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ROBERT FRANK E A OPERAÇÃO DE MONTAGEM NO CAMPO DO OLHAR

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Academic year: 2019

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ANA EMILIA JUNG

ROBERT FRANK

E A OPERAÇÃO DE MONTAGEM NO CAMPO DO OLHAR

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UNIVERSIDADE DO ESTADO DE SANTA CATARINA – UDESC

CENTRO DE ARTES – CEART

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES VISUAIS

ANA EMILIA JUNG

ROBERT FRANK

E A OPERAÇÃO DE MONTAGEM NO CAMPO DO OLHAR

Dissertação de Mestrado elaborada junto ao Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais do CEART/UDESC, para obtenção do título de Mestre em Artes Visuais.

Orientadora: Drª Rosangela Miranda Cherem

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ANA EMILIA JUNG

ROBERT FRANK

E A OPERAÇÃO DE MONTAGEM NO CAMPO DO OLHAR

Dissertação de Mestrado elaborada junto ao Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais do CEART/ UDESC, para obtenção do título de Mestre em Artes Visuais, na linha de pesquisa de Teoria e História da Arte.

Banca examinadora:

Orientadora: ___________________________________________________ Profª. Drª. Rosangela Miranda Cherem

CEART/UDESC

Membro: ____________________________________________________ Prof. Dr. Antonio Carlos dos Santos

DCSA / UNISUL

Membro: _____________________________________________________ Profª. Drª. Sandra Makowiecky

CEART/UDESC

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AGRADECIMENTOS

Gostaria de agradecer primeiramente à professora Rosângela Cherem quem, desde o início desta investigação, me incentivou a ler os fundamentos teóricos da imagem em sua estrutura de base para compreendê-los verdadeiramente, acreditando ser esse o salto em que se deve investir no curso do mestrado. Também gostaria de agradecer por seu respeito e confiança em meu modo e tempo de concretizar o trabalho, e ainda por sua interlocução séria e apaixonada que a cada encontro renovou meu desejo de reflexão.

Agradeço à CAPES, pelo apoio com a bolsa de pesquisa concedida.

Sou muito grata à professora Sandra Makowiecky e ao professor Antonio Carlos dos Santos, que prontamente aceitaram meu convite para participação na banca e se dedicaram integralmente a leitura de meu texto, apontando gentilmente seus importantes comentários.

Não posso deixar de mencionar meu agradecimento a Nohemí Ibañez Brown quem generosamente compartilhou comigo suas leituras de Freud e Lacan, bem como seu olhar sobre o campo artístico.

Agradeço de coração a Luana Navarro e a Lidia Sanae Ueta pela carinhosa e atenta dedicação, em minha ausência, ao Núcleo de Estudos da Fotografia, e também ao carinho e amizade sempre afetuosos. Também sou muito grata aos alunos do NEF pela compreensão e paciência que tiveram com meus compromissos em Santa Catarina neste período.

Agradeço a Anuschka R. Lemos a sempre pronta interlocução e também o companheirismo e a paixão pela fotografia, especialmente pelo trabalho de Robert Frank.

Agradeço a professora Kati Caetano, a Ana Luísa Fayet Sallas e ao Ângelo Silva, por incentivarem desde sempre este estudo.

A Juan Travnik, para quem Robert Frank é o Duchamp da fotografia, pelo forte apreço e carinho.

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a Chris C. Filippin quem dividiu comigo as estranhas situações que aconteceram na kitnet alugada, deixando a atmosfera engraçada e alegre.

Sou eternamente grata a Ivete Jung, minha mãe, por estar sempre oferecendo o lar nos árduos momentos deste novo caminho acadêmico. E também a Eunice Madureira David, minha avó, que torna as coisas do mundo mais graciosas com suas piadas, comidas e canções.

Agradeço a Tânia Kost, quem, numa tarde muito distante do tempo de agora, no sótão de uma bela casa de uma rua sem saída, apontou a palavra como a possibilidade de liberdade e amor, e vem desde então me acompanhando nessa busca.

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RESUMO

Na série Polaroids, o fotógrafo Robert Frank cria situações encenadas e manipula a superfície bidimensional em condição de pós-produção, construindo imagens com fronteiras imprecisas onde se destacam vazios, palavras, gestos pictóricos, apropriações e encenações. Emergindo por recursos de montagem, tais procedimentos colocam em questão certas referências intrínsecas ao campo da fotografia e da imagem permitindo reconhecer um território onde tanto a fatura como as noções operatórias que se afirmam como fundamento poético se implicam e se rebatem, interrogam e perturbam em relação ao campo do olhar. Na interlocução da história e teoria da arte com a psicanálise e a filosofia, encontramos a possibilidade de problematizar os procedimentos deste trabalho a fim de elaborar as questões que dele ressoam sem, entretanto, reduzir seus termos. No primeiro capítulo, investigamos o potencial de linguagem do estrangeiro como uma condição da imagem, que se identifica, tanto no campo fotográfico como imagético, como anulador de fronteiras e instaurador de novos parâmetros propositivos. A inquietante estranheza freudiana articulada com as infinitas possibilidades da linguagem artística abre campo para pensar a série Polaroids como imagem-acontecimento. No segundo capítulo, analisamos a relação entre o visível e o dizível a partir dos aspectos renitentes da operação de montagem ao longo da série, entre os quais, a lógica figural nos sonhos e na retícula, a relação entre imagem e palavra, a repetição como diferença e o gesto que re-significa o instante de ver. No terceiro capítulo, analisamos o rebatimento destes procedimentos plásticos no campo do visual. Do processo de instauração da visualidade do objeto artístico, alcançamos a noção de irrepresentável como encontro com o Real, e concluímos com a estrutura do campo escópico formulada por Jacques Lacan, e cuja orientação na teoria da arte é desenvolvida por Georges Didi-Huberman, onde o olhar cumpre a função de causar o sujeito em seu desejo.

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ABSTRACT

In the Polaroids series photographer Robert Frank creates performed situations and manipulates the two-dimensional surface in a post-production condition, building images with uncertain borders where emptiness, words, pictorial gestures, appropriations and acts are highlighted. Emerging through mounting resources, these procedures question certain intrinsic references in the field of photography and image, allowing the recognition of a territory where both manufacture and operatory notions that state poetical basis are implied and contrasted, interrogate and disturb in relation to the look field. In the interlocution of art history and theory with psychoanalysis and philosophy, we find the possibility of troubling the procedures of this work in order to elaborate questions that resonate from it, without reducing its terms. In the first chapter, we investigate the potential of the foreigner language as a condition of the image, which is identified in both the photography and image fields, as extinguisher of borders and promoter of new proposition parameters. The unquiet Freudian strangeness articulated with infinite possibilities of artistic language opens a field to think the Polaroids series as image-happening. In the second chapter, we analyze the relation between the visible and what can be said from renitent aspects of the mounting operation along the series, such as the figural logic in dreams and reticulations, the relation between image and word, the repetition as difference and the gesture that re-signifies the instant of looking. In the third chapter, we study the projection of these plastic procedures in the visual field. From the process of determining the view of the artistic object, we reach the notion of irrepresentability as an encounter with the Real, and we conclude with the structure of the scopic field, which was formulated by Jacques Lacan and has its orientation in art theory developed by Georges Didi-Huberman, in which the look accomplishes the function of causing the subject in its desire.

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 01 - Robert Frank, New Years Day, 1981………...19

Figura 02 - Robert Frank, Roots, 1996………...23

Figura 03 - Felix González-Torres, Untitled (Me and My Sister), 1998………25

Figura 04 - Robert Frank, Monuments for my daughter Andrea 1954-1974, 1975……..27

Figura 05 - Fita de Moebius………...…28

Figura 06 - Robert Frank, No projector could do justice..., 1996……….33

Figura 07 - Robert Frank, 4 AM, Make Love to Me, 1979………36

Figura 08 - Edward Weston, Tina on the azotea, 1923……….37

Figura 09 - Robert Frank, Boston, March 20, 1985………...40

Figura 10 - Robert Frank, End Of Dream, Mabou, 1992………...44

Figura11 - Amélia Toledo, O Parque das Cores do Escuro, 1975...46

Figura 12 - Robert Frank, BonJour Maestro, 1971………...48

Figura 13 - Gustavo Frittegotto, Cirrus, 2005…...49

Figura 14 - Robert Frank, Studio, Mabou, 2002………52

Figura 15 - PietMondrian, Composição em vermelho, amarelo, azul, 1927...53

Figura 16 – Piet Mondrian, New York City, 1942………..53

Figura 17 - Robert Frank, Blind, Love, Faith,1981………..……56

Figura 18 - Robert Frank, Words, de 1987………... 57

Figura 19 - Peter Downsbrough. Public Comission, 2006……….59

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Figura 21 - Carmela Gross, Carimbos, 1977/1978………...63

Figura 22 - Robert Frank, Mabou, 1979...66

Figura 23 - Robert Frank, Mabou, 1994………68

Figura 24 -Tony Smith, The Black Box, 1961………...73

Figura 25 - Robert Frank, Sick of Good by´s, 1978………...76

Figura 26 - Eli Lotar, Abattoir, 1929……….79

Figura 27 - Robert Frank, Pour la fille , 1971………...…82

Figura 28 - Jeff Wall, Picture for Women, 1979………...84

Figura29 - Robert Frank, Andrea, Mabou, 1977……….87

Figura 30 - Sergio Larraín, Las meninas, 1957...90

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SUMÁRIO

Introdução...11

Capítulo I...18

O ESTRANGEIRO

1. O estrangeiro como uma condição da imagem...19

New Years Day; a linguagem como interrogação; do vazio inicial aos novos territórios da

imagem; o estranho na concepção freudiana; imagem autônoma/ imagem sujeito; a inquietante estranheza e a imagem aurática; Roots; expatriamento e sentido de origem;

cartografias sentimentais e atravessamento.

2. A fotografia e suas implicações...27

Monuments for my daughter Andrea; a fotografia é o que é feito dela; olhar fora ver

dentro: moebius e a topologia de borda; o termo extímio em Lacan; o paradigma da fotografia e a caixa-preta; Flusser e a filosofia da fotografia; Baudrillard e o princípio de realidade; a irrealização inerente ao fotográfico; a verdadeira imagem.

3. Imagem-acontecimento ou a invenção do próprio rosto...33

No projector could do justice...; a noção de performance e a enunciação no presente; por um novo cálculo na arte; tempo cronológico e Aion; a identidade-infinita como devir; 4 AM, Make Love to Me; Weston e a fotografia modernista norte-americana; Barthes e as

noções de prática significante e Texto; a imagem-rosto e o plano de imanência deleuziano; a criação artística como a relação entre atual x virtual; Boston, March 20;

jogo ideal e acontecimento.

Capítulo II...43

VISÍVEL X DIZÍVEL

1. A lógica figural nos sonhos e na retícula...44

End Of Dream; o campo plástico através da lógica figural dos sonhos; imagem dialética, sintoma e rememoração; BonJour Maestro; sonho dentro do sonho; por uma teoria do detalhe; repetição e atuação;Studio, Mabou; retícula.

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Maurice Blanchot: Falar não é ver; Blind, Love, Faith - New Years Day - Words; palavra

escrita, inscrita e sobredeterminada; a imagem na ordem do fascínio; campo verbo-visual como território heterogêneo.

3. A repetição que instaura a diferença...61

Andrea; o noema da fotografia de Barthes diante da repetição; repetir não é representar;

Gilles Deleuze: a repetição do mesmo e a repetição que carrega sua diferença; repetição como potência de linguagem.

4. O gesto que desempata...65

A problemática da pintura em “A obra-prima desconhecida”, de Honoré De Balzac;

Mabou 1979; gesto final como operação de desempate; carne da pintura, encarnação e colorido-sintoma em “La pintura encarnada”, de Georges Didi-Huberman; o gesto como instante terminal no conceito Lacaniano; Mabou1994; gesto e repetição.

Capítulo III...69

VISÍVEL X VISUAL

1. Jogo anadiômeno e a instauração da visualidade...70

Andrea; alteração, da coisa à sua imagem; Sigmund Freud, Fort-da e o nascimento para a

linguagem; o papel da falta no jogo anadiômeno; Tony Smith e o relato de sua criação; dialética visual e objeto artístico.

2. A estética da tiquê e o irrepresentável...76

Sick of good by´s; os significantes no inconsciente Lacaniano; autômaton e tiquê no

encontro com o Real; o sem-sentido da tiquê e o non-sense do surrealismo; a estética da tiquê.

3. O jogo do olhar...82

Pour la fille; Merleau-Ponty e a carne do visível; o campo escópico em Lacan; olho como órgão - olhar como função; a inelutável cisão do ver em Didi-Huberman; Picture for Women de Jeff Walle função do olhar; objeto a e cisão diante da imagem.

Considerações...87

Andrea, Mabou, 1977; o jogo do olhar no plano da imagem;a operação de montagem

como reincidência na série; sobre os aspectos tautológicos e o espectador; considerações;

Winter footage, films stills.

(12)

INTRODUÇÃO

A presente pesquisa tem como tema a operação de montagem no campo do olhar na série Polaroids do fotógrafo Robert Frank. Com essa investigação, interessa-nos compreender como o processo de fatura dessas imagens carrega potencialmente as implicações poéticas e os alcances conceituais do trabalho, situando-as num território que perturba e problematiza em relação ao campo do olhar. Produzida desde 1972 e ainda em andamento, Polaroids emerge com situações encenadas e manipuladas em condição de pós-produção, construindo imagens com fronteiras imprecisas onde se destacam vazios, palavras, gestos pictóricos, colagens e apropriações. Esses procedimentos colocam em questão certas referências intrínsecas ao campo da fotografia e da imagem, deslocando, a nosso ver, a problemática de um campo específico para uma esfera crítica que se instala em outras direções. Por essa razão, para construir nosso repertório teórico, recorremos a certas interlocuções da história e da teoria da arte com a psicanálise e a filosofia.

Foi-nos preciso, diante da obra de Robert Frank, perceber antes de qualquer coisa o que parece ser o ponto de inflexão em seu trabalho: que as imagens situem-se como próprio corpo de pensamento, em vez de como reflexo de um indivíduo subjetivo ou de um reflexo do referente. Assim, em toda nossa aproximação, a imagem é concebida em seus próprios termos carregando suas questões inerentes. Temos consciência que outros recortes sobre o trabalho deste fotógrafo sejam concebidos em termos biográficos, e, talvez pela nossa insatisfação com a redução da complexidade de sua obra em relação àqueles, decidimos andar pelo caminho contrário.

Nosso viés tampouco é da imagem como um suporte iconográfico, mas como conceito operatório1, como desenvolvido por Georges Didi-Huberman. Esse teórico contemporâneo pertence à linha da teoria francesa de arte e apóia-se no paradigma crítico da psicanálise, além de também ter influências de pensadores como Aby Warburg, Hubert Damisch e Walter Benjamin. Seu esforço é o de reconfigurar as bases epistemológicas da história da arte baseada tradicionalmente na semiótica de base peirceana, na iconologia e numa historiografia positivista. Para estabelecer novos paradigmas ao visual e romper com a sujeição do visível ao legível, Didi-Huberman convoca na imagem da arte os não-sentidos, os desvios e as dobras como um apelo que surge em forma de sintoma, formulando assim um

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novo objeto que abre caminho a uma nova história da arte. Se dele partimos, também nos permitimos percorrer as suas bases em carreira solo e, assim, lidamos diretamente com alguns textos de Sigmund Freud e Jacques Lacan. Também autorizamo-nos a considerar algumas interlocuções com Gilles Deleuze e Jean Baudrillard, levando em conta que fazem um contraponto interessante ao paradigma clínico da psicanálise, apoiados nas premissas da filosofia. Roland Barthes, Vilém Flusser, Maurice Blanchot e Maurice Merleau-Ponty aparecem como intenção pontual para pensar termos e assuntos específicos e correlacionados ao objeto.

A imagem é como uma borboleta, propõe Didi-Huberman. Como algo vivente que é passível de ser contemplado apenas fugazmente, só mostra sua capacidade de verdade como aparição. Sobre a questão dessa frágil condição, o teórico da arte pergunta-se: Mas, como falar desta fragilidade senão desde o ponto de vista de uma tenacidade mais sutil, a que surge da possessão, da aparição, da sobrevivência?2 Em nossa pesquisa, percebendo desde o inicio que Polaroids demandava uma abordagem sutil que abraçasse sua complexidade, tratamos de delinear os aspectos sutis que apareciam e se repetiam ao longo da série. Desse modo é que formamos um conjunto de sintomas que sustentam a trama de onde é possível reconhecer o campo singular do pensamento artístico das proposições em questão.

Tomamos a idéia de sintoma como as estruturas latentes e fundantes que atravessam a imagem interrompendo a normalidade e a ordem das coisas. Para Didi-Huberman, ele se apresenta em dois eixos críticos: o visual, no que diz respeito à interrupção do curso normal da representação através do aparecimento espontâneo da imagem; e o temporal, no que se refere à dinâmica do anacronismo como composto de tempos não cronológicos que aparecem em durações múltiplas, tempos heterogêneos e memórias entrelaçadas.3 Uma dinâmica que emerge como plano do inconsciente e advém colada ao fluxo subterrâneo do ser da imagem, trazendo no primeiro eixo o plano crítico do inconsciente da representação e, no segundo eixo, o plano crítico do inconsciente da história. Nesta perspectiva é que concebemos o fundamento do método empregado nessa investigação, buscando nas imagens de Polaroids o que sobrevive enquanto gesto em suas memórias e a dimensão desse processo memorativo. Compreendendo que essas contraposições e atravessamentos que se repetem sintomaticamente integram a verdadeira complexidade dessa obra, pareceu-nos inevitável abordá-la como uma operação de montagem, montagem de memórias involuntárias e tempos

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heterogêneos. Pois, se, conforme Didi-Huberman, o trabalho artístico traz consigo uma organização de tempos impuros, implicando um procedimento de montagem, não-científico, do saber4, o que Robert Frank apresenta em Polaroids nada mais parece ser do que uma poética da visualidade, onde figuram problemáticas e questões que dizem respeito a suas condições, e também aos limites e rebatimentos da imagem.

No primeiro capítulo, O estrangeiro, tomamos Polaroids a partir da relação que parece estar imbuída de modo geral em todas as imagens do conjunto: na concepção do estrangeiro como uma linguagem que desnaturaliza um campo criando um território híbrido em interlocução com diversas determinações. Nesse sentido, vale lembrar que Robert Frank nasce apátrida, na Suíça, em 1924, e apesar de que nosso recorte epistemológico tenha afastado a inserção de dados biográficos, não descartamos que o impulso ocasionado por esse não-lugar se reflete em seu trabalho. Assim, nesse caso, entendemos o rompimento estrutural com a noção de pertencimento como o mecanismo instaurador de criação. Como alguém pode ser Suíço?5, interroga-se Frank quando emigra para a América em 1947, como se a nacionalidade suíça tardiamente conseguida sugerisse alguma espécie de incongruência. De mesmo modo, em seu trabalho, as imagens parecem sempre sugerir essa pergunta: como uma imagem pode ser uma imagem, como uma fotografia pode ser uma fotografia, concluindo sem respostas que a impermanência é inerente às coisas da vida. Todo o capítulo se novela em torno desta mesma concepção, porém o dividimos em três assuntos para bem enfatizar o caráter de cada qual. São eles: linguagem, fotografia e imagem.

Para conceber teoricamente o termo estranho, recorremos à inquietante estranheza elaborada por Freud a partir da ambígua estrutura do estranho-familiar. Na imagem, o estranho-familiar apresenta-se como a experiência de deslocalização, provocada pelo encontro casual de algo exterior que também diz respeito a algo íntimo. Um encontro que rompe as bordas desfazendo as fronteiras e, por isso, adquire o poder de nos afetar. Se as imagens de Polaroids falam de um lugar indeterminado também causam o espectador nesse mesmo ponto: desestabilizando-o na apreensão visual da obra. Trata-se de uma indeterminação que põe em questão o sentido de origem como dimensão de um vir a ser em movimento constante, que sempre recoloca o passado e o futuro como matérias do presente, numa dimensão latente da imagem como sintoma, ou seja, do que volta nela como recalque.

4 Id., 2006, p.59.

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Se Robert Frank sempre opera a partir da fotografia, fez-se necessário entender os aspectos discursivos deste aparato técnico e como o artista realiza-se ou não nesses preceitos. Aqui a noção de estrangeiro baliza o intuito de Frank em desfazer o efeito de real construído pelo discurso positivista em relação à fotografia e eternamente estigmatizado pelo corpo social. Ao invés de confirmar o estatuto da fotografia como análogo ao real, Robert Frank assume a irrealização inerente ao fotográfico: que a fotografia seja o que é feito dela, quando olhada como um documento separado do referente. O que o interessa é a foto como objeto que ocupa o lugar, como resume Jean Baudrillard, de desaparecimento do sujeito e do sentido6. Afastada da responsabilidade de assemelhar-se à aparência do mundo, a fotografia manejada por Frank toma a cena enquadrada como potência de criação de realidades.

Para concluir nosso esquema de pensar a condição estrangeira da imagem, ampliamos nosso debate da esfera do fotográfico para a imagética, compreendendo Polaroids como um trabalho capaz de gerar um conflito com o sistema que o engendra. Revendo e ampliando os limites da imagem, Robert Frank desenvolve proposições de modo a formular problemáticas no campo da linguagem. O que ele cria são enunciações na superfície bidimensional que ainda não nasceram para o mundo, e o faz a partir da fotografia tirando partido de seu efeito de realidade. Esse é o viés em que tomamos Polaroids como imagens-acontecimento, em sua condição de pensamento na esfera da arte. Segundo Gilles Deleuze, o acontecimento vislumbra, como um conjunto de singularidades, pontos de retrocesso, de inflexão, etc.; desfiladeiros, nós, núcleos, centros; pontos de fusão, de condensação, de ebulição, etc; pontos de choro e de alegria, de doença e de saúde, de esperança e de angustia, pontos sensíveis,...7 caracterizando-se como processo multilinear que não se prende à consciência de um sujeito, mas afirma o próprio inconsciente da experiência da criação. No conjunto de imagens em Polaroids o jogo múltiplo e a introdução do sem-sentido validam princípios inaplicáveis como novas formas de identidade.

No segundo capítulo, Visível x dizível, tratamos dos aspectos renitentes acerca dos processos e procedimentos de confecção e fatura das imagens da série, incluindo as referências técnicas, usos de materiais, escolhas de tamanho, etc. Nosso esforço almejou alcançar os pressupostos e noções operatórias ou conceituais que parecem servir de ponto de partida ou fundamento poético para a operação de montagem em questão. Os elementos encontrados foram respectivamente: as imagens dentro de imagens – como colagem ou

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sobreposição cênica; as palavras escritas, inscritas e sobredeterminadas no plano visual; a repetição de fotografias dentro de uma mesma imagem e das mesmas imagens ao longo da série; e, finalmente, os gestos pictóricos incluídos na pós-produção através da manipulação da superfície fotográfica.

Buscando um raciocínio que articulasse novas configurações para o poder de figurabilidade das imagens, encontramos na lógica figural dos sonhos, como elaborada por Freud, a possibilidade de elaborar a sintaxe imagética de Polaroids. Na imagem que cede seu impulso para o plano do sintoma e fulgura no interstício entre o que se desvenda e oculta. Também encontramos na lógica da retícula, através da sobreposição da superfície esquadrinhada na imagem, a afirmação da fotografia tanto como a menor parte de um todo de alcance infinito quanto como um fragmento que se sustenta em si e por si. Na trama pictórica que recobre a superfície como uma grade, a retícula opõe-se, na concepção de Rosalind Krauss, à narrativa e ao discurso representativo, forçando o caráter anti-evolutivo e anti-mimético da imagem da arte8.

Outro sintoma que advém nas imagens em Polaroids, é que as palavras funcionam não só como verbo, mas também como elementos visuais. Para Maurice Blanchot, essas duas inscrições, verbo e visual, evocam um campo que contêm tanto o apreensível quanto o inesgotável, somando num território heterogêneo uma categoria da ordem do fascínio.

Nos últimos dois pontos deste capítulo, o dizível aparece a partir da insistência do visível, cujo caráter renitente concebe o gesto como operação plástica. Estrategicamente voltamos a Deleuze para considerar a repetição como ação criativa, pois, nesse autor a repetição é caracterizada como potência de linguagem e de transgressão da ordem e da lei.9 Nesse caráter, o que a repetição faz é apresentar a partir de sua diferença, ao invés de reapresentar a partir de um mesmo, confiando no próprio movimento uma obra, sem interposição, tratando de substituir representações imediatas por signos diretos10. Mas, se podemos tocar o que se repete plasticamente em Polaroids é porque essa operação inclui uma repetição outra, mais discreta e mais profunda, e a que não temos acesso diretamente. Para o filósofo, a repetição sempre está atrelada a essas duas condições, que a repetição exterior carregue outra que lhe é intrínseca. Nesse sentido, aproximamo-nos novamente do estado onírico em que algo pulsa anteriormente a sua inserção no tempo e no espaço. O

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mostra dos sonhos aparece como o si da repetição, o elemento constituinte e vital para a dinâmica do ser, também do ser da imagem.

Por último, neste capítulo, dirigimo-nos aos traços pictóricos que Frank gesticula como operação de significação. Tratando de situar uma problemática que é da pintura, na adição de elementos na tela e no gesto como habilidade de finalização da obra, criamos uma analogia entre a noção de encarnação, desenvolvida por Georges Didi-Huberman, em “La pintura encarnada” e a perspectiva lacaniana do instante do ver, que concebe o tempo de re-significar àquele que engendra o tempo para trás, delimitando certa noção de significância e forma.

A relação entre visualidade e linguagem distingue o terceiro capítulo. Investigando como os procedimentos de Polaroids refletem no território do olhar, acercamo-nos das questões inerentes ao processo de criação da imagem e também das possíveis abordagens estéticas que circundam o vazio através de suas relações adjacentes: o visível e o invisível, e o legível e o irrepresentável. Finalizamos com a premissa de que, em Polaroids, o paradoxo entre olho e olhar está sempre presente, não só como um lugar que é próprio do trabalho artístico, mas literalmente materializado através da soma de elementos na operação de montagem.

Para abrir nosso caminho de maneira a nos conduzir para a hipótese final, partimos da concepção de alteração, termo empregado por Freud em “Além do princípio do prazer”, e que se refere ao processo de simbolização no mundo da linguagem. Tomamos o parâmetro formulado por Didi-Huberman sobre o relato do artista Tony Smith e o deslocamos para o processo de Frank, sempre enfatizando que o movimento de alteração da coisa a sua imagem é impulsionado por uma falta e constituído pelo ritmo de fluxo e refluxo do jogo anadiômeno, termo que se refere à Vênus anadiômena (emergida do mar ou nascida das ondas), gerada do caimento dos órgãos sexuais de seu pai, Urano, no mar. Porém, no projeto de transfiguração em Polaroids há algo que não alcança figurar-se na linguagem e para poder conceber teoricamente esse lugar na proposição, criamos, no segundo ponto deste capítulo, uma analogia do trabalho de Frank com o parâmetro lacaniano da cadeia de significantes na linguagem. A noção de ruptura da cadeia que introduz o sem-sentido delineará nossa questão sobre o irrepresentável, ou seja, aquilo que não pode ser mediado nem pelo imaginário, nem pelo simbólico, e deste modo tem o poder de despertar o sujeito.

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hipótese de que, em Polaroids, a questão essencial é o paradoxo entre olho e olhar, construído pela operação de montagem. Partimos de Maurice Merleau-Ponty, que identifica, através da relação entre o visível e o invisível, um ponto que preexiste ao nosso olhar. Aqui o sujeito da consciência se desfaz dando lugar a uma visibilidade anônima que cria a possibilidade da reversibilidade entre vidente e visível, ou seja, daquele que vê e o objeto visto. Passamos para Jacques Lacan que usa essa espessura de entrelaçamento, como desenvolvida por Ponty, articulando-a ao desejo do sujeito e criando o que chamará a partir de então de campo escópico. Neste campo, o olho desempenha uma organicidade enquanto é o olhar que se constitui como função, função que se nos apresenta na forma de uma estranha contingência, simbólica do que encontramos no horizonte e como ponto de chegada de nossa experiência, isto é, a falta constitutiva da angústia da castração.11 Logo, com Didi-Huberman, traremos a inelutável cisão entre o que vemos e o que nos olha para o campo da arte. Tentando aprofundar os termos do que nos olha na função do olhar, nos aproximamos da noção de objeto a no campo do olhar, como concebido por Lacan. O objeto a sendo uma espécie de cintilação invisível de um ponto opaco da imagem que nos aponta uma falta latente e nos desperta na medida em que nos causa.

Será então, baseando-nos nesta explanação, que conceberemos a série Polaroids a partir de uma operação de montagem que toca a problemática do campo escópico. Apontando que a proposição imagética de Frank apresenta-se tanto como sedução do visível relacionada ao olho, quanto como imperativo da função do olhar, concluímos o serviço tautológico deste procedimento: que o que acontece na imagem opera concomitantemente com o que acontece na esfera relacional com o espectador.

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CAPÍTULO I

O ESTRANGEIRO

Nossa verdadeira terra natal é aquela em que lançamos pela primeira vez um olhar interessante a nós mesmos.

Marguerite Yourcenar

Diante da série Polaroids, de Robert Frank, somos tocados por uma sensação de desnorteio, como se essas imagens tivessem o poder de nos provocar em algo que não podemos responder, ou porque não estamos instrumentalizados para tal, ou porque simplesmente não falamos o mesmo idioma. Nosso empreendimento neste capítulo será o de namorar esta sensação inquietante até que entre essas imagens e nosso entendimento haja a leveza de um mar tranqüilo, sem perder, entretanto, o mistério que pertence a toda vida que pulsa.

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1. O ESTRANGEIRO COMO UMA CONDIÇÃO DA IMAGEM

Fig.01: Robert Frank, New Years Day, cópia de gelatina de prata de 2 negativos polaróides, 50,8 X 40,6 cm, 1981. Fonte: The Lines of My Hand, 1989.

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busca que engendra sobre a superfície imagética. É na errância de seu gesto como artista, quando desvia dos caminhos precisos e das respostas plausíveis, que ele relaciona um pensamento criador com aquilo que se inscreve como experiência primeira, como ação. Trata-se de poder instaurar uma pergunta que interrogue sobre os dados fixos do pensamento, das relações humanas e do próprio lugar, uma procura que é a de uma andança, ou seja, um método, e sendo esse método a conduta, o modo de comportar-se e de avançar de uma pessoa que se interroga, como aponta Maurice Blanchot.12

As imagens em Polaroids são as pátrias de um estrangeiro, pátrias que pertencem a Frank na medida em que as cria e são também nossas, dos espectadores, na medida em que as habitamos, pois estranhamente, diz Julia Kristeva, o estrangeiro habita em nós: ele é a face oculta de nossa identidade...13 O interstício entre o pertencimento e o desengajamento do estrangeiro surge como a descontinuidade que funda a condição para o campo artístico, pois olhar de cima é a visão que abre horizontes de um céu infinito, e quem foi arrancado da ordem vê o mundo todo, diz Flusser.14 A operação de Robert Frank procede de um vazio inicial à constituição de novos territórios da imagem. Um lugar que não serve à perpetuação de valores conquistados ao longo da história da fotografia, mas de onde será possível uma reflexão que engendre novos posicionamentos e procedimentos. Se New Years Day (figura 01, p.19) desvalora certas qualidades que circundam o paradigma da fotografia em suas instâncias formais, do mesmo modo toda a série Polaroids passa longe de categorias como ensaio, viés humanista, da escola do instante decisivo inaugurada por Henri Cartier-Bresson ou de qualquer eixo temático. Inclassificáveis, as imagens de Frank desfazem os gêneros que compõem o campo fotográfico inaugurando desde dentro – pois todo o ponto de partida de seu trabalho é sempre fotográfico – uma zona de ambivalência.

Voltemos ao que nos oferece New Years Day (figura 01, p.19). Nessa imagem o espectador não é colocado diretamente em confronto com a paisagem. Uma moldura intermedia a cena em ambas as fotografias do díptico vertical, fazendo ver um lugar de dentro que mira o fora. Por sua vez, a atmosfera de fora também contamina o dentro e por rebatimento as duas dimensões somam-se num mesmo lado. Ao confluir tantos elementos, enunciações de ânimo e de tempos como a rasura da superfície de prata, a nota de dólar pendurada no varal, a apresentação de paisagem, as bordas frágeis e imperfeitas, perde-se a

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noção da hierarquia de leitura sígnica e já não se pode alegar o que domina ou o que está dominado, tudo parece estar do mesmo lado e ao mesmo tempo numa coexistência de opostos que até põe em dúvida a questão sobre o antagonismo. Excluir-se de toda valoração, abandonar o engajamento, esta é a verdadeira condição do estrangeiro, segundo Flusser, num transcender que equivale a um esvaziamento constante do próprio “eu”.15 Também para Roland Barthes, pôr em questão a própria identidade é o que faz vacilar os direitos da língua paterna, aquela que nos vem de nossos pais e que nos torna, por nossa vez, pais e proprietários de uma cultura que, precisamente, a história transforma em “natureza” 16, sendo essa a condição para a criação.

New Years Day (figura 01, p. 19) é uma imagem indeterminada, que faz vacilar os direitos e as propriedades, os valores e as associações, e ao mesmo tempo em que domina a natureza e organiza o caos, inclui elementos do sem-sentido causando um ruído perturbador na suposta organização. Devido à simultaneidade de fabulações que se articulam em sua superfície, gerando a atmosfera de perturbação e desorganização, podemos pensar no estranho como uma condição que advém desse impacto. Para Freud, essa seria a categoria de coisas assustadoras que estavam ocultas por alguma espécie de recalque e que veio à luz17, apagando a noção de espaço, instigando imagens indesejadas, rompendo os parâmetros do simbólico e do imaginário e confundindo o real e o ficcional. Nesses termos, os espaços intertextuais da imagem em questão sugerem a ausência de limites entre objetividade e subjetividade, fazendo ver o íntimo como uma espécie de aparição que convoca simultaneamente uma sensação de angústia.

No textoO estranho”, de 1919, Freud buscou investigar, entre parâmetroscomo os

contos assustadores e as crenças populares, o lugar paradoxal do uso lingüístico do termo estranho nas raízes de diversas línguas, concluindo que seus significados contrários aproximam-se em direção a um mesmo conceito. Em alemão, por exemplo, heimlich designa o que é da ordem do doméstico, nativo e familiar; enquanto que, e ao mesmo tempo, seu significado desenvolve-se na direção oposta: unheimlich, que pode ser traduzido como o que escapa ou como estranho. A inquietante estranheza é na imagem de Frank o que sugere essa ambivalência entre o que dominamos, realmente esse caráter intimista das imagens que parece nos implicar diretamente, e aquilo que totalmente, angustiadamente, nos escapa e por isso nos domina.

15 FLUSSER, 2007, p.69. 16 BARTHES, 2007, p.11.

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New Years Day (figura 01, p.19) possui uma espécie de autonomia que se torna estranha porque em seu aspecto virtual tem vida própria e nos olha. Como uma dinâmica que se auto-sustenta num círculo infinito de determinações alimentando-se a cada volta do espiral. É desse lugar que impõe sua especificidade de objeto. Para Georges Didi-Huberman, a especificidade é a eliminação de toda ilusão representativa que não seja o lugar mesmo do objeto.18 Ele aponta, baseado na idéia freudiana do duplo como um elemento de inquietante estranheza, a especificidade do objeto como um elemento ameaçador, uma forma animada de sua própria vida de objeto puro, eficaz até o diabólico, ou até a capacidade de se auto-engendrar19. O objeto, em sua presença de quase-sujeito adquire então um caráter antropomórfico que sugere a materialização da possibilidade de um ser vivo. Em New Years Day, esse quase corpo, quase rosto, revela seu caráter específico também através de sua escala (a peça mede não mais que 50,8 X 40,6 cm), e é desse tamanho não humano, reduzido, que mostra sua presença latente. Um tamanho que nem nos fala em segredo porque não é tão pequeno para isso, nem nos impõe um encontro abrupto porque tão pouco é grande para tal. A novidade provém da discrição do tamanho da obra, que se desvela na medida em que se faz passar por uma mera fotografia inanimada e emoldurada na parede, e se nos acercamos não é no propósito de encontrar o que de fato encontramos: uma imagem que, como nós, enreda seu próprio jogo de linguagem, e aí seu caráter de duplo e o assombro de que, diante da imagem, podemos ver-nos vendo esse algo inanimado que se manifesta como pensamento, e nos vê.

A noção da inquietante estranheza de Freud é equiparada, por Didi-Huberman, à noção de aura concebida por Walter Benjamin. O paradoxo entre a proximidade e a distância associados ao estranho-familiar aparece como a singularidade e a estranheza da trama singular do espaço e tempo da imagem aurática. Ambos funcionando como poder do olhar, do desejo e da memória simultaneamente, enfim, como poder da distância20. Naexperiência visual em New Years Day (figura 01, p.19), somos colocados diante desse algo que saiu da sombra, que estava recalcado e que retorna em elementos em destempos que sugerem uma lógica anacrônica e sem hierarquias. Desse modo perdemos a localização, numa desorientação do olhar que implica, segundo Didi-Huberman, ao mesmo tempo ser dilacerados pelo outro e ser dilacerados por nós mesmos, dentro de nós mesmos21.

18 DIDI-HUBERMAN, 1998, p.118. 19 Ibid, p.229.

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Fig. 02: Robert Frank, Roots, cópia de gelatina de prata de 2 negativos polaróides, 50,8 X 40,6 cm, 1996. Fonte: Hold Still Keep Going, 2001.

No díptico intitulado Roots (figura 02), a vista da janela de um apartamento em Manhattan é colocada paralelamente a um mapa da Palestina. No que deveria ser uma reprodução precisa, uma veladura excede a sensibilidade da gelatina de prata e apaga a informação. No que deveria ser uma janela, as bordas imperfeitas deflagram a fragilidade do aspecto mimético da fotografia. Dois tempos e dois espaços que se afetam mutuamente acumulando-se em imprecisões, e sob esse enlace criam uma relação, se desindividualizam. A frase escrita ao pé da obra, eles viajarão com você, remete-nos à concepção de Flusser sobre o expatriamento, na qual o estrangeiro arrasta consigo em seu inconsciente fragmentos de mistérios de todas as pátrias por quais passou, apesar de não se encontrar ancorado em nenhum desses mistérios...22 Talvez maior mistério do que o que se traz de um passado (e aqui possivelmente nos encontremos mais próximos do campo do enigma que, ao contrário

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do mistério, não se resolve e maneja sempre um resto irresolvível) possa ser como isso pertence também ao futuro, pois ao mesmo tempo em que as fotografias do passado são os souvenires da memória, também constituem o espelho do porvir. Ver o presente através da elaboração do passado implica que nenhuma memória é estática, e que a confluência de tempos embaralha as verdades.

Nessa proposição imagética de Robert Frank, o papel do fotógrafo acaba sobreposto por outra função, a do cartógrafo. Em “Cartografia Sentimental, Transformações Contemporâneas do Desejo”, Suely Rolnik define como a tarefa do cartógrafo dar língua para afetos que pedem passagem. Assim o vemos em Roots, uma cartografia que se difere de um mapa, pois se este é uma representação de um todo estático, aquela se faz ao mesmo tempo em que a paisagem e o destino se transformam acompanhando suas nuances23. As fotografias que estão neste díptico, tanto a janela do apartamento em Manhattan quanto o mapa da palestina, mostram-se soltas de seus universos referenciais, negam a re-apresentação de seus referentes para apresentar o que está contido na própria superfície de emulsão de prata. O que se desvela nas bordas veladas da primeira foto e o que se vela na segunda pontuam um espaço que se deixa infiltrar pelo vazio e o sustenta até o apagamento do lugar. Mas não há cristalização, pois, se estamos falando de cartografia, ela é sempre acompanhada de movimento e fluxo, ou, como coloca Rolnik, movimentos do desejo -, que vão transfigurando, imperceptivelmente, a paisagem vigente 24. Nesta terra de múltiplos, a de estrangeiros, no mesmo momento em que o traço se faz também se desfaz, pois o mote é a travessia, uma passagem que nunca afirma uma forma, pois está sempre em movimento.

A travessia aparece em nosso argumento como a busca do sentido de origem, o atravessamento do estrangeiro no que se refere ao “livre de quê” para o “livre para quê”, como aponta Flusser25, uma libertação que é o potencial da criação. Sobre essa questão, tanto Roots (figura 02, p.23) quanto Untitled, Me and My Sister, de Feliz Gonzalez-Torres (figura 03, p.25), problematizam a diferença entre a idéia de início e origem, noções que absolutamente não coincidem. O início é circunstancial, determinável e fixo. Por sua vez, a origem é mutante e depende de um conjunto de possibilidades que estão sempre se transformando. Mas o que é a origem, pergunta Didi-Huberman, senão o que aparece diante de nós como um sintoma?26 Segundo Walter Benjamin, a origem não tem a ver com a gênese

23 ROLNIK, 2007, p. 23. 24 Ibid, p. 62.

25 FLUSSER, 2007, p.223.

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das coisas, não designa o devir do que nasceu, mas sim o que está em via de nascer no devir e no declínio. O dilema em Roots é o que parece tocar a ordem do indeterminável, aquilo que a cada momento se reconfigura inesperada e sintomaticamente, trazendo junto consigo o que, nas palavras de Benjamin, se relaciona com sua pré e pós-história.27

Fig. 03: Felix González-Torres, Untitled (Me and My Sister), quebra-cabeças de fotografia colorida com saco plástico, 19,1 x 24,1 cm, 1998.

Fonte: catálogo da exposição Somewhere/ Nowhere, 2007.

Os canais de efetuação da vida não têm princípios morais. Seus princípios são vitais, diz Suely Rolnik. Na travessia, despe-se de um nome próprio para sustentar a vida em seu momento de expansão28. Essa é a ética do cartógrafo. Em Untitled, Me and My Sister (figura 03), o quebra-cabeça pertence ao presente e não ao passado porque é daqui que se impera um “livre para quê” como espaço potencial.

Quando o jovem fotógrafo Robert Frank deixa Zurich, em 1947, carrega consigo um quadro com que seu mestre de fotografia, Hermann Segesser, lhe havia presenteado, sem

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saber que naquele momento carregava os desejos e as interrogações que singularizariam sua trajetória. Quarenta e seis anos depois, seu quebra-cabeças se completa e a travessia pode ser tocada, pensada e elaborada, como um desejo que matura em silêncio e quando se percebe já se infiltrou na vida como uma cartografia. É o que comenta Frank numa carta para seu mestre em 1993:

É somente a água (o mar), é tranqüilo, é vivo e movente, com o vento e as correntezas debaixo. Parece ter uma sensação de qualidade profética – esse homem no seu pequeno quarto no porão da Schulhausstrasse 73 dá ao rapaz – partindo de casa – seu entendimento e expectativa de liberdade de espaço, de mistério, de natureza. Tudo isso eu começaria a entender muito depois... E tentaria expressá-lo em meu trabalho.29

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2. A FOTOGRAFIA E SUAS IMPLICAÇÕES

Levando em conta que Robert Frank é um artista visual que parte sempre da imagem técnica, interessa-nos nesse momento compreender de que modo sua operação, especificamente em fotografia, é articulada em relação aos parâmetros que vão aparecer dentro deste campo. Outra vez, como um estrangeiro, em Polaroids, o fotógrafo desestabiliza as noções relativas à imagem e desmistifica a fotografia como testemunho de um mundo objetivo, de efeito de real. Perguntamo-nos, então, como as imagens da série em questão logram desfuncionalizar os mecanismos ideológicos do aparato técnico.

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Fig 04: Monuments for my daughter Andrea, 1954-1974. Impressão de gelatina de prata de negativo Polaroid, 49,6 x 39,8 cm, Mabou, 1975. Fonte: The Lines of my Hand, 1989.

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natureza recolhendo-os em seu olhar e, quando os recupera numa mesma superfície e os repete criando um jogo do ver e do rever, mostra um algo que já é outro, separado dos referenciais do mundo que em princípio o constituíram através da impressão de luz na sensibilidade da prata.

Estou sempre olhando para fora, tentando ver para dentro. Tentando dizer algo que seja verdadeiro, diz Robert Frank. E depois problematiza: Mas talvez nada seja realmente verdadeiro. Com exceção do que está lá fora. E o que está lá fora está sempre mudando30. Assim como a idéia de inapreensibilidade da realidade que está em suas palavras, a suposta objetividade da fotografia também se esvai em suas imagens. Como demonstra na imagem referenciada anteriormente, a fotografia não apreende e reproduz um fora, mas aponta a um íntimo que está tocado pela cultura, como num anel de moebius onde a superfície faz parte de uma topologia de borda. A topologia de borda diz respeito, em psicanálise, à continuidade dos lados, como quando passamos o dedo pela extensão de fita de moebius, margeando sua borda sem mudar de lado. Na topologia de borda, assim como em Monuments... um interno é simultâneo a um externo e vice-versa, e nesse encontro constituem um novo.

Fig 05: Fita de Moebius. Fonte: retirada em 12/01/09 às 18hs

http://witilongi.blogspot.com/2006/11/la-banda-de-mebius-y-la-botella-de.html,

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Tomemos aqui o valor do termo extimidade, introduzido por Lacan em 1960, no seminário sobre ética31. Em sua concepção, extímio faz referência ao externo que é ao mesmo tempo um interno, um íntimo. Extimidade seria então esse novo espaço criado da sobreposição destes adjetivos. Podemos pensar que, em Monuments for my daughter Andrea (figura 04, p.27), o caráter de extimidade acontece pela fotografia, num dentro e fora que estão neste lugar. Porque, se a fotografia pode ideologicamente apresentar-se como representação presentificando a aparência de uma ausência, nesta imagem, o poder de figurabilidade e o sintoma desfazem este estigma. Assim, no memorial que se sobrepõe ao referente, a noção de representação é engolida pelo texto do artista porque o que presentifica é a ausência de uma filha, não a ausência do mundo. E, se isto só procede no campo da linguagem e aqui é resolvido justamente pela fotografia, não seria então uma subversão ao paradigma do fotográfico? Não há dúvida de que Robert Frank maneje esse meio para que sejam feitas elucubrações de linguagem, inclusive desfazendo às noções entre realidade e ficção, mas poderíamos tomar o procedimento em Polaroids como uma possibilidade de elucidação da trama da caixa-preta?

Para responder a essas perguntas, comecemos por compreender o estatuto da caixa-preta. No ensaio “A utilidade da arte”, César Aira lembra o momento neste último meio século quando a humanidade deixou de compreender o mecanismo das próprias máquinas (automóveis, rádios, máquinas de lavar, etc.). Parecendo um fenômeno recente, o fato é que atualmente, segundo o escritor, usamos os artefatos tal como as damas de antigamente usavam os automóveis: como “caixa-pretas”, com um Input (apertar o botão) e um Output (desliga-se o motor), na mais completa ignorância entre o que acontece entre esses dois pólos.32 A caixa-preta é, segundo Arlindo Machado, um termo da eletrônica, e designa uma parte complexa de um circuito. Essa parte é omitida intencionalmente no desenho de um circuito maior (geralmente para fins de simplificação) e substituída por uma caixa (box) vazia, sobre a qual se escreve o nome do circuito omitido.33

O indício da caixa-preta na sociedade contemporânea avança na imprevisibilidade de tudo o que nos cerca. Por não entendermos o funcionamento do entorno, perdemos os parâmetros gerais e atrofiamos nossa capacidade de lucidez sobre nossos próprios atos. Mesmo a revolução era, segundo Aira, o desmonte da sociedade até seu último parafuso, no intuito de poder remontá-la sob novos prospectos. Mas estamos todos cegos, como diz

31 Lição de 10/02/1960 do Seminário, livro 07: a ética da psicanálise. 32 AIRA, 2007, PP. 49 a 54.

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Saramago, e se estamos marcados por essa irreversibilidade, será a prática artística o campo de exceção que tornará possível o desmascaramento do conflito entre sensibilidade e tecnologia, fundado em bases discursivas. Como argumenta Ronaldo Brito:

É indispensável, contudo, conhecer por dentro as articulações do processo para não ficar preso à sensibilidade do olho empírico. Esta sensibilidade, contra a suposição comum, é a que existe de menos espontânea: está totalmente determinada pela estrutura dos códigos vigentes de inteligibilidade. Gostar ou não gostar, nesse sentido amplo, é a mesma coisa – em qualquer dos casos já se perdeu a chance de ver o real do trabalho ao traduzi-lo na rede instituída do visível possível. E este, vale insistir, não representa o limite do olho humano, mas sim o de uma dada construção da visualidade, coerente com a implantação e manutenção da ordem burguesa34.

Em Filosofia da caixa-preta, Ensaios para uma futura filosofia da fotografia”, de 1983, Vilém Flusser tenta compreender os paradigmas da imagem técnica e como a concepção dessa ideologia criou as bases da experiência das sociedades ditas pós-históricas, ou seja, as sociedades que se compõem de imagens técnicas construídas pela mediação de aparelhos. Inicia o livro desfazendo a transparência calcada ideologicamente nas imagens fotográficas até apontar a alienação do homem no imperialismo pós-industrial conduzido pelos aparatos técnicos. O que afirma é que a imagética magicizante e seu efeito de caixa-preta só fariam reproduzir conceitos pré-figurados já implicados nos programas. O fotógrafo, ou qualquer usuário de um aparato, seria mero funcionário deste sistema, servindo subservientemente às suas bases ideológicas. O único gesto de liberdade, dentro deste acaso cego, seria a experimentação capaz de problematizar a imagem, o aparelho, o programa e a informação.

Usando a fotografia como criação e fazendo com que a mediação substitua seu potencial representacional, Robert Frank desarticula a carga ideológica de um regime de visualidade calcado no limite do visível amparado pela imagem técnica. Ruma em direção a outro cálculo, apontando na filosofia da fotografia um caminho de liberdade, que como diz Flusser, constitui uma filosofia urgente por ser ela, talvez, a única revolução ainda possível35.

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Para Frank, a realidade existe na medida em que podemos pensá-la e construí-la; o que sua câmera perscruta são concepções de linguagem. Em seu filme “Life Dances on...” 36, surge a pergunta se fotografias podem apreender o invisível. O personagem Billy, que está com medo de que as pessoas leiam a sua mente, diz: você não deveria estar apontando a câmera. Os meus pensamentos íntimos são meu segredo... Isto está invadindo a minha privacidade.37 Como se a câmera pudesse perscrutar verdades, como se os documentos íntimos e os pensamentos fossem passíveis de apreensão. Sim e não. Sim porque o que se apresenta em Polaroids são construções, invenções de dinâmicas que imbricam pensamentos abarcando novas lógicas, e que até poderíamos chamar documentos. Mas não como reflexo de um indivíduo subjetivo, o que as fotos apresentam são a própria encarnação de algo que se pensa, separado do contato com o instante de luz e forma que a geraram.

O que a imagem fotográfica concretiza, segundo Jean Baudrillard, é a ausência de uma realidade sendo a operadora mágica de seu desaparecimento38. O ato fotográfico, no instante de sua materialização, põe fim simultaneamente à presença real do objeto e a do sujeito, e é nesse desaparecimento recíproco que se opera uma transfusão de dois39. O que surge desse desaparecimento recíproco é uma superfície bidimensional como nova aparência, nova realidade. Um “Outro” que, antes de parecer ser o mundo, a sua imagem e semelhança, é enigma. O artista plástico Nuno Ramos resume as implicações entre imagem, aparência e realidade, numa frase bastante sucinta: a semelhança é o melhor disfarce40, e similarmente Baudrillard configura: trata-se de um crime quase perfeito, uma resolução quase total do mundo que apenas deixa brilhar a ilusão de tal objeto...41

Sob os auspícios de Frank qualquer imagem fotográfica é uma imagem em potencial, nada mais que um suporte destituído de seus referenciais e que se expressa em sua pura literalidade de coisa. Para ele, a imagem-foto não é representação, mas criação. Da mesma forma que para Baudrillard entre fotografia e referente não há correspondências, como diz:

Entre a realidade e sua imagem, a troca é impossível. Há, na melhor das hipóteses, uma correlação figurativa. A realidade “pura”, se é que isto existe, permanece uma pergunta sem resposta. E a foto é também uma

36 Robert Frank também é cineasta, e em muitos de seus filmes edita trechos onde debate sobre

imagem e fotografia, como, por exemplo, em Life Dances On, 1980, PB e cor, 30 minutos, em16mm

37 Citado por BROOKMAN, 1991, p.159. 38 BAUDRILLARD, 2002, p.144.

39 Ibid, p. 147.

40 RAMOS, 1997, p.66.

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pergunta à realidade pura, uma pergunta ao Outro, que não espera resposta42.

A condição a que se refere Baudrillard, da troca impossível, é a própria irrealização inerente ao fotográfico. Entre o mundo e sua imagem, mas também entre a imagem fotográfica e espectador. À decepção com uma realidade entregue à superficialidade da imagem seria preciso opor a decepção com uma imagem entregue à expressão do real, problematiza o filósofo. Uma foto é puro efeito de superfície, que atrai na mesma medida em que joga ao vazio. Sem dúvida, isso engendra um mecanismo que nos mantém reféns do desejo de desejar porque o atravessamento do profético só existe enquanto imagética. A promessa que ressoa da fotografia envolve a cintilação de um desejo, inapreensível como matéria fora do mundo dos afetos. E, supondo que este pulso de vida desperte da vigília constante a qual estamos submetidos, poderíamos até pensar na fotografia como uma espécie de terrorismo. Assim, em Polaroids, a fotografia não é expressão de mundo ou de um autor. Frank opera onde vislumbra Baudrillard, na recuperação da potência da imagem como encarnação e de sua libertação do real, pois é somente conferindo à imagem a sua especificidade (seu “idiotismo”, diria Rosset) que o próprio real pode encontrar sua verdadeira imagem...43

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3. IMAGEM-ACONTECIMENTO OU A INVENÇÃO DO PRÓPRIO ROSTO

Na série Polaroids, Robert Frank constrói situações submetendo-as à organização do imaginado, premeditações que somente podem ser concretizadas no plano da imagem e do pensamento. O que ele realiza, no sentido de tornar real uma enunciação, é sempre invenção de novos termos para um jogo que se supõe infinito. O que nos interessa compreender nesse momento é a identidade desse rosto inventado que se dá como imagem.

Fig. 06: Robert Frank, No projector could do justice... Colagem com quatro impressões de gelatina de prata com negativos polaróides e faixas de papel datilografadas, montados num papel cartão,

54,6 x 67,3 cm, 1996. Fonte: Hold Still Keep Going, 2001.

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tudo se passa na fronteira e ao longo da cortina, desmistificando a idéia de uma falsa profundidade, segundo Deleuze44. A performance que acontece nesta imagem também faz negar a condição de uso da fotografia como fixação de eventos passados, de instrumento de memória e testemunho, colocando-a em outro tempo. Para Roland Barthes a idéia de performance só existe no tempo presente da enunciação na medida em que todo Texto é escrito eternamente aqui e agora, como diz:

...escrever não pode mais designar uma operação de registro, de verificação, de representação, de “pintura” (como diziam os clássicos), mas sim aquilo que os lingüistas, em seguida à filosofia oxfordiana, chamam de performativo, forma verbal rara (usada exclusivamente na primeira pessoa e no presente), na qual a enunciação não tem outro conteúdo (outro enunciado) que não seja o ato pelo qual ela se profere...45

Assim, a encenação de No projector could do justice... (figura 06, p.33) desloca a idéia de “acontecido” para o que “acontece”, requerendo com esse deslocamento um novo cálculo em torno do trabalho. Ela extingue a noção temática, ou referências formais em relação à fotografia, exigindo novos pressupostos e instrumentalizações de abordagem, por exemplo, em relação à noção temporal.

Assim, uma analogia que No projector could do justice... pode sugerir é a noção de tempo a partir da concepção platônica, que inclui tanto o tempo cronológico como o Aion, como analisados por Deleuze em “A Lógica do Sentido”. O tempo cronológico é o tempo linear dividido em passado, presente e futuro e cuja efetuação dá-se somente no presente, pois,como explana Deleuze,só os corpos existem no espaço e só o presente no tempo46. O Aion, por sua vez, é o tempo sentido como puro devir, em que passado coexiste com futuro de modo indissociável e vice-versa. Este tempo remete à ordem doincalculável e do fora dos eixos, e não se efetua no presente. Nesta imagem propositiva de Frank, esses dois tempos sobrepõem-se; se, por um lado, algo acontece pela via da performance deslocando o passado para o presente, e é quando temos a experiência de Chronos; por outro lado, o devir aparece como identidade-infinita. A identidade-infinita compõe a impossibilidade de cristalização de um estado dado pelo saber, sua característica é o paradoxo que desliza incessantemente em dois sentidos ao mesmo tempo e infinitamente. Se finalizassem não viriam a ser, mas seriam, diz Deleuze47. E assim lidamos com a tela em branco que insiste em ser, em ordens diferentes e tempos concomitantes, como um fluxo que sempre avança. “Em que sentido, em

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que sentido?” pergunta Alice, no País das Maravilhas, pressentindo que é nos dois sentidos ao mesmo tempo...48.

New Years Day (figura 01, p.19) também nos provoca a criar uma analogia em relação aos dois tempos analisados por Deleuze. Uma paisagem murmurante é fixada pela fotografia na qual uma data passada, New Years Day 1981, inscreve-se no presente (para o leitor). Tudo está congelado nos dois fotogramas deste díptico. Matéria-morta? Deleuze nos alerta: nada mais perturbador que os movimentos incessantes do que parece imóvel49. O leitor lê no seu presente um passado que esteve sendo presente, vislumbrando imbricações de tempos juntados num bloco de várias medidas. Diante deste bloco, o devir: a paisagem que flutua na janela sem alcançar sua cristalização, uma paisagem que está sempre se transformando, no “entre” de um paraíso perdido e na desolação de um futuro que a toda natureza destrói. Para Deleuze, o paradoxo é o da contemporaneidade do passado com o presente que ele foi: nunca um presente passaria se ele não fosse “ao mesmo tempo” passado e presente, nunca um passado existiria se ele não tivesse sido constituído “ao mesmo tempo” em que foi presente50. E assim, as proposições de Frank traçam outra história do tempo que agora é pelo menos duas, e que estão entrelaçadas de tal modo que não há como destramá-las.

48 Citado por DELEUZE, 1998, p.03, grifo do autor. 49 DELEUZE, 1992, p.195.

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Fig.07: Robert Frank, 4 AM, Make Love to Me, impressão de gelatina e prata de negativo Polaroid, 40,4 x 50,8 cm, 1979. Fonte: The Lines of My Hand, 1989.

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Orgulhosa, flexível, gentil, forte, presente e ausente, qualquer papel que ela atue no trabalho de Frank, ela está lá. Isto indica a partida de Frank da corrente central do modernismo americano, caracterizado esteticamente e ideologicamente pelos mitos da masculinidade... com mulheres objetos e personagens masculinos51.

Fig.08: Edward Weston, Tina on the azotea, reprodução, 1923. Fonte: HOOKS, Margaret. Tina Modotti - photographer and revolutionary. London: Pandora, 1993, p.25.

De fato Robert Frank enfatiza o despojamento e o ruído, a fragmentação e o êxtase, categorias que confiscariam seu trabalho para a idéia de anti-mercadoria na sociedade contemporânea. Ao contrário de Edward Weston, fotógrafo-ícone do modernismo norte-americano que alcançou reconhecimento promovendo através de belas paisagens e corpos sensuais a idealização da sensualidade, Frank não se relaciona com a construção de um ideal relacionado ao mundo do vivido, o que ele faz é gerar situações no plano imagético. Mesmo que as fotografias de onde parte Robert Frank sejam fotos íntimas, essa ligação desaparece em nome de uma questão mais apropriada: a de alcançar o campo do sujeito que por si é indeterminado. Em 4 AM, Make Love to Me (figura 07, p.36), o que impera na escrita da luxúria não é um desejo pessoal. Trata-se do desejo em seu alcance mais amplo, cidadão do mundo52. Nesse sentido, a singularidade desta imagem é pré-individual, e podemos pensar que sucede sem fechar-se sobre si num dentro, mas participa do movimento imanente da vida. Importante reiterar essa distinção, pois, se a inscrição de Robert Frank no mundo se

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desse de forma expressiva, na pura reflexão de um “eu”, seu trabalho ficaria reduzido. Em “gramática da intimidade”, por exemplo, texto em que Ribbat explora Frank como um poeta americano, seu título não deve ser confundido com a intimidade do fotógrafo. Porque, se tomássemos o espaço deste trabalho a partir da biografia do autor, todo o esforço de conceber Polaroids como inflexão de linguagem no campo da arte falharia, voltaríamos a cair nas categorias obra, significado e representação, das quais, em respeito às linhas teóricas que escolhemos para o desenvolvimento deste trabalho, estamos nos apartando. Sobre a relação entre autor, biografia e obra, Marguerite Duras comenta:

Nunca se conhece a história antes que ela seja escrita. Antes que tenham desaparecido as circunstâncias que levaram o autor a escrevê-la. E, sobretudo, antes que tenha sofrido no livro a mutilação do passado, do corpo, do seu rosto, de sua voz, antes que ela se torne irremediável, que adquira um caráter fatal. Eu diria também: que num livro ela tenha se tornado exterior, carregada para longe, separada de seu autor e para ele perdida pela eternidade por vir53.

Se nas imagens de Polaroids encontramos a combinatória de elementos múltiplos de linguagem que performam a partir, e muito além, do que se poderia considerar uma obra concreta com um significado a ser encontrado, a noção de prática significante é que nos serve de guia condutor para a reflexão sobre as problematizações que estão colocadas no trabalho do fotógrafo.

Roland Barthes, nos textos “A Morte do Autor”, de 1968, e “Texto (teoria do)”, de 1973, reflete sobre a possibilidade de ver surgir através de um encontro de diferentes campos (e no caso cita o marxismo, o freudismo e o estruturalismo), um objeto que seja verdadeiramente novo, o Texto. Parece importante ressaltar que, para ele, o Texto nasce de uma nova ordem e não como uma nova abordagem de um objeto antigo54. Barthes assim coloca: O sentido, ou se preferirem, o escopo dessa busca é substituir a instância da realidade (ou instância do referente), álibi mítico que dominou e ainda domina a idéia da literatura, pela própria escritura55. O que entra em jogo na literatura, e por extensão em nosso argumento porque também articula o trabalho artístico incluindo o campo imagético, é a destituição do discurso do autor como forma de expressão para o que Barthes, baseado nas definições de Julia Kristeva, chama de prática significante. A prática significante abole a idéia de significado e

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Fig. 02: Robert Frank, Roots, cópia de gelatina de prata de 2 negativos polaróides, 50,8 X 40,6 cm,  1996
Fig. 03: Felix González-Torres, Untitled (Me and My Sister), quebra-cabeças  de fotografia colorida com saco plástico, 19,1 x 24,1 cm, 1998
Fig 04: Monuments for my daughter Andrea, 1954-1974. Impressão de gelatina de prata de negativo  Polaroid, 49,6 x 39,8 cm, Mabou, 1975
Fig 05: Fita de Moebius. Fonte: retirada em 12/01/09 às 18hs
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Referências

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