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6.
(7
O presente trabalho vincula se à Linha de Pesquisa História e Descrição da
Língua, do Programa de Pós Graduação em Língua Portuguesa, e objetiva
buscar, na História do Brasil e na constituição da língua nacional, uma explicação
para o uso consolidado do pronome
como pronome pessoal de segunda
pessoa, no português em uso no Brasil, como opção ao pronome
.
Sabe se que as manifestações culturais são capazes de revelar muito da
psicologia e do caráter de uma comunidade. Quando se trata de um país,
guardadas as diferenças regionais e pessoais, há traços que o singularizam,
mesmo em um mundo com tendências globalizantes e homogeneizantes, como o
atual. No confronto com a alteridade, descobrem se as particularidades de um
povo ou nação. É por meio desse confronto que se reconhecem, por exemplo, a
pompa e a pontualidade britânicas, a fleuma e a frieza germânicas, o ritualismo
chinês, o apego á hierarquia japonês, o pragmatismo americano, a alegria e a
hospitalidade brasileiras.
Dentre as manifestações culturais de um povo está sua língua. As escolhas
e as soluções linguísticas – sintáticas, semânticas, estilísticas, ortoépicas de uma
determinada comunidade revelam características dessa sociedade e tornam se,
assim, fonte documental importante não apenas para a Linguística, mas também
para a
Sociologia, a História, a Antropologia, a Geografia. Essas ciências
encontram, na língua, elementos para subsidiar suas indagações e seus
questionamentos, para alimentar suas pesquisas e para enriquecer suas
conclusões.
Dentre os vários aspectos da língua que podem suscitar o interesse de
estudiosos de diferentes disciplinas está a opção pronominal de tratamento do
interlocutor, devido às questões subjacentes que tal preferência pode revelar, tais
com a hierarquia, sua tendência ou não a relações aproximativas, seu caráter
mais ou menos conservador.
Esses dados produzidos por pesquisas multidisciplinares e interdisciplinares
podem e devem ter emprego em várias esferas da vida em sociedade
como a
política, a educação, a economia ,
conduzindo ações
e tornando as mais
efetivas.
Ao comparar o sistema pronominal brasileiro com o que diretamente o
originou – o sistema pronominal português – e com aqueles com os quais guarda
similitudes de origem e desenvolvimento – o sistema pronominal espanhol e o dos
países hispânicos da América Latina – percebe se uma característica que
peculiariza o sistema nacional: a alternativa representada pelo pronome
no
tratamento direto e informal do interlocutor.
Tanto na Espanha, quanto nos países americanos que falam espanhol, o
correspondente hispânico do
– o pronome
carrega ainda hoje uma
carga reverencial ou distanciadora que faz dele uma opção para as interações
formais ou não íntimas. Nesses países, com exceção da Argentina – que fez
opção pelo
– o pronome eleito para o tratamento direto é o
Também em Portugal, o pronome
é empregado em situações corriqueiras
e informais, cabendo ao
uma posição intermediária entre o irreverente
e o
respeitoso
o que não lhe imprime, no país europeu, o caráter
prosaico de que desfruta no Brasil.
Não há, portanto, como não se indagar sobre as vicissitudes históricas e
sociais que motivaram a inusitada escolha pronominal no Brasil, com o intuito de
conhecer mais sobre o povo brasileiro e de reconhecer se como nação, cujas
características precisam ser consideradas para a formulação de um projeto de
Levando se em consideração que o fato linguístico é resultado de uma
interação de inúmeros aspectos sociais e que seu estudo deve colaborar com a
solução de problemas da sociedade que o originou, buscou se na História das
Ideias Linguísticas e em
sua imanente filiação aos pressupostos da
interdisciplinaridade, multiplicidade documental e aplicabilidade do
conhecimento científico – o apoio teórico que orientou esta pesquisa.
Dividiu se a dissertação em quatro capítulos. O primeiro expõe a formulação
de uma nova concepção de História, motivada por inquietações sociais e
científicas, cujo desdobramento culminou no nascimento da História das
Mentalidades e
da História das Ideias, dentre elas a História das Ideias
Linguísticas, cujos pressupostos norteiam este trabalho.
O segundo capítulo visa
a reconstruir o percurso histórico e social do
pronome
,
revelando se
suas
origens
medievais
e
a
consolidação
renascentista de sua forma matriz –
, além de expor os motivos que
levaram ao sucesso das formas reverenciais de tratamento, em Portugal, e que
determinaram a alternativa ao
, no tratamento do interlocutor, no Brasil.
A fim de evidenciar também que, sobre o fato linguístico, atuam agentes
legitimadores e infirmativos e que, sobre a língua,
atuam forças centrípetas –
homogeneizantes
e centrífugas – heterogeneizantes
, analisaram se a
legitimação do emprego pronominal em textos literários e sua representação e
descrição em gramáticas.
Assim sendo, o capítulo III dedica se à elaboração do percurso literário do
pronome
, fazendo um breve recuo a textos produzidos nos séculos XVII e
XVIII, em Portugal, mas focando primordialmente obras escritas nos séculos XIX e
O Capítulo IV, ao buscar a inserção e a representação do pronome
em
obras gramaticais traça o percurso gramatical dos pronomes pessoais, iniciando o
com uma gramática que serviu de modelo às portuguesas – a
e finalizando o com obras gramaticais brasileiras do último quartel do
século XX.
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Enquanto as ciências biológicas e as ciências exatas proveram o ser
humano de conquistas e confortos sem precedentes, as ciências sociais
aquelas
cujo material de pesquisa é o próprio fator humano, suas relações, suas ideias,
seus conflitos
parecem não responder significativamente às demandas por suas
propostas e soluções. É nesse vácuo de respostas e proposições que o mundo se
vê à beira de um colapso humanitário e ambiental, paradoxalmente, em um
momento ímpar de produção de alimentos, de riquezas, de saberes terapêuticos e
de domínio de tecnologias diversas.
Claro está que as reflexões e os saberes produzidos pelas ciências sociais
a sociologia, a antropologia, a psicologia, a política, a história
têm orientado
muitas das escolhas para a vida em sociedade, possibilitando que ela fosse
organizada da forma como a conhecemos hoje. Cabe, no entanto, a essas
ciências, a elaboração de respostas emergenciais às questões que as vicissitudes
humanas criaram. Tais questões nos colocaram em embates sociais cujas faces
mais frequentes e alarmantes são a violência, a intolerância, o preconceito, a
degradação ambiental, o fosso social, o fracasso educacional. É do bojo das
ciências que lidam com o
material humano que devem emergir os saberes
capazes de encaminhar a humanidade a um futuro mais equitativo, justo, seguro e
sustentável.
Do mesmo modo, a complexidade da sociedade hodierna, com suas
demandas urgentes em todos as esferas – social, econômica, política, ambiental –
não admite mais um acúmulo científico e uma produção de saberes e informações
sem precedentes, que se restrinjam a seu próprio campo de atuação,
incomunicável com outros campos científicos e, portanto, incomunicante com a
sociedade que os concebeu e que deles espera respostas para seus problemas e
inquietações.
É com o espírito de combate ao fazer científico de gabinete – aquele que
não ultrapassa as paredes do laboratório – e à especialidade que, em 1929,
Lucien Febvre e Marc Bloch propõem uma renovação nos estudos históricos, o
que vai ocasionar uma verdadeira “revolução francesa da historiografia”
nos
dizeres de Peter Burke (1997) – e dar o impulso para o que hoje se conhece como
.
Como intuito primordial, Febvre e Bloch desejavam, com a criação da
revista
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que deu forma e divulgação
a suas ideias e interesses, romper os limites disciplinares e promover o diálogo
entre diferentes ramos do saber, além de aproximar os conhecimentos produzidos
pela história das problemáticas coetâneas.
Como desconsiderava os rígidos limites entre as disciplinas, propondo um
olhar global aos problemas e um intercâmbio de informações entre as distintas
esferas do conhecimento, Febvre conclamava suas plateias, com seu peculiar
discurso inflamado, a desvencilharem se das amarras disciplinares, que poderiam
tolher e limitar o fazer científico:
O primeiro grande combate dos
foi contra o espírito de
especialização, porém menor não foi sua luta contra a história historicizante. Se
se espera uma atitude interdisciplinar do historiador, no intuito de, por meio de
uma visão holística da realidade, poder problematizá la e compreendê la, não há
de se conformar com uma visão restritiva, que teime em considerar a história
como mero arrolar de fatos ligados aos grandes feitos de uma nação, às suas
conquistas
bélicas,
à
vida
de
seus
ilustres
representantes
políticos
e
governamentais.
Por meio dos pressupostos da
, as sociedades humanas
devem ser encaradas de modo amplo. Assim, não interessa apenas o governante,
mas também o governado; não interessa apenas a grande batalha, mas também o
modo de vida de quem combateu; não interessa apenas os sucessos econômicos
de uma nação, mas também as relações comerciais entre seus compatriotas. A
História não poderia mais se reduzir a crônicas de poderosos ou a relatos pontuais
sobre a vida de figuras proeminentes.
Ou a história ascende a este alargamento da visão do historiador – e, através dele, da dos seus contemporâneos – ou ela não será mais do que um jogo estéril, jogo de paciência para eruditos. Acredito ser esta a missão da História. (Ibid., p.117)
À história historicizante
opor se á, então, a história problematizante
proposta pelos
: ao analisar um dado fato social, devem se perscrutar lhe
os motivos, as causas, os desdobramentos, as implicações, a fim de buscar as
respostas
aos
porquês
socialmente
suscitados
e
elaborar
intervenções
cientificamente orientadas.
É que pôr um problema é precisamente o começo e o fim de toda a história. Se não há problemas, não há história. Apenas narrações, compilações. (Ibid., p.31)
Assim sendo, mais importante que a narrativa histórica tradicional, que
passa pelo “descobrimento” do Brasil e pela descrição dos períodos colonial,
nosso país, indagar o porquê de tal estado de coisas e buscar, em uma
perspectiva
multidisciplinar,
as
motivações
políticas,
sociais,
econômicas,
psicológicas para tal conjuntura. Na resposta obtida por meio da análise do
passado para a explicação de um dado do presente, pode estar a base para a
formulação de políticas compensadoras ou retificantes. É a sociedade oferecendo
os elementos para que a ciência os organize, os analise e retribua na forma de
soluções de problemas, pois “a ignorância do passado não se limita a prejudicar o
conhecimento do presente, comprometendo, no presente, a própria ação.
(BLOCH, 2001)
Dessa forma, os estudiosos da História deixam de ser arqueólogos e
expectadores de fatos passados, expostos em livros como peças de museu para
apreciação pública passiva, para serem atuantes na sociedade da qual participam
e produtores de dados capazes de possibilitar uma reformulação do presente.
Na busca por respostas aos desafios postos pela vida moderna, a partir das
proposições dos
, amplia se o conceito de documento histórico, que
ultrapassa o limite do texto escrito e vai encontrar em utensilagens diversas e em
constructos
multidiscplinares
o
material
necessário
para
a
elaboração
interpretativa do historiador.
Os textos, sem dúvida: mas todos os textos. E não só os documentos de arquivos em cujo favor se cria um privilégio – o privilégio de daí tirar, como dizia o outro, um nome, um lugar, uma data
;
uma data, um nome, um lugar – todo o saber positivo de um historiador indiferente ao real. Mas, também, um poema, um quadro, um drama: documentos para nós, testemunhos de uma história viva e humana, saturados de pensamento e de acção e potência... (FEBVRE, 1985, p.24)A partir de Febvre e Bloch e durante as três gerações dos
, a
unidade da concepção fundadora do grupo se manteve, por meio da defesa de
uma abordagem interdisciplinar dos fatos sociais que deve formular respostas às
situações problema apresentadas ao pesquisador, valendo se de documentação
reveladora de necessidades, expectativas, sentimentos e valores humanos não
pode ser desprezada.
Como era de se esperar, o potencial heurístico dos
– como
proposta multidisciplinar e multidocumental
vem contribuindo, desde sua
fundação, para o intercâmbio entre várias áreas do conhecimento e
para o
desenvolvimento de inúmeras ciências, dentre elas, a que mais particularmente
nos interessa: a Linguística.
A benfazeja aproximação entre Linguística e História não chega a ser
novidade, pois permeia as
reflexões e pensamentos dos colaboradores da
, desde seus primórdios. Para esses pesquisadores, as trocas
entre as duas disciplinas deveriam ser estimuladas, visto que as áreas e objetos
de pesquisas de ambas estavam intrinsecamente entrelaçados.
(...) que qualquer explicação lingüística comporta a consideração de factos múltiplos – e que não se pode dar conta da evolução de uma língua senão considerando as situações históricas e as condições sociais em que essa língua se desenvolveu. Assim, a lingüística faz apelo à história e pede lhe, para os fins que lhe são próprios, um auxílio desinteressado. Não se segue daí, inversamente, que estudos lingüísticos apresentem para a história o mais vivo interesse? (FEBVRE, 1985, p.158)
Dessa aproximação surgirá uma nova linha de estudos, em que História e
Linguística se auxiliam e se interpenetram, revelando fontes documentais
inusitadas, carregadas de ideias que tanto têm a comunicar ao mundo, facilitando
sua compreensão e, consequentemente, orientando as intervenções de que
necessita.
Sob inspiração de Febvre e Bloch e, posteriormente, de Braudel, Le Goff, Le
Roy e Chartier, que concebiam e conclamavam a conceber a história de maneira
interdisciplinar e a vislumbrar como objeto de análise histórica e científica as mais
variadas fontes documentais, viu se nascer o estudo das representações, o que
amplia ainda mais o já vasto manancial de fontes históricas, a partir dos
.
Todo conhecimento é imbuído pela visão de mundo de quem o elaborou,
portanto nunca se tem acesso ao fato passado , mas à representação cultural que
alguém lhe deu. O estudo de tais representações vai impulsionar a criação da
História das Mentalidades, que visa a analisar como determinada sociedade, em
determinada época, sob determinadas condições, deixou registradas suas
impressões sobre os mais variados assuntos, circunscritas às mais variadas áreas
do saber humano.
Passam a fazer parte do cabedal científico do historiador, a partir de então,
as próprias produções de cada campo de pesquisa. Assim sendo, não interessa
mais apenas os dados estatísticos com os quais a geografia possa contribuir para
o desenvolvimento da pesquisa de sua e de
outras áreas do conhecimento;
interessa também a visão de mundo do momento e do espaço onde tais dados
foram criados e analisados, que interesses moveram sua criação e registro. Não
interessa apenas a representação do fato linguístico por meio das tecnologias e
dos instrumentos linguísticos dos quais o homem tem se valido, mas também os
valores da sociedade que permitiu tal representação e com qual finalidade a fez.
(...) construindo se e aplicando se cada vez mais a novos objetos, a novos campos, a História busca identificar o modo como, em diferentes lugares e momentos, uma determinada realidade social é construída, interpretada e deixada para a posteridade. Nesse sentido, é preciso pensar essa história como um trabalho de representação, isto é, como são traduzidos as posições e interesses dos indivíduos que compõem a sociedade, como pensam que ela é, como agem ou como gostariam que ela fosse. (FÁVERO & MOLINA, 2004, p.138)
A análise das representações que uma sociedade faz de um determinado
dado social pode revelar muito mais que a própria representação intentou. Pode
intenções subjacentes às coerções sociais que impulsionaram
a criação do
contributo cultural.
E, para o historiador, idéias, instituições nunca são dados do Eterno; são manifestações históricas do gênio humano, numa determinada época e sob a pressão de circunstâncias que nunca mais se reproduzem.(FEBVRE, 1985, p.225)
No século XX, o nascimento da História das Ideias – as da Pedagogia, da
Psicologia, da Sociologia, da Geografia, da Linguística – traçará a possibilidade
de, por meio da análise e da interpretação das representações sociais, lançar luz
às
instigantes
indagações possibilitadas e engendradas pelo fazer histórico
problematizante.
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A linguagem humana suscita, desde muito antes do advento da Linguística
como ciência, no século XX, reflexões a seu respeito. O conjunto de obras
destinadas a registrar essas reflexões e todo o conhecimento
advindo dessas
considerações e desenvolvido a partir delas
produzido acerca da língua pode ser
arrolado pela História das Ideias Linguísticas.
Seja a linguagem humana, tal como ela se realizou na diversidade das línguas; saberes se constituíram a seu respeito; esse é nosso objeto. (AUROUX, 1992, p. 13)
Desse modo, são de interesse do pesquisador da História das Ideias
Linguísticas os instrumentos linguísticos
tecnológicos, como a gramática e o
dicionário. São também de capital importância para esse pesquisador as
instituições, os programas de ensino, as diretrizes, os documentos que versam
sobre a linguagem, os recursos midiáticos que abordam e visam a disseminar o
“bom uso” da língua, as ideias socialmente concebidas sobre a linguagem
linguísticas na literatura, visto que todas as ideias, acerca da língua, expressas
nesses espaços documentais guardam estreita relação com a sociedade que as
produziu e, em grande medida, as determinou, revelando conceitos, preconceitos
e interesses dessa mesma sociedade.
As causas que agem sobre o desenvolvimento dos saberes lingüísticos são extremamente complexas. Pode se notar conjuntamente: a administração dos grandes Estados, a literarização do idioma e sua relação com a identidade nacional, a expansão colonial, o proselitismo religioso, as viagens, o comércio, os contactos entre línguas, ou o desenvolvimento dos conhecimentos conexos como a medicina, a anatomia ou a psicologia. O purismo e a exaltação da identidade nacional com seu acompanhamento de constituição / preservação de um corpus literário (seja religioso ou profano), são, por exemplo, fenômenos quase universais na constituição, espontânea ou por transferência, dos saberes lingüísticos. (AUROUX, 1992,p. 28)
O presente trabalho visa a vincular a história do saber metalinguístico à
história da constituição da língua nacional, com o intuito de formular uma
explicação para o emprego generalizado
do pronome
como pronome de
segunda pessoa no português em uso no Brasil.
Orientando se por
essa fundamentação teórica, analisar se á o fato
linguístico na sua complexidade, recorrendo se para isso, às contribuições
interdisciplinares, buscando na história e na sociologia – cujas fronteiras nem
sempre estão bem delimitadas
as características fundamentais da brasilidade
que enveredaram a escolha pronominal. Além disso, por meio da análise das
representações linguísticas – literárias e gramaticais , procurar se á traçar o
confronto das forças centrípetas e centrífugas que atuaram na formação da língua
nacional, elemento maior da própria constituição da nacionalidade, entendendo se
como forças centrípetas aquelas que objetivam conferir à língua um caráter mais
homogêneo
e como forças centrífugas aquelas que, apesar de mecanismos
coercitivos, agem na constituição da diversidade, fato inerente a todas as línguas
naturais.
A fim de observar os métodos e limitações impostos ao pesquisador da
História das Ideias Linguísticas (Fávero e Molina, 2006), limitou se o trabalho à
análise de obras literárias e gramaticais do século XIX e XX, ambos momentos
cruciais para a afirmação de uma identidade nacional, que suscitou a asserção de
uma língua também nacional, repleta de peculiaridades e com um caráter
desvencilhador da matriz europeia que a originou. Com a
consciência da
impossibilidade de exaustividade, buscaram se obras de autores relevantes, sem
no entanto, ater se a nenhum critério de filiação teórica ou literária.
Além disso, as obras escolhidas foram analisadas, levando se em conta “a
intransponível distância espaço temporal entre o cenário no qual viveram os
personagens que produziram as obras que constituem objeto de estudo e o
contexto em que se produz o trabalho” (FÁVERO, 1996, p.16), visto que a
conjuntura passada, em parte dedutível, jamais será plenamente reconstituível.
(...) pode se dizer que o estudioso da História das Idéias Lingüísticas, mais que localizar a fonte de um pensamento, deverá analisar, no contexto em que foi criada aquela idéia, como frutificou, foi compreendida, difundida, interpretada e representada, mergulhando em sua profundidade, enxergando os fios que a constituíram e todos os seus reflexos, favorecendo uma melhor compreensão da lingüística atual. (FÁVERO & MOLINA, 2006, p. 29)
Valendo se, então, de uma análise documental, na qual se conciliarão os
olhares do historiador e do linguista, buscar se á, neste trabalho, a resposta a uma
indagação do presente que se faz possível por meio de uma reorganização do
passado, cujos documentos manifestam modos de ser e de pensar, de agir, reagir
e representar.
A história recolhe sistematicamente, classificando e agrupando os fatos passados, em função de suas necessidades atuais. É em função da vida que ela interroga a morte. Organizar o passado em função do presente: assim se poderia definir a função social da história.” (LE GOFF, 2003, p.26 )
Dados históricos, sociais, linguísticos e gramaticais serão organizados com
que levaram ao uso consolidado do pronome você em território nacional e,
paralelamente, que forças atuaram em sua legitimação
ou não – em
6
Ao filiar se teoricamente à História das Ideias Linguísticas não se pode
analisar um fato da língua, qualquer que seja ele, de um ponto de vista
estritamente linguístico. A análise interdisciplinar é uma condição
#
,
quando se adere a uma corrente de investigação científica tributária da História
das Mentalidades, por sua vez nascida da corrente histórica que revolucionou a
historiografia na França no do séc XX, a
(...) qualquer explicação lingüística comporta a consideração de fatos
múltiplos e não se pode dar conta da evolução de uma língua senão
considerando as situações históricas e as condições sociais em que essa
língua se desenvolve.(FEBVRE, 1985, p.158)
Assim sendo, concebe se a língua como palco dialógico em que coerções
sociais as mais diversas atuam. Tais coações motivam escolhas linguísticas,
elegem e preterem fórmulas comunicativas, arcaízam construções e vocábulos,
inovam e atualizam instrumentos linguísticos, sintonizando a língua com o mundo
circundante, pois “sendo a língua o fato social por excelência, ela reflete com uma
fidelidade única, o estado geral da civilização nas diversas épocas” (Ibid, p.182).
Com o intuito de explicar um fato linguístico atual – o uso
do
no
tratamento
da
segunda
pessoa,
no
português
brasileiro
–
buscou se,
diacronicamente, nas relações entre contextos históricos e sociais e escolhas
pronominais de tratamento do interlocutor, um fio condutor capaz de elucidar o
sucesso dessa opção, em território nacional, atendo se assim a um dos pilares da
: a reconstrução analítica de fatos passados com vista à
A Idade Média, conduzida ao posto de berço do Ocidente pela historiografia
do séc. XX, especialmente representada por medievalistas ligados à
"
suscitará a primeira reflexão sobre as estreitas relações entre estruturas
sociais e escolha do tratamento do interlocutor.
-
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A representação medieval concebida pela historiografia do século XX não
se pretende definitiva, visto que feriria dessa maneira um dos principais aportes
que a fundou e que regem este trabalho: as formas de representar o mundo são
frutos de uma sociedade, em uma determinada época, limitada por toda sorte de
imposições sociais, políticas, psicológicas, ideológicas. Desse modo, dos já
célebres dizeres de Lucien Febvre , a História é filha de seu tempo, deduz se seu
caráter provisório e mutável.
No entanto, a Idade Média que a atual historiografia nos tem legado
desconstrói algumas representações medievais com as quais se está habituado. A
própria denominação do período é hoje utilizada, convencionalmente, sem que se
vincule a esse espaço de tempo nenhuma característica desdenhosa ou
depreciativa, como se fez por longo tempo.
O século XX assiste a uma reabilitação da Idade Média, não mais encarada
como um período de trevas, de retrocesso, de atraso religioso, de criação artística
grosseira e de produção científica desprezível. Ora, foi nesse período, marcado
pela insegurança e por uma estabilidade que essa própria insegurança ajudou a
manter, em que germinou tudo que veio a se conceber como moderno: o
protestantismo, a formação dos Estados absolutistas, o capitalismo comercial, as
evoluções tecnológicas que permitiram as grandes navegações, a divulgação da
Até mesmo a delimitação da Idade Média é hoje contestada, aceitando se
os mil anos entre os séculos V e XV como meros limites institucionais
questionáveis e flexíveis, de acordo com a abordagem (política, religiosa,
econômica, geográfica) que se desenvolva.
Embora, segundo penso, o núcleo central da Idade Média esteja situado nos
três séculos e meio transcorridos entre o ano mil e a Peste Negra, atualmente
eu tenderia a enquadrar esta curta Idade Média numa longa Idade Média que
se estende aproximadamente do século 3º até meado do século 19, um
milênio e meio em que o sistema essencial continuou a ser o feudalismo,
mesmo que se possa distinguir fases por vezes contrastantes. (LE GOFF,
2005, p.11)
Não cabe ao presente trabalho tentar estabelecer, como critério de análise,
um limite cronológico para a Idade Média, mesmo que tal limite partisse de uma
abordagem linguística. Relevante será traçar um panorama daquilo que veio a se
consubstanciar como caracterizador de um período coeso, com atribuições
particulares que o coloca em oposição a outros períodos com características
distintas. Período esse, cujas raízes encontram se na Antiguidade e cujo reflexo
ainda se faz sentir nas sociedades ocidentais hodiernas.
Nesse sentido, faz se, na Idade Média, um corte sincrônico, a fim de
enfocar lhe o momento em que suas estruturas sociais se apresentam, ao menos
na aparência, estanques, embora escondam uma mobilidade silenciosa e rasteira,
que é o próprio motor da História.
É esse recorte que permitirá ver constância e imobilidade em um período
cuja complexidade não se poderia reduzir por meio de uma análise simplista e
homogeneizante, mas que manteve uma estrutura, mesmo que superficial e
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Apesar da onda medievalista que, durante o século XX, atualizou as
representações acerca da Idade Média, procurando analisá la, sem julgá la, além
de propor novos problemas e novas explicações a problemas já postos, algo
parece inquestionável e unânime para os historiadores que se debruçam sobre o
período: ele foi, de fato, essencialmente agrário, feudal e cristão.
O mundo romano, cujas estruturas ruíram com as invasões bárbaras,
assiste a uma fuga em massa da população para o campo, já que os ambientes
citadinos eram atraentes para os invasores. Essa fuga provocou a formação de
uma estrutura econômica baseada em grandes propriedades rurais fechadas e
pretensamente autossuficientes.
A sociedade romana,
hierarquizada, reorganiza se e contrapõe dois
segmentos sociais: os grandes proprietários de terra e os camponeses
despossuídos,
já que as classes intermediárias rurais e urbanas desapareceram.
Dentre os latifundiários estão as aristocracias laica e eclesiástica,
descendentes das mesmas famílias elitistas de outrora; dentre os já outrora
despossuídos vieram juntar se as camadas médias da organização econômica
pré bárbara. Nesses estratos se infiltraram, com relativa facilidade, os bárbaros ,
cuja organização social também era hierarquizada – formada por ricos e pobres,
fracos e poderosos .
Essa nova estruturação social
agrária, feudal e cristã
irá possibilitar, por
confluência de interesses, o equilíbrio mantido durante um vasto período: os ricos
precisam garantir quem trabalhe suas terras e sustente suas necessidades; os
pobres submetem se em busca de proteção e subsistência; e
a Cristandade
legitima a imobilidade social, por meio de um discurso que a descreve como a
Fato social, a ruralização é o aspecto mais espetacular de uma evolução que
vai imprimir à sociedade do Ocidente medieval um traço essencial que
permanecerá arraigado nas mentalidades por muito mais tempo do que na
realidade material: a compartimentação social e profissional. A fuga de certos
ofícios e a mobilidade da mão de obra rural tinham levado os imperadores do
Baixo Império a tornar obrigatoriamente hereditárias certas profissões, e
encorajado os grandes proprietários a fixar na terra os colonos que
substituíam os escravos – cada vez menos numerosos. A Cristandade
medieval fará do desejo de renegar seu próprio estado um pecado grave. Tal
pai, tal filho, será a Lei herdada do Baixo Império romano. (Ibid. p. 35)
A sociedade medieval, assim configurada, regida pelo
contrato de
vassalagem, que sela a submissão de um servo a seu suserano, a quem, em troca
de proteção e sustento, deve absoluta fidelidade, além de conformar se à função
da sua ordem social – a de trabalhador braçal, de produtor – na sociedade
imobilizada de que participa, por si só já faz imaginar a existência de uma relação
assimétrica marcada pela reverência do mais humilde em relação ao mais
poderoso.
As representações iconográficas ou literárias da Idade Média corroboram
essa tese, reforçando a postura de servidão e submissão que marcaram o
período. Se as estruturas sociais românicas motivaram
se não condicionaram
representações artísticas, com certeza também o fizeram em relação à linguagem
cotidiana.
Especialmente no que concerne às formas de tratamento do interlocutor em
uso na Idade Média, a imutabilidade social reflete se em um sistema simples e
estável: o pronome
, utilizado na relação entre iguais; e o pronome
empregado nas relações assimétricas, pelo hierarquicamente inferior dirigindo se
ao superior
na Idade Média, o detentor do poder econômico, religioso e político.
É evidente que essa simulação do tratamento medieval só leva em conta a
formais, em situações que exprimam respeito ou ironia, e também as opções por
modalidades informais, utilizadas para a expressão de desprezo, exasperação, ira.
Parafraseando Bakhtin, é a língua o mais sensível indicador das mudanças sociais
e também temperamentais, psicológicas, emocionais.
Dirigia se, portanto, o servo ao seu senhor ou o vassalo a seu suserano por
meio de
e recebia, em contrapartida, do mesmo interlocutor,
configurando
uma relação de poder, que estendia sua assimetria para dentro das classes
sociais, submetendo o sexo feminino ao masculino e os filhos aos pais.
Dentro das classes senhoriais, houve uma constante disputa por autoridade
entre a nobreza e o clero, ou seja, entre a aristocracia laica e a eclesiástica, com
uma pendência favorável a esta, sem que isso, aparentemente, se refletisse nas
formas de tratamento entre as classes dominantes, visto que não há alusões a
esse fato nos estudos sobre formas de tratamento medievais.
Mas, como já foi mencionado, sob o aparente manto da rigidez e da
imobilidade medievais, caminhava inexoravelmente a história, que se desenvolve
por meio de aparentes rupturas, numa continuidade imanente ao humano, cujo
traçado leva, inevitavelmente, à transformação da realidade.
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A instabilidade do poder facetado, distribuído nas mãos de muitos senhores,
ao final da Idade Média, fez surgir o Estado moderno centralizado e suas
instituições – jurídicas, políticas, tributárias
como formas de garantir o poder da
antiga aristocracia. Esse fator, aliado a outros de ordem econômica, cultural e
tecnológica, configura, em diferentes épocas e em diferentes regiões, o período
Portugal, estado que mais cedo se centraliza e se emancipa no grupo de
estados remanescentes da România Ocidental, por características conjunturais
diversas,
logo reúne condições para se tornar a primeira potência da Idade
Moderna.
A ascensão da burguesia no século XIV foi um dos motivos que
impulsionou a empresa naval e colonizadora portuguesa; porém, aliados aos
interesses burgueses na expansão marítimo comercial estavam os interesses dos
monarcas, dos nobres, dos religiosos e até do povo miúdo, motivo determinante
do sucesso dessa empreitada lusitana .
Apesar da centralização do poder em Portugal e de seu caráter mediador e
conciliador, à estabilidade medieval sobrevém a instabilidade provocada pelos
novos arranjos sociais. A nobreza portuguesa, acostumada com seus privilégios
garantidos pelas instituições medievais e supostamente eternizados pela
legitimação religiosa
se percebe ameaçada pela expansão burguesa, cuja
formação em Portugal tanto teve de precoce quanto de efêmera.
Assim como, na esfera política, se forjaram
instituições para uma
manutenção relativa da ordem vigente – o poder concentrado nas mãos dos
nobres , forjaram se também normas de tratamento: a aristocracia tenta estancar
por meio da linguagem o que não conseguia estancar socialmente, exigindo para
si formas de tratamento que a diferenciasse de qualquer elemento do terceiro
estado, por mais endinheirado que ele fosse. No entanto, a Renascença traz
consigo uma mobilidade no topo da sociedade, provocando, especialmente em
Portugal, a união da nobreza à burguesia, pois aquela precisava reconstituir ou
reconquistar seu poder econômico e esta tinha um arraigado desejo de
nobilitação. Fundava se assim um conceito de aristocracia, em Portugal, que
pouco privilegia os direitos consanguíneos ou hereditários e, em contrapartida,
valoriza e possibilita, como em nenhum outro país, o enobrecimento por méritos
Tendo recebido do latim o dual sistema pronominal
, de uso
abrangente e extensivo, Portugal também herdou as formas de tratamento
cunhadas no período medieval.. Essas formas visavam a estabelecer uma
distância entre súditos e soberanos, por meio de um tratamento reverencial,
representado por uma construção perifrástica, cujo efeito era o de não se dirigir
diretamente ao nobre interlocutor, mas a um atributo seu. Ora, era de se esperar
que em sociedades de estrutura feudal e agrária, como as que prevaleceram na
Idade Media pré absolutista, um dos atributos da classe dominante fosse a
senhoria, isto é, a qualidade daquele que detém a posse da terra; e, se nessas
sociedades, os laços de dependência pessoal eram intensos, haveria de o mais
humilde contar com a mercê de seu superior hierárquico. Desse modo, de duas
características relevantes do período medieval – a dependência pessoal e a posse
da terra – surgem os duas formas de tratamento mais populares da Renascença
portuguesa:
$
.
Se o pronome
atendeu a uma necessidade de distanciamento entre
povo e nobres, durante um bom período da Idade Média, a Renascença verá
surgir, nos dizeres de Biderman (1972 1973), um maneirismo de tratamento,
recuperando e multiplicando os usos de formas derivadas de substantivos
abstratos, cujo emprego se alastrará, em Portugal, por todas as camadas sociais,
a partir da infiltração de elementos não nobres na aristocracia.
Ao antigo e estável sistema dual medieval – tu / vós
sobrepõe se,
portanto, o complexo e instável sistema renascentista, o que transforma o modo
de tratar o interlocutor e o tratamento recebido socialmente em uma contínua
preocupação dos portugueses, que se estende até os dias atuais, apesar da
tendência democratizante ocidental, que afeta as relações interpessoais,
tornando as mais solidárias e menos exigentes de soluções linguísticas
As mudanças sociais fizeram, de fato, emergir novas formas linguísticas de
direcionamento ao interlocutor, que denotassem as múltiplas intenções e o
dos falantes. No entanto, o sucesso que as formas reverenciais de tratamento
atingiram em Portugal não pode ser explicado somente por parâmetros sociais e
econômicos.
Há
características
psicológicas,
emocionais,
temperamentais,
axiológicas do povo português que atuaram nesse êxito. Se assim não o fosse,
todos os povos que viveram situações semelhantes às que Portugal vivenciou
teriam desenvolvido o mesmo maneirismo no tratamento, o que não aconteceu,
pois:
É bem conhecida a estranheza que causa no falante de outra língua moderna
européia a complexidade do sistema das formas de tratamento em português
– isto é, das formas que, em Portugal, um interlocutor usa para se dirigir a
outro interlocutor, a primeira pessoa do discurso (para empregar termos
gramaticais), à segunda pessoa do mesmo discurso. (LINDLEY CINTRA,
1972, p. 8)
Assim sendo, há de se procurar, também, no caráter português e na
mentalidade portuguesa, as motivações para a disseminação dos modos de
tratamento reverenciais em Portugal, especialmente da expressão
expandida de forma mais livre e democrática e de emprego mais generalizado.
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De acordo com Santos Luz (1956), o primeiro registro de
se
dá, na corte portuguesa, em 1331. Portanto, em Portugal, no século XIV, esse
tratamento já existia em sua função inicial, o direcionamento ao monarca. Como o
país se consolida em 1139, com Afonso I se proclamando rei de Portugal,
subentende se que o tratamento real ainda se contentava, no século XII, com o
Cintra (1972) corrobora a tese de que a forma
já aparece nas
cortes de 1331 e acrescenta que
$
surge a partir de 1442, em
tentativa de
substituição à primeira, já desgastada e de emprego não mais
restrito.
De origem latina anterior à centralização do poder em Portugal, essas
formas entram no país por meio de empréstimos do italiano – Vossa Senhoria – e
do castelhano – Vossa Mercê
e logo conhecem em solo lusitano intensa
aceitação.
De tratamento exclusivo ao rei, no começo do século XIV,
passa, ainda no mesmo século, a tratamento extensivo à nova aristocracia
formada pela Revolução de Avis, que, ao se miscigenar com as camadas
socialmente mais elevadas do terceiro estado, pretende deste se distinguir por
meio de diversos comportamentos, inclusive linguísticos, evidenciando a pretensa
superioridade de sua estirpe, “demarcando” seu território e forjando uma
estabilidade social que estava irremediavelmente abalada.
A miscigenação social entre a nobreza e as camadas mais elevadas do
terceiro estado, a partir da revolução de 1383 1385, foi, aliás, o principal motivo
que levou, em Portugal, ao uso cada vez mais ampliado de algumas dessas
fórmulas de tratamento, pois os burgueses, mesmo os que não se enobreciam,
por meio de casamentos ou pela concessão de títulos, julgavam se dignos de
tratamento diferenciado, à medida que expandiam seus poderes econômicos e
políticos.
Essa dinâmica inter relação entre fatores sociais e verbais pode ser
particularmente visível no sistema de tratamento do interlocutor, já que esse
sistema representa talvez da forma mais direta alguns dos fundamentos
axiológicos da organização do status social. Assim, se uma sociedade
passou ou está passando por rápidas mudanças que se refletem nas
relações interpessoais possíveis, pode se esperar que mudanças lingüísticas
na área do tratamento venham a ocorrer, com possíveis conseqüências para
Logo esse sentimento de merecimento nobilitante e até de pertinência à
nobreza se alastraria das camadas superiores para as camadas mais populares
da sociedade, levando consigo o tratamento reverencial, então a todos concedido,
algo que tanto estranhamento causara ao estrangeiro em Portugal, como fica
evidente em várias alusões históricas à fidalguia do povo português. De acordo
com Godinho (1997), “ a mania de ostentação atingira as proporções duma
loucura coletiva. Das classes mais elevadas propagava se ao povo.”
O século XV assiste ao desgaste e à expansão de
e suas
variantes entre a população não aristocrática; a aristocracia – ou os que se
julgavam aristocratas – passa a exigir
$
, entre os séculos XV e XVI.
já caíra nas graças do povo, definitivamente, em quinhentos, o que
generalizou seu uso, mas não dilapidou, ainda, seu caráter respeitoso entre as
camadas populares. Já, no direcionamento a
e entre aristocratas era tido como
vulgar e expressivo, especialmente em suas formas abreviadas, do pouco valor
que se atribuía a quem se dirigia a palavra.
Essa apropriação das formas de tratamento pelas classes populares,
resultado da associação do sentimento de fidalguia português ao fato histórico
social da aristocratização das camadas superiores do “terceiro estado”, fez do uso
do tratamento pessoal assunto de lei, levando à formulação da primeira
pragmática, no final do século XVI, a legislar sobre os modos como se devia se
dirigir ao interlocutor, e de uma segunda, que atualizava a primeira, no século
XVIII, visto que a mais antiga se mostrou inócua em seu caráter disciplinador.
As maneiras nominais como há que dirigir se a outrem, e que esse outrem
pode exigir foram reguladas por lei em 1597 e 1739; proibia se não só dar
tratamento, como mesmo aceitá lo, às pessoas a quem não era devido.(Ibid,
Interessante ressaltar que a mania de ostentação dos portugueses se fazia
notar pelos trajes que usavam, pelos séquitos de escravos dos quais se faziam
seguir, pelos adornos das casas e, claro, pelo emprego do tratamento cortês.
Assim como se apropriou da forma de tratamento dada inicialmente ao rei e
posteriormente aos nobres, o povo também lhes imitava a maneira de vestir e de
se portar socialmente.
As pragmáticas
sejam aquelas que regulavam a suntuária, restringindo,
por exemplo, o uso de seda apenas pelos nobres, sejam as que regulavam o
tratamento destinado ao interlocutor
visavam a atender o desejo das classes
dominantes de manterem seu
social, diferenciando as da gente comum,
mas, como não se muda o comportamento de um povo por meio de decretos
oficiais, todas foram vãs, especialmente aquelas destinadas a legislar sobre a
linguagem, pois, conforme Fiorin (2000), “nenhum domínio linguístico, a não ser a
ortografia, curva se a decretos.”
As pragmáticas sobre o tratamento, como todas as leis, tinham intenções
prescritivistas. No entanto, malogrado seu intento, acabaram por servir de
documento denunciador, mesmo sem ser seu ideal, da problemática social
relacionada às formas de tratamento, ou seja, da tentativa de manutenção do
#
, por meio de imposições linguísticas, nos séculos em que foram
promulgadas.
Essas Leis de Cortesia
nome dado às pragmáticas ou decretos reais de
1597 (de Felipe II) e 1739 (de D. João V) já não fazem referência a
dado que faz dos decretos instrumentos mais eficazes para a reconstrução da
história do pronome, que para a realização de sua intenção reguladora dos modos
de tratamento, mesmo porque até
$
%&
formas
com as quais as leis se preocupavam, restringindo seu emprego
também se
popularizaram entre os portugueses, sem, evidentemente, o sucesso e o alcance
O fato de não se legislar sobre a forma reverencial
demonstra
que, à época da publicação das leis, seu emprego já era de tal forma
generalizado,
que frustraria qualquer tentativa inibidora ou reguladora. Nesse
período de uso intenso, os fidalgos exigiam sua forma inicial, pronunciada
integralmente, banindo as foneticamente reduzidas, mas entre o povo, conviviam
as formas derivadas, inclusive aquela que tanto prestígio teria entre lusófonos de
todas as classes sociais, o pronome
.
Embora já de domínio popular, a expressão
continuou sendo
usada entre os nobres, denotando status social sempre inferior à
$
até o século XVIII, época em que já aparece com tom arcaizante.
A expressão
tem seu surgimento no século XVII, como uma das
formas resultantes dos desgastes fonético e semântico a que foi submetido o
outrora nobre tratamento cerimonioso,
. Concorrendo certamente
com rivais procedentes da mesma origem, o
se afirma como tratamento do
interlocutor em Portugal e no Brasil. Lá, como pronome intermediário entre
e o
senhor; aqui, como legítimo representante da segunda pessoa do discurso,
desbancou tanto as rivais corroídas quanto a originária, que deixou de circular
entre o final do século XVIII e início do século XIX..
O primeiro registro escrito de você data de 1666, em
'
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(, de
Francisco Manuel de Melo, o que nos faz concluir que sua circulação oral seja
anterior a essa data, em Portugal. No século XVIII, já conta com a supremacia da
escolha como tratamento não íntimo entre as camadas mais populares e, em
efeito “bumerangue”,
após a arcaização de
passa a ser usado
pelos nobres e pela alta sociedade.
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Até o século XVII, as observações acerca da língua portuguesa versam
sobre a vertente europeia. A explicação para isso encontra se no fato de que, nos
primeiros séculos coloniais, não se pode falar ainda em constituição de um
conceito de brasilidade, já que os primeiros colonos dispersos no imenso território
se restringiam a relações delimitadas geograficamente, pouco ou nada se
comunicando com outras regiões, pois, como reclamavam os primeiros jesuítas,
era mais fácil ter notícia de Portugal que de outra parte do Brasil.
Grosso modo, havia, na América portuguesa, nos séculos iniciais da
colonização, os sistemas familiares fechados do Nordeste canavieiro e o
aventureirismo
próprio dos portugueses que desembarcavam ao Sul do país.
Objetivando superar o clima inóspito e a adversidade cultural que o contato com
outra “raça” desencadeava, as línguas gerais prevaleciam na restrita comunicação
colonial até o século XVII.
Em meados do século XVIII, a língua que viria a se tornar hegemônica no
Brasil ainda não vingara. Somente na segunda metade desse século começa a
haver observações sobre a língua portuguesa em uso no Brasil, que, agora
obrigatória por meio da imposição da política pombalina, já começa a apresentar
singularidades em relação à língua portuguesa falada em Portugal.
É interessante, a esse propósito, estudar a maneira como é apresentada a
personagem do brasileiro no teatro português da segunda metade do século
XVIII e dos primeiros anos do século XIX. Trata se do brasileiro rico de
origem européia, chamado quase sempre ‘mineiro’. A primeira alusão à
maneira de falar desse tipo de personagem aparece numa peça de 1788 ()
* % + ,. É necessário, no entanto, esperar ) #
ou ) - * , de Manuel Rodrigues Maia (comédia transmitida por
um manuscrito da Biblioteca Nacional de Paris copiado em 1818, mas que
caracterizadores da língua da personagem : + (diga me), * (de lá),
emprego generalizado de você, etc. (TEYSSIER, 2001, p. 96)
Sabendo se que a maior
parte dos colonos portugueses que vieram ao
Brasil pertenciam às camadas populares e que, dentre os indivíduos dessa
camada, era corrente desde o século XV o emprego de
, pode se
concluir que, desde muito cedo, essa forma desembarcou no Brasil, ao lado do
denotador de intimidade e proximidade.
Durante os séculos XVII e XVIII, quando se intensifica a migração de
portugueses para o Brasil, atraídos pela descoberta das minas de
ouro e
diamantes, já era corrente entre as populações pobres portuguesas o emprego
de
, que ainda guardava em Portugal, apesar do evidente desprestígio social
entre as camadas mais elevadas, um caráter distanciador e não íntimo, que
permanece, em território lusitano, até os dias atuais.
Cabe determinar o que levou à dissociação entre o sistema de tratamento
português e brasileiro, fato documentado a partir do século XVIII, em que, como
visto, já há alusões à opção majoritária brasileira
por
de acordo com
Teyssier (2004).
A partir dos primeiros momentos do processo colonizador, chegou ao
território brasileiro várias formas de se dirigir ao interlocutor: tanto o
quanto o
e o
, além de outras variantes de
Quando, no século XVIII, a língua portuguesa finalmente torna se
preponderante
no
Brasil,
já
se
arcaizava
e
tendia
ao
desaparecimento na linguagem oral, mesmo em Portugal, cedendo espaço às
formas fonética e semanticamente corroídas, dentre as quais, a mais bem
sucedida –
Portanto
teve caminhos similares em ambos os
países, saindo de circulação em períodos semelhantes. Resta entender o motivo
senhor – com sua gradação semântica, do mais íntimo ao menos íntimo; do mais
solidário ao mais hierárquico; do mais irreverente ao mais polido, além do êxito de
%&
.
e, no Brasil, um sistema dual – você ou tu, o senhor , com
oposições ao invés de gradações.
Em primeiro lugar, a disputa por formas de tratamento expoentes de prestígio
social ocorria nas camadas mais elevadas da sociedade portuguesa. Nas
camadas populares, universalizou se o emprego de
, cujo uso
intenso levou à erosão já aludida. Vossa Mercê já traduzia o respeito diferenciador
de um
entre os mais humildes e já lhes satisfazia a vaidade, qualidade própria
de qualquer português. É por esse motivo que não houve no Brasil o êxito que
%&
, tratamento requerido pela aristocracia, teve em Portugal. Ora,
os setores mais elevados da sociedade portuguesa estavam envolvidos com os
negócios na Ásia, até então mais promissores que os do América. Restou para a
colonização brasileira a grande massa de desprovidos, que vislumbravam no
continente americano a possibilidade de ascensão social, que não viam na terra
natal. Vossa Excelência não fazia parte do repertório dessa camada social, o que
explica o fato de esse tratamento, no Brasil jamais ter tido lugar fora de situações
protocolares, como por exemplo, nas audiências do senado federal. Mesmo em
entrevistas com o presidente da República, contenta se com um respeitoso
Se a exposição de qual parcela da sociedade portuguesa veio ao Brasil
explica o insucesso de
%&
em território nacional, não explica, no
entanto, a forte concorrência entre você e
, no direcionamento íntimo ao
interlocutor, fato não observado em Portugal, nem dentre os mais humildes.
Na procura por fatores condicionantes do bem sucedido emprego do
pronome
, no Brasil, chegou se a facetas do caráter português pouco
conhecidas entre brasileiros, cujas características psicológicas e sociais, muitas
planejamento, desprezo à hierarquia, tendência à simetrização das relações –
creditavam se aos elementos africano e indígena.
Por mais que esses dois últimos elementos fundadores
da chamada
brasilidade tenham contribuído para dar ao caráter e à língua brasileiros suas
feições atuais, a realidade é que, sem dúvida, nesse processo hibridante, a
contribuição portuguesa sobrepuja as demais.
É herança lusitana nosso “amor” ao conhecimento superficial e de
aparência, como bem retrata Machado de Assis em
/ *
0 1
. É lusitana nossa mania nacional de tratar filhos e filhas por príncipes e
princesas, de nomear estabelecimentos comerciais com títulos de nobreza –
)
2
, resquício de nosso passado colonial e
monárquico e, mais que isso, produto do nosso herdado sentimento de fidalguia e
desejo de nobilitação, que paradoxalmente, faz o brasileiro buscar ser nobre e
solidário: uma nobreza à portuguesa, aquela que não raro come à mesa com a
criadagem.
A fatia da população portuguesa que se desloca ao Brasil já havia sido
contaminada com a tão aludida mania de ostentação e fidalguia das classes
aristocratas portuguesas. O desejo de nobilitação era comum a todo humilde
português que buscou fora de seu país a chance de enobrecer se por meio das
novas possibilidades comerciais que se desenvolviam e da consequente
mobilidade social, muito mais flexível aos desprovidos, que em sua terra natal.
Não só a burguesia urbana mas os próprios labregos deixavam se
contaminar pelo resplendor da existência palaciana com seus títulos e
honrarias. (BUARQUE DE HOLANDA, 1995, p. 36)
Pertencer à nobreza de direito ou à de fato era aspiração corrente de toda a
sociedade, como no caso dos senhores de engenho no Brasil colonial. Assim,
freqüentemente desejava o enriquecimento não como um fim em si
,
mas como meio de enobrecimento, interrompendo o ciclo capitalista poupançainvestimento e direcionando seus recursos para a compra de títulos
nobiliárquicos, cargos enobrecedores, terras improdutivas e palácios
dispendiosos – aquilo que Fernand Braudel chamou de ‘traição da burguesia’
a seus ideais supostamente capitalistas. Este fenômeno, particularmente
intenso em Portugal