O TORMENTO DE CARDANO.
Jaime B. Ripoll, Cydara C. Ripoll, F. Porto da Silveira.Instituto de Matem´atica da UFRGS.
1).- O Problema de Cardano
Nos cursos de ´Algebra aprende-se v´arias maneiras de reduzir toda equa¸c˜ao c´ubica e coe-ficientes reais, ax3
+bx2
+cx+d= 0, `a forma canˆonica x3
+px+q = 0 ; uma maneira consiste em trocar x por x−b/3a. Uma raz˜ao da importˆancia dessa c´ubica canˆonica ´e que ela, e ent˜ao a equa¸c˜ao original, pode ser resolvida a partir da seguinte f´ormula que costuma-se denominar f´ormula de Tartaglia-Cardano:
x= 3 s
−q
2+ r
q2 4 +
p3 27 +
3
s
−q
2 − r
q2 4 +
p3
27. (⋆)
Infelizmente, j´a em 1 545, o pr´oprio Cardano descobriu que essa f´ormula esconde segredos: ela “trava” ao ser usada para calcular a raiz realx= 4 da equa¸c˜ao c´ubicax3
−15x−4 = 0 , pois exige o c´alculo da raiz quadrada do n´umero negativo −121 :
3
q
2 +√−121 + 3 q
2−√−121 = 4 ?
Tamb´em ´e bem conhecido que, em 1 572, R. Bombelli “destravou” esse c´alculo (vide [7]) introduzindo o que hoje denominamosn´umeros complexos:
x= 3 q
2 +√−121 + 3 q
2−√−121 =√3
2 + 11i+√3
2−11i
=p3
(2 +i)3+p3
(2−i)3 = (2 +
i) + (2−i) = 4.
Cardano, que vinha –h´a mais de 20 anos– procurando achar alternativas de c´alculo que evitassem o uso de ra´ızes quadradas de negativos na resolu¸c˜ao de equa¸c˜oes c´ubicas, reagiu violentamente contra o que achava solu¸c˜ao artificiosa de Bombelli. No ano seguinte, aos 72 anos de idade, publicou sua indigna¸c˜ao em um panfleto entituladoSermo de plus et minus, contribuindo bastante para propagar a suspei¸c˜ao da legitimidade dos n´umeros complexos, os quais passaram a ser denominadossof´ısticos ouimagin´arios. Cardano morreu em 1 576, atormentado pela busca de resposta negativa para o problema que denominaremos
Tormento de Cardano: ser´a que existem c´ubicas anti-Cardano? Mais precisamente, ser´a que existem equa¸c˜oes c´ubicas inteiras1
tendo somente ra´ızes reais, e para as quais n˜ao h´a nenhum meio de expressar suas ra´ızes por radicais reais?
1
Neste texto, por radical real entenderemos uma f´ormula escrita apenas com opera¸c˜oes aritm´eticas e de radicia¸c˜ao com n´umeros inteiros; ademais, exige-se que a quantidade des-sas opera¸c˜oes seja finita e que nenhuma delas seja uma raiz quadrada, ou qualquer outra radicia¸c˜ao de ordem par, de n´umero negativo. Para maiores detalhes, vide se¸c˜ao 8.2 de [1].
Obviamente, n˜ao podemos calcular ra´ızes imagin´arias2
usando radicais reais; da´ı termos formulado o Tormento de Cardano apenas para equa¸c˜oes que tenham “somente ra´ızes reais”. Com efeito, se n˜ao tiv´essemos feito essa exigˆencia, seria f´acil dar uma resposta positivapara nosso problema: qualquer c´ubica de coeficientes inteiros e ra´ızes imagin´arias, como (x−1)(x2
+ 1) = 0, serviria como anti-Cardano.
O tipo mais importante de c´ubicas inteiras tendo somente ra´ızes reais ´e o das que tˆem todas as ra´ızes distintas, como ´e o caso dex3
−15x−4 = 0. Cardano as denominoucasus irreducibilis. Esse nome, hoje cl´assico, foi dado porque, conforme se mostra nos cursos de Teoria das Equa¸c˜oes (vide [4]), nesse tipo de c´ubicas a aplica¸c˜ao da f´ormula de Tartaglia-Cardano sempre envolve raiz quadrada de n´umeros negativos: nunca ´e uma f´ormula radical real. Contudo, observe bem, nem todas as c´ubicas do tipo casus irreducibilis s˜ao anti-Cardano. Com efeito, a citadax3
−15x−4 = 0 n˜ao ´e anti-Cardano, pois suas ra´ızes podem ser expressas por f´ormulas envolvendo apenas radicaisreais, por exemplo: x=−2 +√2 , x=−2−√2 ex= 4.
Entre as c´ubicas que tˆem somente ra´ızes reais, ´e imediato que s´o existe um outro tipo, al´em dascasus irreducibilis: o das c´ubicas com ao menos duas ra´ızes iguais. Para esse outro tipo, tamb´em mostra-se na Teoria das Equa¸c˜oes (vide [4]) que –a partir da f´ormula de Tartaglia-Cardano– sempre se consegue obter f´ormulas radicais reais para todas as ra´ızes. N˜ao existe anti-Cardano entre elas!
Conclus˜ao preliminar: a decis˜ao do Tormento de Cardano deve ser buscada entre as c´ubicas que tˆem todas as ra´ızes reais e distintas (casus irreducibilis). Faremos esse estudo segundo duas abordagens: uma primeira com m´etodos da ´Algebra Cl´assica, e a segunda com os m´etodos mais modernos e sofisticados da Teoria de Galois.
2).- A abordagem de Ruffini-Wantzel
Em 1 813, Paolo Ruffini anunciou a decis˜ao positiva do Tormento de Cardano, uma vez que afirmava ter demonstrado a existˆencia de c´ubicas anti-Cardano; contudo, sua argu-menta¸c˜ao foi considerada vaga e pouco rigorosa. Em 1 843, P. L. Wantzel (o mesmo que alguns anos antes tinha se imortalizado ao provar a impossibilidade de trisseccionar um ˆ
angulo qualquer e de duplicar um cubo com constru¸c˜oes euclidianas3
) conseguiu corrig´ı-la, vide [1], provando o que denominaremos:
2
Por “ra´ızes imagin´arias” entenderemos “raizes complexas de parte imagin´aria n˜ao nula”. 3
cons-Teorema de Ruffini-Wantzel. Numa equa¸c˜ao polinomial de coeficientes inteiros: a). se n˜ao existirem ra´ızes racionais, ent˜ao nenhuma das ra´ızes ser´a construt´ıvel euclidi-anamente;
b). se todas as ra´ızes forem reais, ent˜ao dizer que uma delas n˜ao ´e construt´ıvel euclidia-namente equivale a dizer que uma delas n˜ao pode ser expressa por radicais reais.
A demonstra¸c˜ao de resultados equivalentes a esse teorema pode ser encontrada em [4] ou [2] (Corol´ario 2). Aqui, vamos nos limitar a mostrar como ele nos permite achar exemplos de c´ubicasanti-Cardano. Uma delas ´ex3
−3x−1 = 0. Provemos.
• Nenhuma das ra´ızes dessa c´ubica ´e racional; com efeito, como o coeficiente de x3 e o do termo constante s˜ao unit´arios, as poss´ıveis ra´ızes racionais tˆem de estar no conjunto
{1,−1}, mas nenhum destes n´umeros ´e raiz, como se verifica diretamente.
• O estudo da intersec¸c˜ao dos gr´aficos cartesianos de y = x3
e y = 3x+ 1 mostra que todas as ra´ızes dessa equa¸c˜ao s˜ao reais (e distintas), uma ´e positiva e as outras duas s˜ao negativas. Confira na figura seguinte.
y=y3x+1
=x3
Figura 1
x
y
3 2
1 0
-1 -2
8
6
4
2
0
-2
-4
Logo, pelo item (a) do Teorema, nenhuma das ra´ızes da c´ubicax3
−3x−1 = 0 ´e construt´ıvel; consequentemente, como todas as ra´ızes s˜ao reais, o item (b) garante que nenhuma delas pode ser expressa por radical real. Esta c´ubica ´e anti-Cardano!
3).- A abordagem segundo a Teoria de Galois4
L´a por 1 830, ao estudar a resolubilidade alg´ebrica das equa¸c˜oes polinomiais de grau qual-quer, E. Galois aprofundou as id´eias de grupo de simetrias introduzidas por N. Abel e Ruffini, esbo¸cando as linhas mestras do que no s´eculo XX tornaram-se duas das mais importantes teorias matem´aticas: a Teoria dos Grupos e a Teoria de Galois. N˜ao ´e um
tru¸c˜oes geom´etricas realizadas exclusivamente com r´egua e compasso n˜ao graduados, os quais s´o podem ser usados um n´umero finito de vezes. Um estudo sistem´atico desse tema ´e encontrado em [6].
4
exerc´ıcio dif´ıcil, para quem j´a domina esta sofisticada teoria, aplic´a-la para decidir o Tor-mento de Cardano. Aqui, nos limitaremos a dar uma no¸c˜ao bem introdut´oria do que est´a envolvido. Iniciamos com um conceito fundamental da Teoria dos Polinˆomios:
Defini¸c˜ao. Uma equa¸c˜ao polinomial de coeficientes inteiros ´e dita redut´ıvel (sobre os n´umeros racionais) se, e s´o se, o correspondente polinˆomio puder ser fatorado como um produto de dois polinˆomios (n˜ao constantes) de coeficientes racionais; caso n˜ao exista uma tal fatora¸c˜ao, diremos que a equa¸c˜ao ´e irredut´ıvel 5.
´
E trivial dar exemplos de equa¸c˜oes redut´ıveis: (x−1)(x−2)(x−3) = 0, (x−1)(x2
+1) = 0, etc. Contudo, decidir se uma equa¸c˜ao dada ´e redut´ıvel, ou irredut´ıvel, pode ser dif´ıcil. Apesar disso, o caso das c´ubicas ´e bem f´acil, pois podemos nos valer do grau trˆes.
Teorema. Uma c´ubica inteira ´e redut´ıvel ⇐⇒ tiver uma raiz racional.
Com efeito, devido ao grau trˆes, qualquer fatora¸c˜ao tem de envolver um polinˆomio de grau um e coeficientes racionais, o que d´a origem a uma raiz racional da equa¸c˜ao. Reciproca-mente, sendor uma raiz racional de uma tal equa¸c˜aop(x) = 0, dividindo o correspondente polinˆomiop(X) porX−r, obtemos um quociente quadr´atico de coeficientes obrigatoria-mente racionais, poisr e os coeficientes de p(X) s˜ao n´umeros racionais.
Exemplificando. A c´ubica de Cardano,x3
−15x−4 = 0, ´e redut´ıvel, pois tem x= 4 como raiz; tamb´em pode-se verificar diretamente queX3
−15X−4 = (X−4)(X2
+ 4X+ 1) . Por outro lado, a j´a conhecida anti-Cardano x3
−3x−1 = 0 ´e irredut´ıvel; com efeito, j´a vimos que todas suas trˆes ra´ızes s˜ao irracionais.
Consequˆencia. Toda equa¸c˜ao c´ubica inteira que tiver s´o ra´ızes distintas e todas irraci-onais ´e anti-Cardano: suas ra´ızes n˜ao podem ser calculadas por radicais reais.
Com efeito, pelo teorema anterior, uma tal equa¸c˜ao ´e irredut´ıvel; ora, pela Teoria de Galois, toda c´ubica inteira que tem somente ra´ızes reais e ´e irredut´ıvel ´e anti-Cardano. (Vide Corol´ario 1 de [2] para uma demonstra¸c˜ao usando a metodologia atual da Teoria do Galois, ou [3] para uma argumenta¸c˜ao mais acess´ıvel, pois que segue o desenvolvimento hist´orico do problema, explorando casos particulares de equa¸c˜oes.)
Esse teorema nos permite confirmar que x3
−3x−1 = 0 ´e anti-Cardano; com efeito, j´a vimos que todas as suas ra´ızes s˜ao irracionais e distintas.
4).- Generalizando o Tormento de Cardano
Para cada grau que escolhermos, existemequac¸ ˜oes anti-Cardano? Ou seja, dado um inteiro n> 1, ser´a que existem equa¸c˜oes polinomiais de grau n (e coeficientes inteiros) para as quais ´e imposs´ıvel achar um meio de expressar suas eventuais ra´ızes reais usando apenas radicais reais?
5
´
E imediato que n˜ao existem anti-Cardano no universo das equa¸c˜oes lineares (ou seja: grau n = 1). Assim, passemos ao caso n = 2, o das equa¸c˜oes quadr´aticas. A f´ormula de Bhaskara nos mostra imediatamente que tamb´em n˜ao existem equa¸c˜oes quadr´aticas anti-Cardano; com efeito, essa f´ormula envolver´a radicaisn˜ao reais quando, e s´o quando, a equa¸c˜ao tiver ra´ızes n˜ao reais. Consequentemente, ´e somente a partir das equa¸c˜oes c´ubicas que h´a possibilidade de encontrarmos exemplos anti-Cardano.
Como j´a achamos uma c´ubica anti-Cardano, cabe perguntar se isso ´e uma exclusividade das c´ubicas. A seguinte generaliza¸c˜ao do teorema anterior, a demonstra¸c˜ao do qual pode ser vista em [2] ou [3], mostra que tamb´em existem exemplos de anti-Cardano entre as equa¸c˜oes de grau maior do que trˆes.
Teorema. Para grau n= 3,5,6,7,9,10,11. . . (ou seja: n´ımpar 6= 1 ou npar que n˜ao ´e uma potˆencia de2), toda equa¸c˜ao polinomial (de coeficientes inteiros), que tiver somente ra´ızes reais e for irredut´ıvel, ´e anti-Cardano: suas ra´ızes n˜ao podem ser calculadas por radicais reais.
´
E oportuno se observar que existem procedimentos sistem´aticos para decidir a irredutibilidade de equa¸c˜oes polinˆomiais de coeficientes inteiros (vide Se¸c˜ao 5.6 de [5]), mas sua implementa¸c˜ao ´e trabalhosa. Os modernos sistemas de computa¸c˜ao simb´olica – como o Mathematica, o Maple e o Sage– automatizam a decis˜ao usando poderosos comandos. Mais conhecidas dos cursos de ´Algebra s˜ao as solu¸c˜oesparciaispara esse problema, como o Crit´erio de Eisenstein, que d´a condi¸c˜oes apenas suficientes para garantir a irredutibilidade para alguns tipos de equa¸c˜oes polinomiais (vide [4]) .
Limitamo-nos a mostrar como usar esse teorema para achar um exemplo de qu´ıntica anti-Cardano. As hip´oteses cruciais, todas as ra´ızes reais e equa¸c˜ao irredut´ıvel, agora s˜ao bem mais dif´ıceis de verificar e juntas fazem com que n˜ao seja imediato achar tal exemplo. A intersec¸c˜ao dos gr´aficos cartesianos dey =x5
e y=ax2
+bx+c mostra que esse exemplo n˜ao est´a entre as qu´ınticas da formax5
+ax2
+bx+c= 0, pois elas tˆem no m´aximo trˆes ra´ızes reais (vide figura a seguir, onde a par´abola tem equa¸c˜ao y= 3x2
−1).
y=3yx2−1
=x5
Figura 2
x
y
1.5 1
0.5 0
-0.5 -1
-1.5 5
4
3
2
1
0
-1
Contudo, se incluirmos um adequado termo emx3
conseguimos nosso objetivo. Com efeito, o estudo dos gr´aficos cartesianosy= 30x3
+ 60x2
−30x−70 = 30(x+ 2)(x+ 1)(x−1)−10 e y = x5
, vide Figura 3, mostra que a qu´ıntica x5
−30x3
−60x2
+ 30x+ 70 = 0 tem todas suas ra´ızes reais (usando-se t´ecnicas de C´alculo Num´erico, mostra-se que elas valem, aproximadamente: -3.39, -2.74, -1.15, 1.06, 6.21):
y=30x3+60x2−30yx=−70x
5
Figura 3
x
y
4 3 2 1 0 -1 -2 -3 -4 -5 1000
500
0
-500
-1000
-1500
Al´em disso, com o comando IrreduciblePolynomialQ[x^5-30x^3-60x^2+30x+70] do
Mathematica, ou explorando a fatora¸c˜ao em primos de 30, 60 e 70 e usando resultados elementares de polinˆomios, verifica-se que ela tamb´em ´e irredut´ıvel. Logo, ela ´e uma qu´ıntica anti-Cardano!
Bibliografia
[1] F. Cajori, “Pierre Laurent Wantzel” , Amer. Math. Soc. Bulletin 24(1917/18), pp.
339-347, especialmente pp. 345-346, ou
www.ams.org/bull/1918-24-07/S0002-9904-1918-03088-7/S0002-9904-1918-03088-7.pdf.
[2]C. G. de Ara´ujo Moreira, “Um teorema sobre solubilidade de equa¸c˜oes polinomiais
por radicais reais” . Mat. Universit´aria n. 12 (1990), pp. 87-93.
[3]J. Bewersdorff,Galois Theory for Beginners, A Historical Perspective, Amer. Math.
Soc., Student Mathematical Library, 2006.
[4]G. Birkhoff, S. Mac Lane,Algebra Moderna B´´ asica, 4a
ed., Guanabara, RJ, 1986.
[5]B. van der Waerden,Algebra, Vol. 1, Springer-Verlag, NY, 2003.
[6] E. Wagner,Constru¸c˜oes Geom´etricas, 2a
ed., Col. Professor de Matem´atica, SBM, Rio de Janeiro, 1998.
[7] J. B. Ripoll, C. C. Ripoll, F. Porto da Silveira,N´umeros Racionais, Reais e
Complexos, 2a