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Ano 3 (2014), nº 10, 8441-8467 / http://www.idb-fdul.com/ ISSN: 2182-7567

RESPONSABILIDADE CIVIL NO DIREITO

BRASILEIRO E PORTUGUÊS

*

Cesar Santolim

** INTRODUÇÃO

ão raro o Direito, na produção legislativa, doutri-na ou jurisprudência, perde de vista a relevância que os sistemas de responsabilização civil têm para a prevenção de situações ensejadoras de redução de bem-estar social. Em certa medida, estes erros de percepção são agravados em circunstâncias onde a responsabilidade subjetiva é substituída (ou cotejada) com a responsabilidade objetiva, como critério geral de atribuição, pois a supressão da culpa como pressuposto diminui ou afasta a possibilidade de que se busque uma alteração de conduta do autor (ou possível autor) do dano. Como é notório, é exatamen-te esta uma das caracexatamen-terísticas conexatamen-temporâneas da responsabi-lidade civil, tanto no direito brasileiro quanto português.

Nesta perspectiva, fica o exame da causalidade como o espaço possível de estruturação de uma função preventiva da responsabilidade civil, o que não pode ser feito sem revisitar alguns conceitos fundamentais, aos quais devem ser agregadas novas reflexões extraídas em maior escala do pensamento de Direito & Economia1, que é exatamente o objetivo deste

*

Este artigo resulta de pesquisa realizada nos meses de dezembro de 2013 e feverei-ro de 2014 na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, como parte de está-gio de Pós-Doutoramento em Direito naquela Instituição de Ensino Superior, reali-zado pelo autor sob a supervisão Prof. Dr. Fernando Araujo, Professor Catedrático e Presidente do Instituto de Direito Brasileiro da FDUL, a quem agradece.

**

Professor da Faculdade de Direito da UFRGS.

1

A abordagem de "Law and Economics" ("Direito e Economia") é uma das mais importantes abordagens teóricas no pensamento norte-americano, desde a segunda

(2)

do.

PRIMEIRA PARTE: O NEXO DE CAUSALIDADE COMO PRESSUPOSTO DA RESPONSABILIDADE CIVIL

1.1 PRESSUPOSTOS DA RESPONSABILIDADE CIVIL Entendida a responsabilidade civil estrita como a obriga-ção de reparar, mediante indenizaobriga-ção quase sempre pecuniária, o dano antijurídico causado a outrem, como decorrência da violação de um dever geral (absoluto) de neminen laedere (não lesar) se está estremando-a da "responsabilidade civil contratu-al", fundada no descumprimento de dever relativo, sem embar-go de reconhecer a existência de situações onde a distinção é sutil.

Nesta noção estão presentes os pressupostos sem os quais não há responsabilidade civil: o dano, contrário ao Direito, sofrido por alguém, que deve ser atribuído a outro, em razão de uma relação que se estabelece entre esses sujeitos de direito. 1.1.1 DANO

Como assinala TAVANO (2011)2 “...considerado

eco-nomicamente, o dano é um ‘antibem’... [pois] ... os bens

metade do século passado. Hoje repercute também no pensamento europeu e latino-americano. Trabalhos publicados no Brasil e em Portugal traduzem esta expansão (cite-se a tradução da obra de Robert COOTER e Thomas ULEN – "Direito & Eco-nomia", Porto Alegre, Bookman: 2010 –, e os trabalhos organizados por Bruno Meyerhof SALAMA – "Direito e Economia – Textos Escolhidos", São Paulo: Sa-raiva, 2010 – e por Luciano Benetti TIMM – "Direito e Economia no Brasil", São Paulo: Atlas, 2012 –, no Brasil, e a "Teoria Económica do Contrato", de Fernando ARAÚJO, Coimbra: Almedina, 2007, e a "Análise Económica do Direito – Uma Introdução", de Vasco RODRIGUES, Coimbra: Almedina, 2007, em Portugal).

2

No original: "[E]conómicamente considerado, el daño es un antibién. Los bienes producen utilidad para sus dueños, mientras que los daños ocasionan pérdida de utilidad. Así como no estamos dispuestos a pagar cualquier precio por un bien, tampoco estamos dispuestos a pagar cualquier precio por evitar un daño" (p. 272)

(3)

duzem utilidade para os seus donos, enquanto os danos ocasio-nam uma perda de utilidade ... [e] ... o conceito de bem está ligado ao de externalidade econômica”.

1.1.2 FATOR DE ATRIBUIÇÃO

“... É o fundamento, ou a razão de ser da atribuição da responsabilidade a uma determinada pessoa...”, diz NORO-NHA (2003)3. Também designado como "fator de imputação"4.

Na afirmação de MIRANDA BARBOSA (2013, p. 681), "... não podemos quedar-nos, na solução do problema imputa-cional, com uma mera subjectividade, reclamando-se, pelo con-trário, um juízo objectivo que o complemente".

São apontados como fatores de atribuição, usualmente5, a

culpa e o risco. Todavia, há que se considerar também os casos em que o sistema jurídico admite a responsabilidade sem culpa ou risco, com ou sem ilicitude (sendo o dano antijurídico). 1.1.2.1 CULPA

A culpa, stricto sensu, compreende a negligência (ausên-cia de cuidado prévio ao fato danoso), imprudên(ausên-cia (ausên(ausên-cia de cuidado durante o fato danoso) e a imperícia (ausência de cuidado técnico ou profissional). Lato sensu, abarca ainda o dolo (conduta intencional, para a produção do dano). Encontra-se referida no art. 186 do CCB e art. 483º do CCP.

Para a mitigação da culpa provada, desenvolveram-se formas de culpa presumida, destacando-se a culpa in vigilando (art. 491º do CCP), a culpa in eligendo e a culpa in custodiendo (art. 493º do CCP).

3

P. 472.

4

Prefere-se "atribuição" para evitar possível confusão entre "imputação" e "imputa-bilidade", conceito relacionado com a aptidão genérica do agente para ser reconhe-cido como responsável.

5

(4)

Modo geral, é irrelevante, para a responsabilização civil, a distinção entre a culpa e o dolo, ou mesmo a gradação acerca da gravidade da culpa (se grave, leve ou levíssima), mas esta regra comporta exceções (CCB, 944, parágrafo único; CCP, 494º).

1.1.2.2 RISCO

Nas suas várias modalidades (risco proveito, quando o responsável pelos danos é aquele que se beneficia da atividade, risco criado, quando o responsável pelos danos é aquele que cria a fonte geradora do perigo, risco profissional, quando o agente desenvolve com habitualidade tarefas ou atividades

pe-rigosas6), o risco é reconhecido como fator de imputação tanto

no direito brasileiro (por exemplo, os arts. 927 e 931 do CCB, e arts. 12 e 14 do CDC) quanto no direito português (subsecção II da secção dedicada à Responsabilidade Civil no CCP). 1.1.2.3 ABUSO DE DIREITO

No sistema do CCB, a responsabilidade civil por abuso de direito foge das cláusulas gerais da culpa e risco, pois confi-gura situação de ilicitude objetiva (art. 187)7.

Já no direito português há domínio na doutrina de que a responsabilidade civil nestes casos não prescinde da culpa co-mo fator de imputação8, ainda que possa ser reconhecida de ofício9.

6

Adota-se, aqui, a classificação de Paulo NADER (2009), p. 101.

7

MIRAGEM (2009), p. 99.

8 COUTINHO DE ABREU (1983), p. 76, diz que "[P]ode assim haver lugar à

obri-gação de indemnização desde que, nos termos gerais da responsabilidade civil (art. 483º, s. do Código Civil), ao facto voluntário e ilícito do agente (comportamento abusivo) se juntem os restantes pressupostos – nexo de imputação (a título de culpa) do facto ao lesante, dano, e nexo de causalidade entre o facto e o dano".

9

PIMENTA (2004), afirma: "... [às] interrogações em pauta, a doutrina e a jurispru-dência portuguesas fazem corresponder, quase unanimemente ... a solução de que o

(5)

1.1.2.4 ATRIBUIÇÃO POR IMPOSIÇÃO LEGAL

No caso das disposições do art. 188 c/c arts. 929 e 930 do CCB, há responsabilidade civil por atos lícitos (porque o dano é antijurídico), onde o fator de atribuição é exclusivamente a norma jurídica. Sem a ilicitude subjetiva (culpa) ou objetiva (risco/abuso de direito), impõe-se, aqui, o reconhecimento de categoria autônoma.

1.2 NEXO DE CAUSALIDADE 1.2.1 NOÇÃO DE CAUSA

Sob a perspectiva da Filosofia, a ideia de causa remonta a ARISTÓTELES, (causa material, de que algo é feito; causa formal, o que lhe dá a forma; causa eficiente, como se fez algo; causa final, porque algo tem a sua forma), tem importante revi-são com GALILEU (“causa eficiente é a condição necessária e suficiente para a aparição de algo”), e sofre verdadeira trans-formação na percepção de HUME (que nega a existência de qualquer “propriedade” ou “força misteriosa” no fato individu-al antecedente que “crie” ou “produza” o consequente, e diz que quando se afirma que “A” é causa de “B”, isso significa apenas a dizer que “A” regularmente é seguido de “B”, vendo a

“causação” como sucessão regular de acontecimentos)10

. A GALILEU tributa-se a referência à necessidade e suficiência da causa; a HUME, a regularidade, mesmo que essa

corriquei-ra observação seja eventualmente problematizada11. Na trilha

de HUME, STUART MILL "nega, estritamente, pressupostos apriorísticos do pensamento"12, mas, diferentemente de

tribunal pode e deve conhecer sempre da questão do abuso de direito...".

10 WARBURTON (2013). 11 BEEBEE (2006). 12 HEINEMANN (1983).

(6)

ME, "põe ênfase na circunstância de que raramente existe um sequência repetitiva entre um só antecedente e um único con-sequente"13, concentrando sua análise nas situações de "plura-lidade de antecedentes", para afirmar que "quando identifica-mos uma única causa...elegeidentifica-mos um elemento de um conjunto de condições que se requerem de um modo idêntico para que ocorra este evento".

1.2.2 TEORIAS "JURÍDICAS" SOBRE A CAUSALIDADE 1.2.2.1 DIREITO CONTINENTAL ("CIVIL LAW")

As primeiras teorias que surgem no âmbito do Direito Continental, para tratar do tema da causalidade, são derivações das concepções da Filosofia sobre o assunto, e, nesta medida, têm como ponto de partida uma ideia "física" ou "mecânica", ou ainda "naturalista", de causa.

Como assinalam HART e HONORÉ (1959, pp. 442/443), a expressão moderna da noção versari in re illicita é exposta por GLASER (1858), na Áustria, e, logo depois, por von BURI, na Alemanha (1860), com a ideia de que qualquer condição necessária ou sine qua non de um evento é a sua cau-sa. É o surgimento da Bedingungstheorie, teoria das condições ou teoria da equivalência das condições. Tendo-se esta como ponto de partida, é possível perceber a teoria da causalidade adequada como uma tentativa de sua sofisticação, tornando-se mais precisa a noção de causa, mas ainda dentro da ideia de uma relação objetiva e naturalística. O mesmo se pode afirmar acerca das variantes da teoria da causalidade adequada, como é a teoria do dano direto (e imediato). Já em uma linha distinta se coloca a teoria do âmbito de proteção da norma, que identifica na noção de causa um elemento normativo (e axiológico), des-pindo-a de qualquer vínculo naturalístico e aproximando-a do

13

(7)

fator de atribuição. Como se disse, a teoria da equivalência das condições não distingue causa e condição: se várias condições concorrerem para o mesmo resultado, todas têm o mesmo valor (todas equivalem). Assim, para se saber se uma determinada condição é causa, elimina-se mentalmente esta condição, por meio de um processo hipotético: se o resultado desaparecer, a condição é causa. Na evolução desta teoria encontra-se a teoria da causalidade adequada, que individualiza ou qualifica as condições. Causa é o antecedente não só necessário, mas tam-bém adequado à produção do resultado. Assim, nem todas as condições serão causa, mas apenas aquela(s) que for(em) a(s) mais apropriada(s) a produzir o evento. Segundo HART e HONORÉ (1959, p. 466), von BAR foi o precursor (1870) da-quilo que denominam "escola generalizadora" (porque, para estes autores, são "generalizadoras" as teorias que cada afirma-ção causal individual é implicitamente geral, no sentido de que a sua verdade depende da verdade de uma afirmação geral

acerca de regularidades empíricas14 ), tomando como ponto de

partida o trabalho de GLASER, porém contestando a sua con-clusão de que toda e qualquer condição devia ser considerada como causa. Para von BAR, toda causa é, necessariamente, uma condição, mas nem toda condição é uma causa, pois esta qualidade somente pode ser atribuída àqueles eventos que se fujam de um juízo de "regularidade" (eventos "regulares" ou "ordinários", assim, ainda que condições, não são causas). A teoria foi depois desenvolvida por von KRIES (1880), que in-corporou elementos de análise probabilística na noção de "re-gularidade de eventos" proposta por von BAR15. Alerta NO-RONHA (2003, pp. 601/602) que a teoria admite uma

14

ACCIARRI (2009), p. 90, destaca que o termo "generalizador" pode ser emprega-do em outro sentiemprega-do: para designar a teoria que atribui a qualificação de causa, indis-tintamente, a todas as condições ("teoria da equivalência das condições"). Em oposi-ção estariam as "teorias individualizadoras", como também é utilizado por SAM-PAIO DA CRUZ (2005), p. 53.

15

(8)

ção "positiva" ("um fato deve ser considerado causa adequada de um evento posterior quando favoreça a Produção deste") e outra "negativa" ("causa adequada é a que, segundo as regras da experiência, não é indiferente ao surgir do dano"), conside-rando preferível a segunda. Conforme CALVÃO DA SILVA (1990, p. 712), a teoria está reconhecida no disposto no art. 563º do CCP. É, igualmente, sustentada como aplicável no âmbito do direito brasileiro16. Variante desta última teoria é a do dano direto, sustentada, no Brasil, por Agostinho ALVIM, considera que “a causa de um dano pode ser um fato próximo ou remoto, mas que deve estar diretamente ligado a ele”. No Supremo Tribunal Federal, no Brasil, por ocasião do julgamen-to do RE 130764/PR, o relajulgamen-tor, Ministro MOREIRA ALVES, afirmou ser esta a teoria que embasa a causalidade, no direito civil brasileiro. É também a posição, entre outros, de

GON-ÇALVES (2007, pp. 333/334)17. Outras variantes da

causalida-de acausalida-dequada são a teoria da "causa eficiente" e a teoria da

"cau-sa preponderante"18. Já na direção de uma ruptura com a ideia

"naturalista" de causa, mas ainda reconhecendo a existência de um elemento fático necessário que deva ser considerado, está a teoria do âmbito de proteção da norma (ou "lesão de bem pro-tegido"), que pretende que não é possível identificar um crité-rio único e válido para se aferir o nexo causal em todas as hipó-teses de responsabilidade civil, mas sim observar a função da norma violada. Ao final, e já sob uma perspectiva estritamente normativa, estão as teorias que preconizam a imputação objeti-va do nexo causal (assimilando, portanto, fator de atribuição e nexo de causalidade).

1.2.2.2 "COMMON LAW"

16

Por todos, NORONHA (2003), p. 603.

17

SAMPAIO DA CRUZ (2005), p. 107, NR 192, detalha a perspectiva da doutrina brasileira acerca da adoção desta teoria.

18

Para um exame mais completo das diferentes teorias, veja-se SAMPAIO DA CRUZ (2005).

(9)

Considerado que o propósito deste artigo diz respeito ao direito brasileiro e ao direito português, a referência a seguir aos critérios sobre causalidade na tradição do common law são apenas ilustrativas.

Conforme a doutrina19, quem pretende responsabilizar a

outrem como causador do dano deve não somente provar que o suposto autor detinha deveres de cuidado, e que deixou de atendê-los, mas também que produziu a perda da vítima. Para isso, em uma primeira abordagem, impõe-se a verificação de ser o fato imputado ao suposto autor uma condição necessária (sine qua non) do prejuízo, o que é feito através do que os tri-bunais do common law designaram como "but for test": teria a vítima sido isenta do prejuízo na falta do ato imputado ao au-tor?

Trata-se do requisito denominado cause-in-fact, que está intimamente ligado a uma concepção naturalística ("científica") de causa2021.

Além desse requisito, deverá ser demonstrado que a "causa", filtrada pelo critério anterior, é também "próxima" o dano (proximate cause), isto é, "condição suficiente", no

19 OWEN (2000), p. 40. 20 MOORE (2009), p. 83. 21

CALABRESI (2001), todavia, alerta para alguma distinção entre uma visão natu-ralística de "causa" e o conceito de "cause-in-fact": A but for cause, as I shall use it, is any one of many acts or activities without which a particular injury would not have occurred. This usage is common enough and needs no special discussion. The only point worth making at this stage is that, while there is frequently an overlap between causal linkage and but for cause, the two concepts often diverge. The death of a person found with a broken neck at the foot of an unlighted staircase is causally linked to the absence of light even though it may be conclusively proved that the particular victim fell on the particular occasion because of a sudden dizzy spell that would have occurred with or without adequate lighting, that is, was not related in a but for sense to the absence of light. Conversely, but for the fact that the trolley driver had been speeding, the trolley car would not have been under a particular rotten tree when it fell and hit the car. Yet, unless speeding increases vibrations and vibrations increase the likelihood of trees falling, the admittedly but for cause would not be causally linked to the injury.

(10)

do de que não há qualquer elemento interruptivo, do ponto de vista lógico, entre a "causa" e o dano. Aqui, diferente do que ocorre no primeiro requisito, entram em conta aspectos valora-tivos, que devem ser resolvidos por argumentos políticos, e não por critérios "científicos". Não por outra razão, a proximate cause é também designada por MOORE (2009, p. 83) como legal cause.

1.2.3 "CAUSALIDADE" ECONÔMICA

CALABRESI (2001, p. 72) aponta para uma "causalida-de econômica", percebida como um "conceito funcional", para a responsabilidade civil: a partir da identificação de objetivos "compensatórios" (alastrar os prejuízos e distribuir riqueza), e "dissuasórios" (coletivos ou específicos, e "de mercado" ou gerais), que ilumina o tema sob outra perspectiva.

1.2.4 CAUSALIDADE MÚLTIPLA

Especialmente relevante na doutrina que examina a cau-salidade, no campo da responsabilidade civil, é o tema das múl-tiplas causas, que pode se apresentar de diversas formas. Como afirma MOTA PINTO (2008, p. 930)

"o critério da condição sine qua non, ou condição ne-cessária, é ainda geral aceite, na doutrina civilística, como cri-tério mínimo necessário para a causalidade, que daria a exten-são máxima à noção de causa", mas que "...este procedimento conduz, porém, a resultados estranhos nos casos de

multipli-cidade de causas – ou de sobredeterminação causal –,

haven-do nestes casos que reconhecer excepções ao critério da con-dição sine qua non. É o que acontece com as hipóteses de causalidade cumulativa (para quem os admite), em que o re-sultado teria igualmente sido produzido sem a causa, e esta não era, pois, condição necessária"

MOTA PINTO (2008) diz impor-se um "esclarecimento terminológico" sobre as diversas hipóteses de causalidade,

(11)

dis-tinguindo causalidade hipotética ou virtual, e, na causalidade múltipla (ou concurso objetivo de causas), casos de concurso necessário de causas (causalidade complementar, concausali-dade necessária, causaliconcausali-dade conjunta) e de causaliconcausali-dade cu-mulativa não necessária (causalidade cucu-mulativa, simplesmen-te, ou concurso cumulativo, ou, ainda, causalidade dupla, plu-ral ou adicional).

1.2.5 CAUSALIDADE VIRTUAL

A "causa virtual" ou "causa hipotética" (fato tido como adequado à produção do resultado, mas que não chega a produ-zi-lo, em razão da ocorrência de outro fato, que cria cadeia causal distinta) gera o que NORONHA (2003, p. 658) detalha como causalidade interrompida (quando a causa real é invoca-da pelo autor invoca-da causa virtual – relevância positiva invoca-da causa virtual) ou causalidade antecipada (quando é o autor da causa real quem alega a existência de causa virtual – relevância ne-gativa da causa virtual), muito embora MOTA PINTO (2008, p. 933) sustentar tratarem-se estas últimas de noções que se "cruzam" com a de causalidade hipotética, mas que não mere-cem "relevo autônomo", por entender que "se tratam de casos recondutíveis à causalidade hipotética".

Em um sentido geral, nega-se relevância jurídica à "causa virtual", ainda que, na definição de NORONHA (2003) "situa-ções mais complexas", das quais se destaca a que envolve a mitigação do valor indenizatório22.

22

A complexidade que envolve o tema da "causalidade virtual" não é compatível com o escopo deste artigo. O problema, inclusive, vai além do Direito Civil (talvez, até, tenha ainda maior importância no Direito Penal), como se pode observar em dois trabalhos de Marcelo A. SANCINETTI, de 2008 ("¿Son irrelevantes los cursos causales hipotéticos para la Responsabilidad Penal?" e "Cursos Causales Hipotéticos y la Teoría de la Diferencia", publicados in Causalidad, Riesgo e imputación – 100 años de contribuciones críticas sobre imputación objetiva y subjetiva. Buenos Aires: Hammurabi, 2009). A respeito do assunto, veja-se, também, Rocco BLAIO-TTA, Causalità Giuridica. Torino: G. Giappichelli Ed., 2010, p. 181.

(12)

1.2.6 CAUSALIDADE COMPLEMENTAR

As múltiplas causas são consideradas complementares quando "ambas as acções só causam o dano conjuntamente, sendo a complementaridade das causas necessária (ex.: duas doses de veneno, cada uma por si só não mortal, são deitadas no café por duas pessoas diferentes, e conjuntamente provocam

a morte)"23. Podem as causas apresentarem-se de forma

simul-tânea ou sucessiva, mas, em qualquer caso, não há exatamente um problema de "sobredeterminação causal", diante do que dispõem os arts. 497º, 1, do CCP, e o parágrafo único do art. 492, do CCB.

1.2.7 CAUSALIDADE DUPLA

Já na causalidade cumulativa não necessária24 "cada

ac-ção era por si só causal, isto é, suficiente para causar o evento lesivo (por ex., duas doses mortais do mesmo veneno são dei-tadas no café por duas pessoas diferentes...)".

Neste contexto, ganha importância a distinção

menciona-da por ACCIARRI (2009, p. 22)25, entre condições NESS

(ne-cessary element of a sufficient set) e INUS (insufficient but non-redundant part of an unnecessary but sufficient condition), pois, adotado o primeiro critério, como citado por HART e HONORÉ (1959, p. 112), nos casos de sobredeterminação cau-sal podem existir vários conjuntos mínimos suficientes de con-dições, onde cada um dos elementos necessários destes conjun-tos será "elegível" como causa26.

23

MOTA PINTO (2008), p. 933.

24

A expressão é de MOTA PINTO (2008), p. 933.

25

Segundo, o autor, a paternidade dos termos cabe a J. L. MACKIE.

26

Críticas ao uso das condições NESS, e a suas refutações, podem ser encontradas em WRIGHT, Richard. The NESS Account of Natural Causation: A Response to Criticisms, in http://scholarship.kentlaw.iit.edu/fac_schol/716, disponibilizado em

(13)

1.2.8 CAUSALIDADE ALTERNATIVA

Aqui, existe "incerteza sobre qual foi, das diversas cau-sas, aquela que produziu o resultado"27. Ou, na descrição de NORONHA (2003, p. 652), "quando existem dois ou mais fa-tos com potencialidades para causar um determinado dano, mas não se sabe qual deles foi o verdadeiro causador".

SEGUNDA PARTE: A PREVENÇÃO COMO UMA DAS FUNÇÕES DA RESPONSABILIDADE CIVIL

2.1 DIREITOS DE PROPRIEDADE, CONTRATOS E RES-PONSABILIDADE CIVIL

Na linha das abordagens de "Direito e Economia" (Law and Economics)28, a responsabilidade civil tem uma função residual, quando se considera que, tendo como ponto de partida determinada alocação dos direitos de propriedade, o mecanis-mo dos contratos é a solução adequada para as trocas (relações) envolvendo estes direitos, na ausência de custos de transação significativos. Em casos onde a solução contratual não é ade-quada, e mantendo-se no direito privado o enfrentamento dos interesses postos em causa, a responsabilidade civil se coloca como o campo adequado para essa tarefa.

Vale mencionar que, para a Economia, as expressões "di-reitos de propriedade" e "contratos" têm um sentido ligeira-mente distinto daquele que é empregado pelo Direito29, pois,

01/01/2011, verificado em 12/05/2014. Neste trabalho, WRIGHT distingue o critério NESS de outros dois, atribuídos a HART e HONORÉ ("fator com relevância cau-sal") e John MACKIE (condições INUS).

27

MOTA PINTO (2008), p. 933.

28

Adota-se a expressão "Direito e Economia", e não "Análise Econômica do Direi-to", pelos fundamentos apresentados por MILLER (2011).

29

(14)

"sob o ponto de vista legal, a propriedade é um feixe de direi-tos"30, e não deve ser confundida com "propriedade privada", pois "o termo verdadeiramente encampa um leque de diferentes formas de propriedade: privada, comum, estatal, condicional, direitos de propriedade intelectual, direitos de passagem ... o termo se refere a qualquer alocação jurídica de competência para usar um recurso"31.

Já os "contratos" situam-se na posição intermediária entre o "mercado" e a "integração vertical": exigem inter-relação entre agentes econômicos distintos, e envolvem "promessas",

ao menos de uma das partes32.

Uma vez definidos os "direitos de propriedade", na au-sência de impedimentos33 à sua negociação entre os agentes econômicos, a via contratual será a adequada para a obtenção da maior eficiência econômica34. Todavia, quando não se está diante de uma situação que envolva "direitos de propriedade" previamente definidos, ou, mesmo diante deles, não se viabili-zou a negociação entre os agentes econômicos envolvidos, en-tão, como afirmam COOTER e ULEN (2012, p. 187) "a third major body of private law other than property and contracts" é necessário, que diz respeito aos casos onde não há uma quebra de contrato, ou que não possa ser reparado apenas por uma medida que impeça futuras violações de interesses afetados. Esse é o espaço reservado à responsabilidade civil (tort law,

30

COOTER e ULEN (2012), p. 73.

31 SCHÄFER e OTT (2004), p. 401. 32

No "puro mercado", há troca de recursos por outros recursos; na "integração", a firma absorve o que, em outras situações, buscaria no "mercado" ou por "contrato".

33

Como ensina ARAÚJO (2007), Parte I.

34 Em consideração ao assim denominado "Teorema de Coase", como ficou

conhe-cida a formulação feita por Ronald COASE, em 1937, no artigo The Problem of Social Costs, que pode ser encontrado em The Journal of Law & Economics, vol. III, de Outubro de 1960 (há versões traduzidas para o português, em The Latin American and Caribbean Journal of Legal Studies, vol 3, Issue 1, 2008, article 9, e no trabalho organizado por SALAMA (2010), p. 59. Maior detalhamento sobre o assunto pode ser obtido na obra de POSNER (2007), p. 31.

(15)

nos países de língua inglesa)35.

2.2 FUNÇÕES DA RESPONSABILIDADE CIVIL

Como alerta ACCIARRI (2009, p. 176), é possível reco-nhecer dois grandes grupos de significados para o termo fun-ção, um deles que "simplesmente se refere a relação entre cer-tas propriedades" de dois elementos e outro que "guarda uma relação mais forte com a ideia de objetivos", e que admite dis-tinção entre "funções" e "disfunções", na exata medida em que esses objetivos são ou não são perseguidos.

Na mesma linha sugerida pelo professor argentino, aqui usa-se função no primeiro dos sentidos, com antes referido, para reconhecer à responsabilidade civil certas relações com efeitos empíricos verificáveis. Em outras palavras, sendo o Di-reito um modo de regulação social, é de se esperar que o corpo normativo que compõe o que chamamos de "responsabilidade civil" detenha efetividade social, ou seja, possa produzir, nos fatos sociais, determinadas consequências.

2.2.1 REPARADORA

A função precípua da responsabilidade civil,

historica-mente, é a da reparação36. Afirma Judith MARTINS-COSTA

(2010)37 que "[o] princípio em torno do qual se articula o insti-tuto da responsabilidade civil é o princípio da reparação

35

Sobre as aproximações (e eventuais discrepâncias) entre o sistema continental (Civil Law) e o Common Law, veja-se GORDLEY (2006), cap. III.

36

Conforme ALMEIDA COSTA (2000, pp. 472/479), nos diferentes sistemas jurí-dicos, o primeiro passo foi a superação do "direito de vingança" pela entrega de uma soma em dinheiro, pelo ofensor ao ofendido, com "simultâneo alcance de reparação e punição". Com o tempo, deslocou-se o caráter punitivo para os poderes públicos, apartando a responsabilidade civil (reparação) da penal (punição). O mesmo autor, reconhece, todavia, que, modernamente, "não é inédito que juristas e legisladores assinalem subsidiariamente uma função punitiva e preventiva ao ilícito civil".

37

(16)

gral, que agrega ao valor fundante dessa disciplina o valor sis-temático e o valor dogmático". Como se percebe, em regra, a função reparadora é percebida pelo Direito pelo seu sentido axiológico, vinculada que está a noção de justiça comutativa, ou corretiva38.

Já sob a perspectiva econômica, na síntese proposta por CALABRESI (2001, p. 73), "uma vez que as pessoas não ape-nas avaliam uma quantia de dinheiro de forma diferente, mas colocam um valor diferente para cada dólar subsequente, o impacto total de uma lesão pode ser diminuído por uma ade-quada apropriação deste encargo"39. A função reparadora, aqui, é vista a partir da necessidade de uma alocação viável dos re-cursos, daí porque, como lembra o mesmo autor "se, em geral, o encargo de suportar uma larga quantia é mais oneroso quando atribuído a uma única pessoa do que se dividido entre várias, então outra função da responsabilidade civil pode ser garantir que, de modo consistente com outros objetivos, o encargo das indenizações possa ser distribuído"40.

O conteúdo da função reparadora está essencialmente voltado a uma abordagem retrospectiva, isto é: uma vez verifi-cado o dano, busca-se compensá-lo, em relação ao lesado, nos limites da sua extensão, pois o objetivo, aqui, não é outro senão o da reposição do estado de coisas que existia anteriormente ao próprio dano. 2.2.1.1 CARÁTER COMPENSATÓRIO 38 Veja-se BITTAR (2001), p. 98. 39

No original: "Tort compensation goals may be described in rough terms as fol-lows: since people not only value a lump sum of money differently, but place a different value on each subsequent dollar as well, the total impact of an injury may be diminished by an appropriate allocation of its burden".

40

Op. cit., p. 73 (no original: "If, in general, a large lump sum burden is more oner-ous when borne by one person than it would be if divided among many, then one function of tort law may be to ensure that, consistent with other goals, injury bur-dens are spread")

(17)

Comumente, a função reparadora é identificada com seu caráter compensatório, por certo o mais evidente. Como afirma NORONHA (2003, p. 437/438),

"A finalidade que é fundamental à responsabilidade civil é a de reparar um dano: apagar o prejuízo econômico causado (indenização do dano patrimonial), minorar o sofri-mento infligido (satisfação compensatória do dano moral pu-ro) ou compensar pela ofensa à vida ou à integridade física de outrem, considerada em si mesma (satisfação compensatória do dano puramente corporal)"

2.2.1.2 CARÁTER INDENITÁRIO

Menos referido (mas nem por isso irrelevante), outro as-pecto da função reparadora da responsabilidade civil se dá no que SANSEVERINO (2010, p. 59) denomina "função indenitá-ria": "estabelece que a extensão dos danos constitui o limite máximo da indenização". Esta face da função reparadora en-contra-se estampada tanto na legislação brasileira quanto por-tuguesa (art. 944 do CCB e art. 494º do CCP).

2.2.2 PREVENTIVA

Como já foi referido, ao lado da função reparadora, a doutrina vem reconhecendo à responsabilidade civil uma fun-ção preventiva, com conteúdo prospectivo, focada em evitar a

recorrência de situações geradoras de dano41. Trata-se de

enfo-que particularmente relevante para a abordagem de "Direito e Economia", a partir dos trabalhos seminais de CALABRESI (1970) e Steven SHAVELL (1987). Para a Economia, a exis-tência do dano indica desperdício de recursos, que deve ser evitado. A reparação do dano, assim, é secundária (mas não

41

VENTURI (2014), p. 87, citando Roberto LÓPEZ CABANA, lembra que "...o direito da responsabilidade civil não deve constituir-se como um mecanismo a fun-cionar apenas ex post (após a ocorrência do ato danoso), mas também, e sobretudo, ex ante (tendo como objetivo a inviolabilidade dos direitos e a prevenção de danos)"

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irrelevante, porque a lesão que ocorra sem algum mecanismo compensatório significa fragilização dos "direitos de proprie-dade", com o consequente incremento de "custos de transação", que reduz a eficiência econômica).

2.2.2.1 CARÁTER DISSUASÓRIO

O adequado funcionamento dos mecanismos de respon-sabilidade civil funciona como sinalização, seja para aquele que é reconhecido como o causador do dano, seja para tercei-ros, acerca das consequências do ato praticado, dissuadindo-os quanto a uma eventual recorrência. Na relação direta com a efetividade das soluções jurídicas de responsabilização civil está a possibilidade destas consequências serem percebidas a priori pelos sujeitos potencialmente envolvidos, induzindo medidas de prevenção.

Há, aqui, um pressuposto que decorre diretamente dos es-tudos de "Direito e Economia": os agentes econômicos agem racionalmente42, e reagem a incentivos (e desincentivos), que lhes são fornecidos, entre outras fontes, pelo sistema jurídico. 2.2.2.2 CARÁTER REDUTOR DE CUSTOS SOCIAIS

Objetivos de prevenção, na responsabilidade civil, afirma CALABRESI (2001, p. 77), "podem ser descritos como aque-les nos quais se busca minimizar o montante dos custos de in-denização e dos custos de precaução"43. A partir da contribui-ção do "Direito e Economia", fica claro que os "acidentes" (i.é., a ocorrência de danos) não devem ser evitados "a qualquer cus-to", pois há casos onde os "custos de precaução" excedem o

42

Ainda que uma racionalidade "limitada", como sugere a Behavioral Law and Economics. Veja-se, a propósito, o estudo de Jeffrey J. RACHLINSKI, A Positive Psychological Theory of Judging in Hindsight, in SUNSTEIN (2000), p. 95.

43

No original: "Deterrence goals in tort law may be described as those which seek to minimize the sum of injury costs and safety costs".

(19)

benefício que se obtém (evitar os "custos de indenização")44. CALABRESI (2001) distingue, na função dissuasória, um caráter coletivo ou específico45 de outro, de mercado ou genérico46, ambos voltados ao equilíbrio entre custos de pre-venção e indenização, mas onde o primeiro dirige-se a esse fim através de ações políticas (ou coletivas), ao passo que o segun-do deixa a decisão a cargo de decisões "atomísticas" (individu-ais).

Como destaca BEN-SHAHAR47, para aferir a extensão

na qual as normas sobre responsabilidade civil podem imple-mentar otimização, em termos de bem-estar social, uma restri-ção baseada em causalidade precisa ser formalmente introduzi-da na estrutura destas normas. Neste sentido, o conceito de scope of liability48, proposto por SHAVELL, incorpora esta restrição. O scope of liability é definido como o "estado de coi-sas" (situações de fato) sob os quais a responsabilidade civil pode ser aplicada. O elemento de causalidade é visto aqui co-mo uma restrição porque há, necessariamente, um "estado de coisas" onde não há responsabilidade por uma consequência danosa, exatamente pela falta do liame causal. Na ausência de exigência sobre relação causal, haverá responsabilidade sempre que houver dano. Ao determinar os efeitos de incentivo que o scope of liability gera, não são os dados objetivos de probabili-dade que são considerados, mas sim a "probabiliprobabili-dade subjeti-va", isto é, a avaliação ex ante das possíveis consequências, feita pelo autor (ou potencial autor) do dano.

2.2.3 PUNITIVA (SANCIONADOR)

44 COOTER e ULEN (2012), p. 199. 45

P. 78. No original, specific deterrence.

46

P. 84. No original, general deterrence.

47

BEN-SHAHAR, Omri. Causation and foreseeability, in FAURE (2009), pp. 83/108.

48

Veja-se, a propósito: SALVADOR-CODERCH, GAROUPA e GÓMEZ-LIGÜERRE (2009).

(20)

Não raro, mesmo quando a doutrina reconhece expres-samente função preventiva á responsabilidade civil, o faz apro-ximando-a da função punitiva (ou sancionatória), às vezes sob o manto de um "papel intimidativo"49 ou apenas para destacar que o caráter punitivo se dirige ao autor do ato danoso e a pre-venção (ou dissuasão) , a "quaisquer outras" pessoas50.

Esta abordagem traz para o cenário de análise da função preventiva, em particular nos países que adotam o "Direito Continental" (ou Civil Law), como são os casos do direito bra-sileiro e do direito português, um debate que lhe é estranho: o de admitir-se ou não a figura das "indenizações punitivas" (pu-nitive damages). Entende-se que melhor solução se obtém des-tacando uma de outra função, até para evitar que eventuais rea-ções a uma "função punitiva"51 possam impedir o reconheci-mento do caráter dissuasório ou de redução de custos sociais, que tem a função preventiva.

2.3 MAXIMIZAÇÃO DA PREVENÇÃO A PARTIR DO NEXO DE CAUSALIDADE

As possibilidades de que a responsabilidade civil possa desempenhar uma função preventiva estão diretamente relacio-nadas com a percepção que os agentes potencialmente causado-res de dano possam ter sobre futuros "acidentes". Neste senti-do, o tratamento que o Direito empresta ao nexo de causalidade é determinante na maneira como (racionalmente) os indivíduos se comportarão quanto a atividades de precaução, independen-temente do regime de responsabilidade adequado (subjetivo ou objetivo), muito embora fique claro que, em um regime de

49 NADER (2009), p. 15. 50 NORONHA (2003), p. 441. 51

Como diz SANSEVERINO (2010, p. 76): "... no contexto atual do direito brasilei-ro, não há espaço para o acolhimento dos punitive damages, carecendo de regula-mentação legal expressa por refugir o instituto de nossa tradição jurídica."

(21)

ponsabilidade subjetiva, o meio mais óbvio de tratar este pro-blema seja pela análise da culpa.

2.3.1 ESCOLHA NORMATIVA DA CAUSA

Como foi demonstrado, longe de uma perspectiva "natu-ralística", a noção de "causa" comporta critérios de escolha, dentre os diversos eventos que podem comportar esta qualifi-cação, que devem ser estabelecidos normativamente. Mais im-portante: não sendo o nexo de causalidade um dado da nature-za, mas sim um critério adotado pela norma, não há qualquer empecilho lógico a que convivam, em um mesmo sistema jurí-dico, distintos critérios de definição de causalidade, tendo em conta exatamente qual a função da responsabilidade civil que deve ser tida como preponderante, nas diversas áreas alberga-das sob o manto da responsabilidade civil.

Conforme ACCIARRI (2009, p. 258), "não existe um único critério jurídico de causalidade", entendendo-se por cri-tério os "procedimentos para vincular causalmente fatos indi-viduais". E as condições causalmente elegíveis são as "condi-ções NESS" do fato consequente (p. 363), que estão submeti-das a um procedimento de seleção que deve estar relacionado com propósitos (objetivos) da responsabilidade civil, mas tam-bém com as suas "funções", aqui entendidas em uma perspecti-va instrumental, que "independe da noção de objetivo, propósi-to ou finalidade" (p. 264).

É por isso que se os critérios causais tiverem em conta a função reparadora, conclui o mesmo autor (p. 187), a função aumenta (a) se a aplicação do sistema resulta que mais danos sejam atribuídos causalmente a pessoas determináveis que não a vítima, (b) se, ademais de (a), o dever de reparar de cada uma delas alcança o total do dano, (c) se, ademais de (b), a causali-dade do dano se atribui a um maior número de pessoas e (d) se, ademais de (c), a causalidade do dano se atribui a pessoas

(22)

"mais ricas", isto é, com maior potencial de pagamento.

Esses são os critérios que não raro são adotados na defi-nição da "causalidade adequada", em atenção ao caráter com-pensatório da função reparadora, mas também, preponderante-mente, a um sentido de garantir a indenidade da vítima, no ca-minho de uma "socialização" da responsabilidade civil52. 2.3.2 PREVENÇÃO E SENSO COMUM

Há um "senso comum" que diz sobre a percepção de re-lações entre fatos individuais, no sentido de que um é "causa" do outro53. É esse "senso comum" que permite, no exemplo proposto por ACCIARRI (2009, p. 9), que um filósofo, um jurista e um analfabeto, ainda que detenham distintos "equipa-mentos" para a compreensão dos fatos, possam se por de acor-do quanacor-do testemunham a queda de uma árvore por ação de uma rajada de vento: causa e efeito serão entendidos de modo igual. As derivações possíveis desta relação, todavia, certamen-te serão diferencertamen-tes. O jurista poderá especular sobre as respon-sabilidades decorrentes do fato (conservação inadequada da árvore pelo seu dono...); o filósofo, estabelecer relações entre esse fato e outros análogos, ou apartá-lo de outros, pertencentes a categorias distintas. Isso não altera a circunstância de que causa e efeito, em um "senso comum", foram percebidos da mesma forma.

A noção de causalidade, como já se demonstrou, merece atenção da Filosofia desde ARISTÓTELES, e pode ser descrita a partir de noções sobre regularidade de eventos, que, todavia,

nem sempre são corretas54. Mesmo assim, a presença destes

52

Veja-se VINEY (2007), p. 65.

53

Como refere PINKER (2009, pp. 337/339). Mesmo bebês, com idade inferior a seis meses, têm noção de causação.

54

Os estudos na área da análise comportamental, em particular o trabalho de Daniel KAHNEMAN e Amos TVERSKY (Judgment over Uncertainty: Heuristics and Biases, in "Judgment Under Uncertainty", Daniel Kahneman, Paul Slovic e Amos

(23)

elementos de "senso comum" são determinantes para as condu-tas de precaução quanto a eventos potencialmente danosos. É correto supor que um indivíduo (neutro a risco) cogitará de precaver-se na direta relação com a previsão que faça sobre a probabilidade de ocorrência de situações que possam lhe ser imputadas, como responsável por alguma situação de prejuízo ("responsabilidade civil").

2.3.3 CAUSALIDADE E PREVENÇÃO

Muito embora a ruptura entre uma noção "naturalística" de causa e a sua escolha normativa, uma vez reconhecido que toda condição NESS é uma causa (no senso comum), e que (normativamente) é possível escolher dentre várias condições (particularmente nos casos de "multiplicidade de causas")

aquela ou aquelas às quais se atribuirá esta qualificação55, pode

ocorrer que se torne difícil ou até impossível àqueles que estão submetidos a um sistema de responsabilidade civil (e, portanto, a uma "dissuasão genérica" ou general deterrence) prever o dano, e, a partir daí, adotar medidas de precaução.

É importante, quando se tem em conta a função preventi-va da responsabilidade civil, reconhecer um mínimo de senso comum no critério de escolha de causas, mesmo considerando sua natureza normativa. Se a escolha é feita de modo arbitrário, pelo legislador ou pelo aplicador do Direito, qualquer perspec-tiva dissuasória, ou de redução de custos sociais (pela impossi-bilidade do cotejo entre custos de precaução e custos de indeni-zação, a priori) ficará comprometida.

CONCLUSÕES

Tversky, 1982), demonstram que o "senso comum", também em matéria de causali-dade, nem sempre é acompanhado pelas evidências empíricas sobre o que, de fato, é uma relação causal.

55

(24)

1. Ainda que despido de um sentido naturalístico, o nexo de causalidade permanece reconhecido, na doutrina, como um dos pressupostos da responsabilidade civil, adotando-se fun-damentos normativos para a sua identificação.

2. Nos casos de causalidade múltipla, a definição de um critério normativo para a escolha têm particular importância, exatamente pela possibilidade da exclusão de alguma (ou al-gumas) das condições desta qualidade.

3. Ao lado da reparação, a prevenção é uma das funções da responsabilidade civil.

4. A função preventiva ter características dissuasórias e de redução de custos sociais, para as quais é imperativo que exista um sentido de previsibilidade quanto às situações dano-sas, que se busca evitar.

5. Tendo a escolha da causa caráter normativo, e em atenção á função preventiva, essa escolha deve, tanto quanto possível, estar próxima de um sentido comum para a noção de nexo de causalidade, para incrementar as condições de previsi-bilidade (e de precaução).

j

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