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georges
didi‑huberman, o que nós vemos, o que nos olha.
porto: dafne editora, 2010 (1992)
cristina vasconcelos de almeida Instituto de História da Arte
Faculdade de Ciências Sociais e Humanas Universidade Nova de Lisboa
PRECIPITAR O OLHAR PELO PONTO DE DESASSOSSEGO:
A experiência entre sujeito e objecto em O que nós vemos, o que nos olha de Georges Didi-Huberman
Atravessando o pensamento de diversos autores (Husserl, Edwin Straus, Merleau- -Ponty, Sigmund Freud, Carl Einstein, Walter Benjamin, Jacques Lacan, Jacques Derrida, George Bataille, Hegel), Didi-Huberman (n. 1953) discorre sobre o com- plexo jogo de inter-relações objecto/sujeito. Frente ao objecto, o sujeito olha e é olhado, expõe-se e é exposto. O objecto não se apresenta como uma peça mo- nolítica com ênfase num interior/exterior formais, mas sim como uma entidade fracturável (e fracturante) na qual se rasgam aberturas improváveis por onde se precipita o olhar em desassossego.
Partindo de obras concretas inseridas na corrente minimalista (Donald Judd, Ro- bert Morris, Tony Smith) e analisando os discursos teóricos que as acompanham ou contrapõem (nomeadamente Art and Objecthood (1967) de Michael Fried), Didi-Huberman debruça-se sobre a questão da “experiência do ver”, pondo em evidência a utopia da afirmação de Frank Stella “What you see is what you see” e lançando ao leitor o desafio de questionar a entidade do minimalismo enquanto tal.
Ao admitir que aquilo que vemos nos olha, Didi-Huberman não pretende conferir ao objecto propriedades antropomórficas, mas antes direccionar a sua reflexão para a raiz instintiva do acto de “ver”, cerne da abordagem do sujeito ao objecto, confrontando-nos com a impossibilidade da existência de “um olho puro, um olho sem sujeito”. Perante o facto de “todo o olho traz[er] consigo o seu invólucro”, o historiador de arte enfrenta constantemente o desafio de deixar que uma brecha se abra nesse invólucro, permitindo que o que o olha abra um fosso naquilo que vê. É partindo da ideia-chave de uma “inelutável cisão do ver” que o autor aborda
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a experiência do sujeito face ao objecto, referindo a atitude do homem da crença (“o que nos olha resolver-se-á mais tarde”) face à do homem da tautologia (“o que vemos não nos olha”). Aparentemente opostas, estas “experiências do olhar” entre um luto e um desejo partilham uma “fantasmática do tempo”, uma “heurística do tempo”, entre um limite que se apaga e um limiar que se abre.
A porta, o muro, o labirinto, apresentam-se neste contexto como imagens ineren- temente dialécticas na sua dúplice condição de obstáculo e abertura. Uma aber- tura condicional, regulada para um infinito, que se mostra apenas para indicar que se deslocou mais além, mantendo-se à distância quanto mais nos aproximamos.
Enraizado nesses motivos seculares (a porta, o muro, o labirinto), o sentido da imagem dialéctica da modernidade permanece continuamente em aberto. Entrar no lugar paradoxal da imagem é deixar-nos incorporar pela própria imagem, tornar carne o nosso olhar. A visualidade absoluta cede perante uma apreensão sensorial mais vasta.
A compreensão da dupla distância entre observador e observado assenta numa revisitação do conceito benjaminiano de aura, que Didi-Huberman não reduz a uma
“fenomenologia da fascinação alienada a tender para a alucinação”, a uma “esfera da ilusão pura e simples”, antes descrevendo-a como “um espaçamento trabalhado e originário do observador e do observado, do observador pelo observado”. Referin- do o pensamento de Catherine Perret, Didi-Huberman considera a aura como uma
“instância dialéctica”, facto que lhe permite afirmar que a noção benjaminiana de aura não é contraditória apesar de nela convergirem: uma crítica à aura enquanto valor de culto, fenómeno de crença; uma melancolia crítica que encara o “declínio da aura sob o ângulo de uma perda, de uma negatividade esquecida em que a be- leza tende a desaparecer”.
Segundo o autor, há uma dupla distância dos sentidos (entendidos enquanto campo sensorial – óptico, táctil) e dos sentidos (entendidos como um campo semiótico), sendo a imagem dialéctica a entidade que permite estabelecer uma ligação entre estas duplas distâncias. Partindo das noções benjaminianas de origem (Ursprung) e de génese (Entstehung), afirma que tal como a imagem dialéctica, essa ligação é originária (“não está na imagem de forma logicamente derivada, nem ontologi- camente secundária, nem cronologicamente posterior”): tanto imagem dialéctica como as possíveis ligações entre sentidos surgem como um sintoma, um “redemoi‑
nho no fluxo do rio”, sendo intrinsecamente críticas.
A dimensão “crítica” da imagem dialéctica desdobra-se numa “dimensão de crise e de sintoma” (a perturbação do “redemoinho no fluxo do rio”) e uma “dimensão de análise crítica” que põe em evidência uma estrutura que se encontra continuamen- te em transformação, produzindo “formas em formação”, “efeitos de deformação perpétua”: a imagem dialéctica é ambígua, nela confluem a catástrofe, o choque, entretecidos na perturbação, e o ressurgimento súbito de algo tornado visível pela transformação. A dimensão crítica da imagem dialéctica é um trabalho crítico da memória, feito “no confronto com tudo o que resta como com o índice de tudo o
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que se perdeu”. Razão pela qual, Didi-Huberman afirma que a oposição da noção de aura à de traço não é assim tão polarizada como poderia pensar-se.
Na obra O que nós vemos, o que nos olha, a experiência entre sujeito e objecto desencadeia imagens que passam a integrar o próprio objecto, disseminando-se de modo descontínuo na amálgama de discursos que constituem a história desse objecto. Ao abrir-se no olhar do sujeito, expelindo imagens, um objecto nunca será apenas um objecto, obrigando o historiador de arte a “dialectizar permanen- temente – logo a cindir, logo a inquietar – o seu próprio discurso”, a percorrer o gume das contradições.
Sendo ainda rara em Portugal a discussão das questões levantadas pelos discursos teóricos sobre os quais assenta a construção dos objectos de investigação da his- tória da arte e escassas as traduções de textos que apontem no sentido do envol- vimento teórico e ideológico, é de acolher a primeira tradução para português do livro Georges Didi-Huberman, publicado pela primeira vez em 1992 (Les Éditions de Minuit) sob o título Ce que nous voyons, ce qui nous regarde.