PUC-SP
Paulo Sergio Feuz
Metrologia:
Sua Importância nas Relações de Consumo em Face
ao Sistema Nacional de Defesa do Consumidor
SÃO PAULO
PUC-SP
Paulo Sergio Feuz
Metrologia:
Sua Importância nas Relações de Consumo em Face
ao Sistema Nacional de Defesa do Consumidor
Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP, sob a orientação do Professor Doutor Wagner Balera, como parte dos requisitos necessários para obtenção do título de doutor.
SÃO PAULO
Com a chegada da carta Constitucional de 1988, inaugura-se uma nova fase no Brasil: o
Estado Democrático de Direito. Essa nova fórmula política determina como fundamentos para
sua estrutura a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do
trabalho e da livre iniciativa e o pluralismo político.
Nesse contexto, determinou a tutela dos consumidores consagrada em 1990 com a
chegada da Lei 8.078/90. Referida legislação tem como preocupação central, exposta em sua
Política Nacional das Relações de Consumo atender o consumidor, respeitando sua dignidade,
segurança e saúde, protegendo seus interesses econômicos e visando a melhoria de vida,
instituindo para isso, um Sistema Nacional de Defesa do Consumidor.
Dessa forma, e tomando em conta o conceito de sistema para o direito, é imprescindível a
identificação de subsistemas que possam atender os fundamentos do estado Democrático de
Direito bem como os reclamos da Política Nacional das Relações de Consumo. Para isso, usamos
como ponto central a metrologia analisando todos os subsistemas de direito a ele vinculados,
Upon the enactment of the 1988 Federal Constitution, a new stage takes place in Brazil:
the democratic rule-of-law state. The grounds of this new politics formula are sovereignty
citizenship, the dignity of the human person, and the social values of labor and of free enterprise
system, as we]1 as political pluralism.
In this context, it defined the protection of the consumers, settled in 1990 with the
enactment of Law 8,078/90. The main concern of such legislation, which is presented in its
National Policy for Consumption Relations, is to serve the consumers, by respecting their
dignity, security and health, by protecting their economic interests and aiming at improving their
life quality, thus implementing a National System for Consumer Defense.
For this reason, and taking into account the concept of system for Law, the identification
of subsystems which are able to meet the grounds of the democratic rule-of-law state, as well as
the interests of the National Policy for Consumption Relations are indispensable. To that end, we
take metrology as the central point, by analyzing all of the Law subsystem which are linked to it,
INTRODUÇÃO ... 5
CAPÍTULO I A defesa do consumidor no Estado Democrático de Direito ... 7
1.1 – Estado de Direito e Estado Democrático ... 7
1.2 – Direitos políticos vinculados à soberania e à dignidade da pessoa humana em face do Estado Democrático de Direito e a possibilidade do cidadão articular-se através de canais representativos tendo em vista o pluralismo político ... 14
1.3 – Princípios Constitucionais ... 17
1.3.1 – Soberania ... 18
1.3.2 – Cidadania ... 19
1.3.3 – Dignidade da pessoa humana ... 20
1.3.4 – Valores sociais do trabalho e da livre iniciativa ... 22
1.3.5 – Pluralismo político ... 24
1.4 – Princípios da ordem econômica ... 25
CAPÍTULO II A ideia do Direito como sistema ... 31
2.1 – Breves Considerações ... 31
2.2 – O Direito como sistema - conceito de sistema a partir do pensamento sistemático – uma breve abordagem à teoria de Claus-Wilhelm Canaris ... 41
2.3 – Novas perspectivas para a análise da teoria dos sistemas no direito ... 50
CAPÍTULO III A superação do binômio Direito público versus Direito privado ... 56
CAPÍTULO IV
O Código de Defesa do Consumidor como marco de criação de uma Política
Nacional de Defesa do Consumidor... 66
4.1 – Relação jurídica de consumo ... 66
4.1.1 – Conceito de Consumidor ... 67
4.1.1.1 – Destinatário Final ... 70
4.1.2 – Conceito de Fornecedor ... 74
4.1.2.1 – Conceito de Produto ... 75
4.1.2.2 – Conceito de Serviço ... 77
4.2 – Política Nacional das Relações de Consumo – os direitos básicos garantidos ... 78
4.2.1 – Vulnerabilidade ... 81
4.2.2 – Ação Governamental/Intervenção do Estado ... 82
4.2.3 – Harmonização dos interesses dos consumidores e fornecedores ... 83
4.2.4 – Educação e informação como forma de melhoria do mercado de consumo . 84 4.2.5 – Controle de qualidade e segurança de produtos e serviços e mecanismos alternativos para solução de confl itos ... 85
4.2.6 – Repressão aos abusos praticados no mercado de consumo ... 87
4.2.7 – Racionalização e melhoria dos serviços públicos ... 88
4.2.8 – Estudo constante das modifi cações do mercado de consumo ... 88
CAPÍTULO V Sistema Nacional de Defesa do Consumidor ... 90
5.1 – A criação de um sistema nacional de defesa do consumidor ... 90
5.2 – As Agências Reguladoras ... 96
5.3 – As Agências Executivas ... 98
5.6 – O Sistema Nacional de Defesa do Consumidor ... 105
CAPÍTULO VI Metrologia ... 107
6.1 – Breve escorço histórico e conceito ... 107
6.2 – Tipos de metrologia ... 116
6.3 – Elementos fundamentais da metrologia ... 121
6.3.1 – Método ... 121
6.3.2 – Instrumentos de medição ... 122
6.3.3 – Operador ... 122
6.4 – Abrangência da metrologia legal ... 123
6.4.1 – Produtos pré-medidos ... 124
6.4.2 – Produtos têxteis ... 130
6.4.3 – Produtos de certifi cação compulsória ... 135
6.4.4 – Produtos perigosos ... 141
CAPÍTULO VII Metrologia e Relação de Consumo ... 149
7.1 – A metrologia nas relações de consumo: análise da importância do tema ... 149
7.2 – A incidência da metrologia nas relações de consumo em face do Sistema Nacional de Direito do Consumidor e a Rede Brasileira de Metrologia e Qualidade ... 165
CONCLUSÕES ... 177
INTRODUÇÃO
O processo de constitucionalização sempre foi tema apaixonante daqueles que possuem
o enorme privilégio de estudar o Direito. Os últimos dois séculos, fi zeram aparecer um modelo
de Estado que pretende, através da soberania, criar e impor leis, regulamentando assim o espaço
territorial que denominamos país.
Após largo período de guerras, bem como a grande incidência do movimento liberal,
esse Estado adota um novo modelo, o chamado Welfare State, ou Estado de bem estar social,
que através de organização política e econômica, garante serviços públicos e sociais aos
cida-dãos, fazendo nascer assim, como resposta aos anseios individuais, uma vertente de sustentação
composta por fundamentos claramente indicados.
O século XX viu nascer a imensa necessidade de oferecer uma forma de defender a
so-ciedade que passa a ser uma soso-ciedade de massa, balizada por princípios que trazem uma ordem
econômica capitalista e portanto apta a desenvolver relações de consumo.
Esse Estado, que hoje se planifi ca como Democrático de Direito, está estruturado em
alguns fundamentos e é gerido por grupos de pessoas, com ideologias plurais, que tem por fi
na-lidade atender os anseios do povo.
É nesse sentido que se dá a importância da temática que colocará em discussão a
possi-bilidade de um sistema de defesa daqueles - e para aqueles - que praticam relações de consumo,
sua ingerência, bem como a aparente inefi cácia frente a sociedade nacional.
Diante do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor experimentado ao longo de 20
anos de sua existência, examinaremos as falhas e a pretensa inefi ciência, a fi m de procurar
de-monstrar que por tratar-se se um sistema organizado, com unidade valorativa, possibilita o uso
de instrumentos ou institutos como paradigma de sua regeneração.
Nesse sentido passaremos a apresentar um outro sistema, com sete anos a mais de
expe-riência e que veio a ser estruturado, institucionalizando relações que já existiam desde a década
Trata-se do Sistema Nacional de Metrologia e Qualidade Industrial, criado para fazer
frente as grandes transformações ocorridas no cenário mundial resultantes do livre comércio,
que provocaram a troca das fronteiras geográfi cas, que passaram a ser defi nidas pelas barreiras
e inovações tecnológicas, determinando a necessidade intenso controle dos padrões dos
instru-mentos de medir e das medidas materializadas, bem como de novos padrões de qualidade.
Para essa realidade a Metrologia tornou-se indispensável, atendendo às demandas e
ala-vancar o desenvolvimento do setor produtivo, assim como, no específi co interesse do presente
trabalho, para disponibilizar à sociedade o controle técnico e padronização dos instrumentos de
medir, das medidas materializadas e dos requisitos mínimos de qualidade e segurança dos mais
diversos produtos e serviços, conforme prescreve a própria Lei 8.078/90.
Esse Sistema Nacional de Metrologia, Normalização e Qualidade Industrial,
SINME-TRO, criado pela Lei n. 5.966 de 11 de dezembro de 1973 deu efetividade à metrologia legal,
fundamentando-a em ação normativa estatal, visando assegurar aos bens e serviços o pleno
cumprimento de especifi cações técnicas mínimas, que garantam à sociedade incolumidade nas
relações de consumo, qualidade, saúde, segurança e proteção ao meio ambiente.
Assim, através de garantia expressa em selos e marcas de conformidade ofi ciais, afi
xa-dos nos instrumentos e produtos de consumo disponíveis à população, o SINMETRO
possibili-ta efetivo controle da quantidade e qualidade dos produtos e serviços, enquanto ausência dessa
garantia o Sistema Nacional de Defesa do Consumidor considera prática abusiva (art. 39, inc.
VIII, L. 8.078/90).
Por atuarem como sistemas que se entrelaçam, possibilitam efetivação dos axiomas
pro-postos pelo Texto Constitucional em vigor, para que haja tutela específi ca do direito
consume-rista como garantia constitucional, exsurgindo o Sistema Nacional de Metrologia e Qualidade
Industrial para assegurar que uma pretensa inefi ciência no Sistema Nacional de Defesa do
Con-sumidor, sejam supridas por elementos que possibilitem sua efetivação.
CAPÍTULO I
A DEFESA DO CONSUMIDOR NO ESTADO
DEMOCRÁTICO DE DIREITO
1.1 – Estado de Direito e Estado Democrático
Antes de procedermos qualquer análise sobre a temática proposta, é necessário,
criar-mos um parâmetro para a discussão, o chamado marco teórico fundamental, ou ideia diretriz.1
Dessa forma, e não poderia ser diferente, elegemos a Constituição Federal de 1988 como
ponto de partida para a discussão da temática proposta, demonstrando através de uma análise
dos princípios constitucionais que permeiam a estrutura do Estado Democrático de Direito,
bem como da análise da fórmula política da sociedade brasileira, como discutimos a defesa do
consumidor através de um Sistema Nacional de Defesa do Consumidor que se mostra
aparente-mente inefi caz. O viés da demonstração dessa tutela se dá com a Metrologia, ciência que estuda
as medições pretendendo assegurar a precisão exigida no processo produtivo, garantindo então,
a saúde e a integridade do consumidor.
O constitucionalista espanhol Pablo Lucas Verdú, em sua obra intitulada A Luta pelo
Estado de Direito, diz que:
“existe uma fórmula que exerceu – e ainda exerce – particular fascinação sobre os
juristas. Trata-se da expressão Estado de Direito. Apesar de aparentemente
consti-1 Neste sentido, Carlos A. Sabino, na obra Introdición a La metodologia de La investigación, p. 67diz que “a
tuir um tema simples, caracteriza-se por apresentar sérias difi culdades. Além disso,
implica uma desmedida pretensão: que todo o âmbito estatal esteja presidido por
normas jurídicas, que o poder estatal e a atividade por ele desenvolvida se ajustem
ao que é determinado pelas prescrições legais.”2
Assim, o Estado Democrático de Direito no Brasil, deve pautar-se em cinco
funda-mentos que o legislador indicou, já no primeiro artigo da Carta Política, a saber: a soberania, a
cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e
o pluralismo político.
A ideia de um sistema normativo pautado em fórmula política que tem estrutura de
princípios3 deixa claro que o legislador constitucional não pretendeu criar uma “promessa de
organização estatal” e sim algo que tem como fi nalidade reger todo organismo dele resultante.
É o que diz José Afonso da Silva quando leciona que:
“a confi guração do Estado Democrático de Direito não signifi ca apenas unir
formal-mente os conceitos de Estado Democrático e Estado de Direito. Consiste na verdade, na
criação de um conceito novo, que leva em conta os conceitos dos elementos
componen-tes, mas o supera na medida que incorpora um componente revolucionário de
transfor-mação do status quo. E aí se entremostra a extrema importância do art. 1° da
Constitui-ção de 1988, quando afi rma que a República Federativa do Brasil se constitui em Estado
Democrático de Direito, mas não como mera promessa de organizar tal Estado, pois a Constituição ai já o está proclamando e fundamentando.”4 (grifos nossos)
Portanto eleger como ponto de partida a Carta Constitucional é comungar com a ideia de
que existe um sistema posto, válido e vigente, que organiza nossa sociedade. Vale dizer que essa
2 p. 01.
3 Jorge Miranda, em sua festejada obra Manual de direito constitucional, diz que “a ação imediata dos princípios
consiste, em primeiro lugar, em funcionarem como critério de interpretação e de integração, pois são eles que dão coerência geral ao sistema”, tomo II, p. 199.
ideia de sistema pressupõe, nos dizeres de Eros Roberto Grau, ordenação e unidade (ordenação
interior e unidade de sentido)5, ponto que discutiremos, sem pretensão de esgotar a temática,
em momento oportuno.
A palavra Estado tem no léxico brasileiro, múltipla signifi cação. A nós interessa o viés
que liga Estado ao fenômeno de formalização do próprio Direito.
Assim, desde as primeiras formulações sobre um conceito de Estado, após a dissolução
da sociedade medieval, o objetivo era de que a partir da organização de homens livres, houvesse
a busca pelo bem comum.
O Estado moderno, diferentemente da sociedade medieval, assume uma estrutura de
concentração de poder, poder este que tem o condão de criar o direito, ganhando assim,
legali-dade para tal.
Fazemos aqui um parêntese para elucidar a questão da supremacia do direito positivo
em relação ao direito natural.
Nesse sentido Norberto Bobbio leciona que para os jusnaturalistas a intervenção do
Es-tado, enquanto poder político organizado limita-se a tornar estável as relações jurídicas.6
Referido autor diz que:
“antes da formação do estado moderno, de fato, o juiz ao resolver as
controvér-sias não estava vinculado a escolher exclusivamente normas emanadas do órgão
legislativo do Estado, mas tinha uma certa liberdade de escolha na determinação
da norma a aplicar; podia deduzi-la das regras do costume ou ainda daquelas
ela-boradas pelos juristas ou, ainda, podia resolver o caso baseando-se em critérios
equitativos, extraindo a regra do próprio caso em questão segundo princípios da
razão natural.”7
5 O direito posto e o direito pressuposto, p. 22. 6 O positivismo jurídico, p. 29
O Estado moderno, por sua vez, vincula o juiz à aplicação das normas produzidas pelo
órgão legislativo do Estado, e o direito posto (pelo Estado) passa a ser o único verdadeiro.
Em expressiva lição, Miguel Reale entende que duas são as maneiras de conceber o
direito natural: a transcendente e a transcendental. Para os adeptos da transcendente,
indepen-dente da existência do Direito Positivo e, acima dele existiria um conjunto de imperativos éticos
que seriam expressão da razão divina e não só da razão humana como outrora sustentavam os
jusnaturalistas do século XVIII, havendo, portanto, duas ordens de leis, sendo uma dotada de
validade em si e por si – o Direito Natural, e a outra dotada de validade subordinada e
contin-gente – o Direito Positivo. Já os adeptos da concepção transcendental, afi rma a existência do
Direito Natural apenas como experiência histórica, uma vez que existem valores que trazidos à
consciência histórica, se revelariam como constantes ou invariantes éticas, inamovíveis e que
embora despercebidas pelo intelecto humano, condicionam e dão sentido a práxis humana.8
Para referido autor, adepto da concepção transcendental, as invariantes axiológicas
for-mam o cerne do Direito Natural, dando origem aos princípios gerais do direito.9
Hodiernamente, o primado do Direito Positivo vige através de postulado constitucional
que determina que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em
virtude de lei, conforme o artigo 5°, inciso II da Carta Constitucional. Destarte, ressaltamos que
o Direito Natural se faz presente nos princípios positivados no nosso sistema, de forma a manter
as invariantes axiológicas que condicionam e dão sentido a todas as relações humanas.
Importante a observação feita pelo Professor Celso Antonio Pacheco Fiorillo no que diz
respeito a passagem da esfera da legitimidade para a esfera da legalidade formalizando-se o
Estado sem a fi gura do monarca, e ganhando espaço a norma jurídica.10
Para este jurista
8 Lições preliminares de direito, p. 312 9 Idem p. 314.
“...a passagem da esfera da legitimidade para a legalidade, conforme já
menciona-do em face menciona-dos ensinamentos de Schiera, veio assinalar uma fase ulterior menciona-do Estamenciona-do
moderno, a saber, a do Estado de Direito, fundado sobre a liberdade política (não
apenas privada) e a igualdade de participação (e não apenas pré-estatal) dos
ci-dadãos (não mais súditos) perante o poder, mas gerenciado pela burguesia como
classe dominante, com os instrumentos científi cos fornecidos pelo direito e pela
eco-nomia triunfal da Revolução Industrial”.11
Observamos que a partir desta nova dinâmica e com uma economia orientada pela
Re-volução Industrial, o Estado se situa na condição de ente soberano, permitindo e garantindo
par-ticipação popular, liberdade política, que hoje, ganha status de direito fundamental, eliminando assim, a possibilidade de um Estado autoritário.
O artigo 1º da Carta Constitucional brasileira assume a forma de Estado de Direito, mas
acrescenta a essa fórmula a possibilidade de que esse Estado seja Democrático. É importante
lembrar que a fórmula Estado de Direito, prestigiada por longo passado histórico, tem seu ápice
com o triunfo político da burguesia, em que, por conta do liberalismo, o Direito passa a exigir
que o Estado crie mecanismos de defesa das liberdades individuais.
O Estado de Direito, segundo Paulo Bonavides,
“não é forma de Estado nem forma de governo. Trata-se de um ‘status quo’
institu-cional, que refl ete nos cidadãos a confi ança depositada sobre os governantes como
fi adores e executores das garantias constitucionais, aptos a proteger o homem e a
sociedade nos seus direitos e nas suas liberdades fundamentais. Tanto do ponto de
vista histórico como da inspiração que o fez surgir, até se converter num dos mais
controversos princípios de organização jurídica do Estado contemporâneo –
con-trovérsia maliciosa sobre os seus fundamentos! – o estado de Direito teve sua base
ideológica principal formada à sombra dos combates que a liberdade feriu contra
o absolutismo, razão por que seus laços políticos mais íntimos são com as crenças
liberais da sociedade burguesa do século passado.”12
Verifi ca-se que o liberalismo foi sensível à formação desse novo modelo de Estado, que
perseguia o fi m do absolutismo em favor de liberdades, inclusive políticas, pretendidas pela
sociedade.
Pressupõe como marca desse Estado de Direito, soberania, unidade do ordenamento
jurídico, divisão dos poderes, igualdade formal dos cidadãos perante a lei, reconhecimento de
garantias individuais, civis e políticas, segurança jurídica.
Esse novo modelo de Estado de Direito traz em seu conteúdo alguns valores que são
verdadeiros alicerces que o tornam democrático. Nessa seara, Manoel Gonçalves Ferreira Filho
afi rma que “fundamentalmente são dois os valores que inspiram a democracia: liberdade e
igualdade, cada um destes valores, é certo, com sua constelação de valores secundários.”13 É a
partir desses valores que o Brasil estrutura-se em Estado Democrático de Direito, adotando uma
posição de índole providencialista ou social.14
Logo, o princípio democrático exige desenvolvimento no plano econômico e social e,
“por via de conseqüência exatamente em decorrência dos instrumentos fornecidos
pela Economia e pelo Direito da Revolução Industrial que nos dias atuais devemos
considerar que a Carta Magna de 1988 entendeu por bem estabelecer que a
repúbli-ca Federativa do Brasil não só tem sua base em Estado de Direito, ou seja, Estado
submetido ao regime constitucional, mas especifi camente em Estado Democrático
de Direito adaptado à passagem antes aludida, que guarda ligação direta não só
com a economia orientada inicialmente pela Revolução Industrial, economia esta
12 Teoria do estado, p. 190
13 Curso de direito constitucional, p. 101
14 Manoel Gonçalves Filho explana sobre a democracia de índole liberal e a democracia de índole marxixta, a
que, sem dúvida alguma, teve sua origem na longa luta da ‘classe media’ (Revolução
Gloriosa, Inglaterra, séc. XVII; Revolução Francesa, França, séc. XVIII) visando
destruir a velha ordem feudal substituindo-a por uma nova ordem baseada na livre
troca de mercadorias, com o objetivo primordial de obter lucro, inaugurando, assim,
o sistema capitalista”.15
Resta claro que o legislador constitucional adota essa posição quando diz que a
Repúbli-ca Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito
Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito, tendo como fundamentos a soberania,
a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa
e o pluralismo político.
Importante elucidar que o legislador concedeu a prerrogativa da participação popular
ao cidadão. Portanto, no afã de atender os interesses do povo brasileiro, o cidadão pode
ar-ticular-se e criar partidos políticos, que controlarão, por conseguinte, o Estado Democrático
de Direito.
É a determinação da Carta Constitucional que entende, em seu artigo 14 que a soberania
popular será exercida através do sufrágio universal e pelo voto direto e secreto - com valor igual
para todos.
Ademais, determina liberdade de criação, fusão, incorporação e extinção de partidos
políticos, que darão ensejo à efetivação da própria democracia no nosso país, desde que
obser-vados a soberania nacional, o regime democrático, o pluripartidarismo, os direitos
fundamen-tais da pessoa humana. Fica claro a intenção do legislador ao permitir articulação popular16, no
sentido de atingir a efetivação de um estado de direito que se tornará Estado Democrático uma
vez que obedecer aos fundamentos que o sustentam.
15 Celso Antonio Pacheco Fiorillo, Princípios do direito processual ambiental, p. 4
16 Neste sentido é garantido a qualquer cidadão participar, bem como criar, incorporar ou mesmo extinguir partidos
O Estado de Democrático de Direito, guarda, portanto, vinculo com a estrutura política
do nosso país. É o que vemos em lúcida lição de Celso Antonio Pacheco Fiorillo, quando diz
que “a soberania popular, a cidadania e a dignidade da pessoa humana, são efetivadas concre-tamente no âmbito do direito positivo não só através do sufrágio universal como da participa-ção concreta dos partidos políticos no cenário nacional.”17
Logo, pensar em efetivar a estrutura Democrática em um Estado, é pensar em
concreta-mente viabilizar os fundamentos desse Estado, através da iniciativa popular.
1.2 – Direitos políticos vinculados à soberania e à dignidade da pessoa humana em
face do Estado Democrático de Direito e a possibilidade do cidadão
articular-se através de canais reprearticular-sentativos tendo em vista o pluralismo político.
Entende-se por direitos políticos o conjunto de direitos que permitem a participação
popular no governo.
Da simples leitura desse conceito, observamos que os direitos políticos não estão
ads-tritos apenas à capacidade eleitoral ativa, mas muito mais que isso, são alicerces para que a
de-mocracia se desenvolva deixando de lado qualquer modelo autoritário de governo, permitindo
ao cidadão, intervenção na vida pública do país.
Para elucidar a temática, importante a transcrição de trecho da obra do constitucionalista
pernambucano Luiz Pinto Ferreira que diz:
“a concepção dos direitos políticos se desenvolveu principalmente com a
contri-buição dos juristas ingleses e franceses da época do liberalismo. Locke, no ensaio
do governo civil e Blackstone, nos Comentários às leis da Inglaterra, são os seus
paladinos entre os britânicos, como Rousseau e Sieyés o são entre os franceses. À
revolução de 1789 da França se deve uma oportuna classifi cação dos direitos, no
seu interesse de limitar o Poder Público em benefício das liberdades, como é o fi m
do chamado Estado de Direito.”18
Com a chegada de um modelo de Estado de Direito, fortemente marcado pelos ventos
do liberalismo, surgiu a necessidade de repensar a forma pela qual a sociedade participaria no
próprio processo histórico de formação.
Conforme citação acima transcrita, as liberdades urgem serem tuteladas pelo Estado,
que passa a ser estrutura que viria a desenhar o novo modelo de sociedade.
Essa participação popular foi ganhando espaço, até que por conta do advento da
Cons-tituição Federal de 1988, cria-se verdadeira regra do jogo para que a democracia se desenvolva
no país.
No Brasil, é o artigo 14 da Carta Política que determina como será o exercício da
sobe-rania popular e indica que se dará através de plebiscito, referendo ou iniciativa popular.
O direito do cidadão de votar e ser votado19, de exercer e fi scalizar atos do poder são
delineamentos do Estado Democrático.
Desta feita, importante ressaltar a criação de partidos políticos20, partidos estes que farão
a ingerência do poder, tendo por fi m maior conferir uma existência digna à pessoa humana.
Sem os partidos políticos não há como organizar uma sociedade democrática, visto ser
por meio deles a externalização da vontade popular.
18 Curso de direito constitucional, p. 173
19 Flavia Lages de Castro quando trata da entrada do sistema eleitoral no Brasil, diz que “as eleições, de qualquer
nível, era, feitas de maneira a facilitar a fraude. O candidato não precisava estar cadastrado, não precisava per-tencer a nenhum partido, as cédulas eleitorais não eram ofi ciais (muitas vezes eram utilizadas as cédulas dadas pelos cabos eleitorais ou recortadas de jornais) e, principalmente, o voto não era secreto.”, História do direito – geral e Brasil, p. 424
20 Kildare Gonçalves Carvalho, em obra de fôlego intitulada Direito Constitucional, descreve que “os precursores
É o que diz Manoel Gonçalves Ferreira Filho:
“a importância do sistema de partidos para a caracterização do regime político é
reconhecida de modo pacífi co desde a obra magistral de Duverger (Les partis, cit.).
Os partidos são necessários à democracia na medida em que, por meio deles, se
processa a formação política do povo, na medida em que se formulam as opções,
escolhendo homens capazes de executá-las, que serão submetidas à escolha de
elei-torado. Sua formação deve estar sufi cientemente aberta para que novas ideias,
no-vos programas possam chegar à escolha popular; sua ação deve ser livre para que
possa preencher sua função.”21
Essa organização de homens com opinião igual sobre a forma de gerencia do poder, que
buscam trabalhar em função do interesse nacional, tem autonomia para defi nir sua estrutura
interna, vedada a sua utilização para fi ns de organização paramilitar.
É, pois, através desses partidos que o cidadão viabilizará a estrutura do Estado
De-mocrático de Direito, ou nos dizeres de José Joaquim Gomes Canotilho, “a articulação do
‘direito’ e do ‘poder’ no Estado constitucional signifi ca assim, que o poder do Estado deve
organizar-se e exercer-se em termos democráticos. O princípio da soberania popular é, pois,
uma das traves mestras do Estado constitucional. O poder político, deriva do ‘poder dos
cidadãos’.” 22
Podemos afi rmar que combinando a necessidade dos partidos políticos, que tem garantia
plural de desenvolverem sua ideologia, com a possibilidade de articular soberania dentro de
dado território, com a fi nalidade de garantir vida digna aos cidadãos, é que estamos diante de
um verdadeiro Estado Democrático de Direito que por óbvio pretende atender aos preceitos da
Carta Constitucional vigente.
21 Curso de direito constitucional, p. 106
Esta é a importância de tratar o tema sob o viés da tutela do consumidor (leia-se cidadão)
através de um sistema nacional de defesa, que vem se mostrando inefi ciente, conforme iremos
verifi car, de sorte que resta, para que esse cidadão tenha preservadas saúde e dignidade, o uso
de alguns mecanismos de controle, como por exemplo, os propostos pela metrologia.
Entretanto, antes de adentrarmos ao tema propriamente dito, é imprescindível
analisar-mos como esse sistema de defesa irá se iniciar no Brasil, e como ele se entrelaça com a ordem
vigente, o que faremos em capítulo específi co.
1.3 – Princípios constitucionais
Necessário se faz, por todo o acima exposto, a análise de alguns princípios
constitucio-nais que incidem diretamente sobre a proteção do consumidor dentro do Estado Democrático
de Direito.
É de se ressaltar que as Constituições anteriores não tratavam do tema, sendo essa
pre-ocupação explicitada na Carta Magna de 1988, que consagra, já no Ato das Disposições
Cons-titucionais Transitórias23 a necessidade normativa de referida temática.
Inova a Constituição Federal de 1988 em incluir a proteção de consumidor no tópico dos
direitos e garantia fundamentais, quando determina em seu artigo 5º, XXXII que o Estado
pro-moverá, na forma da lei, a defesa do consumidor. Assim, e conforme já tivemos oportunidade
de dizer24, o direito do consumidor torna-se direito fundamental, isto é, dá destaque à defesa do
consumidor como base constitucional, até mesmo pela busca da igualdade.
Para Rizzatto Nunes, princípios são “dentre as formulações deônticas de todo o sistema ético-jurídico, os mais importante a serem considerados, não só pelo aplicador do Direito, mas por todos aqueles que, de alguma forma, ao sistema jurídico se dirijam”.25 Diz ainda o
renoma-23 O Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, em seu art. 48 diz que “O Congresso Nacional, dentro de
120 dias (cento e vinte dias) da promulgação da Constituição, elaborará código de defesa do consumidor”.
do Professor que: “os princípios situam-se no ponto mais alto de qualquer sistema jurídico, de forma genérica e abstrata, mas essa abstração não signifi ca incidência no plano da realidade. É que, como as normas jurídicas incidem no real e como elas devem respeitar os princípios, acabam por levá-las à concretude”.26
Feliz é o posicionamento de Celso Antonio Bandeira de Melo que leciona:
“princípio é, por defi nição, mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro
alicer-ce dele, disposição que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito
e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência exatamente por
defi nir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica
e lhe dá sentido harmônico. É o conhecimento dos princípios que preside a
intelec-ção das diferentes partes componentes do todo unitário que há por nome sistema
jurídico positivo.”27
É nesse sentido, e por tudo o que ressaltamos até agora, que se faz necessário a verifi
ca-ção dos princípios consagrados pela Constituica-ção Federal que organizam, regem e estruturam
a nossa sociedade.
1.3.1 – Soberania
A palavra soberania tem sua origem, conforme nos explica Kildare Gonçalves Carvalho,
em super omnia, superanus ou supremintas, indicando, segundo o autor, o poder de mando em última instância, de uma sociedade politicamente organizada.28
Mas somente a partir de 1576, com a publicação da obra de Jean Bodin, intitulada “Seis
Livros Sobre a República”, é que o tema soberania ganha contornos tal como conhecemos hoje,
26 Idem, p.182
27 Curso de direito administrativo, p. 545
visto que o autor traça um conceito formal em que determina ser a soberania poder absoluto e
perpétuo da República.29
Em pleno século XVI, com a incidência do movimento iluminista, “a obra de Bodin restringe a soberania limitando-a à lei humana, já que a lei de Deus e a lei natural são inde-pendentes da vontade terrestre, e, por conseguinte, alem dos poderes do homem.”30
A soberania está indicada na Constituição Federal como fundamento do Estado
De-mocrático de Direito, e segundo Celso Antonio Pacheco Fiorillo, não se trata somente de um
fundamento estruturante, mas também de “princípio limitador da ordem econômica previsto no Titulo VII, art. 170, I da Carta Magna”.31
Importante a observação feita por José Afonso da Silva sobre a desnecessidade de
men-cionar a soberania, visto ser ela fundamento do próprio conceito de Estado.32
Soberania do Estado brasileiro implica, portanto, na sua autodeterminação de criar e
impor leis, que têm como fi nalidade a organização da sociedade para seus destinatários fi nais:
as pessoas humanas.33
1.3.2 – Cidadania
Com o advento da Constituição federal de 1988, o conceito de cidadão passa a ser
ob-servado sob a perspectiva dinâmica do sistema, ou seja, é sob a luz do sistema de direito
posi-tivo que devemos interpretar o conceito de cidadão, que, como verifi caremos, passou por uma
fundamental modifi cação.
29 Bruno Yepes Pereira, Soberania interna e a integração no cone sul, p. 21. 30 Ibidem
31 Princípios do processo constitucional, p. 7 32 Curso de direito constitucional positivo, p. 104
33 Celso Antonio Pacheco Fiorillo, em visão contemporânea e lúcida dos fundamentos do sistema positivo,
Os regimes anteriores conceituavam cidadão como aquele que portava título de eleitor,
vinculando alguns direitos à própria existência do referido documento.34 Fato é que este
concei-to foi alargado, e hoje deve ser interpretado sob a óptica constitucional.
Nesse sentido é esclarecedora a lição de José Joaquim Gomes Canotilho e Vital Moreira
que dizem ser
“igual a dignidade social de todos os cidadãos – que aliás não é mais do que um
corolário da igual dignidade humana de todas as pessoas, cujo sentido imediato
consiste na proclamação da idêntica validade cívica de todos os cidadãos,
indepen-dente de sua inserção econômica, social, cultural e política, proibindo desde logo
formas de tratamento ou de consideração social discriminatórias,.”35
É, portanto, a cidadania, status para exercício dos direitos políticos, para o gozo pleno dos direitos constitucionais trazidos pela Carta Magna. Paulo Afonso de Leme Machado diz:
“Vejo a cidadania como a ação participativa onde há interesse público ou interesse social. Ser cidadão é sair de sua vida meramente privada e interessar-se pela sociedade de que faz parte e ter direitos e deveres para nela infl uenciar e decidir.”36
É nessa perspectiva atual, que analisaremos a temática, já que o próprio consumidor é
cida-dão, e deve gozar plenamente do arsenal de direitos e garantias que a Carta Política lhe oferece.
1.3.3 – Dignidade da pessoa humana
Com a chegada da fi losofi a humanística a partir do século XIV, os pensadores pararam
de analisar o cosmos em função da análise do Homem. Essa análise resulta no que, bem mais
34 Neste sentido, vide Thais Leonel, Fundamentos constitucionais do processo ambiental – a ação popular na defesa
do meio ambiente, in Revista Brasileira de Direito Ambiental, p. 245-258, que discorre sobre a desnecessidade de prova de cidadania (juntada de titulo de eleitor) em Ações Populares Ambientais.
tarde sintetizou o jusfi lósofo Miguel Reale. Para ele, a pessoa humana é a única capaz de dar
valor a coisas, e portanto, passa a ser o valor-fonte de todos os valores.37
A partir desse ponto, e levando em conta a necessidade de migrar para a esfera
nor-mativa alguns valores, principalmente após as barbáries mundialmente vividas pelas grandes
guerras, é que passamos a dar ênfase à pessoa humana e sua dignidade, sendo esta um marco
para a interpretação de alguns sistemas de direito.38
O Brasil adotou a dignidade da pessoa humana não só como fundamento que rege e
estrutura o Estado Democrático de Direito, mas como verdadeira fonte de interpretação,
para-digma do que se pretende no plano do direito positivo. Brilhante, portanto, o ensinamento de
Rizzatto Nunes quando diz ser a dignidade da pessoa humana “primeiro fundamento de todo sistema constitucional posto e o último arcabouço da guarida dos direitos individuais.”39
Diógenes Madeu, esclarece que:
“a dignidade da pessoa humana é o princípio dotado de máxima normatividade
e abstração, do qual são derivados os direitos fundamentais, que, por sua vez,
são concebidos como os direitos humanos positivados nas constituições, explícita
37 Diz Miguel Reale que “O homem não é uma simples entidade psicofísica ou biológica, redutível a um conjunto
de fatos explicáveis pela psicologia, pela física, pela anatomia, pela biologia. No homem existe algo que repre-senta uma possibilidade de inovação e de superamento. A natureza sempre se repete, segundo a fórmula de todos conhecida, segundo a qual tudo se transforma e nada se cria. Mas o homem representa algo que é um acréscimo à natureza, a sua capacidade de síntese, tanto no ato instaurador de novos objetos do conhecimento, como no ato constitutivo de novas formas de vida. O que denominamos poder nomotético do espírito consiste em sua faculdade de outorgar sentido aos atos e às coisas, faculdade essa de natureza simbolizante, a começar pela instauração radical da linguagem”, in Filosofi a do Direito, p. 211
38 Neste sentido a Constituição da República Portuguesa, de 02 de abril de 1976, ao tratar dos princípios
funda-mentais, logo em seu primeiro artigo determina que “Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na construção de uma sociedade livre, justa e solidária” (grifo nosso) in www.parlamento.pt consultado em 10 de julho de 2010. A Constituição Espanhola, de 06 de dezembro de 1978 determina em seu artigo 10, 1 que “a dignidade da pessoa, os direitos invioláveis que lhe são inerentes, o livre desenvolvimento da personalidade, o respeito a lei e aos direitos dos demais são fundamentos da ordem política e da paz social” (grifo nosso) in www.cervantesvirtual.com consultado em 10 de julho de 2010 – tradução livre do autor. A Lei Fundamental da República Federal da Alemanha, de 08 de maio de 1948 determina que “a dignidade humana é intocável. Respeitá-la e protegê-la é dever de todo poder público” (grifo nosso) in www.brasil.diplo.de
consultado em 10 de julho de 2010.
ou implicitamente. Esses direitos são imprescindíveis à realização da dignidade
humana”.40
É, pois, dessa abstração que decorrerão outros princípios necessários para a vida
dig-na, que juridicamente estão explicitados no art. 6º da Carta Constitucional. É o que diz Celso
Antonio Pacheco Fiorillo quando nomina referido artigo de “piso vital mínimo”, por
tratar-se do mínimo necessário para concretamente atender-tratar-se o conceito de dignidade da pessoa
humana.41
A própria ordem econômica está fundada na existência digna, conforme verifi caremos
em momento oportuno.
1.3.4 – Valores sociais do trabalho e da livre iniciativa
Discorrer, ainda que em breves linhas, acerca da valorização do trabalho e da livre
ini-ciativa como fundamentos estruturantes da nossa sociedade é sem dúvida debater um tema que,
por sua importância e complexidade, de per si mostra a preocupação do legislador em organizar
um Estado levando em conta alguns princípios balizadores.
O trabalho humano, tal como conhecemos hoje, é fruto de longa história. Se antes o
trabalho era basicamente agrícola e o trabalhador não possuía nenhum direito, hoje ele está
elevado à condição de direito fundamental, fazendo parte da estrutura do Estado Democrático
Brasileiro.
Com o advento constitucional de 1988 e conforme já pudemos observar, o trabalho
humano ganha status de valor fundamental, ocupando lugar de destaque no ordenamento jurídico no tópico que trata dos direitos e garantias fundamentais da pessoa humana.
Tan-to isso é verdade, que a própria ordem econômica, em Tan-total harmonia com os preceiTan-tos
40A dignidade da pessoa humana como pressuposto para a efetivação da justiça, in Revista dignidade, Programa
de pós-graduação em direito Unimes, ano 1, vol. 01, páginas 41-52
fundamentais, destaca o trabalho humano bem como a livre iniciativa, no afã de garantir
existência digna.
Esclarecedora, nesse sentido, a lição de Wagner Balera quando categoricamente afi rma
que “enquanto valor social (art. 3° da Constituição), o trabalho é recolhido pelo aparato nor-mativo e recebe, por sua superior dignidade, a primazia na Ordem Social.”42
Celso Antonio Pacheco Fiorillo entende que “o trabalho tutelado na Constituição Fede-ral, além de humano, tem que estar indelevelmente ligado a um aspecto econômico, na medida que ele, trabalho, é passível de valoração social.”43
Diz ainda referido jurista que “seria lícito, portanto, afi rmar que, em verdade, não é o trabalho de per si que é tutelado, mas sim os efeitos jurígenos decorrentes da situação de tra-balhar, no sentido de que ele estaria ligado a uma necessidade de valoração social (proteção à saúde, segurança, lazer etc.).”44
Não é diferente o posicionamento de Eros Roberto Grau, que diz que:
“a valorização do trabalho humano e reconhecimento do valor social do
traba-lho consubstanciam cláusulas principiológicas que, ao par de afi rmarem a
compa-tibilização – conciliação e composição – portam em si evidentes potencialidades
transformadoras. Em sua interação com os demais princípios contemplados no texto
constitucional, expressam prevalência dos valores do trabalho na conformação da
ordem econômica...”.45
Mas não são apenas valores sociais do trabalho que a Constituição referencia. Invoca
também os valores sociais da livre iniciativa, permitindo, assim, pleno exercício da atividade
econômica. A livre iniciativa é, portanto, segundo o que leciona Eros Roberto Grau,
42 A dignidade da pessoa e o mínimo existencial, in Tratado luso-brasileiro da dignidade humana, Coord. Jorge
Miranda e Marco Antonio Marques da Silva, pp. 473-491
43 O direito de antena em face do direito ambiental no Brasil, p. 41. 44 Ibidem
“tomada no quanto expressa de socialmente valioso; por isso não pode ser reduzida,
meramente, à feição que assume como liberdade econômica, empresarial (isto é, da
empresa, expressão do dinamismo dos bens de produção); pela mesma razão não
se pode nela, livre iniciativa, visualizar tão somente, apenas, uma afi rmação do
ca-pitalismo. Assim, livre iniciativa é expressão de liberdade titulada não apenas pelo
capital, mas também pelo trabalho.”46
A lição deixa claro que ao assim proceder, ou seja, ao elevar os valores sociais do
traba-lho e da livre iniciativa à condição de direitos fundamentais, o legislador determinou uma baliza
para que o capitalismo pudesse se desenvolver baliza esta que signifi ca cumprir os ditames da
justiça social, com vistas ao oferecimento de uma existência digna, nos moldes do que diz o art.
170 da Carta Magna.
1.3.5 – Pluralismo político
Desde que a Constituição Federal entrou em vigor, adotamos como fundamento o
plura-lismo político. Isto porque a nossa sociedade tem bases ideológicas diversas e a ideia é que essa
multiplicidade de manifestações seja igualmente tutelada.
Com vistas a estabelecer uma sociedade livre, justa e solidária é que rechaçamos a ideia
de monopólio, seja no sentido político, econômico, social ou cultural. É, pois, da noção de
plu-ralismo político que construímos um Estado de Direito Democrático, com ampla participação
popular nos destinos do país, e com garantia de convicção fi losófi ca e política, bem como com
possibilidade de organização e participação em partidos políticos.47
É por isso que a Carta Constitucional prevê a existências dos direitos políticos, nos
ar-tigos 14, 15 e 16, bem como dos partidos políticos, no artigo 17. O próprio conceito de partido
46 Idem, p. 235
político48, demonstra que a Carta Constitucional explicita um pluralismo para ver efetivados
seus fundamentos.
1.4 – Princípios da ordem econômica
É a Carta Constitucional de 1988 que fi xa o rumo que deve ser seguido, no tocante ao
desenvolvimento da economia nacional.
A questão econômica e social inicia-se a partir da crise do liberalismo econômico,
mo-mento que clamou-se a participação do Estado, a fi m de nortear e regulamentar as diversas
situações de caos criadas pelo liberalismo.
É por isso que Washington Albino Peluso de Souza leciona que “a partir do segundo confl ito mundial, as Constituições democráticas modernas adotaram, na sua quase generali-dade, o capítulo da ‘Ordem Econômica e Social’, o que tradicionalmente se denomina ‘Cons-tituição Econômica’, que passou a funcionar como fundamento constitucional da legislação ordinária sobre direito econômico.”49
O tema entrou tardiamente50 no debate brasileiro com a Carta Constitucional de 1934,
que previa como objetivo a organização de um Estado democrático que assegurasse liberdade,
justiça, bem-estar social e econômico.
Levando em conta que a Constituição de 1934 teve uma duração efêmera, em virtude da
decretação da Carta de 1937, que implantava o famigerado Estado Novo51, o tema foi tratado
48 José Afonso da Silva, em seu Curso de direito constitucional positivo, diz que partido político “é uma forma de
agremiação de um grupo social que se propõe a organizar, coordenar e instrumentalizar a vontade popular com o fi m de assumir o poder para realizar seu programa de governo”, p. 394.
49 Primeiras linhas de direito econômico, p. 44
50 Carla Marshal, em sua obra Direito constitucional, aspectos constitucionais do direito econômico, diz que “
hou-ve, todavia, na história, um marco anterior, que consistiu na Constituição de Weimer (1919), e que fez constar em seu texto a ordem econômica e social. No entanto, há quem diga que o marco fundamental foi lançado pela Constituição mexicana de 1917; contudo, todos concordam que as principais Constituições que a sucederam ba-searam-se naquela que se tornou a mais famosa e modelo Teórico a ser copiado: a alemã”, p. 134. Nesse sentido observamos que no Brasil, foi somente em 1934 que houve inclusão da temática em capítulo próprio, o que nos leva a afi rmar que o tema entra no cenário constitucional brasileiro tardiamente.
51 Boris Fausto, em sua obra História concisa do Brasil, conta que “no dia 10 de novembro de 1937, tropas da policia
de forma diversa, que rendeu ao Estado a responsabilidade única de interferir constantemente
na economia. É o que diz o brasilianista Thomas Skidmore: “os objetivos de bem-estar social e nacionalismo econômico, muito debatidos, no começo histórico daquela década (1930), iriam ser agora perseguidos sob tutela autoritária.”52
O fi m do Estado Novo traz consigo o manto do desenvolvimento. A restauração da
democracia cria a possibilidade de retomar a temática com possibilidade da valorização do
tra-balho humano. É o que diz a nova Carta Constitucional, de 1946, em seu artigo 145, in verbis: “A ordem econômica deve ser organizada conforme os princípios da justiça social, concilian-do a liberdade de iniciativa com a valorização concilian-do trabalho humano.” Referido artigo, em seu parágrafo único determinava ainda, que o trabalho, obrigação social, era assegurado à todos e
deveria proporcionar existência digna.
Essa transição entre os dois regimes não representa uma ruptura com o passado, mas sim
uma “mudança de rumos”.53
Promulga-se em 1967 outro modelo constitucional. Carla Marshal afi rma que “em ter-mos econômicos, houve uma certa repetição do modelo anterior, trazendo apenas a novidade de destacar a reforma agrária, que, na verdade, não correspondeu ao destaque que lhe foi atri-buído. Limitou a produção de bens supérfl uos, como se estivéssemos em estado de guerra.”54
Entretanto em 1988 o assunto ganha uma dinâmica adequada. A Constituição Federal,
com forte inclinação social, fi xou normas e limites à ordem econômica, com objetivo maior de
salvaguardar o homem, na sua plenitude de existência digna, através da primazia do trabalho e
da livre iniciativa, levando em conta os ditames da justiça social, conforme alguns princípios,
dentre os quais a defesa do consumidor.
opusera a que a operação fosse realizada por forças do Exército. À noite, Vargas anunciou uma nova fase política e a entrada em vigor de uma Carta constitucional elaborada por Francisco Campos. Era o início da ditadura do Estado Novo.”, (grifos nossos), p. 200
52 Brasil – de Getúlio a Castelo, p. 62
53 Boris Fausto, História concisa do Brasil, p. 215.
A importância de uma tutela específi ca para os consumidores exigiu do legislador uma
postura de vanguarda, que estivesse adequada à nova ordem constitucional vigente.
A pertinência em se organizar um modelo econômico, diz respeito à própria estruturação
da democracia. Nesse diapasão, Manoel Gonçalves Ferreira Filho diz que, “para o estabeleci-mento da democracia política urge, portanto, que se organize um regime econômico onde se satisfaçam todas as exigências fundamentais do indivíduo, onde se abram para todos oportu-nidades relativamente iguais.”55
E é pautado nessas premissas que o legislador estabeleceu uma ordem econômica
fun-dada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tendo como objetivo assegurar a
todos existência digna, em conformidade com os ditames da justiça social.
Nesse sentido dizem Celso Antonio Pacheco Fiorillo e Thais Leonel que:
“o modelo intervencionista do Estado, portanto, busca o efetivo cumprimento de uma
economia fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, que
asse-gure a todos os brasileiros e estrangeiros residentes no Brasil uma existência digna,
o que não constitui mero enunciado descritivo e sim uma norma condicionadora que
estabelece os alicerces, os fundamentos da ordem econômica brasileira”.56
Hoje a estrutura econômica está totalmente atrelada aos preceitos fundamentais do
Esta-do Democrático, havenEsta-do um limite para que essa economia se desenvolva. O limite, por óbvio,
está contido não só no artigo 1º, III da CF/88, mas também nos princípios referenciados pela
própria Carta Constitucional.
Dessa forma podemos falar no princípio da soberania popular encontrado no inciso I
do artigo 170 da Constituição Federal. Por tratar-se de fundamento do Estado Democrático de
55 Curso de direito constitucional, p. 347
56Desenvolvimento sustentável: a ordem econômica do capitalismo e a questão do meio ambiente na
Direito, devemos verifi car que o legislador traz a soberania como princípio limitador da ordem
econômica brasileira, pois normatiza e regula a ordem econômica na exata medida a assegurar
existência digna. Se assim não fosse, estaríamos propensos à submissão de um Estado a outro.
Logo em seguida, no inciso II do mesmo artigo, a Constituição traz como princípio
norteador da ordem econômica, a propriedade privada que hoje não pode mais ser interpretada
como outrora se interpretava, ou seja, como instituto de caráter absoluto. Lembramos que a
pro-priedade foi elevada à condição de direito e garantia individual. Entretanto, em esclarecedora
lição José Afonso da Silva afi rma que
“...embora prevista entre os direitos individuais, ela não mais poderá ser considerada
puro direito individual, relativizando-se seu conceito e signifi cado, especialmente
por-que os princípios da ordem econômica são preordenados à vista da realização de seu
fi m: assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social.”57
Assim a propriedade deixa de ter contornos exclusivamente individualistas para ter um
forte traço de instituto que permite a construção de algo coletivo, visto que deverá atender,
con-forme regra constitucional, sua função social.
A função social da propriedade também foi trazida pelo legislador constitucional como
princípio norteador da ordem econômica, no inciso III do artigo 170 sujeitando-se ao estrito
cumprimento de sua fi nalidade que é assegurar a todos existência digna, conforme os ditames
da justiça social.
No inciso IV do referido artigo, a Constituição Federal diz ser princípio norteador da
ordem econômica a livre concorrência, que tem fi nalidade de proteger o sistema de mercado.
Complementa-se com o artigo 173 do mesmo documento legal que garante que a lei reprimirá
o abuso do poder econômico que vise a dominação dos mercados, a eliminação da concorrência
e o aumento arbitrário dos lucros.
É no inciso V, do artigo 170 que encontramos o princípio que relaciona-se de forma mais
íntima com nosso trabalho. Foi nesse inciso que o legislador determinou ser princípio
nortea-dor da ordem econômica a defesa do consuminortea-dor. Isso acontece, pois a defesa do consuminortea-dor
é elemento essencial da ordem econômica capitalista, sendo o consumidor verdadeira razão de
ser nessa dinâmica.
Gilmar Mendes Ferreira Mendes e outros58, em obra de expressão, reputa que a defesa
do consumidor, juntamente com a função social da propriedade e a livre concorrência, estão
entre os princípios mais signifi cativos da Constituição, no que diz respeito aos princípios da
ordem econômica.
No inciso VI a Carta Constitucional traz a defesa do meio ambiente como princípio
nor-teador da orem econômica, permitindo inclusive, tratamento diferenciado conforme o impacto
ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação. E assim o faz,
pois em concordância com a primeira parte do artigo 225 da Carta Constitucional, todos têm
direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial
a sadia qualidade de vida. A fi nalidade do artigo 170 de forma clara e inequívoca é orientar a
economia brasileira para garantir a todos existência digna, o que vem de encontro com o que
pretendem os artigos 225 e 1°, III da Constituição Federal. Assim, a atividade produtiva deverá
adequar-se a tutela do meio ambiente permitindo, através de mandamento constitucional, a
intervenção do Poder Público bem como da coletividade para a garantia de uma vida com
qua-lidade, e, portanto, digna.
Em seguida, no inciso VII, o legislador diz ser princípio norteador da ordem
econômi-ca a redução das desigualdades regionais e sociais. Claro está que pretende-se estabelecer um
equilíbrio a fi m de que as desigualdades não tragam privilégios para alguns em detrimento de
outros. Mantém, portanto, plena sintonia com os objetivos fundamentais da República
Fede-rativa do Brasil, constantes no artigo 3° da Constituição Federal que tem como fi nalidade a
construção de uma sociedade livre, justa e solidária, a promoção do desenvolvimento nacional,
a erradicação da pobreza e da marginalização bem como a redução das desigualdades sociais
e a promoção do bem de todos, sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer
outras formas de discriminação.
Kildare Gonçalves Carvalho conclui que “na ordem econômica, implica a necessidade de melhor divisão de renda, mediante a formulação e execução de políticas que visem promo-ver a integração nacional nos aspectos geográfi cos e demográfi cos.” 59
O inciso VIII do artigo em questão, determina que a busca pelo pleno emprego é
prin-cípio norteador da ordem econômica. José Afonso da Silva ensina que “a busca do pleno em-prego é um princípio diretivo da economia que se opõe às políticas recessivas”, o que signifi ca reafi rmar que o trabalho precede hoje de valorização, sendo imprescindível que haja utilização
de todos os recursos produtivos, para que possa receber dessa maneira, tratamento de principal
fator de produção e seja considerado participe do produto da riqueza e da renda obedecendo
proporção estabelecida pela ordem econômica.60
Por fi m, o inciso IX do artigo 170, determina que o tratamento favorecido para as
empre-sas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração
no País, é princípio que norteia a ordem econômica, permitindo fomento às referidas empresas
o que resulta inclusive, na geração de empregos e consequentemente, no desenvolvimento
eco-nômico nacional.
Ressalte-se que “não se fala em favorecimento desmedido de um determinado setor em detrimento dos demais, nem de políticas protecionistas que gerem desequilíbrio no mercado, mas da adoção de políticas que sejam geradoras de desenvolvimento econômico.”61
A partir desse panorama geral, verifi camos que a estrutura econômica constitucional
está adaptada à realidade do século XXI, e a ordem econômica capitalista no direito brasileiro
está balizada por princípios a fi m de garantir existência digna.
59 Direito constitucional positivo, p. 1238 60 Curso de direito constitucional positivo, p. 797
CAPÍTULO II
A IDEIA DO DIREITO COMO SISTEMA
2.1 – Breves considerações
Situar o Direito numa ordem sistêmica é trabalho que os cientistas jurídicos vêm
bus-cando elaborar. Isso porque “o jurista concebe a própria matéria como uma totalidade sistemá-tica, quase como um cosmos de preceitos contraposto ao caos de eventos.”62
Entretanto, o jurista nem sempre consegue expressar sua concepção usando
terminolo-gia constante e rigorosa, evocando apenas uma ideia de ordem ou composição harmônica.63
É fácil notar a afi rmação do supracitado autor quando observamos Norberto Bobbio, ao
tratar do ordenamento jurídico. Diz ele que:
“a norma fundamental é o termo unifi cador das normas que compõem um
ordena-mento jurídico. Sem uma norma fundamental, as normas de que falamos até agora
constituiriam um amontoado, não um ordenamento. Em outras palavras, por mais
numerosas que sejam as fontes num ordenamento complexo, tal ordenamento
consti-tui uma unidade pelo fato de que, direita ou indiretamente, com voltas mais ou menos
tortuosas, todas as fontes do direito podem ser remontadas a uma única norma.”64
Referido autor, afi rma que sistema signifi ca “uma totalidade ordenada, um conjunto e entes entre os quais existe uma certa ordem. Para que se possa falar de uma ordem, é
neces-62 Mário G. Losano, Sistema e estrutura no direito, vol. 01, p. 04 63 Ibidem
sário que os entes que a constituem não estejam somente em relacionamento com o todo, mas também num relacionamento de coerência entre si”65, fazendo assim, um desenho exato da
unidade a que nos referimos acima.
Fato é que a ideia de sistema tem sido amplamente discutida em sede de Teoria Geral
do Direito, e, ainda que sem pretensão alguma em tratar a temática com a profundidade que ela
merece, necessário referenciá-la para a própria compreensão do proposto neste trabalho.
Levando em conta sua complexidade, duas são as referências que faremos.
Em primeiro lugar, importante verifi car a existência de uma teoria geral dos sistemas.
Na década de 30 do século passado, vários cientistas dos “principais campos – da física
subatômica à história –”66 se propuseram a estudar o tema, que tratava de combater o modelo
cartesiano e seu pensamento mecanicista. Fritjof Capra afi rma que é comum reconhecer
Lu-dwig Von Bertalanffy como autor da primeira formulação de um arcabouço teórico abrangente
descrevendo os princípios de organização dos sistemas vivos.67
O próprio Ludwig Von Bertalanffy, afi rma no prefácio da 4° edição revista da sua obra
que “O termo ‘teoria geral dos sistemas’ foi introduzido deliberadamente por mim, num
senti-do universal.”68
E afi rma ser universal visto tratar-se de um novo paradigma, que abrange “quase tudo”,
podendo ser observado sob três principais aspectos, a saber: a) ciência dos sistemas; b)
tecno-logia de sistemas; c) fi losofi a dos sistemas.69
A partir desta perspectiva que procura abranger a “totalidade”, Ludwig Von Bertalanffy
ilustrou a teoria geral dos sistemas discutindo a limitação da física convencional, ou seja, os
65 Idem, p. 71
66 Ludwig Von Bertalanffy, Teoria Geral dos Sistemas, p. 32 67 A teia da vida, p. 51
sistemas abertos e fechados, afi rmando que estes últimos são considerados por estarem isolados
de seu ambiente, enquanto que os primeiros são organismos vivos que mantém um contínuo
fl uxo de entrada e saída de componentes, nunca estando, enquanto vivo, em estado de equilíbrio
químico e termodinâmico.70
É nesse sentido que posteriormente, no campo da sociologia, Niklas Luhmann afi rma
que “Não existe propriamente uma teoria geral de sistemas, embora esta tenha sido a intenção, nos anos 1950, da Sociedade para a Teoria Geral dos Sistemas (Society for General Systems Theorie).”71
A partir da temática oferecida por Ludwig Von Bertalanffy, muitos fenômenos da
quími-ca e da biologia obtiveram conclusões importantes, sendo que os biólogos Humberto Maturana
e Francisco Varella introduziram o conceito de sistemas autopoiéticos, na obra “De máquinas
y seres vivos”.
Nessa obra deram nome ao sistema autorregulador, por isso autopoiético (do grego
autopoién = reproduzir-se) por terem característica fundamental de produzir-se
continua-mente a si mesmo. Valéria Álvares Cruz, esclarece a questão dizendo que:“a autopoiesis (autoprodução, autocriação ou auto-reprodução), é um padrão de rede no qual a função de cada componente consiste em participar da produção ou da transformação dos outros com-ponentes da rede. Esta última é tanto produzida pelos seus comcom-ponentes, como produtoras deles mesmos).”72
Mas esse conceito pode ser aplicado ao Direito? A resposta é afi rmativa, vez que
obser-va-se os processos de geração do Direito, a partir do próprio Direito, mas carecendo de uma
certa adequação por tratar-se de campo de conhecimento diferenciado. Isto porque o conceito
proposto pelos biólogos Humberto Maturana e Francisco Varella não admitiriam sua aplicação
no campo da sociologia vez que tratavam de sistemas vivos que se reproduzem sendo que “cada
70 Teoria... op. cit., p. 64