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Fantasmas e memórias de guerra. RIBEIRO, Margarida Calafate; VECCHI, Roberto (Org.). Antologia da memória poética da guerra colonial. Porto: Edições Afrontamento, 2011. 646 p.

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Jaime Ginzburg* Universidade de São Paulo (USP)

Publicada em 2011, com organização de Margarida Calafate Ribeiro e Roberto Vecchi, a Antologia da Memória Poética da Guerra Colonial é uma contribuição inestimável aos estudos literários e históricos. O volume resulta de um projeto de longa duração, que integrou uma equipe de jovens pesquisadores e contou com a consultoria de intelectuais como Vincenzo Russo e Helder Macedo.

O leitor encontra neste volume de 646 páginas, composto com ótima qualidade gráfica, a reunião de materiais de variadas origens. A ampla extensão se associa a um princípio de organização estrutural que, a cada página, conduz a sucessão de textos de modo equilibrado e rigorosamente planejado. Divididos por critérios coerentes, os conjuntos de poemas são incluídos em partes dedicadas a várias perspectivas de leitura – Partidas e regressos, Quotidianos, Morte, Guerra à guerra, O dever da guerra, Pensar a

guerra, Memória da guerra, Cancioneiros, Cancioneiro popular e Ainda.

Embora, como reconhecem os organizadores, existam obras anteriores dedicadas à apresentação da literatura associada à Guerra Colonial, este livro supera as contribuições anteriores e constitui, de imediato, leitura obrigatória para os interessados em literaturas de língua portuguesa.

No Posfácio redigido pelos organizadores, o trabalho é contextualizado e expõe sua fundamentação. De acordo com o texto, existem textos conservadores “claramente a favor do conflito bélico”; e outros, que constituem a maioria, configuram a Guerra Colonial como um “fantasma”, associado ao luto, à perda, à saudade.

Entre os autores de textos incluídos no livro, estão António Lobo Antunes, Fernando Grade, Fernando Pessoa, Gastão Cruz, Hélia Correia, João de Melo, Jorge de Sena, José Rogério Mineiro Carrola, Liberto Cruz, Luís da Mota, Manuel Alegre, Natércia Freire, Ruy Belo e Sophia de Mello Andersen.

Roberto Vecchi escreveu o excelente livro Excepção Atlântica. Esse trabalho permite compreender com precisão a especificidade e o alcance da Antologia. O crítico articula, entre outros autores, Agamben, Foucault, Benjamin, Simmel e Derrida. De acordo com o autor, a escrita da Guerra Colonial é melancólica.

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Nesse livro, Vecchi rompe com expectativas de que uma memória de guerra deva ser elaborada necessariamente como documental ou realista. Ao contrário, sua reflexão se distancia de ilusões quanto à função referencial da linguagem, e se aproxima de categorias estéticas marcadas por negatividade.

A retomada do conceito de paradigma indiciário, de Carlo Ginzburg, propõe a necessidade de interpretação de sinais do passado, em busca da elaboração de uma inteligibilidade. No entanto, o que prevalece na argumentação de Vecchi é a atenção à presença do fantasma; vocábulos como resto, ruína, falta e aporia ajudam a examinar o caráter dissociativo das imagens do passado. A matéria bruta e lancinante do real é evocada pelo caráter fantasmático da própria guerra, cujo fundamento histórico e cuja justificação política estão condicionados por aquilo que Eduardo Lourenço, como explicou Vecchi, caracterizou como o irrealismo da imagem que os portugueses atribuem a si mesmos. Sem horizontes de totalização ou síntese, a escrita da fantasmagoria está ligada à melancolia e à tragicidade.

Em Excepção Atlântica, a reflexão sobre a estética do resíduo chama a atenção para textos que falam a partir do ponto de vista da morte, da percepção de ausências, e da impossibilidade de reparar as perdas. Álvares de Azevedo, no século XIX, escreveu sobre imagens negativas de Portugal, construídas a partir do impacto da independência do Brasil. Eduardo Lourenço contribuiu de modo decisivo para o estudo da situação crítica de Portugal, resultante da dissolução de ideais do Império. Roberto Vecchi ganha inserção nessa série, demonstrando com detalhamento que a especificidade da Guerra Colonial se articula, na produção escrita, com uma sociedade impregnada pela modernidade biopolítica. Mais do que isso, as relações de Portugal com as colônias africanas se desenvolveram em um campo de tanatopolítica, em que a metrópole não teria sido hábil para regular as colônias, nem para preparar processos de emancipação. Essa nação, enquanto conduz o ataque às colônias, destrói os ideais de seus próprios fundamentos, convertendo-se em uma espécie de nação-cadáver, na qual são as lacunas, perdas e ausências que delimitam a temporalidade, entre um passado cifrado e um horizonte incerto. Em “Um soldado”, de José Rogério Mineiro Carrola, a descrição de Portugal sugere sua condição cadavérica (“Este frio (...) é o meu país”). A imagem proposta por Manuel Alegre de uma “Lisboa viúva” condensa a importância do resíduo e da ruína nesse horizonte, em que as perdas são irreparáveis.

A Antologia da Memória Poética da Guerra Colonial traz a melhor expressão atualmente existente desse universo fantasmagórico, em que os gestos patrióticos confrontam corpos doloridos, mutilados e desumanizados. Em minha opinião, o melhor poema do volume é

L‘Été au Portugal, de Jorge de Sena. Uma pergunta prioritária é apresentada diretamente:

“Que Portugal se espera em Portugal?”. O impacto terrível da Guerra Colonial se associa a uma indeterminação radical, entre “rapaz sem braço” e “cães sem faro”, em que a falta de perspectiva para o país se constitui como confinamento – “Na tarde que anoitece o entardecer nos prende”. O texto é implacável, configurando a negatividade constitutiva de Portugal, como campo de cruzamento entre o horror do passado e a incerteza quanto ao futuro.

O volume traz preciosos casos de escritas limiares, em que a linguagem se ocupa menos de relatar um passado e mais de falar do que não foi feito, não foi conseguido, ou

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não se poderá fazer. Em um poema sem título de Luís da Mota, o cenário do campo de batalha é aquele em que “não chega amor”. Nesse poema de 1968, o sujeito lírico afirma: “A nossa verdadeira história / jamais será contada (,,,)”. Esse fragmento poderia ser tomado como moto continuo da antologia. Ainda que a escrita da Guerra Colonial em alguns casos se aproxime do testemunho, ela não pode ser classificada de modo definitivo como tal, assim como não deve ser reduzida a uma função documental. É na negação de um princípio absoluto de significação que pode surgir a força dessa escrita. Não se trata de defender um critério de verdade ou de propor que se trata de uma realidade diretamente percebida. Os textos mais impactantes da antologia levam a interrogar quais as mediações legítimas entre violência e linguagem.

Em “A mina”, Manuel Alegre escreve “Não sei se alguma vez nós voltaremos / da guerra onde deixámos partes d’alma”. Esse verso condensa um dos efeitos possíveis da leitura do volume. Como um trauma coletivo não superado, o passado da guerra permanece entre nós, constituindo um confinamento, como espaço do qual não se pode sair. Com as perdas de “partes d’alma”, a voz metaforicamente constitui um vínculo com os cadáveres, que não retornam da guerra. A imagem permite ainda pensar com incerteza em um momento “antes” da guerra, para o qual se queira retornar. Cabe chamar a atenção para a construção ambígua de um ponto de vista, que talvez possa ser atribuído a um cadáver, em um poema sem título de Liberto Cruz, que se restringe a uma linha: “Pertenço a uma geração que o País perdeu”.

Diversos poemas apontam para um percurso sem redenção, em que o futuro não traz nenhuma expectativa de superação. Um caso incisivo é “Guerra colonial I”, de Hélia Correia, poema que propõe o cenário da Guerra Colonial como um mundo “sem apocalipse”: “Agora não se nasce”. Outro é “Perguntando sempre”, de Fernando Grade, que expõe o esquecimento dos crimes militares.

Os organizadores da antologia publicaram recentemente o ensaio “A memória poética da Guerra Colonial de Portugal na África – os vestígios como material de uma construção possível”. Elaborado no âmbito do mesmo projeto de pesquisa, o trabalho consolida rumos importantes de interpretação da produção em torno da Guerra Colonial. Os pesquisadores explicam que a memória poética ultrapassa a singularidade de um sujeito enclausurado. Ela se situa no limite de uma memória de teor político. No contexto de uma reflexão sobre o conceito de rastro no pensamento de Walter Benjamin, os autores examinam a ambiguidade da ruína, que se caracteriza como uma forma de perda e também como uma forma de presença do passado. Os textos propõem modos de decifração de rastros do passado. Levando em conta contribuições da psicanálise, nesse ensaio, os autores caracterizam a literatura da Guerra Colonial como um “potencial cemitério”, em que a aparição de fantasmas indica a necessidade de lidar com os mortos. Essa poética de restos atravessa a Antologia. Como chave interpretativa, a consideração da ambiguidade da ruína permite relacionar de modo produtivo diferentes textos uns com os outros. Referências a Hiroshima e ao Vietnã aparecem, criando reverberações entre diferentes momentos históricos, e articulando o colonialismo português com um amplo horizonte de barbárie e violência de Estado no ocidente. Alguns poemas assumem perspectivas afetivas, mencionando a saudade de um amigo ou a conduta de uma criança, evitando a redução da guerra a uma imagem estereotipada.

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Não por acaso, a Antologia encerra de modo brilhante, com “Ainda” de Manuel Alegre. Nesse poema, violência e linguagem se relacionam de modo decisivo. O texto propõe uma estética do resíduo em um alto grau de consciência formal. São tempos em que no “meio de uma vírgula morre alguém”. Roberto Vecchi e Margarida Calafate Ribeiro construíram um trabalho exemplar em história da literatura, ultrapassando os limites habituais referentes ao cânone e às classificações de formas poéticas. A seriedade do trabalho confirma as trajetórias brilhantes de Ribeiro e Vecchi. O volume pode ajudar a reescrever a história da literatura de língua portuguesa. Essa nova história poderia encontrar, em sinais improváveis, a presença dos mortos.

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VECCHI, Roberto; RIBEIRO, Margarida Calafete. A memória poética da Guerra Colonial de Portugal na África – os vestígios como material de uma construção possível. In: SEDLMAYER, Sabrina; GINZBURG, Jaime (Org.). Walter Benjamin. Rastro, aura, história. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2012.

VECCHI, Roberto. Excepção Atlântica. Pensar a literatura da Guerra Colonial. Porto: Edições Afrontamento, 2010.

Referências

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