samba; Vila Isabel

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512179/CA

(8)

8

Sumário

Introdução ... 10

1 A invenção de Vila Isabel ... 29

1.1 De companhia de Ferro-Carris a pitoresco e salubre bairro ... 33

1.1 O apito da confiança ... 46

1.3 Espíritos do progresso ... 53

2 Nosso Bloco só tem gente família ... 61

2.1 Da marca do ouro ao prêmio da violência ... 64

2.2 A Confiança dos operários ... 73

2.3 Qual foi o resultado do futebol? ... 80

3 Uma cidade independente?... 85

3.1 Música sem fronteiras ... 90

3.2 Trajetórias Musicais ... 100 3.3 O Bando de Tangarás ... 106 Considerações Finais ... 113 Referências Bibliográficas ... 118 Bibliografia... 120 PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512179/CA

(9)

Lista de Imagens

Figura 1 - Projeto de Vila Isabel APUD ABREU, Mauricio de A. Evolução Urbana do

Rio de Janeiro, IPP, 2013, 46... 38

Figura 2 - Revista da Semana, 22 de dezembro de 1901 ... 50

Figura 3 – O Malho, 02 de maio de 1914. ... 76

Figura 4 - O Malho, 2 de maio de 1914. ... 79

Figura 5 - Os Oito Batutas. APUD VIANA, Hermano O Místério do Samba, Ed. UFRJ, .... 83

1995 Figura 6 - "Os Africanos de Vila Isabel". Correio da Manhã, 23 de janeiro de 1927. ... 98

Figura 7 Bando de Tangarás. “Vamos falar do Norte” Bennedeti-films, 1929. ... 109

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512179/CA

(10)

Introdução

O compositor Noel de Medeiros Rosa, nascido em 11 de dezembro de 1910, tornou-se figura marcante no processo de consolidação do samba como ritmo nacional brasileiro. Em sua curta vida – morreu aos 26 anos de tuberculose – compôs canções que tratavam dos mais diversos temas e voltadas para distintas ocasiões, como marchas carnavalescas, sambas de meio de ano, temas para o teatro de revista, entre outros1. Desse universo variado de composições, no entanto, um conjunto específico de suas canções contribuiu para lhe render a alcunha de “Poeta da Vila”: aquelas que tematizavam o bairro de Vila Isabel, na zona norte carioca, onde vivia o compositor. Por terem alcançado grande sucesso, algumas destas músicas se tornaram referências fundamentais na carreira de Noel Rosa. É o caso de “Bom Elemento”, de 1930, composta com Euclydes Silveira (Quindinho) e gravada por Noel2. Nela se afirma, pela primeira vez em sua obra, a Vila como lugar do samba, ainda em par com Aldeia Campista:

“Entrei no samba

E os malandros perguntaram Se eu era bamba

No bater do tamborim E o batuque

Eles logo improvisaram Eu dei a cadência assim:

Meu bem, o valor dá-se a quem tem A Vila e a Aldeia não perdem pra ninguém ( O que é que tem?

Não diga meu bem)

Meu bem, o valor dá-se a quem tem

A Vila e a Aldeia não perdem pra ninguém”.3

Desafiado a mostrar sua habilidade no tamborim, o narrador da canção se afirma como um representante da região de Vila Isabel e Aldeia Campista – bairros contíguos que, segundo ele, não deixariam nada a dever em termos de

1 ALMIRANTE (Henrique Foréis Domingues) No Tempo do Noel Rosa Rio de Janeiro, Sonora

Editora, 2013; DIDIER, Carlos, MÁXIMO, João Noel Rosa: Uma Biografia Brasilia, Ed Universidade de Brasília, 1990

2

A autoria dessa canção é atribuída a Noel Rosa por Almirante no livro No Tempo do Noel Rosa. Ainda neste livro, Almirante, no capítulo “Consagração dos bairros cariocas”, diz que Quindinho parodiou o samba “Na Pavuna” com o título “N’Aldeia”.

3 Noel Rosa e Euclydes Silveira “Bom Elemento”, 1930. Noel Rosa e Arthur Costa e seu grupo,

Columbia, 22.023, 1931. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512179/CA

(11)

samba para outras regiões já mais associadas ao ritmo. Ao afirmar que os dois bairros “não perdem pra ninguém”, tratava de defender o orgulho dos sambistas locais frente ao prestígio musical já desfrutado por outras regiões da cidade. O resultado desse confronto é afirmado orgulhosamente no fim da canção:

“Com violência Enfrentei a batucada A harmonia

Do meu simples instrumento Fez toda a turma

Ficar muito admirada Porque sou bom elemento”.4

Se o valor de Vila Isabel no mundo do samba estava afirmado no início da canção, a peculiaridade da região cantada pelo narrador se esclarece nesses versos finais. O triunfo do sambista de Vila/Aldeia ocorre sem prejuízo do fato de que ele fosse, segundo o próprio, um “bom elemento”. Além da afirmação da região da Vila como lugar de samba, de bambas, o bairro e seus representantes se apresentam assim como distintos em relação ao que, até então, era visto por grande parte da sociedade carioca como os homens e mulheres que frequentavam essas rodas musicais.5

Iniciada com esta canção de 1930, a construção desta imagem de Vila Isabel seria reforçada, em 1931, pelo samba “Eu Vou pra Vila”, uma composição individual de Noel Rosa6. Sua letra descreve um homem que conhece diversos bairros e rodas de samba, um bacharel no assunto que, após rodar por Gamboa, Pavuna, Piedade e Cascadura, decide ir para Vila Isabel:

“Andando pela batucada Onde eu vi gente levada Foi lá em Vila Isabel” (...)

4 Noel Rosa e Euclydes Silveira “Bom Elemento”, 1930. Noel Rosa e Arthur Costa e seu grupo,

Columbia, 22.023, 1931.

5 Uma série de depoimentos de sambistas trata da maneira pela qual eles e as músicas que faziam

eram vistas de modo depreciativo por parte considerável da sociedade do Distrito Federal. Ver, entre outros, HERTZMAN, Marc Making Samba: A New HIstory of Race and Music in Brazil, Duke University Press, 2013; VIANNA, Hermano Mistério do Samba , Rio de Janeiro, Ed. UFRJ, 1995.

6 DIDIER, Carlos, MÁXIMO, João Noel Rosa. Uma Biografia Brasilia, Ed Universidade de

Brasília 1990 PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512179/CA

(12)

Na Pavuna tem turuna Na Gamboa gente boa Eu vou pra Vila

Aonde o samba é da coroa. Já saí de Piedade

Já mudei de Cascadura Eu vou pra Vila

Pois quem é bom não se mistura”7

Ao contrário do que acontecia na canção “Bom Elemento”, desta vez a chancela do bairro de Vila Isabel enquanto bom lugar de samba não vinha de um nativo, mas de alguém de fora. Ainda assim, o bairro é apresentado na letra como um lugar que também pertence ao circuito do samba, como a Pavuna e a Gamboa. Uma diferença, no entanto, ficava explícita: se a letra não deixava de mostrar simpatia pelos habitantes destes outros bairros, descritos como “gente boa” e “turunas” – um sinônimo de “destemidos”, “valentes”8

– a Vila Isabel era descrita como o local no qual “o samba é da coroa”, em clara marca de superioridade. Bamba que era, o narrador da canção diz assim abandonar os outros bairros em favor da da Vila, “pois quem é bom não se mistura”. Repete-se, assim, o tema da distinção de Vila Isabel e dos que frequentam o samba nessa localidade – na consolidação da visão idílica do bairro que, iniciada com a canção de 1930, explicitava os motivos da preferência do narrador:

“A polícia em toda a zona Proibiu a batucada Eu vou pra Vila

Onde a polícia é camarada”.

Ao contrário dos demais lugares da “zona” onde haveria batucada, na Vila a polícia conviveria bem com os bambas, que estariam distantes da imagem de marginalidade associada ao ritmo em outras localidades. Era assim um samba supostamente isento dos prejuízos a ele associados, ligados ao perfil social e étnico de seus protagonistas habituais, o que diferenciaria o bairro de outras regiões identificadas com sambas e sambistas da cidade.

7 Noel Rosa “Eu vou pra Vila”, Ed. Magione, 1930. Almirante com o Bando de Tangarás,

Parlophon 13.256, 1931.

8

Cf. Raul Pederneiras, Geringonça carioca.Verbetes para um dicionário de gíria. Rio de Janeiro, Briguet e cia., 1946, pg. 64. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512179/CA

(13)

A construção desta imagem de uma localidade que, mesmo se integrando ao samba, não deixava de ser harmônica e com pessoas distintas, se consolidaria em 1934 em uma das mais famosas canções de Noel Rosa: “Feitiço da Vila”9

, composta em parceria com Oswaldo Golgiano (Vadico) , que logo se tornou uma das maiores referências da relação entre ele e o bairro. A música se inicia falando da relação dos nascidos no bairro com o samba:

“Quem nasce lá na Vila Nem sequer vacila Ao abraçar o samba Que faz dançar os galhos Do arvoredo e faz a lua Nascer mais cedo”.10

Com vocação boêmia, Vila Isabel seria um bairro no qual “o sol é triste”, pois a devoção ao samba (associado à noite) faria a “lua nascer mais cedo”. A letra de ‘Feitiço da Vila’ cria uma relação de naturalidade na identificação entre bairro e samba, expressa na vocação dos nascidos no bairro para o ritmo ou através da própria natureza local, no qual a Lua nasceria antes do tempo para garantir maior espaço para o samba. Desse modo, o samba feito no bairro era caracterizado como algo ligado ao local, com características próprias:

“A Vila tem

Um feitiço sem farofa Sem vela e sem vítem São Paulo dá café, Minas dá leite,

E a Vila Isabel dá samba”.11

Mais do que uma prática ocasional dos moradores de Vila Isabel, o samba é descrito na canção como o principal produto do bairro. Um produto que ali se apresentava, porém, despido dos prejuízos associados ao ritmo em outras localidades. Não por acaso, a mesma canção indica uma peculiaridade do samba no bairro: um feitiço sem vintém, vela ou farofa – isso é, um feitiço decente,

9 Noel Rosa e Vadico “Feitiço da Vila” Ed. Magione, 1934. João de Petra Barros e Qrquestra

Odeon, Odeon 11.175, 1934.

10 Noel Rosa e Vadico “Feitiço da Vila” Ed. Magione, 1934. João de Petra Barros e Qrquestra

Odeon, Odeon 11.175, 1934.

11 Noel Rosa e Vadico “Feitiço da Vila” Ed. Magione, 1934. João de Petra Barros e Qrquestra

Odeon, Odeon 11.175, 1934. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512179/CA

(14)

distante das práticas religiosas afro-brasileiras às quais costumava já ser associado. 12

Percebe-se, desse modo, que não é possível abordar a construção da imagem sambista de Vila Isabel sem voltar-se para as composições de Noel Rosa. A figuração desta localidade na geografia do samba no Rio de Janeiro se apresenta como obra do próprio artista, que através de suas letras tratou de criar para o bairro uma imagem que era boêmia sem deixar de ser harmônica e “decente”. Por mais que se tratasse de uma visão subjetiva e artística do bairro, no entanto, tal imagem foi reiterada, na posteridade, por autores como João Maximo e Carlos Didier. A partir das próprias letras de Noel, eles descrevem Vila Isabel como um lugar bucólico, que concentrava diferentes tipos cariocas. Sobre 1910, ano de nascimento do compositor, os autores dizem o seguinte:

“Podia haver, também, uma ou outra escaramuça quebrando o silêncio da noite. Ou mesmo algo mais grave, como o encontro, em pleno o Boulevard, de simpatizantes de Hermes com os de Ruy, no dia das eleições, resultando em um morto ou duas dúzias de feridos.

Podia ser tudo isso, mas eram episódios raros bissextos, que não chegavam a desmentir o fato de que a Vila era mesmo uma zona tranquila. E, como gostava de dizer vó Rita, uma grande família” 13

Em consonância com aquilo que havia sido cantado por Noel, o bairro de Vila Isabel é apresentado como uma região harmônica e pacífica, na qual os conflitos seriam poucos em quantidade e em importância. Marcado pela tranquilidade, o bairro era caracterizado como um espaço de “família”, distante dos distúrbios e disputas que marcariam outras regiões da cidade.

Não é difícil perceber, no entanto, o que esta ideia esconde. A leitura cuidadosa das sucessivas canções de Noel Rosa sobre o tema deixa claro que, longe de ser natural, ela era fruto de um deliberado esforço do compositor em afirmar uma certa imagem positiva para a sua região. Ligada ao fortalecimento do samba enquanto ritmo, este ímpeto atendia, naquele momento, a objetivos bem específicos. Para os contemporâneos de Noel Rosa, o bairro se tornava referência

12 SANDRONI, Carlos Feitiço Decente Transformações do Samba no Rio de Janeiro (1917-1933),

Rio de Janeiro, Ed UFRJ, 2001, 170.

13 DIDIER, Carlos, MÁXIMO, João Noel Rosa: Uma Biografia, Brasília, Ed. Universidade de

Brasília, 1990, 46. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512179/CA

(15)

no samba no mesmo período em que o este se consolidava como ritmo nacional.14 À harmonia associada ao bairro corresponderia, assim, a articulação de uma imagem já palatável do samba, que viabilizaria sua aceitação como ritmo nacional. É, assim, o sucesso desse esforço de construção de uma nova imagem para o bairro de Vila Isabel e para o próprio samba que explica a reiteração dessa ideia em obras como a de João Máximo e Carlos Didier.

A força assumida posteriormente por esta memória não pode apagar, no entanto, o esforço de compreender as teias e redes a partir das quais ela pôde se articular. De fato, esta representação da Vila tinha em sua base experiências efetivas, trabalhadas por Noel Rosa para forjar uma imagem positiva de seu bairro e do tipo de samba nele produzido. Para compreendermos a lógica deste processo, de modo a analisar o que ele propõe e o que ele acoberta, devemos assim reduzir nossa escala de análise para o bairro de Vila Isabel – de modo a mostrarmos, a partir das relações sociais constituídas nessa região ao longo ao longo da Primeira República, de que maneira homens e mulheres circulavam pela cidade elaborando suas identidades nos circuitos musicais e festivos. Desconstruindo a ideia de uma cultura homogênea, definida geograficamente, podemos nos contrapor às análises sobre o samba que partem desta visão essencialista sobre o ritmo, em construção que guarda certa concepção holística de cultura.

Esta visão está presente em grande parte bibliografia sobre o samba no Brasil que busca desvendar as suas origens ou abordar o momento de sua afirmação como ritmo nacional em sua forma urbana. Com as devidas nuances, a bibliografia apresenta uma ideia do samba ora marcada por uma essência que permanece apesar dos percalços, ora como uma criação que responde a um desejo de identidade nacional.

Tais controvérsias em torno do que é o samba se iniciam no próprio momento de consolidação do ritmo como símbolo nacional. Lançados no ano de 1933, os livros de Vagalume (Franciso Guimarães) e Orestes Barbosa – No

14 Ver, entre outros,VIANNA, Hermano Mistério do Samba, Rio de Janeiro, Ed. UFRJ, 1995;

SANDRONI, Carlos Feitiço Decente Transformações do Samba no Rio de Janeiro (1917 – 1933), Rio de Janeiro, Ed UFRJ, 2001; FENERICK, José Adriano “Noel Rosa, o samba e a invenção da música popular brasileira”in Revista História em Reflexão, vol.1 n.1, 2007; WALSH, Lindsay

Brazil is Samba: Rhythm, Percussion, and Samba in the Formation of Brazilian National Identity (1902 – 1958) Thesis, Wesleyan University, Connecticut, 2010.

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512179/CA

(16)

Princípio era a Roda15 e Samba16, respectivamente – trazem algumas das primeiras tentativas de sistematização sobre o ritmo e sua história. Os autores possuíam trajetórias e relações distintas com o gênero musical. Em parte por esse motivo, tecem diferentes argumentos sobre o que ele era e sobre como deveria ser o gênero. Mais próximo da geração de Pixinguinha e Sinhô, e negro como eles, Vagalume critica o processo de comercialização do samba pela indústria fonográfica, investindo em uma visão mais pura e autentica do que seria o verdadeiro samba: aquele das rodas boemias negras. Barbosa, por seu turno, prefere valorizar o aspecto carioca do samba, dedicando-se a enaltecer compositores e cantores de uma geração seguinte como Ismael Silva, Francisco Alves e o próprio Noel Rosa17. Embora ambos tratassem de tentar valorizar o samba, o faziam com visões muito distintas sobre o ritmo que começava a se fortalecer, mostrando uma clara disputa sobre seu sentido.

Iniciava-se assim, segundo Carlos Sandroni18, uma polêmica que se estenderia pelas gerações seguintes entre o que seria o grupo da Praça Onze e o do Estácio. Esta disputa pela autenticidade do samba pode ser vista na já clássica história do diálogo entre Ismael Silva e Donga presenciado e relatado por Sérgio Cabral e explicada pelo próprio Sandroni:

“ Cabral propôs aos dois a mesma questão – o que é samba? Donga respondeu com o exemplo de ‘Pelo Telefone’ e Ismael discordou: ‘ – Isso é Maxixe’. Para ele, samba de verdade era ‘Se você Jurar’ (composto por ele e Nilton Bastos em 1931). Mas Donga também discordou: ‘ – Isso não é samba, é marcha.” 19

Ora, é improvável que alguém associe qualquer dos personagens acima ao maxixe ou à marcha. Ambos foram reconhecidos, ao longo do tempo, como sambistas20. A diferença de suas posições deixa claro, no entanto, que o ritmo não é algo palpável, facilmente reconhecível e definível. Pelo contrário, ele é campo

15

VAGALUME (Francisco Guimarães) Na Roda de Samba , Rio de Janeiro, Funarte, 1978.

16 BARBOSA, Orestes Samba , Rio de Janeiro, Funarte, 1979.

17 SANDRONI, Carlos Feitiço Decente Transformações do Samba no Rio de Janeiro (1917-1933),

Rio de Janeiro, Ed UFRJ, 2001, 134.

18 SANDRONI, Carlos Feitiço Decente Transformações do Samba no Rio de Janeiro (1917-1933),

Rio de Janeiro, Ed UFRJ, 2001, 137.

19SANDRONI, Carlos Feitiço Decente Transformações do Samba no Rio de Janeiro (1917-1933),

Rio de Janeiro, Ed UFRJ, 2001, 132.

20

Exemplos desse reconhecimento são a comemoração do centenário do samba a partir do registro

de Pelo Telefone de Donga e Mauro de Almeida

https://www.bn.gov.br/acontece/noticias/2016/02/samba-completa-cem-anos; e o marco da Deixa Falar, fundada por, entre outros, Ismael Silva como primeira Escola de Samba. CABRAL, Sérgio

Escolas de Samba do Rio de Janeiro Rio de Janeiro, Companhia Editora Nacional, 2011.

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512179/CA

(17)

de disputas, cujos sentidos se ligam a diferentes experiências e projetos sociais. Na base destas disputas encontram-se diferentes formas de essencialização que, de modos diversos, acabam por tomar o samba como um objeto de análise cujo aparecimento seria definível de forma objetiva e direta.

Criada pelos próprios protagonistas do processo de afirmação do samba enquanto ritmo, tais tipologias essencialistas foram reproduzidas, em décadas posteriores, por muitos daqueles que se dedicaram a analisar a história do ritmo. No ensaio intitulado Samba, o Dono do Corpo21, Muniz Sodré apresenta o ritmo

como marca da resistência da cultura ancestral dos negros africanos em território brasileiro. Segundo o autor, a cultura da diáspora luta para permanecer presente através da dança e da música performada pelos homens e mulheres de origem ou antepassados africanos do outro lado do atlântico. Perseguido tanto durante o período escravocrata quanto depois da abolição em meio ao processo de modernização urbana, o negro no Brasil teria mantido, através da religiosidade e da música, seus traços culturais. Atento às transformações econômicas e sociais que atingem a população negra no país, Sodré sustenta que o samba – visto como consequência de transformações de ritmos e religiosidades africanas que se consolidam como samba no espaço urbano – seria um fator indicativo da luta dos negros para sustentar sua cultura e sua corporalidade.

Ao defender esta ideia, no entanto, o autor não se aprofunda no que torna possível a permanência que sugere. De caráter mais ensaístico do que historiográfico22, o livro sustenta a ideia de permanência/resistência apresentando a sincopa como o elemento de evidência – inclusive com menção ao Jazz como resistência negra nos Estados Unidos da América .23 Nesse sentido, perdem-se as dinâmicas e conflitos entre as diversas culturas que se colocavam como partes do processo de construção do samba, como aquelas articuladas à harmônica imagem de Vila Isabel construída por Noel Rosa.

Outro autor que se debruçou sobre a cultura da diáspora no território brasileiro foi Nei Lopes. Dentro de sua vasta obra dedicada ao tema, seu livro

21

SODRÉ, Muniz Samba o Dono do Corpo Rio de Janeiro, Mauad, 1998.

22 Sobre esse e outros aspectos do samba na historiografia ver FERNANDES, Dmitri Cerbocini

“De ‘Pelo Telefone’ a ‘Pela Internet’ Tensões entre Raça, Direitos, Gênero e Nação” in Novos

Estudos CEBRAP, São Paulo, vol. 102, Julho 2015.

23

SODRÉ, Muniz Samba o Dono do Corpo, Rio de Janeiro, Mauad, 1998, 12, 26.

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512179/CA

(18)

Partido Alto – Samba de Bambas procura resgatar as origens desta modalidade de

samba, “Transcendendo qualquer aspecto formal, partido-alto é, sobretudo, o samba da elite dos sambista, bem-humorado, encantador e espontâneos”, afirma ele 24. A estratégia de Lopes para expor o Partido Alto é assim a de buscar suas origens através das suas linhagens rurais e negras. Um grande número de versos usados em improvisos em diversas localidades do Brasil – do interior do Estado do Rio ao Nordeste – são manejados para indicar temáticas e estilos cantados nos encontros e festas das populações afrodescendentes. Para analisa-las, o autor identifica no início do trabalho duas correntes principais na música da diáspora africana nas Américas:

“... uma abre-se à influência de elementos externos, levada em direção à integração que quase sempre a sufoca e absorve; e a outra procura manter puros, o quanto possível, seus traços ancestrais.” 25

Segue argumentando que o samba, de um modo geral, torna-se símbolo de identidade nacional e, neste processo, acaba perdendo sua africanidade. Mas, dentro do universo do samba,

“... algumas vertentes e estilos, mesmo nas cidades, resistem e se mantém relativamente fiéis a seus cânones fundadores. E é este o caso da modalidade genericamente conhecida como ‘samba de partido-alto’, ‘partido-alto’ ou simplesmente ‘partido’” 26

Assim como Sodré, Lopes mostra se basear na ideia de permanência de uma africanidade que não é dotada de historicidade – em uma essencialização dessa cultura que teria no samba sua principal configuração. Ainda que apresente as diversas variantes de versos e ritmos que levam em conta o improviso, a definição de Partido Alto contida no estudo incorpora, assim, a ideia da manutenção desse cânone de origem, que os negros teriam resistido para manter.

A própria circulação desses versos e dos indivíduos que são apresentados como mantenedores da tradição apontam, no entanto, para um processo de contínua transformação, e não para algum tipo de permanência.27 Nesse sentido, seria mais interessante pensar os elementos africanos na chave do argumento de

24 LOPES, Nei Partido Alto – Samba de Bamba, Rio de Janeiro, Pallas, 2005, 27. 25

LOPES, Nei Partido Alto – Samba de Bamba Rio de Janeiro, Pallas, 2005, 17.

26 LOPES, Nei Partido Alto – Samba de Bamba, Rio de Janeiro, Pallas, 2005, 17.

27 Pode-se pensar as redes de comunicação através dos versos de Partido Alto a partir de

DARTON, Robert Poesia e Polícia. Redes de Comunicação na Paris do século XVIII, São Paulo, Companhia das Letras, 2010.

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512179/CA

(19)

Robert Slenes em “Malungo, ngoma vem”28

– no qual o autor indica que a conformação da ideia da origem africana comum se baseia de início na própria experiência da travessia do atlântico nos navios negreiros e nas relações entre os escravos negros no território brasileiro, onde eles descobriram uma africanidade comum e recriaram continuamente suas identidades .

Não por acaso, perspectivas essencialistas como estas foram criticadas, na década de 1990, por autores como Hermano Vianna. Perguntando-se como um ritmo perseguido nas primeiras décadas do século XX pode ter se transformado em símbolo de identidade nacional nos anos 1930, ele procura desvendar esse “mistério”:

“Aí está o grande mistério da história do samba: nenhum autor tenta explicar como se deu essa passagem (o que a maioria faz é apenas constatá-la), de ritmo maldito à música nacional e de certa forma oficial. É em torno desse mistério, que está no cerne do encontro da turma de Gilberto Freyre (representando aqui – problematicamente, como em toda a representação – a elite) com a turma de Pixinguinha (representando o povo), que vai ser construído este livro.” 29

O esforço de Vianna é demonstrar que mesmo antes do samba assumir o posto de símbolo da miscigenação nacional, havia relação entre os grupos que ele define como representantes da cultura popular e da elite. Ainda assim, apenas no momento em que parte da intelectualidade modernista enxerga no samba a música que representa o encontro do ritmo africano com a harmonia europeia, é que haverá o esforço de construir essa tradição. Em outras palavras, mediadores culturais do modernismo vislumbram no samba a possibilidade de inventar uma tradição genuinamente nacional que se adequasse a visão do Brasil como um país moderno e mestiço.

O Mistério do Samba se afasta, assim, da tentativa de resgatar traços da

essência tradicional do samba. Pelo contrário, o que está em jogo para o seu autor é a compreensão dos grupos envolvidos na gênese dessa tradição, ou melhor, da invenção da identidade nacional brasileira e do papel que o samba ocupa nela. Entretanto, ainda que Vianna chame a atenção para as relações sempre tensas entre a cultura popular e as elites, dois problemas nos chamam atenção. Primeiro, a ideia de que os encontros entre esses grupos, que o próprio autor considera de

28 SLENES, Robert “Malungo, ngoma vem” in RevistaUSP, n.12, 1992. 29

VIANNA, Hermano Mistério do Samba, Rio de Janeiro, Ed. UFRJ, 1995, 29.

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512179/CA

(20)

difícil definição, pode ser o encontro entre duas culturas homogêneas. Sustentado por essa premissa, explica-se a ênfase do autor na figura do mediado cultural: um representante da cultura da elite que enxerga na cultura popular algum valor e que permite que ela participe, a cultura e seus indivíduos, do universo restrito. Sendo assim, por mais que se afaste do essencialismo próprio das análises de autores como Sodré e Lopes, Vianna acaba por reiterar uma ideia de cultura popular que continua a ser vista como um substrato comum e homogêneo ao “povo”, do qual os modernistas teriam tirado a matéria prima para a afirmação do samba como ritmo nacional.

Em parte, tal problema se liga a uma visão um tanto unívoca do próprio ritmo, que não chega a ser discutida no livro O Mistério do Samba. É para dar conta desta questão que Carlos Sandroni publica, em 2001, o livro, Feitiço

Decente, no qual busca evidenciar de que modo as distintas realidades sociais

experimentadas pelos protagonistas do processo de afirmação do samba se ligam às suas opções rítmicas e musicais. Recorrendo às próprias canções, o autor expõe as metamorfoses ocorridas no samba no Rio de Janeiro entre 1917 e 1930, com a passagem do grupo da Praça Onze para o paradigma do Estácio – este último reconhecido como o formato do gênero enquanto símbolo nacional, onde se manifesta mais claramente a sincopa, encarada como marca de africanidade. Esse deslocamento “geográfico” marca também o processo de profissionalização dos compositores. Ao registrar “Pelo Telefone” como sua autoria Donga já indicava passos nesse sentido, mas o grupo do Estácio formaliza esse procedimento pela proximidade com a indústria fonográfica e o nascente rádio. A parceria entre Ismael Silva e Francisco Alves é exemplar nesse sentido; Alves, o principal cantor da época, assinava os sambas junto a Silva devido à exposição que sua gravação daria as canções.

Outro ponto importante observado por Sandroni pode ser vislumbrado pela temática das letras. Nesse caso, o exemplo vem de Noel Rosa nos versos de “Feitiço da Vila”, que apregoam que o bairro carioca ‘transformou o samba/num feitiço decente, que envolve a gente’. Sai a temática da malandragem – título, inclusive do primeiro samba de compositores do Estácio gravado por Francisco Alves – e entra o sambista compositor. As diferenças rítmicas que pretende desvendar ao longo do livro são entendidas, assim, da seguinte maneira:

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512179/CA

(21)

“E que essa divergência, como espero mostrar, dizia respeito não apenas a ritmos, instrumentos e versos, mas também a tipos humanos, trocas econômicas, festas, relações entre negros e brancos, concepções sobre o que é ser brasileiro” 30

E mais adiante:

“Elas dizem respeito aos múltiplos aspectos do fenômeno – social, coreográfico, musical, político-cultural; na medida de minhas possibilidades farei referência a todos esses aspectos. Minha análise, entretanto, vai se articular em torno de elementos da música, as fórmulas rítmicas do acompanhamento, de onde penso ter extraído informações novas para compreender a mudança em seu conjunto.”31

Tais trechos deixam claro que, se o caminho de análise musical apontado por Sandroni em seu Feitiço Decente se mostra promissor, a análise desenvolvida no livro se baseia apenas, mais uma vez, no próprio ritmo, tomado como um objeto pronto em si mesmo. Resulta disso a pouca atenção dedicada ao universo social em que circulavam os sujeitos associados ao processo de conformação do samba e às disputas em torno do ritmo. Como resultado, o autor pressupõe uma relação entre o ritmo e espaços urbanos que, a partir da definição de contornos demasiados definidos para os diferentes bairros, associa a esses territórios formas essenciais de musicalidade – reproduzindo com isso ideias presentes na bibliografia e na memória do samba que inscrevem em diferentes topos uma marca distintiva, como aquela que caracterizaria o samba da Praça Onze, do Estácio, do morro ou da própria Vila Isabel.

Para fugir de tal armadilha, cabe atentar com maior cuidado para os múltiplos aspectos do fenômeno de disseminação do samba definidos pelo próprio Sandroni – como o social, o musical e o político. É avançando na análise de tais questões que podemos romper com a marca essencialista ainda associada a cada uma dessas formas rítmicas que se encontram em disputa na sua análise a partir da ênfase nas relações sociais vividas e reconstruídas pelos diversos personagens e grupos sociais atuantes na cidade que concentra essas mudanças. A própria multiplicidade das trocas e disputas culturais que dariam forma samba torna difícil, no entanto, a realização de tal tarefa. Dada a variedade de sujeitos, espaços e formas musicais compreendidas no processo de afirmação do ritmo, a tentativa

30

SANDRONI, Carlos Feitiço Decente Transformações do Samba no Rio de Janeiro (1917-1933), Rio de Janeiro, Ed UFRJ, 2001, 14.

31 SANDRONI, Carlos Feitiço Decente Transformações do Samba no Rio de Janeiro (1917-1933),

Rio de Janeiro, Ed UFRJ, 2001, 14.

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512179/CA

(22)

de compreender o movimento de sua consolidação depende do esforço em captar o imbricamento entre essas diferentes questões. Para isso, centrar a análise no caso de Vila Isabel – atentando para as redes de sociabilidade aí estabelecidas em torno de atividades de lazer, festa e trabalho - parece um meio de articular os diversos fios que irão tecer as transformações a partir das quais o samba pode ter se consolidado enquanto ritmo nacional, fugindo com isso da tentação de tomar quaisquer dos fluxos culturais que se fizerem presentes nesse processo como forças essenciais e homogêneas.

Desse modo, esse trabalho se propõe a analisar em sua diversidade a vida social de um bairro a partir das relações estabelecidas por seus moradores tanto entre si quanto com habitantes de outras partes da cidade – o que nos encaminha para a observação dos múltiplos discursos e “padrões parciais que interferem uns sobre os outros” na construção cultural da realidade32

. É a partir de tal gesto que se torna possível tentar tecer as redes de sociabilidade e os laços de identidade que foram construídos e reconstruídos ao longo das experiências desses sujeitos no processo histórico.

Debruçarmo-nos sobre o universo recreativo/musical de Vila Isabel nos primeiros anos do século XX configura, portanto, uma maneira de dialogar com questões presentes na historiografia. Para além disso, no entanto, a tarefa de escapar das essencializações presentes na historiografia sobre o samba nos obriga ainda a refletir sobre o próprio conceito de cultura, muitas vezes pensado como uma totalidade orgânica.

Se por tempos várias linhas da Antropologia operaram com uma noção sistêmica e articulada de cultura, antropólogos como Federick Barth apontam para a fluidez dos processos culturais. No artigo “A Análise da Cultura nas Sociedades Complexas”, ele questiona o caráter holístico do conceito de cultura, e aponta para uma tentativa de estabelecer uma análise sobre a cultura ancorada nas relações sociais. Nesse sentido, diz Barth:

“... creio que há espaço para argumentar que padrões culturais fundamentais podem ser resultados de processos sociais específicos, e que nem funcional, nem

32 BARTH, Fredrik “A Análise da Cultura nas Sociedades Complexas” in O Guru, o Iniciador e

Outras Variações Antropológicas. Rio de Janeiro, Contra Capa, 2000.

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512179/CA

(23)

estruturalmente tais padrões são essenciais para as operações simbólicas e expressivas da cultura.” 33

E mais adiante:

“As pessoas participam de universos de discursos múltiplos, mais ou menos discrepantes; constroem mundos diferentes, parciais e simultâneos, nos quais se movimentam. A construção cultural que fazem da realidade não surge de uma única fonte e não é monolítica.” 34

Percebe-se, assim, como o caráter social e múltiplo da ação cultural é destacado por Barth. No entanto, se estamos observando as construções culturais ao longo do tempo, dando ênfase ao caráter fragmentário e dinâmico, precisamos estar atentos às relações que os sujeitos estabelecem com seu passado cultural para indicar que eles estão posicionados em determinado lugar social. Sendo assim, segue Barth:

“Não afirmo que o que é dito e feito não siga padrão algum; apenas que devemos esperar uma multiplicidade de padrões parciais, que interferem uns sobre os outros, e se estabelecem em diferentes graus nas diferentes localidades e nos diferentes campos; e que devemos duvidar de toda a afirmação de coerência, salvo quando tiver sido devidamente demonstrada.” 35

O argumento de Barth nos permite, portanto, observar o universo recreativo dos trabalhadores do Rio de Janeiro, a partir de Vila Isabel, contemplando simultaneamente as relações sociais específicas que os sujeitos respondiam culturalmente, sem deixar de estarmos atentos às diferentes correntes culturais presentes naquele universo.

Se a reflexão de Barth se aplica a qualquer estudo relacionado ao universo da cultura, o caso da criação e circulação de ritmos musicais nos coloca diante de um desafio ainda maior, dado o caráter etéreo e pouco palpável das trocas a partir das quais tais ritmos se configuram. Para dar conta deste desafio, a historiadora Lara Putnam, no livro Radical Moves36, explora a circulação de súditos negros do Império Britânico pelo Caribe e algumas cidades americanas, pensando a dissolução do Império e a criação dos Estados-nacionais nessa região no período

33 BARTH, Fredrik “A Análise da Cultura nas Sociedades Complexas” in O Guru, o Iniciador e

Outras Variações Antropológicas. Rio de Janeiro, Contra Capa, 2000, 112.

34 BARTH, Fredrik “A Análise da Cultura nas Sociedades Complexas” in O Guru, o Iniciador e

Outras Variações Antropológicas. Rio de Janeiro, Contra Capa, 2000, 123.

35 BARTH, Fredrik “A Análise da Cultura nas Sociedades Complexas” in O Guru, o Iniciador e

Outras Variações Antropológicas. Rio de Janeiro, Contra Capa, 2000, 121.

36 PUTNAM, Lara Radical Moves: Caribbean migrants and the politics of race in the Jazz Age

Chapel Hill, NC, The University of North Carolina Press, 2013.

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512179/CA

(24)

entre guerras – ou, como o título indica, na Era do Jazz. Preocupando-se com os elementos que possibilitaram o surgimento dos movimentos pan-africanistas e nacionalistas negros nas suas diversas correntes, a autora demonstra a constituição de um circuito de troca de experiências, identificações e distinções entre súditos negros do Império Britânico, sobretudo trabalhadores mas, também, uma classe média negra letrada. Essa esfera pública tem dois pilares, que serão as fontes da autora na sua explanação: a imprensa negra que circula por Caribe e EUA e os espaços populares onde se dança e ouve música.

O material coletado na imprensa indica os temas que fomentavam polêmicas entre os leitores sobre nacionalidade, cidadania, esportes e música. Putnam ressalta a troca entre sujeitos através das cartas de leitores onde mensagens são enviadas, algumas respondidas, que abordam questões além daquelas manifestas nos editoriais. Os editoriais, por sua vez, permitem conhecer o ponto de vista de sujeitos negros letrados que muitas vezes se opõe aos manifestos por grupos de trabalhadores. Não obstante mostrarem que os súditos negros do Caribe não possuíam uma visão única sobre as próprias experiências, o fato dos jornais servirem como meio de circulação para as diferentes opiniões serve de indício para constituição de uma esfera pública de debates.

Outro elemento importante para a autora são os ambientes onde se realizavam festas dançantes embaladas por músicos que se apresentavam na região do Caribe e em algumas cidades norte americanas no período chamado de Era do Jazz. Novamente o foco são os sujeitos em movimento e trocando experiências, modos de tocar instrumentos, movimentos de dança, músicas e ritmos. Reconstituindo essas festas a Putnam mostra a cultura como algo dinâmico, a dança influencia a cadência do que se toca, o desejo de ser moderno influencia o modo como se dança. Através desses procedimentos, a autora desconstrói a delimitação de um ritmo (no caso, o jazz) a um espaço geográfico e a uma única tradição.

Os espaços de lazer dos trabalhadores no Rio de Janeiro contribuem para a formação de um circuito onde identidades, culturas e ritmos que são constantemente vividos e modificados. O papel ativo dos sujeitos nesses exemplos

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512179/CA

(25)

pode ilustrar casos semelhantes, desconstruindo explicações essecialistas como as que apresentamos sobre o samba na historiografia.

Se o trabalho de Putnam indica como a experiência social, compartilhada nos espaços festivos, é que permite que se elaborem identidades e expressões culturais como os ritmos, a compreensão deste processo parte de uma mobilização dinâmica do próprio conceito de cultura.

A possibilidade de construção de uma análise mais dinâmica como esta se baseia, necessariamente, na relação com as fontes. A primeira delas, no caso desta investigação, serão os grandes jornais e revistas do período. Observando essas fontes dentro do processo de formação da imprensa comercial37 podemos tomá-las como uma arena de disputa. Não só dos jornais entre si, nos seus projetos políticos civilizatórios, mas também na concorrência pelo universo de leitores. Sendo assim, a relação que as folhas estabelecem com o universo recreativo dançante38, os tipos de colunas que veiculam os assuntos, as maneiras de abordá-los, permite perscrutar o quanto a imprensa teve de incorporar de visões de mundo distintas na busca por ampliar seus consumidores. As relações de negociação entre os projetos letrados e o dos trabalhadores acerca dos espaços de lazer podem ser depreendidas por esse olhar para as fontes.39

Além do noticiário, e de modo complementar a ele, outro tipo de fonte que nos permite compreender as associações encontradas nessas páginas são os registros policiais guardados pelo Arquivo Nacional. De fato, para seu funcionamento regular estas associações necessitavam de licenças do Chefe de polícia, obtidas anualmente a partir de um pequeno processo de investigação sobre seus componentes, sua sede e seus estatutos. Criada para viabilizar o controle de tais sociedades, esta regra gerou uma documentação que nos permite compreender esses grêmios tanto na sua lógica interna de funcionamento quanto na sua relação com a força policial. Igualmente, os estatutos dessas entidades indicam a leitura

37 BARBOSA, Marialva “Imprensa, Poder e Público: os diários do Rio de Janeiro (1880 – 1920)”

in Revista Brasileira de Comunicação, São Paulo, Vol. XX, n. 2, pág. 87-102, Jul./Dez., 1997.

38

COUTINHO, Eduardo Granja Os Cronistas de Momo: imprensa e carnaval na Primeira

República Rio de Janeiro, Ed. UFRJ, 2006.

39 Para essa questão ver PEREIRA, Leonardo A. de M. “Negociações impressas: a imprensa

comercial e o lazer dos trabalhadores no Rio de Janeiro da Primeira República.” Historia, v. 35, p. 1-21, 2016. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512179/CA

(26)

feita pelos trabalhadores sobre as determinações policiais e suas estratégias diante das tentativas de regulamentação dos espaços de lazer.40

Finalmente, além das versões encontradas nos Arquivos e na imprensa, um último registro que também se mostra fundamental para esta investigação são as próprias letras das canções de Noel Rosa. As letras devem ser encaradas como uma maneira de intervir na realidade, de atuar no mundo social através de um registro ficcional artístico. Noel Rosa não faz um retrato objetivo do Rio de Janeiro ou do samba, mas sim cria, usando os recursos formais o Rio de Janeiro, o Samba e Vila Isabel. Evidentemente, é preciso guardar alguma verossimilhança para que a obra artística repercuta e ganhe força, desse modo, analisar as letras junto ao conjunto de relações sociais que circundavam seu autor – mesmo extrapolando a vivência direta de Noel Rosa – contribuirá para a construção de um novo olhar sobre as redes que sustentavam o samba e sobre as próprias canções do compositor.

Desenvolveremos nosso argumento na dissertação em três capítulos. No primeiro deles abordamos diferentes episódios da ocupação da região, indicando a relação entre eles e o desenvolvimento da cidade do Rio de Janeiro e atentos para a pluralidade social que permeia Vila Isabel desde seu projeto inicial. Da companhia de Ferro Carril ao plano de ocupação da Companhia Arquitetônica, passando pela dinâmica introduzida pelo trabalho fabril nas fábricas de tecido e chegando às tentativas de interferência no espaço urbano da Associação de Moradores, demonstramos como o bairro tem em suas fronteiras – objetivas e simbólicas – diferentes grupos sociais que buscam afirmar suas posições.

No capítulo seguinte, já tendo indicado que não há homogeneidade entre os moradores nem socialmente nem acerca da visão de mundo, nos voltaremos para as associações recreativas locais, considerando-as um lugar privilegiando para investigar os processos de afirmação de identidades e diferenças. Privilegiando a atuação dessas associações durante o carnaval – momento

40 BRETAS, Marcos Luiz Ordem na Cidade. O Exercício Cotidiano da Autoridade Policial no Rio

de Janeiro 1907 – 1930. Rio de Janeiro, Rocco, 1997; PEREIRA, Leonardo A. de M. “Os Anjos

da Meia Noite: trabalhadores, lazer e direitos no Rio de Janeiro da Primeira República” in Revista

Tempo vol. 19 n. 35, 2013. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512179/CA

(27)

significativo nas análises sobre o samba – apresentamos os perfis dos grupos carnavalescos, as dinâmicas de suas interações e a ligação entre eles e agremiações de outras localidades, deixando claro que suas identidades são formadas a partir de uma variedade de relações. Nosso esforço é mostrar como não se pode afirmar nenhuma peculiaridade para identidade de Vila Isabel a partir de seu modo de pular carnaval – pois, em sentido contrário, múltiplas tentativas de distinção são operadas a todo instante pelos atores envolvidos no processo.

No capítulo 3 desconstruímos o argumento de que há uma essência musical do bairro de Vila Isabel que está ligada à formação social do mesmo, ideia cristalizada nas composições de Noel Rosa. Acompanhamos dois conjuntos musicais formados no bairro, vamos flagrá-los integrados ao circuito musical da cidade nas décadas de formação do compositor. Além disso, observamos a trajetória de trabalhadores da região que se dedicaram intensamente à música de maneira profissional, e que tinham origem, cor da pele e formação social diferentes do grupo representado pelo compositor de Feitiço da Vila. Finalmente, nos voltaremos para o Bando de Tangarás, conjunto em que Noel Rosa começou, para indicar como eles representam uma visão específica sobre a música e o bairro de Vila Isabel, mas que compartilha diversos elementos das variadas tradições rítmicas presentes no Rio de Janeiro e no Brasil.

Por fim, nas considerações finais avançamos para os anos iniciais de atividade de Noel Rosa para indicar como Vila Isabel teve participação e algum reconhecimento nas formas associativas determinantes para a consolidação do samba como ritmo nacional que foram as Escolas de Samba. Ademais, sugerimos que a mudança de paradigma da Praça Onze para o Estácio não foi tão radical quanto se avaliou posteriormente, pelo contrário, personagens associados ao início do samba urbano são encontrados participando dos movimentos em torno das Escolas. Nesse sentido, nosso trabalho procura identificar as diversas fissuras na pretensa imagem de homogeneidade e essência construída para Vila Isabel e região, condensada na figura de Noel Rosa e na sua participação na história do ritmo samba. Abordaremos esse problema – que no fundo passa por uma questão de como se compreende cultura – por três ângulos diferentes, que se juntam no sentido de compreender as relações sociais a localidade dentro de um processo mais amplo que pode ser observado em toda a cidade do Rio de Janeiro.

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512179/CA

(28)

Primeiramente, a formação social do bairro; em seguida, as redes associativas de trabalhadores que participam no processo de formação das redes de solidariedade e diferença na localidade; finalmente, a participação de indivíduos com ligação com Vila Isabel nos circuitos musicais da capital da Primeira República.

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512179/CA

(29)

1 - A invenção de Vila Isabel

Os lugares, e as imagens construídas sobre eles, costumam estar na base das explicações para o surgimento e desenvolvimento do samba enquanto ritmo. A casa da Tia Ciata na praça Onze, o bairro do Estácio, os morros que dão nome às escolas de samba, enfim, diversas localidades em que se desenvolveram as práticas musicais associadas ao samba acabaram, nas interpretações habituais sobre seu processo de sua consolidação, por assumir certa centralidade na história do gênero musical. Afirmada em primeira mão pelos testemunhos dos próprios personagens que participaram desta história, tal centralidade foi reafirmada posteriormente por aqueles que se dedicaram ao estudo do ritmo.41 Afirmava-se, com isso, certa ideia essencial e de origem, que ligava o samba, nas suas variações, a determinados territórios geográficos, e cristalizava, de certa forma, o discurso e a memória de um determinado grupo social, deixando encobertas as disputas e negociações que ocorreram nessas localidades.

Não por acaso, o bairro de Vila Isabel é um desses lugares. A partir de certas imagens originalmente afirmada pelas letras de Noel Rosa, seu compositor mais conhecido, a importância do bairro neste processo foi destacado por muitos daqueles que tentaram interpretar o papel dele na conformação do ritmo. Descrito nas canções de Noel Rosa como um bairro distinto dos demais consagrados no cenário do samba, Vila Isabel se tornou assim, nas análises da posteridade, um espaço que simbolizava a participação da classe média branca no processo que tornou o samba um símbolo nacional palatável para as camadas médias.

Uma das interpretações dessa transição é feita por Carlos Sandroni, no livro Feitiço Decente: transformações do samba no Rio de Janeiro (1917 – 1933). Nele. O autor se debruça na mudança rítmica e temática entre as composições do grupo da Praça Onze e do Grupo do Estácio. Além da passagem da casa da Tia Ciata para as ruas do bairro consagrado por Ismael Silva e seus parceiros, ocorre

41

MOURA, Roberto Tia Ciata e a Pequena África no Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Secretaria Municipal de Cultura, 1995; FRANCESCHI, Humberto M. Samba de Sambar do Estácio 1928 a

1931, São Paulo, Instituto Moreira Sales, 2010; FERNANDES, Nelson da Nóbrega Escolas de Samba: Sujeitos celebrantes e objetos celebrados Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, 2001; Dossiê das Matrizes do Samba no Rio de Janeiro, Centro Cultural Cartola/IPHAN ,2007

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512179/CA

(30)

um outro movimento que dá uma nova roupagem ao samba e lhe permite entrar nos salões. Para explica-lo, Sandroni parte da polêmica entre Wilson Baptista e Noel Rosa. As ideias expostas na canção “Feitiço da Vila”, de Rosa, caracterizariam para ele a superação da temática vela-farofa-vítem, fortemente ligadas à cultura reconhecida como afro-brasileira, e dos símbolos chapéu-tamanco-lenço, associados aos tipos urbanos vistos como perigosos. Elas são substituídas pela figura do sambista compositor, com papel e lápis, que no aspecto rítmico correspondem à mudança do trio pandeiro-prato e faca- ganzá para cuíca-surdo e tamborim42.

O argumento segue estabelecendo um paralelo entre a Vila do feitiço e a princesa que lhe dá o nome. Para o autor, do mesmo modo que Isabel teria tornado negros e brancos iguais juridicamente, a Vila teria dado uma roupagem ao samba que lhe teria feito entrar nos salões. O autor observa que, enquanto em “Feitiço da Vila” Noel procura desfazer a associação do samba com a malandragem , em “Feitio de Oração” sua proposta seria a de e superar a oposição morro x cidade. Sandroni sugere ainda que Rosa falava em causa própria, por ser ele mesmo morador de um bairro classe média, não sendo assim um representante dos espaços tradicionalmente associados ao samba.

Em uma passagem de No Princípio, era a Roda, Roberto Moura se refere assim ao compositor e ao bairro onde nasceu:

“Quanto a Noel, carioca de Vila Isabel, nascido em 1910, talvez seja coerente vê-lo sempre como um sambista por escolha... Fruto de um bairro de classe média, membro de um conjunto em que brilhavam Almirante e Braguinha, que nunca foram essencialmente sambistas, fez da aproximação com os sambistas tradicionais... uma opção visceral” 43

A análise de Moura intenta reconhecer a roda de samba como elemento permanente e mantenedor da tradição do samba. Desse modo, procura indicar uma persistência ritual dos aspectos culturais que ele identifica como essenciais no ritmo, destacando lugares e personagens que atuam nesse sentido. Vila Isabel, por sua vez, não compõe esse cenário a não ser pela adesão voluntária de Noel Rosa.

42

SANDRONI, Carlos Feitiço Decente Transformações do Samba no Rio de Janeiro (1917-1933), Rio de Janeiro, Ed UFRJ, 2001, 182.

43 MOURA, Roberto M. No Princípio era a Roda. Um estudo sobre samba, partido-alto e outros

pagodes, Rio de Janeiro, Rocco, 2004. p. 65

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512179/CA

(31)

Por outro lado, pesquisadores musicais como João Máximo e Carlos Didier apresentam o bairro como essencialmente musical e, sendo assim, contribuindo definitivamente para que Noel Rosa se torna-se um sambista posteriormente. A Vila Isabel de Máximo e Didier é aquela que representa mais claramente o caráter bucólico, mesmo em meio as transformações por que passa a localidade e a cidade. Ainda que reconheçam que outros tipos sociais além da classe média ou pequena burguesia estejam presentes, eles sempre são acessórios à verdadeira vocação da Vila, relações familiares amenas e boemia.

Na infância do compositor, os personagens do bairro são divididos em três categorias: os institucionais, os marginais e os demais. Os primeiros são médicos, professoras e padres. Aqueles classificados como demais, são os trabalhadores comuns como operários, leiteiros, carteiros, além das donas de casa e dos idosos. Os marignais, por sua vez, são aqueles que servirão para definir, por contraste, a imagem do bairro para os autores:

“Os marginais são todos os tipos que este bairro predominantemente de classe média, pequeno-burguês, preocupado com a ascensão social, as convenções, as regras, suporta mas não aceita. Todos farão parte do mundo de Noel, o bicheiro, o malandro, o pessoal mais humilde que vez por outra desce os morros, o seresteiro..., o desempregado crônico, o sinuqueiro, o carteador,..., o mendigo, o vigarista, o proxeneta, o valentão, o pau-d’-água.”44

Ora, ainda que reconheçam a multiplicidade de pessoas e papéis presente nas relações sociais que compõem a região, os autores se agarram a uma determinada imagem do bairro que prevalece sobre as outras, deixando de levar em consideração que cada tipo social desse pode ter exercido vários papéis no bairro e, que mesmo aqueles que eram tolerados, disputavam e construíam sua própria visão sobre o que era Vila Isabel.

A memorialista do bairro Nilde Hersen Ribeiro também escreve seu relato sublinhando o caráter distinto de Vila Isabel. A escritora denomina o bairro como a “Terra de Poetas e Compositores” e afirma que sua música tinha a peculiaridade de não se aproximar nem da música ouvida nos bairros à beira mar e nem dos

44 DIDIER, Carlos, MÁXIMO, João Noel Rosa: Uma Biografia Brasilia, Ed Universidade de

Brasília 1990, p. 39 PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512179/CA

(32)

batuques, sambas e pontos de macumba dos morros e subúrbios45. Na prática a autora assume o verso de Noel da Vila como ‘cidade independente’.

Os autores que analisamos têm em comum o fato de incorporarem aos seus argumentos e descrições imagens sobre Vila Isabel que foram consolidadas, pelo menos em parte, palas canções de Noel Rosa que versaram sobre sua visão do bairro e de seu lugar no cenário do samba. Desse modo, o recorte poético do compositor se transforma na base de um processo de construção de uma memória para o bairro que passa ao largo dos processos históricos e sociais que estavam efetivamente em jogo no momento em que o compositor dava forma às suas canções.

Por mais interessante que seja, no entanto, a memória de Noel Rosa não pode ser tomada como testemunho único sobre o perfil social do bairro e das visões de mundo de seus moradores. Como morador da Vila, ele expressava em suas canções aspirações e projetos que se colocavam, naquele momento, como parte do processo de disputa sobre o perfil da região. Desse modo, este capítulo pretende analisar o mundo social a partir do qual Noel deu forma a suas composições, abrindo mão de uma visão coesa de Vila Isabel como um bairro de classe média com alguma participação operária e certa vocação boêmia para buscar uma compreensão mais ampla e diversificada sobre as dinâmicas do processo de constituição daquele bairro. Por um lado, pretendemos com isso demonstrar que o cotidiano e as relações sociais da Vila nas primeiras décadas do século XX foram muito mais diversos e conflituosos do que se tornou comum afirmar. Por outro, trata-se de evidenciar que seus habitantes e frequentadores sempre estiveram em contanto com os modos de vida de diversas regiões da cidade, em um processo de troca de experiências que abala a ideia de coesão que sustenta as definições totais e singulares a ele associadas.

Para isso acompanharemos, através do noticiário da imprensa e dos registros e relatórios de Infrações de Posturas da Municipalidade guardados pelo Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, o processo de urbanização da região a partir da década de 70 do século XIX – momento em que seu fundador, o Barão

45 ARAGÃO, Nilde Hersen Vila Isabel: Terra de poetas e compositores, Rio de Janeiro,

Conquista, 1997. p. 63 PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512179/CA

Referências

Documentos relacionados

Com base na literatura revisada, conclui-se pela importância da implantação de um protocolo de atendimento e execução de exame de Ressonância Magnética em

Você está sendo convidado para participar do projeto de pesquisa intitulada “NÍVEL DE ATIVIDADE FÍSICA, OBESIDADE ABDOMINAL E FATORES ASSOCIADOS EM POLICIAIS MILITARES DE

Formação entendida como um processo dinâmico no qual o docente esteja consciente das singularidades da atividade e possa, a partir do conhecimento acumulado e de suas práticas éticas

•   O  material  a  seguir  consiste  de  adaptações  e  extensões  dos  originais  gentilmente  cedidos  pelo 

DATA: 17/out PERÍODO: MATUTINO ( ) VESPERTINO ( X ) NOTURNO ( ) LOCAL: Bloco XXIB - sala 11. Horário Nº Trabalho Título do trabalho

O relatório encontra-se dividido em 4 secções: a introdução, onde são explicitados os objetivos gerais; o corpo de trabalho, que consiste numa descrição sumária das

صاعلا نب ديعس نب دلاخ تباث نب ديز ىلص يبنلا هفلختسا يذلا وه نم دنع ةنيدملا ىلع ملسو هيلع هللا ؟ربيخ ةوزغل هجورخ ينافطغلا ةطـفرع ُ نب عابس..

As figuras abaixo (I, II e III) representam três diferentes adaptações que são características do ciclo reprodutivo de seus respectivos tipos de plantas. e) Na evolução