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DataGramaZero - Revista de Ciência da Informação - v.12 n.1 fev11 ARTIGO 02

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DataGramaZero - Revista de Ciência da Informação - v.12 n.1 fev11 ARTIGO 02

Patchwork como princípio de produção e organização do conhecimento

Patchwork as a principle of knowledge production and organization

por Solange Puntel Mostafa e Denise Viuniski da Nova Cruz

Resumo: A poesia americana de Walt Whitman (1819-1892) e sua máxima Carpe Diem, famosa após o filme Sociedade dos Poetas Mortos, conjugada com a filosofia americana de mosaicos de William James (1842 – 1910), e com as multiplicidades da filosofia da diferença de Gilles Deleuze (1925-1995) são analisadas na questão do fragmento e da fragmentação. A figura da colcha de retalhos é proposta como princípio de produção e organização do conhecimento, tendo em vista a lógica das relações no empirismo e pragmatismo americanos, em que o conhecimento é construído pouco a pouco, pedaço por pedaço, por meio de junções sucessivas; a conjunção “E” aponta para junções disjuntivas na poesia de Whitman e nas filosofias analisadas; a conjunção “E” também é analisada na Ciência da Informação com a ênfase nos aspectos intangíveis da informação no conceito de informação-como-afeto e informação-como-acontecimento, abordagens pouco estudadas pela Ciência da Informação.

Palavras-chaves: Patchwork; Pragmatismo americano; Organização do conhecimento; Produção do conhecimento;

Informação como um evento; Informação como afeto.

.

Abstract: The American poetry of Walt Whitman (1819-1892) and its maximum Carpe Diem, famous expression after the movie Dead Poets Society, in conjunction with the American philosophy of mosaics by William James (1842-1910), and the multiplicities of the philosophy of difference by Gilles Deleuze (1925-1995) are analyzed on the issue of

fragmentation. The figure of patchwork is proposed as a principle of production and organization of knowledge in view of the logic of relations by American pragmatism, in which knowledge is built step by step, through successive joints; the conjunction “and” points to disjunctive joints in the poetry of Whitman and mentioned philosophies; the conjunction “and”

is also discussed in Information Science with intangible aspects of information being highlighted in the concept of information-as-affect or information-as-event, approaches less studied in Information Science.

Keywords: Patchwork; American pragmatism; Knowledge organization; Knowledge production; Information-as-event;

Information-as-affect.

Literatura e fragmentação

A poesia americana de Walt Whitman (1819-1892) ficou mundialmente conhecida a partir do filme Sociedade dos Poetas Mortos, em que a máxima Carpe Diem dá o tom do roteiro e da trama do filme. Vejamos um trecho da poesia:

Aproveita o dia,

Não deixes que termine sem teres crescido um pouco.

Sem teres sido feliz, sem teres alimentado teus sonhos....

Não abandones tua ânsia de fazer de tua vida algo extraordinário.

Não deixes de crer que as palavras e as poesias sim podem mudar o mundo.

A técnica inovadora dos poemas de Whitman, nos quais a ideia de totalidade se traduziu no verso livre, influenciou não apenas a literatura americana posterior, mas todo o lirismo moderno,

incluindo o poeta português Fernando Pessoa (1969), que a ele dedica os longos versos escritos em 1915:

De aqui de Portugal, todas as épocas no meu cérebro, Saúdo-te, Walt, saúdo-te, meu irmão em Universo ...

Sou dos teus, desde a sensação dos meus pés até à náusea em meus sonhos...

Olha pra mim: tu sabes que eu, Álvaro de Campos, engenheiro, Poeta sensacionista,

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Não sou teu discípulo, não sou teu amigo, não sou teu cantor, Tu sabes que eu sou Tu e estás contente com isso!

Nesta saudação a Walt Whitman, Alvaro de Campos, o heterônimo de Pessoa, dá a ideia da fórmula de Rimbaud (eu é outro) não só na fusão do poeta com o mundo mas na fusão de tudo quanto existe; Pessoa segue dizendo: “... Não quero intervalos no mundo! Quero a contigüidade

penetrada e material dos objetos! Quero que os corpos físicos sejam uns e outros como as almas”

(Pessoa 1969: 209 Apud Campos e Kuhn 2005). Os paralelismos entre os dois poetas em Song of myself de Whitman e Saudação a Walt Whitman de Álvaro de Campos, são analisados por Campos e Kuhn (2005) como o princípio do artifício poético.

Essa introdução à poesia de Whitman tem o intuito de introduzir o pequeno capítulo que Deleuze dedica ao poeta americano no livro Critica e clínica (1997, p. 67). Deleuze inicia o capítulo confessando-se, como europeu, instigado diante das afirmações do poeta que se diz no dever de escrever em fragmentos, sendo a fragmentação, a marca da América, país de imigrantes, feito de Estados Federados: “... por toda parte há coleção de fragmentos, assediada pela ameaça da Secessão, isto é, da guerra. A experiência do escritor americano é inseparável da experiência americana, mesmo quando ele não fala da América” (Deleuze, p.68).

Essa característica fragmentária da literatura americana sinaliza, para o filósofo, a enunciação coletiva de um povo, mas também de todos os povos. Deleuze lembra Kafka, para quem não há história privada que não seja imediatamente pública, política e popular. “A América coleta extratos, apresenta amostras de todas as épocas, todas as terras e todas as nações. Ali a história de amor mais simples já coloca em cena Estados, povos e tribos”(Deleuze).

Herman Melville, outro romancista americano, de quem Deleuze é fã inveterado, observa que os americanos não têm obrigação de escrever como os ingleses, o que mereceu o seguinte comentário de Deleuze: “É preciso que eles desfaçam a língua inglesa e a façam escorrer segundo uma linha de fuga: tornar a língua convulsiva” (Deleuze p. 69). Fazem-no, entretanto, remodelando um princípio caro à filosofia inglesa que é a exterioridade das relações em relação aos termos

relacionados. O que lhes permite ver o mundo como colcha de retalhos, de pedaço em pedaço não totalizáveis. Se as partes são fragmentos que não podem ser totalizados, as relações entre as partes podem e devem ser inventadas, criadas. As relações passam a ser o motor da história e da natureza;

a síntese empirista e pragmatista dos anglo-saxões não é nunca a dialética materialista e histórica dos europeus, pois essa lhes parece moralista e detentora da verdade; já a síntese empírica

prescinde da verdade como adequação do sujeito ao objeto, sendo mais uma questão de condução, crença ou confiança.

Na noção de devir, Deleuze vai explicar que a natureza para Whitman se apresenta como processos de correlação e não como forma: correlação entre sons, movimentos e cores (a abelha e a flor), natureza que é convívio entre viventes heterogêneos, em “... processos de convivialidade, que não são dados pré-existentes...”, mas, relações acontecimentais. “As relações não são interiores a um todo, é antes o todo que decorre das relações exteriores em tal momento e que com elas varia”

(Deleuze, p.71).

Nas relações, por fim, do homem com o homem, a palavra-chave da poesia e literatura americanas é a “... Camaradagem, a grande palavra de Whitman para designar a mais elevada relação

humana... traços particulares... da interioridade dos fragmentos envolvidos (por exemplo, no hospital, instaurar com cada agonizante isolado uma relação de camaradagem...)” (Deleuze).

Esta coleção de relações variáveis não se confunde com o todo, mas expressa o todo que o homem é capaz de conquistar, nesta ou naquela situação. Deleuze ainda sugere que a “Camaradagem é esta variabilidade, que implica um encontro com o Fora, uma caminhada das almas ao ar livre, na “grande-estrada”. (Deleuze).

A sociedade dos Camaradas é o sonho revolucionário americano, sonho traído bem antes que o da

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sociedade soviética, como analisa Deleuze (Deleuze, p. 72). O homem migrante na grande estrada é aquele que habita os intervalos, na bela análise de Lapoujaude (2009). Ele está entre os

conhecimentos que abandona e aqueles que não adquiriu ainda, diferentemente do homem

provinciano que não abandona seus conhecimentos pois não sai da província, não se movimenta. O que move o homem migrante, diz Lapoujaude é um segredo, uma simpatia; o conhecimento

migratório é uma relação afetiva, de simpatia, pois nunca migramos sozinhos, Sempre há alguém com quem nos simpatizamos. Conhecemos por intermédio do outro, mas não nos fusionamos com o outro, apenas nos afetamos pelo outro. Lapoujade diz então, em sua inspiração espinosista, que não conhecemos o outro por sua história, mas pelos movimentos que ele pode fazer. Para conhecer, o verbo é seguir. Ou deambular, traçando linhas em ziguezague, que ligam e podem ligar novas realidades, novas verdades.

Filosofia e fragmentação

Nesta maneira bonita de entender o migrante, há também, em Lapoujaude, a inspiração do pragmatista americano William James (1842 – 1910), de quem ele é um estudioso. Se a literatura americana identificada por Deleuze, na experiência do território americano com seus movimentos migratórios, traz as características deste desbravamento, a filosofia correspondente de William James vai falar em deambulação. Deambular não significa que o conhecimento esteja submetido à errância, mas que ele se faz pouco a pouco, por meio de junções sucessivas: “Nosso conhecimento cresce por pontos. Os pontos podem ser pequenos ou grandes, mas o conhecimento jamais cresce por inteiro: algum conhecimento antigo sempre permanece o que foi” (James, 1979 p.60). É Deleuze que vai destacar, então, a característica de patchwork do pragmatismo americano: “... os americanos inventaram a colcha de retalho, no mesmo sentido em que se diz que os suíços inventaram o cuco” (Deleuze apud Lapoujade, 2000, p. 274). O conhecimento consiste em construir um patchwork numa tecitura em pedaços .

A constituição da nação americana em sua condição fragmentária faz Deleuze entendê-la como um mundo em arquipélago, em que uma comunidade de exploradores irmanados, substitui o

conhecimento pela crença e pela confiança. Sociedade de irmãos. Para que esta comunidade seja possível, o conhecimento e a verdade passam a ser uma questão de confiança e de crença. Dirá Deleuze que não entenderemos o pragmatismo americano se o classificarmos como uma filosofia sumária ou utilitarista, base da economia capitalista, como fez a crítica europeia, a partir do seu ponto de vista dialético-marxista. O migrante americano, autor desta literatura e criador desta filosofia, percorre um tempo entre as primeiras comunidades de pioneiros e a expansão da industrialização, portanto estão situados entre 1850 e 1920, o que os faz mais itinerantes do que homens de negócio, participando do capitalismo americano de uma maneira muito particular, na exploração do território, na construção de estradas e de paradas provisórias, a modo de um arquipélago. São operários nômades, distantes dos sindicatos, nos movimentos demissionários da economia capitalista que os força a deambular, a seguir na grande estrada.

Por isso a noção de patchwork na filosofia de William James permite pensar não apenas o conhecimento, mas o mundo como um sistema de redes, antecipando as redes de comunicação contemporâneas: patchworks e networks são relações construídas passo a passo, pedaço por pedaço, como um grande tecido que não se fecha, porque sempre aberto a novas relações e novas associações. James fala então de uma filosofia em mosaico: “Nós mesmos criamos constantemente conexões novas entre as coisas, organizando grupo de trabalhadores, estabelecendo si temas postais,... rede de vias férreas... que nos relacionam e nos unem por meio de uma rede cuja amplitude se estende...” (James apud Lapoujade, 2000, p.274-5).

Pois bem, essa constituição fragmentária do conhecimento e do mundo não pode obscurecer o plano de imanência de uma experiência pura na qual estamos desde sempre mergulhados, antes de sermos sujeito e objeto; pois para ser empirista radical, é preciso considerar a experiência de um ponto de vista amplo, em que as coisas entrem em relação, sem que se tenha consciência desta relação, como se pudéssemos regredir a uma condição larvar para entrar em relação com os outros seres do Universo. O plano de imanência age como um crivo no caos, explicam Deleuze e Guattari

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(2005, p.59); o caos não é um estado inerte ou uma mistura ao acaso; o plano de imanência é ao mesmo tempo o que deve ser pensado e o que não pode ser pensado e tem duas faces: como pensamento e como natureza, como physis e como nous.1

Este campo transcendental da experiência pura jamesiana ou do plano de imanência deleuziano é um campo já percorrido por relações como um tecido é percorrido por fibras ou linhas. ‘Gigantesco tear’ dirão Deleuze e Guattari, já que o plano não pára de se tecer. Plano de virtualidades puras, caos das relações possíveis e virtuais; O virtual é a condição transcendental de toda experiência. E para ser empirista radical, na concepção de William James, é preciso abrir mão dos Universais, pois só os particulares existem na vida real, mas também é preciso acessar este campo virtual, que envolve o real mas, que não se traduz em universalismos. Antes se traduz por multiplicidades, que é o terceiro princípio do rizoma deleuzo-guatarriano. Uma multiplicidade de atuais e de virtuais. Pois a todo atual corresponde um virtual. É uma correspondência sem semelhança, em que o virtual em nada se parece com o atual.

Ao aproximarmos James e Deleuze, dois grandes filósofos de séculos diferentes o que fazemos é colocá-los em um mesmo plano de imanência, dada a proximidade dos conceitos filosóficos que criaram (experiência pura e plano de imanência), no tempo estratigráfico da filosofia. Deleuze define a sua filosofia como uma teoria das multiplicidades, da mesma maneira que James identifica o seu pragmatismo ou empirismo radical a uma filosofia de mosaico. Em outra oportunidade, trouxemos a este mesmo plano, empirista e radical, David Hume, pois, desde que considerada a leitura deleuziana de Hume, essa aproximação é possível (Mostafa, 2010).

Este plano de imanência pré-subjetivo e pré-individual apresenta apenas acontecimentos ou mundo possíveis como conceitos, visto que o conceito, nessas filosofias empíricas radicais não é cópia das coisas, não é representativo. Outrem, como ‘mundo possível’ é um conceito filosófico criado por Deleuze e Guattari justamente para mostrar que não há sujeitos ou objetos neste plano genético e cosmológico, mas apenas relações e são elas que fazem o mundo passar (Mostafa e Nova Cruz, 2009).

O mundo passa através das experiências que se dão no real, com ou sem a intervenção dos sujeitos.

A experiência é uma categoria central nos empirismos e em todos os pragmatismos. Em James ela é identificada à vivência de criar um percurso e seguir as linhas virtuais deste percurso, por junções sucessivas, por pedaços que se agrupam – por deambulação. Percepções, pensamentos ou emoções são tratados como pedaços ou como fragmentos; isto porque – justamente por se tratar de elemento imaterial, ou afetivo – necessita, para ser expresso, talvez, deste recurso linguístico tão difícil de ser alcançado e tão propriamente reconhecido e estabelecido na filosofia de Gilles Deleuze.

A conjunção ‘e’ na filosofia de William James

James afirma a conjunção ‘e’ em sua compreensão de que as coisas são umas com as outras de várias maneiras mas isso não implica em totalizá-las. “... A palavra ‘e’ arrasta-se através de cada sentença ... o mundo pluralista compara-se assim a uma republica federativa do que a um império ou a um reino” (James apud Ferreira).

Nas conclusões sobre os ensaios em empirismo radical, ele esclarece que no empirismo radical por ele proposto, não existe nenhum fundamento além da experiência pura, e nela, é como se suas partes se unissem por suas bordas, formando as transições experienciadas entre elas. Essas

transições são como bordas ou cimento. Em seguida James esclarece que a metáfora do cimento é enganosa, pois as experiências são sempre transitivas e não necessitam de cimento que as una, até porque qualquer separação experenciada permanece separada até o final. A metáfora do cimento, entretanto, só é válida porque a experiência tomada em seu sentido geral pode crescer a partir de suas bordas.

Para James a vida está nas transições assim como nos termos conectados. Há sempre uma linha na

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qual vivemos prospectivamente tanto quanto retrospectivamente e são essas transições contínuas que nos fazem conhecer o mundo. A linha existencial é do passado, mas dura no presente e é do futuro, desde que o futuro quando vier, a tenha continuado. É de se notar de William James trocava correspondência com o filósofo Henri Bergson, ambos admiradores mútuos. No prefácio em

homenagem prestada ao amigo americano, Bergson explica sobre a verdade no pragmatismo jamesiano: “O verdadeiro, segundo William James, não copia alguma coisa que foi ou que é: ele anuncia aquilo que será ou, de preferência, prepara nossa ação sobre aquilo que vai ser. A filosofia tem uma tendência natural a querer que a verdade olhe para trás. Para James, ela olha para frente” (Bergson, 2006, p. 248).

Ainda no texto conclusivo sobre o empirismo radical, James menciona sobre a continuidade ou a variação contínua dizendo que a cada momento podemos continuar acreditando na existência de um além. (James, 1979, p. 204). Diz também que sua filosofia se harmoniza melhor com o pluralismo radical, com a inovação e o indeterminismo.

A conjunção ‘é’ na filosofia de Gilles Deleuze

Nos Mil Platôs, Deleuze e Guattari (1995, p. 13) mencionam a lógica binária e as relações

biunívocas como impróprias para pensar a filosofia das multiplicidades. O Uno que se torna Dois, é, segundo o filósofo, o pensamento mais clássico e o mais refletido, o mais velho e o mais cansado.

Do lado do objeto, a lógica dicotômica divide um em dois, dois em quatro; e do lado do sujeito pode até comportar-se de forma pivotante ou mais natural, passando de um a três, quatro ou cinco, mas mesmo as relações biunívocas, possibilitadas pela correspondência entre dois conjuntos, em que cada elemento do primeiro conjunto corresponde a apenas um elemento do segundo e, vice-versa, nenhuma dessas duas situações satisfaz a novidade radical com que os autores pensam a

multiplicidade e as relações rizomáticas correspondentes.

A lógica binária seja em sua forma aristotélica que divide os seres por oposição, como na Árvore de Porfírio, seja na dialética hegeliana do ser e não ser - a qual opera por contradição - supõem, ambas, embora de maneiras diferentes, a volta ao Uno, à unidade. Unidade entendida como síntese da multiplicidade. Assim, o gênero em Aristóteles reúne as diferenças específicas das espécies; e em Hegel a contradição por oposição (ser e não ser) retarda a diferença. Deleuze quer eliminar o Uno e entendê-lo já como Multiplicidade. O Uno não é unidade do múltiplo, mas é ele próprio,

multiplicidade. Por isso, é preciso subtrair o único da multiplicidade a ser constituída; escrever a fórmula n-1. Tal sistema poderia ser chamado de rizoma: 2 “A árvore impõe o verbo “ser”, mas o rizoma tem como tecido a conjunção “e...e...e”. há nesta conjunção força suficiente para sacudir e desenraizar o verbo ser”(Deleuze e Guattari, p.37).

Um dos momentos em que Deleuze explica de maneira mais didática a conjunção ‘e’, como a lógica adequada do rizoma ou das multiplicidades, refere-se a uma entrevista sobre o cineasta Jean Luc Goddard (Deleuze, 1992, p. 51-61). O cineasta estava dirigindo e apresentando um programa na televisão francesa, chamado 6 vezes 2. O título indica seis episódios divididos em duas partes de cerca de 50 minutos, exibidos em seis domingos consecutivos. A pergunta então dirigida à Deleuze é: “por que há sempre ‘dois’ em Godard? É preciso haver dois para que haja três ... Bem, mas qual é o sentido desse 2, desse 3?”.

Deleuze responde então que 2 ou 3 não significam nada para Goddard, por ele não ser um dialético.

O que conta para ele, é o E, a conjunção E. Pois estamos de tal forma acostumados com o verbo Ser e suas atribuições (o céu é azul) que mesmo as conjunções são medidas pelo verbo ser no silogismo.

Para Deleuze, a conjunção E é revolucionária porque ela desequilibra o ser, o verbo e faz crescer a colcha de retalhos: “O E, “e...e...e...”, instaura a gagueira criadora, o uso estrangeiro da língua, em oposição a seu uso dominante fundado sobre o verbo ser. O E responde pela diversidade, enquanto multiplicidade ou destruição das identidades.

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E mais: a multiplicidade não está nos termos, não importa sua quantidade. Está no entre, no meio, na fronteira entre um e outro. Há sempre uma linha de fuga para sair de um ou de outro; nesta saída ou fuga, arrastam-se identidades e novos mundos se forjam: "... é sobre essa linha de fuga que as coisas se passam, os devires se fazem, as revoluções se esboçam" (Deleuze, p. 61).

A conjunção ‘e’ na Ciência da Informação

A gagueira da língua, representada pela construção “e...e...e” é fundamental para uma imagem do pensamento que pretende abandonar os grilhões das dicotomias modernas e caminhar em direção a algo novo. A substituição do verbo Ser pela conjunção E, representa o passo determinante que distingue a Modernidade de algo que a sucedeu, por alguns nomeados de Pós-Modernidade e, por outros - como Bruno Latour - como Pré-Modernidade em seu “Jamais fomos modernos” (1994).

Filósofos como Nietzsche, Espinosa, Bergson, William James, Whitehead, Deleuze e Guattari e o próprio Latour, entre outros, compõem um Plano de Imanência que reconhece a legitimidade da potência criadora da vida, que além de Ser (essência), também, - e principalmente - é existência;

exercendo na experiência da vida, as múltiplas potências deste existir (representado pela conjunção E).

A Ciência da Informação, seguindo suas raízes epistemológicas modernas, utiliza-se,

tradicionalmente, de um ferramental teórico e prático advindo dos conceitos da Modernidade.

Assim como outras ciências sociais aplicadas, a Ciência da Informação é filha da Modernidade.

Apesar de já ter sido compreendida por Gernot Wersig (1993) como ciência pós-moderna voltada par solução de problemas, é da sua práxis, tratar o objeto informacional como material

representativo, passível de ser manipulado através do ferramental positivista.

Na noção de informação tal como ela foi pensada pela clássica Ciência da Informação temos um exemplo de fragmentação, colocada por Cintra (2002, p. 20) da seguinte forma: “... enquanto o conhecimento é estruturado, coerente e frequentemente universal, a informação é atomizada, fragmentada e particular; enquanto o conhecimento é de duração significativa, a informação é temporária, transitória, talvez mesmo efêmera...”

Tal contraposição é válida para uma certa imagem de informação e linguagem, em que predomina a noção de “representação”, como é o caso das linguagens documentárias, as quais funcionam como

“instrumentos de comutação” (Cintra, p.34) entre a linguagem dos documentos e a linguagem dos usuários. Assim, as linguagens documentárias dispõem de léxico próprio que são as palavras-chaves, descritores ou cabeçalhos de assunto e de uma sintaxe que é sua forma específica de combinar assuntos; os sistemas de classificação decimais, por exemplo, fazem uso de sinais sintáticos para combinar assuntos; os tesauros fazem uso dos operadores booleanos para a mesma função combinatória. Tudo isso na hipótese de que operações de apontar termos que chamamos

descritores, ou operações de resumo e sumarização podem e devem representar o conteúdo dos textos. Como os textos são permanentemente atualizados, as linguagens documentárias

acompanham este movimento em construções permanentes.

Entretanto, a informação possui, além de ser material e, portanto, passível de ser representada, um caráter imaterial, como bem assinala Michael Buckland (1991), talvez um dos poucos autores a resgatar esta face da informação. Entretanto, é Ronald Day (2006) que tira das constatações de Buckland, possíveis consequências que podem sugerir um tratamento diverso para o objeto da ciência da informação. É deste autor a afirmação que a partir de Buckland podemos tratar a informação como Acontecimento - ironicamente na contramão do próprio Buckland - que se preocupou em enfatizar o caráter material da informação (information as thing). Uma leitura cuidadosa de Buckland não permite a utilização de sua informação-como-acontecimento em um sentido estrito, ou específico, do termo `acontecimento`; este autor lança mão desta palavra mais como sinônimo de evento, ou de fato propriamente dito. É de Day a apropriação desta expressão, conotando um conceito filosófico definido.

Acontecimento é, definitivamente, um conceito filosófico – Intempestivo ou Inatual para Nietzsche,

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Atual para Foucault, Contemporâneo para Agamben (2009) – conceitos estes que foram criados para se contraporem à linearidade e à teleologia das práticas modernas. A substituição do Ser pelo E traz consigo a necessidade da criação de novos conceitos de história, de tempo, de inteligência, de linguagem, de informação, de ciência e assim por diante. Para dar conta de novos conceitos é que aparece a imposição de erigir um Plano onde acomodar todas estas novas criações. Dentro deste novo plano, toda uma gama de novas ferramentas, relações e produções aparecem, movimentando de forma absoluta, o mundo.

Deste ponto em diante temos que, obrigatoriamente, encarar a informação não mais como um objeto meramente representacional, material e de registro formal. Por outro lado, a informação como coisa é inegável, e, para dar conta de sua organização formal a ciência da informação tem desenvolvido métodos e recursos comprovadamente eficazes.

A questão que se impõe é que a matéria, enquanto matéria tende à entropia. Isto é, por uma das Leis da Termodinâmica, bem estudadas na ciência da informação (Araujo, 1995), uma parte da energia gasta em um trabalho qualquer, se dissipa e, portanto, há uma tendência de que a matéria desapareça... é uma questão de tempo... E o que sobra? Quando se perde a pessoa amada, quando morre aquele que se ama, o que permanece? O objeto material do amor desaparece. A matéria se transforma ou se consome. O que fica? Fica o amor, o amor dura... O amor é afeto, é intensivo.

Afeto é imaterial, não obedece às leis da física. Quando desaparece o objeto que nos aterroriza, o que sobra? O objeto da ameaça desaparece, o cão raivoso, a fera é abatida. O que sobra? Sobra o medo, o medo é imaterial, o medo é afeto. O medo fica.

Quando o objeto representacional, esta parte da informação desaparece, o que sobra? O que fica?

O afeto resiste. O afeto existe, a parte imaterial da informação não pode mais ser negligenciada pelos cientistas da informação comprometidos com esta imagem do pensamento. Os cientistas da informação que compõem esta imagem do pensamento, ou que são nas palavras de Agamben, contemporâneos aos autores citados neste texto não têm mais como evitar encarar a informação enquanto afeto.

Novamente, Afeto, é um conceito filosófico. Afetos remetem diretamente a Bento de Espinosa que dedicou sua principal obra – Ética (2009) – para, além de defini-los, explicar de que maneira a potência destes afetos e sua variação através da vida, determinam a trajetória da existência e a constituição da realidade.

Espinosa define ideias e afetos. Para o filósofo, a ideia é um conceito que a mente forma a partir daquilo que o corpo percebe (Spinoza, 2009, p.51-52). A ideia, portanto, trata da “realidade objetiva” das coisas; a ideia é o modo de pensamento representativo. Já o afeto, é o modo de pensar não-representativo. É correto afirmar que o afeto pressupõe uma ideia de algo (que, portanto, remete e representa a coisa em si); entretanto, esta relação, apesar de ser pressuposta e necessária, não favorece um primado do pensamento representativo sobre os afetos, como bem explica Gilles Deleuze em seus cursos sobre Espinosa (2009).

Há, sim, um primado cronológico e lógico da ideia em relação ao afeto, uma vez, como dito acima, há necessidade de se ter uma representação de algo que se quer, ou que se ama, ou de que se tem medo. Entretanto, reduzir o afeto à ideia é reduzir a realidade a uma dicotomia frustrada, fruto das tantas dicotomias da modernidade (sujeito-objeto, mente-corpo, etc). Há ideias e há afetos, sem primazia ou redução: fragmentação sem totalização possível. Para que se compreendam as coisas, para que se organizem a informação e a realidade, estas constatações são fundamentais e

incontornáveis.

Se, as linguagens documentárias tradicionais deram conta do objeto representacional, se a Classificação Decimal de Dewey, CDD e a Classificação Decimal Universal, CDU organizaram as prateleiras das bibliotecas modernas, bem como os tesauros temáticos deram conta de organizar as

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bases de dados, é possível que tenha chegado a hora de criar linguagens documentárias alternativas que possam dar conta destes movimentos do mundo informacional. O que temos estudado e

proposto é – na esteira de Deleuze e Guattari – a proposição de uma Linguagem Documentária Menor (Mostafa e Nova Cruz, 2010), ou toda uma nova maneira de pensar a Ciência da

Informação, uma Ciência da Informação Menor. Ao lado da CDD e da CDU uma possível CDA– Classificação Descritiva por Afetos. O critério de proveniência adotado para organizar arquivos específicos não poderia ser exemplo de uma organização afetiva?

Como vários autores propuseram, em diversas áreas do conhecimento, e com o mesmo temor destes, a conclusão desta colcha de retalhos não poderia ser menos afirmativa e ao mesmo tempo, menos revolucionária do que os poemas de Withman. Nada efêmeros, de maneira alguma

irracionais; pouco representativos, sem dúvida, mas, como bem disse Nietzsche em sua Genealogia da Moral, quanto mais afetos tenhamos sobre o objeto a ser conhecido, mais nos aproximamos dele e de sua objetividade. Trata-se de ser menor, fragmentário, não representacional, novo e

revolucionário para, justamente, alcançar a objetividade. Uma linguagem documentária menor que contribua para melhor compreensão, apreensão, organização e recuperação do objeto

informacional. Repetindo, incansavelmente, que a informação é, a um só tempo – indissociavelmente – sem totalização, coisa e afeto.

Um cientista da informação que reconhece esta nova vertente epistemológica – ou melhor,

filosófica – para sua prática, tem diante de si um imenso desafio. Desafio teórico, de pesquisa e de campo de ação. Tudo a ser pensado, tudo impensável, tudo novo, tudo intempestivo, tudo

contemporâneo, pois, como explica Agamben, o contemporâneo consegue olhar, à noite, para a imensidão do céu, abstrair a luz do brilho das estrelas (que não mais existem) e vislumbrar, na escuridão, as novas estrelas que a maioria de nós ainda não consegue ver.

Notas

[1] Para maiores especificações sobre as características do Plano de Imanência em relação com os conceitos filosóficos, ver Mostafa e Nova Cruz, 2009, p.55

[2] Nos Mil Platôs (v.1, p.11-37) Deleuze e Guattari se preocupam em explicar, didaticamente, as características do rizoma.

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Sobre os autores / About the Author:

Solange Puntel Mostafa smostafa@ffclrp.usp.br

Doutora em Filosofia da Educação pela Puc/SP. Professora de Ciência da Informação e Documentação – Usp, Ribeirão Preto.

Denise Viuniski da Nova Cruz novacruz@novacruz.med.br

Mestre em Educação pela Univali, SC. Professora de Clínica Médica e Semiologia – Univali, Itajaí, SC.

Referências

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