NOTAS INTRODUTÔRIAS À
LÓGICA DIALÉTICA
DO AUTOR:
EVOLUÇÃO POLiTICA DO BRASIL 2.6 ediçéio - 1947 -esgotada
U.R.S.S., UM NOVO MUNDO 2.a edição - 1935 -esgotada
FORMAÇÃO DO BRASIL CONTEM·
PORANEO (COLôNIA)
6.ª edição -1961
HISTóR!A ECONôMICA DO BRASIL
6.ª edição - 1961
EVOLUÇÃO POLfTICA DO BRASIL E OUTROS ESTUDOS
3.ª edição - 1961
DIALÉTICA DO CONHECIMENTO do1s tomos -3,ª edição - 1960
ESBôÇO DOS FUNDAMENTOS DA TEORIA ECONOMICA
3.a edição - 1961
NOTAS INTRODUTóRIAS A LóGICA DI.fi.LÉ11CA: .. ...::.:_(:z�a·edição.-:--- 1961
CAIO PRA DO JÚNIOR
NOTAS INTRODUTÔRIAS À
LÓGICA DIALÉTICA
2.' EDIÇÃO
EDITÕRA BRAS ILIENS E
À memória de Yolanda, minha irmã
A Nena, minha companheira
INTRODUÇÃO
A L6gica, em sentido amplo, se destina, como disciplina cientí
fica, a determinar e fixar a condução do pensamento na elaboração do Conhecimento. Não há assim como fugir à necessidade de abor
dar o tratamento da L6gica, pela análise da atividade pensante. Do seu kLdo, a L6gica formal - em que se inclui tanto a L6gica aristo
télica, como a moderna Logistica--, tem por ob;eto a análise e pesquisa das formas l6gicas incluídas e implícitas na Linguagem (tanto a L·inguagem discursiva, como o si1nbolis1no mate1nático, que também constitui uma linguagem), formas essas análogas às formas gramaticais nisso que se destinam, tanto quanto estas últimas, a darem estrutura à Linguagem e a tornarem apta a exprimir o pen
samento e o e onheciniento:
Mas uma vez que Linguage1n e Pensamento não se confunde1n, não sendo a primeira senão expressão e exteriorização da afívidade pensante, resulta que a L6gica formal não esgota a matéria que lhe diz respeito e que diretamente a interessa. É preciso, a par" da análise da Linguagem e de suas formas l6gicas ( ob;eto específico da L6gica formal), ligar essa análise à da função pensante de que a Linguagem e suas formas não são mais que instrumento de ex
p1•essão e exteriorização; instrumento aliás ne1n sempre adequado e fiel. Ter-se-á com isso, e sàmente assim, o panorama geral do assunto, a saber, a natureza funcional das formas l6gicas, isto é, a maneira pekL qual as formas l6gicas desempenham sua função ex
pressiva do pensamento, bem como do Conhecimento que se ekLbora pelo pensamento.
É essa a posição dialética em frente à L6gica. Posição que leva, corno logo se vê, a situar o ponto de partida da pesquisa l6gim, na consideração da função e atividade pensante, o que constitui obieto da Psicologia.
A finalidade do presente livro consiste precisamente em abordar a análise da atividade pensante na sua função elaboradom do c º"
nhecimento, bem como nas suas ligações com a Linguagem em geral e suas formas l6gicas em particular. "Abordar'' é bem a palavm,
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pois não se trata aqui de desenvolver exaustivamente o assunto, e nem mesmo de procurar faze-lo. O objetivo deste livro é tão-sàmente o de apresentar algumas indicações relativamente à maneira de orien
tar e conduzír a indagação e pesquisa cientificas da atividade do pensamento, naquilo que diz respeito à sua função elaboradora do Conhecimento, e às suas relações com as formas lógicas em que a niesma atividade se exp1'ime e exterioriza.
Essa posição em frente ao problema lógico abre perspectivas, de um lado, para a determinação do "método lógico", isto é, da ma
neira nwis acertada possível com que se há de orientar e conduzir o pensamento na elaboração do Conhecimento. E doutro lado, para a elaboração das formas verbais em geral, e das lógicas em parti
cular, adequadas à expressão do pensamento e do produto desse pensanwnto que é o Conhecimento. E isso a partir de uma base experimental e científica, isto é, a partir da Psicologia como ciência, e não da simples intuição, como ocorre no tratamento usual da Lógica.
[ 2 J
NOTAS INTRODUTÓRIAS A
LÓGICA DIALÉTICA
I. - LÓGICA DIALJ1:TICA E DIALJ1:TICA DA NATUREZA
Sob a designação de Dialética, tal como hoje se entende a pa
lavra, abrigam-se dois conceitos, ou dois sentidos da expressão, que e1nbora se entrosem intimamente, são distintos. Essa distinção con
tudo não tem sido suficientemente caracterizada, resultando daí certa confusão, origem de muitas dúvidas (1.) 11: meu objetivo no presente capítulo, contribuir na medida do possível para dissipar tais dú
vidas. "Dialética", de um lado, é uma expressão empregada para designar o comportamento geral da Natureza, naquilo que ela tem de mais característico e essencial, isto é, a mutabilidade e instabili
dade de suas feições, a permanente transformação delas. Assim entendida, a dialética constitui um fato natrll"al, um aspecto da Na
tureza, e certamente o mais importante, cuja consideração e pes
quisa pertencem às ciências em geral. Representa a "propliedade"
fundamental - digamos assim numa tenninologia meio obsoleta - dos acontecimentos da Natureza, que são "acontecin1entos" na me
dida precisamente em que por êles se mudam e transformam as situações natr1rais. Nesse sentido, a dialética constitr1i objeto das diferentes disciplinas científicas; e como tal deve ser tratada. Isso parece bastante claro: é à Física que compete ocupar-se com os acontecimentos ou fatos físicos; tanto como é às ciências sociais que cabe tratar da maneira pela qual se desenrolam os acontecimentos de orden1 social. Afora êsse «comportamento dos fatos", o que quer
(1) Depois da publicação da Dialética do Conhecimento, tive bem a 1nedida dessas dúvidas e confusões, chegando alguns críticos a ine acusarem de "hegeliano" e ".idealista" porque fazia da Dialética uma Lógica, e portanto um fato mental! Essa a razão por que insisto no presente capítulo em certos pontos que parecerão aos leitores mais bem infonnados, um excesso em assunto que para êles não oferece maiores dificuldades.
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dizer rr.11 dança, h·ansfonnação, clialética em suma, não se vê he1n do que se ocupariam as ciências respectivas. É precisamente êsse ponto de vista que caracteriza a posição da Dialética (como filo
sofia) em contraste com a Metafísica. Se esta última procura ah·ás dos fatos e do seu comportamento ou dialética, sêres ou entidades que seriam como que os autores e responsáveis de tais fatos, é pre
cisamente nesse ponto que a posição dialética se afasta das vell1as e obsoletas concepções filosóficas. A ciência moderna, que de al
guns séculos para cá vem ensaiando seus primeiros passos, embora mais ou menos inconscientes, no caminho da dialética, o que visa são fatos, e não supostos sêres de que tais fatos seriam simples ma
nifestação exterior e sensível. Já se resumiu isso numa fórmula im
pecável que hoje não tem mais patrono porque é de todos os ho
mens de ciência: A ciência não se ocupa com o que é, e sim Unica
mente co1n o que se passa.
Respondemos assim, ao que parece, à questão da existência ou não de uma ciência ou disciplina especial que devesse ocupar-se da Dialética da Natureza em si e independentemente dos fatos con
cretos que são objeto das ciências particulares. A saber, uma dis
ciplina específica da Dialética da Natureza, e sem particularização dos fatos de que se ocupam as diferentes ciências particulares. Uma tal disciplina nos parece altamente contestável, pois não vemos, por exemplo, como a dialética dos fatos físicos (que não é afinal de con · tas outra coisa mais que êsses mesmos fatos) possa ser considerada, descrita e expressa independentemente de tais fatos, isto é, fora da Física que se ocupa precisamente daquela consideração, descrição e expressão em linguagem. Não discutiremos aqui o assunto mais a fundo, porque julgamos que pelo menos nas circunstâncias atuais do conhecimento científico, a questão é inócua, e não tem mesmo cabimento. Uma tal ciência específica da Dialética da Natureza, não existe por enquanto; ninguém, ao que se saiba, dela se ocupa sistemàticamente, inclusive naqueles países onde a nova filosofia dialética tem o consenso geral, a saber, nos países do socialismo.
Nem essa falta se faz por enquanto sentir. Debater portanto sua c'possibilidade" ou ,.eventualidade", é além de estéril, aventurar-se num labirinto de especulações sem grandes perspectivas.
NOTAS INTRODUTÓRIAS A LÓGICA DIALJ\:TICA 7
Outro sentido da Dialética, é o da dialética como método 16gico, isto é, como maneira de abordar e considerar os fatos da Natureza, como posição ou ângulo em que se há de colocar o pensamento em frente a êles. É nesse sentido, por exemplo, que o assunto é tra
tado no capítulo, redigido por Stálin, da História do Partido Comu
nista ila U.R.S.S. dedicado à matéria. Trata-se do capítulo IV, onde no § 2.º vêm enumerados os traços característicos fundamentais, segundo o autor citado, da Dialética entendida como método, traços êsses que dizem expressamente respeito à maneira de considerar os fatos da Natureza, à mientação a ser seguida pelo analista e pes
quisador de tais fatos. O texto de Stálin é o seguinte:
(a) Contràriamente à metafísica, a dialética olha a nah1reza, não como uma acumulação acidental de objetos, de fenômenos destacados, isolados e independentes uns dos outros, mas como um todo unido, coerente, onde os objetos, os fenômenos são ligados orgânicamente entre si, dependem uns dos outros e se Condicionam reciprocamente.
(b) Contràriamente à metafísica, a dialética olha a natureza não como um estado de repouso e de imobilidade, de estagnação e imutabilidade, mas como um estado de movimento e mudança perpétuos, de renovação e desenvol
vimento incessantes, onde sempre algo nasce e se desenvolve, e algo se desagrega e desaparece.
( c) Contràriamente à metafísica, a dialética considera o processo do desenvolvimento não como um simples pro
cesso de crescimento em que as mudanças quantitativas não resultam em mudanças qualitativas, mas como um desen
volvimento que passa de mudanças quantitativas insignifi
cantes e latentes a mudanças aparentes e radicais, a mu
danças qualitativas; em que as mudanças qualitativas não são graduais, mas rápidas, súbitas, e operando por saltos de um estado a outro; elas são o resultado da acumulação de mudanças quantitativas insensíveis e graduais.
(d) Contràriamente à metafísica, a dialética parte do ponto de vista que os objetos e fenômenos da natureza im
plicam contradições internas, portanto êles têm sempre um lado negativo e um lado positivo, um passado e um futuro, todos têm elementos que desaparecem ou que se desenvolvem; a luta dêsses contrários, a luta do antigo e do novo, entre o que morre e o que nasce, entre o que de
perece e o que se desenvolve é o conteúdo interno do pro-
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cesso de desenvolVimento, da conversão das mudanças qu titatívas em mudanças qualitativas (2.)
Como se vê, aquilo que Stálin aponta como "traços caracter ticos" da Dialética, são na verdade normas de análise e pesqui dos fatos da Natureza. Elas indicam uma certa maneira, oposta da Metafísica, de considerar tais fatos; aquilo que o pesquisad' e indivíduo pensante que elabora o conhecimento, deve procura nos mesmos fatos. Nesse sentido, o texto citado é suficientement claro; e nêle se resume o que se deve entender por Dialética com método de pesamento, como L6gica, portanto.
Consideremos agora mais de perto essa distinção entre os doí' apontados conceitos da Dialética. Uma análise atenta do assuntc e de suas raízes hist6rico-filosóficas, nos permitirá compreendê-lo melhor; e contribuí também para esclarecer a confusão assinalada.
Isso para nós aqui é tanto mais importante que estamos apresen
tando um livro de Lógica Dialética; e devemos por isso, antes de n1ais, circunscrever nosso assunto e indicar o que se pretende, ou pode pretender com essa L6gíca Dialética.
Precisamos para isso, inicialn1ente, de alguns desenvolvimentos preliminares. A natureza, que é a realidade objeto do pensamento e do conhecimento humanos, pode ser considerada sob dois aspectos.
Ou antes, a ação do homem em face da Natureza e nas relações dêle com o n1eío que o cerca, deve tornar em consideração duas circuns
tâncias - aliás contraditórias porque parecem se excluir mtltua�
mente -, a saber: de um lado, a multiplicidade e variabilidade da Natureza; doub·o, sua uniformidade e estabilidade. Isso porque se é certo, e portanto não pode ser desconsiderado, que as feições que constituem o meio no qual vivemos, a Natureza en1 suma, são de tal maneira múltiplas a ponto de ntmca se repetirem rigorosamente, bem como incessante1nente va1·iáveis., também é certo, doutro lado, q11e se o pensamento e o conhecimento humanos se fixassem Unica
mente em tal multiplicidade e variabilidade, não seria possível ao homem conduzir sua ação. Para fazê-lo, como a experiência nos
(2) llistoire du Paiti Communiste (Bolchévik) de l'V.R.S.S. Précis i·é
<ligé par une conunission du Comité Central du P.C, (b) de l'U.R.S.S. Edition.!
en langues étrangeres. li.1ost:ou, 1949, pág. 118.
NOTAS INTRODUTóRIAS A LóGIGA DIALl!:TICA 9 1nostra, êle precisa identificar certas feições tanto no tempo como
no espaço, fixar certas uniformidades e permanências; em outras palavras, assimilar entre si aspectos da Natureza em rigor distintos, be1n como certos momentos, embora diversos entre si, no fluxo e transformação incessantes das feições naturais. M-esmo no mais ele
mentar plano da ação e conduta (e talvez mais ainda nesse plano), aquela posição em face da Natureza é necessária, e se hnpõe por si JJ?.CSma, porque é condição precípua, para o homem, fazer a dis
, tinção para êle vital entre aquilo que lhe é propício e favorável, e o qne lhe é prejudicial e deve ser evitado e afastado. A fim de que sua experiência lhe sirva de algo, e que não esteja a cada instante partindo de nada, o homem, no seio da multiplicidade e transformação pe1manente da Natureza, há de assimilar entre si e identificar certas feições que distintas embora, são uniformes e idên
ticas no que diz respeito às necessidades de sua integridade e sub
sistência. ll:le poderá assim "qualificar'' aquelas feições identificadas, isso é, reconhecer-lhes qualidades ou característicos comuns e uni
formes, determinando em conseqüência sua ação em frente a elas.
A e.identificação", ou em outras palavras, aquela relativa uniformi
zação e fixação da Natureza que constitui o processo ou ato de iden
tificação, para o fim de reconhecimento do meio em que vive, e de reagir em conseqüência, é asslln para o homem uma condição ne
cessária de sua própria subsistência(3.)
ll:sse processo de identificação faz parte aliás de nossa expe
riência e atividade mental correntes e rotineiras, onde podemos fà
cilmente observá-lo. A todo momento, permanentemente mesmo, estaffios ''identificando" feições da Natureza; o que quer dizer, assi - niilando-as a oub:as já experimentadas. Se por exemplo, ao cami-
(3) Como aliás do animal, seja a identificação pré-formada no instinto, seja a aprendida na experiência. A consciência e intencionalidade que estan1os atribu'indo ao homem nos seus processos mentais de identificação, não ocorren1 evidentemente senão em estágios já muito elevados de sua evolução psíquica, tanto ontogenética quanto filogenética. Nos planos inferiores, o processo faz parte- de seu automatismo orgi\nico, tal con10 se dá nos animais. - Note-se aqui de passagem que os métodos experin1entais de condicionamento de reflexos (.Pavlov), se destinam em última instância a provocar artificialmente processos de identificação, forçar o paciente a .. identificar" certas situações: o toque da campainha, o choque elétrico, etc.
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nhar, deparo pela frente com uma árvore, identifico-a como tal, ou mais precisamente como um obstáculo que há de ser contornado.
:t::sse processo de identificação envolve desde logo a noção não so
mente da «árvore como obstáculo", como algo portanto idêntico e assimilável a outras feições embora bem distintas, mas que even
tualmente constituiriam também obstáculos (como seria uma parede,
uma rocha, etc.) - e temos aí o caso da identidade ou uniformidade na multiplicidade -; como ainda a noção de permanência da árvore, que embora se encontre num processo incessante de aniquilamento (morte, decomposição, desaparecimento ... ), tem pelo menos a per
manência que interessa no caso, a saber, durante os poucos instantes que me separam dela no curso de minha marcha. Estaremos aí, com o nosso processo de identificação, fixando e corno que imobi
lizando a árvore e sua história; emprestando-lhe permanência no fluxo e transformação incessante das feições da Natureza e da nossa árvore em particular.
Temos aí uma visão bem clara, parece-nos, do aspecto contra
ditório com que se apresenta a Natureza ao homem e seu pensa
mento e ação: de um lado, múltipla e diversa, instável e fluida;
doutro, uniforme e idêntica, estável e permanente. Ora ela se apre
senta sob um, ora sob outro aspecto. A árvore do nosso exemplo será uma uniformidade e pe1manência se nos aproximarmos dela como simples caminhante. Se o fizermos contudo corno botânicos, contarão muito n1ais para nós as distinções que fazemos entre ela e outras feições que não são vegetais e que po1ianto não nos inte
ressãriam como botânicos. Contarão também muito mais as even
tuais mutações da árvore e sua transitoriedade desde a semente que foi até o simples lenho que será. Mas êsse mesmo botânico que se deteria assim na multiplicidade e variabilidade que a árvore repre
senta, terá também de considerar o que há nela de unifol'me no conjunto dos vegetais - o que lhe dará a espécie, família, classe e1n que a árvore se inclui; e a própria transformação da árvore será vista através de "estados" ou fases estáveis: semente, formas suces
sivas mas cada qual bem caracterizada, como sejam a caducidade das fôlhas, a floração, etc.
Nessa contradição, qual o critério geral que deverá orientar o pensamento e a elaboração do conhecimento? Para que aspecto da
NOTAS' INTRODUTóRIAS A LÓGICA DIAL1'TICA 1 1
Natureza se h á d e atentar de preferência, e qual a medida dessa preferência? Como em suma entrosar e harmonizar os dois aspectos contraditórios da Natureza que vimos, de maneira a que o conhe
cimento dê cabal conta de ambos, sem exclusão ou subestimação de nenhum dêles? Eis o problema que se propõe. Se é verdade que numa primeira aproximação e aparência da Natureza, tudo é diverso e instável, o uniforme e permanente se impõem necessària
mente logo depois. Isso porque aquêle processo elementar de identi
ficação referido acima e que nos per1nite reconhecer o meio que nos cerca, que nos guia cada passo e nos é fundamentalmente indis
pensável na conduta de nossa ·existência, tal processo implica desde logo, e como que postula a uniformidade e permanência da Natu
reza ( 4.) Efetivamente, a possibilidade da identificação, e o pró
prio sentido e razão de ser dela, são condicionados pela admissão da estabilidade e regularidade dos fatos naturais. Assim por exemplo a côr e forma de um fruto, sàmente têm interêsse e sentido do ponto de vista da identificação e das atividades hmnanas que nela se inspiram e apoiam, na medida e1n que tal côr e forma são gerais a todos os frutos do mesmo sabor e propriedades nutritivas. Se côr e fonna fôssem iguais em f1utos comestíveis e não comestíveis, que interêsse teriam elas como característicos identificadores para o in
divíduo que procura alimentos? O processo de identificação pos
tula assim (porque doutro modo se1ia inútil e nem seria conside
rado) a estabilidade e permanência das feições da Natureza; e tende a fazer de tal postulado o critério do conhecimento humano.
M_as doutro lado, a experiência mostra que um f1uto hoje co
mestível deixará de o ser amanhã, quando estará podre; e que, por exemplo, cogumelos comestíveis se confundem com outros venenn
sos. Transformação e multiplicidade, portanto. Como conciliá-las com o critério de permanência e uniformidade impôsto ao conheci
mento humano? É essa contradição, originada na própria natureza da constituição universal, que o homem enfrenta, e de que sofre as contingências em suas atividades. Atividades essas que fundadas
(4) i!:sse postulado é reconhecido e se enconh·a implícito em tôda evolu
ção do conhecimento humano, variando Unicamente sua explicação e justifi
cação. Coube a Stuart Mill dar-lhe fonna acabada no seu conhecido axlo111a da unifor1nidade do curso do Universo.
12 C A I O P R A D O J Ú N I O R
csscnciahnente, de início pelo n1enos, na uniformidade e estabili
dade, se desorientam na irregularidade, mutabilidade e transforma
ção incessantes das feições da Natureza. Daí brotam os primeiros problen1as do conhecünento, que projetados na sua generalidade, dão origem à questão fundamental e inicial da Filosofia e geradora de tôdas as demais: a da tmifo1'midade na muliiplicidade, e da
pe1'manência no fluxo. Isso é muito bem ilustrado pela filosofia grega, qne na riqueza de seu pensamento, largueza e variedade dos pontos de vista em que se coloca, centraliza-se entretanto em tôrno daquela questão essencial(5.)
Encontramos aqui uma prüneira aproxin1ação e visão de con
junto do assunto que nos propusemos, e que é o das relações enh·e a Dialética respectívan1ente como fato da Natureza e como método 16gico. Acabamos de ver a dialética da Natureza (que não é senão aquela multiplicidade e fluxo incessante dos fatos universais) dando origem ao problema fundamental e inicial do conhechnento humano.
Em que consiste, essencialn1ente, um tal proble1na? Na elaboração, corno vin1os, de um critério geral de interpretação dos fatos, em que se conciliem os aspectos contradit6rios em que se apresenta a Nah1- reza; ou mais precisamente, uma maneira de considerar e por con
seguinte conceituar os fatos em que se não exclua ou subestime nen1 a uniformidade e permanência postulados na identificação e que correspondem a um aspecto da Natureza em suas relações com o homem, nem tampouco a multiplicidade e variabilidade que cons
titu.ern outro ·aspecto que se há de igualmente tomar em conside
ração. Tal é o problema fundamental do conhecimento de que irá resultar, ao cabo da longa jornada do pensamento humano, e atra
vés de sucessivas soluções parciais, um método de conceih1ação ca
paz de dar conta cabal daquele problema e tornar possível a repre
sentação adequada e sem deformações dos fatos da Natureza no pensamento humano. �sse método será a Lógica Dialética, suces·
sora e continuadora da tarefa realizada parceladamente e por etapas
(5) Unifonnidadc na 11iultlplicidade e pennanrJncia no fluxo, embora apa·
rentando problcn1as diversos, se reduzem de fato ao n1esn10. Não é o caso de desenvolvcrn1os aqui o assunto, e assinalemos apenas que os textos da filo·
sofia grega são bcn1 claros a respeito, como entre outros e em ptnticular, a obra de Aristóteles, Dti Geração e Corrupção.
NOTAS INTRODUTÓRIAS À LÓGICA D IALJ':TJ CA 13
através <le <lois milênios de evolução <la cnltura humana, <les<le a filosofia grega e a lógica aristotélica, até a ciência moderna e a Matemática pura de nossos dias.
Não faremos aqui naturalmente a história daquele longo pro
cesso do pensamento humano que vai <la fonnulação do problema
<lo conhecimento proposto pela dialética da Natureza, à sua solução final na Lógica Dialética (6.) Analisemos contudo, esquemàtica- 111ente embora, os traços mais salientes daquela sinuosa trajetória percoITida pelo homem na solução do problema filosófico. Nótem
.-se preliminarmente os têrmos em que se formula o problema, e que esboçan1os acima. Não se trata no caso de desconl1ecimento ou ignorância da dialética da Natureza, que pelo contrário representa o dado inicial e mais relevante dos sentidos e da experiência, sendo como tal reconhecido e proclamado por todos os filósofos e pensa
dores. A dificuldade estava precisamente na maneira perturbadora com que êsse dado incontestável e incontestado da experiência se propunha em face do processo de identificação que representa sem dúvida o ponto de partida do pensamento humano na elaboração
<lo conhecimento(7.) Tão perturbadora, aliás, que o maior esfôrço dos primeiros filósofos que se ocuparam sistemàtican1ente do assunto, consistiu em excluir a dialética da Natureza, deixá-Ia de lado e des
considerá-la, relegando-a quando muito a um plano secundário em que ela é de fato eliminada. O exemplo máximo disso se encontra na filosofia dos Eleatas, e de Parmênides em particular, para quem,
(6) Essa qualificação de "final" poderá parecer não só pretensiosa, 1nas ainda incoerente em face das próprias premissas do assunto. A "dialética"
implica um processo permanente que nã.o pode por isso mesmo dese'mbocar num estado �'final". Aliás uma das grandes se não a principal crítica a se fazer a Hegel e seu sistema, consiste precisamente em ter dado êsse estado final à sua dialética. Mas con10 se verá melhor adiante, a solução é "final"
Unicamente em que abre perspectivas para a compreensão do processo lógico, sem contudo o lin1itar ou lhe dar um têrmo.
(7) Sem insistirmos nesse ponto, observe-se contudo que o processo de identificação tem suas raízes filogenéticas mais remotas em processos orgânicos rudimentares. :Êle constitui a transposição, em processo pensante, racional (isto é, b·ansposição numa atividade das esferas superiores do sisten1a nervoso central) de processos orgânicos primários, desde o tropismo da matéria viva, até os reflexos orgânicos mais rudimentares.
14 C A I O P R AD O JúNI OR
como se sabe, a multiplicidade e variabilidade não passam de ilusão dos sentidos. O próprio Parmênides, conh1do, é obrigado a con
cessões, e admite a consideração daquela multiplicidade e variabi
lidade, mas não como matéria ou assunto da Verdade (que êle reserva ao Uno e Imutável); e sim apenas da Opinião.
Seja embora sob essa ou aquela forma, a dialética da Natureza é contornada e afinal escamoteada na generalidade dos sistemas da filosofia grega (8); escamoteação essa que tem por diretriz e norma geral a subordinação da dialética à estaticidade, isto é, à interpre
tação da mudança e do movimento em função da estabilidade. E isso se realiza pela introdução de um elemento estável e fixo em tôda transformação. A filosofia grega, que estendendo-se até Aris
tóteles, encontra nêle a sua síntese e resultante final; e que legará ao mundo o primeiro grande sistema lógico-filosófico ou esquema conceptual sistemático destinado a estruturar a interpretação dos fatos naturais, a filosofia grega definirá claramente e consagrará aquela concepção. Ela se centraliza na noção de SER, que exprime o elemento estável e fixo dos fatos da Natureza, e cuja essência
(o que faz com que o Ser seja o que é) se mautém através de tôdas as transformações que o Ser possa sofrer e de que resultam o apa
rente fluxo e variedade da Natureza. A mudança não é assin1 senão de "estados" sucessivos e diferentes do mesmo Ser.
Observe-se que essa concepção, que encontra na filosofia grega sua primeira expressão sistemática, tem raízes muito mais remotas, pois enconh·amos traços dela na própria estrutura da linguagem.
E não pode haver dúvidas que é aí que os filósofos gregos buscaram sua primeira e principal inspiração ao ·delinear:em seus sistemas e a solução que deram ao problema do conhecimento. Se não vejamos.
O que essencialmente caracteriza a estrutura da linguagem (e isso é universal e comum a tôdas as línguas -conhecidas, vivas ou mortas, o que bem mostra a essencialidade de tal estrutura) é a distinção, dentro da oração ou proposição, entre o sujeito e o predicado, repre
sentando aquêle o agente e êste último a ação. Ora o que significa isso se não a consagração, pela expressão verbal, de um.a interpr�-
(8) Costuma-se excetuar Heráclito. Sem querer debater aqui o assunto, penso todavia que Heráclito só aparentemente inclui a dialética no seu sistema, pois a elimina logo em seguida com o seu Logos.
NOTAS INTRODUTÓRIAS A LÓGICA DlALltTICA 15
tação dos fatos que a oração pretende exprimir e descrever, pela qual se introduz nos mesmos fatos um elemento estável e perma
nente, representado pelo sujeito da oração, que permanece o mesmo através de todo o fato expresso .e descrito; e que existe mesmo inde
pendentemente do fato, e sempre o mesmo e como tal?
Para se compreender o alcance disso (porque à primeira vista nada há que objetar a urna tal estrutura da linguagem, e parece mesmo não haver oub·a maneira de representar os fatos), conside
rem-se as orações impessoais, onde não há sujeito, ou aiites onde o sujeito é o pr6prio predicado (verbo) e nêle se confunde: "chover"
é o mesmo que «chuva", "trovejar" que "trovão''. Ora, a rigor, em todos os fatos o sujeito que aparece na expressão verbal dêles, con
funde-se efetivamente com o predicado (verbo), e não pode ser dêle separado. Isso porque o agente que o sujeito representa, não se distingue realmente da ação representada pelo predicado. Na realidade dos fatos, e tal como êles são dados na experiência que é nossa fonte originária de conhecimento, agente e ação represen
tam um conjunto, constituem um todo que não pode ser ·desmem
brado senão abstratamente, isto é, por uma operação mental. Num fato por exemplo como o de um pássaro que voa (e que se exprime verbalmente: o pássa1'0 voa) a ação de voar adere integralmente ao agente pássaro que voa. Não é possível senão por abstração (uma operação mental portanto, com que o fato em si nada tem a ver, pois sua ocorrência independe completamente do observador) não é possível apartar os dois elementos: ação e agente, o voar e o pássaro. Dir-se-á que o pássaro pode estar em repouso, e que por
tanto se distingue da ação de voar; mas êsse repouso será outro fato que podemos assimilar ao primeiro a fim de destacar seu elemento comum que é o pássaro. Mas já aí estaremos intervindo no assunto com uma operação mental de assimilação (a identificação a que nos referimos páginas acima), reduzindo absh·atamente, isto é, no pensamento, fatos diversos a um só. E compreendemos com isso porque é possível aquela estmtura verbal que separa o sujeito do predicado: é porque encontramos em fatos embora bem diferentes, elementos comuns ou semelhantes. O que não ocorre tão diferen
ciadamente nos acontecimentos que costumamos exprimir com ora
ções impessoais: no chover, por exemplo, não há nada que se des-
16 C AI O PR AD O J O NI OR
taque numa comparação de várias chuvas e que diferencie inter
na1nente tais acontecimentos. Noutras palavras, temos a impressão, na generalidade dos casos, que ·o agente pode ser destacado da ação, porque podemos figurá-lo, com base na experiência, incluido em outros fatos ou ações. Mas isso é pura abstração, o que logo se verifica pela circunstància que tal agente não poderia ser desta
cado simultâneamente de todos os fatos. Qualquer que seja a hipó
tese, o pássaro do nosso. exemplo poderá não estar em vôo porque está .em repouso, ou saltitando, ou engajado em outra ação qualquer.
Mas estará sempre "agindo" desta ou daquela forma, incluído num fato qualquer; isso mesmo quando morto, quando sobrarão :q.êle pelo nienos as ações químicas que decompõem seu organisID:O·
.Note-se que não estamos aq1ú por ora discutindo a propriedade ou impropriedade da estrutura verbal à nossa disposição para ex
primir e descrever os fatos da Natureza. O que pretendemos é uni
camente 1nostrar que tal estn1tura pressupõe uma certa concepção filosófica, ou pelo menos leva a ela, e que é a da permanência na mudança, ou melhor, que subordina a mudança à permanência, pois introduz na dialética dos fatos naturais elementos estáveis e perma
nentes que coloca em primeiro e principal plano. De fato a lin
guagem, estruturando-se na base de um sujeito que representa o agente, o motor, o responsável (digamos assim) pela ocorrência de um fato, desloca a ação, o movimento, a mudança observada _nesse fato, para um plano secundário e subordinado: simples efeito da coisa ou entidade que preside ao fato e que é representada pelo
suieità. O fato e sua dialética tornam-se em simples modo de ser de uma suposta entidade imutável que figura na oração como su' jeito. O pássaro do nosso exemplo será sempre a mesma e idêntica entidade que ora voa, ora repousa, ora saltita, ora constrói seu ninho, ora perece ... Todos êsses fatos (o vôo, o repouso, o saltitar, a nidificação, a morte) serão sempre e ape:i;ias manifestações ou inodos de ser da ines1na entidade pássaro, ·entidade essa per1nanente, idêntica e imutável através da dialética daqueles fatos.
Mudança, movimento, variação, dialética da Natureza em su1na, faze1n-se assim em simples estados diferentes de elementos estáveis e imutáveis em ineio da transformação aparente. Tanto isso é exato, e que a lingi1agem implica ou sugere essa concepção, que na sua
NOTAS INT RODUTÓRIAS A LóG!GA DlALltTIGA 17
essência a ação que é aquela mudança, 111ovimento ou variação, aparece como um mero estado do sujeito da oração. Não é se1n fundamento que na terminologia gramatical corrente, o verbo,. que é a ação, se denomina "predicado", o que quer dizer qualidade, ah·i
buto, estado. E já os velhos logicistas tinham notado que tôda oração é essencialmente predicativa ou atributiva, podendo ser trans
formada de maneira a fazer expressamente do verbo um atributo 011 estado do sujeito: em vez de dizern1os o pássaro voa, diríamos com igual propriedade o pássaro é voador. Os lingüistas modernos se insurgem: violentamente contra isso, e mostra1n com carrada:s de argumentos e razão que a oração predicativa ou s\lbstantiva se dis
tingue da oração verbal pràpriamente. Sem entrarmos nesse de
bate, podemos contudo afirmar que o fato é que embora em certas línguas mais que em outras, a transformação da oração verbal en1 predicativa parece làgicamente legítima. Assim sendo, como expli
car essa aparência de legitimidade, inesmo que seja ilus6ria · como pretendem os lingüistas, se nãó porque ela se apóia em concepções lógicas, certas ou erradas, não importa, mas bem implantadas en1 nosso espírito? (9)
Essa ligeira incursão no domínio da linguagem nos permite con
cluir que a concepção lógico-filosófica elaborada pelos gregos e le
gada por êles à posteridale, tem raízes muito profundas, uma vez que ela se encontra implícita na própria estrutura da linguagem que preexiste de muito à formulação daqueles sistemas filosóficos.
Ela poderia talvez ser atribuída, em última instância (no plano do pensamento humano) ao antropomorfismo, que parece constituir uma tendência natural e espontânea (isso é, de raízes biológicas). do espírito humano, e que se revela em outras mru1ifestações paralelas e bem próximas daquela concepção, como no anim·ismo, E1n ambo.s os casos vemos projetado no seio da Natureza extra-humana, o tipo ou modêlo da ação humana, em que o agente home1n, como ele
mento permanente e estável, representa o ponto de partida e o impulso da ação que o mesmo homem pratica. Do n1esmo modo
(9) Veremos adiante (cap. 13) como essa eshutura da linguagem inspi
rada em concepções filosóficas, se ajusta aos processos pensantes que exprime ou deve exprimir,
18 CAIO P R ADO JúNIO R
que o fato em que figura o indivíduo humano é interpretado e con
cebido por êle como efeito e resultado de sua ação e impulso, os fatos da Natureza extra-humana serão atribuídOs a outros tantos sêres, entidades ou coisas com as mesmas qualidades de individua
lidade e permanência do seu ser, que o homem atribui a si próprio.
Seja contudo como fôr, o fato é que a solução do problema do conhecimento que vimos acima e que se orienta no sentido de con
ceder a preeminência, na interpretação dos fatos da N ah1reza, ao estável e permanente, em prejuízo da multiplicidade e do fluxo da
queles fatos, essa solução tem raízes muito profundas na cultura humana; e raízes tanto mais sólidas que tal solução se consagra na linguagem, essa linguagem através da qual os homens adquirem a maior parte de seus conhecimentos, e que influi tão considerà
velmente na predisposição e orientação de seus contactos e relações com a Natureza exterior, condicionando assim decisivamente a sua exper1encia. Não admira assim a poderosa influência e ação que as concepções lógicowfilosóficas clássicas sempre tiveram e ainda têm para ofuscar a real dialética da Natureza, e orientar a atividade pensante do homem e a elaboração de seu conhecimento em sentido diferente, a saber, forçando a interpretação dos fatos naturais para dentro de moldes lógico-filosóficos rigidos em que a dialética é subestimada e relegada a um papel subordinado em proveito da consideração estática da Natureza.
Isso aparece claramente em todo transcurso da evolução cul
tural da humanidade até época muito recente; e ainda hoje destaca
-se como elemento fortemente saliente. Na impossibilidade de pro
cedermos aqui a uma análise pormenorizada e sistemática daquela evolução, limitamo-nos aos exemplos mais característicos daquele fato. Já não é preciso falar do fenômeno religioso e na natureza eminentemente estaticista da Religião, com suas entidades eternas e imutáveis, e sua explicação do Universo e dos fatos da Nah1reza em geral, em função dessas entidades. As religiões, como concep
ções interpretativas e explicativas ·do Universo, situamwse em pólo oposto à dialética; e sómente não a renegam de todo na medida estrita e exclusiva em que são obrigadas a concessões que a vida prática e experiência rotineira dos homens impõem além de qual
quer eventual posição. Mesmo contudo na Ciência pràpriamente,
NOTAS INTRODUTóRIAS A LóGICA DIALÉTICA 19
isto é, naqueles setores do conl1ecimento que lograram desvencilhar
-se pelo menos em grande parte, do influxo de crenças religiosas, vamos encontrar a ação flagrante da concepção estaticista. Assim na própria Física, isto é, naquele setor do conhecimento que sem
pre marchou adiante dos demais; e desde a Mecânica, a inais ele- 1nentar das ciências físicas e reputada tão rigorosa.
Isso é tanto mais sintomático, que o movünento mecânico cons
tituiu sempre o grande problema da filosofia antidialética, porque nesta experiência tão co1Tiqueira que é o movimento local (a mu
dança de lugar), a dialética da Natureza se propõe de maneira tal que não há como disfarçá-la. Somente pela negação pura e sim
ples dêle, como já opinavam os Eleatas. Dentro das concepções clássicas, o movimento é um paradoxo, e não é possível enquadrá-lo numa conceituação que não seja lügicamente incoerente. Os argu
mentos de Zenon de Eléia, já velhos de muito mais de dois mil anos, e que provavam sem COil;tradita 16gica a inexistência do movi
n1ento, aí estão ainda, sólidos como uma rocha, a desafiare1n a argúcia dos logicistas da velha escola. Coube a Arist6teles, como se sabe, uma solução, ou antes pseudo-solução do paradoxo, e que einbora não passe de grosseira escamoteação, se perpetuou sob for
mas rejuvenescidas até a ciência moderna. Conhece-se a distinção aristotélica entre a potência e o ato, essa misteriosa "enteléquia" tão artificiosamente arquitetada pelo fil6sofo para fazer do movimento (como aliás de qualquer mudança além da simples mudança de lu
gar) um estado a se realizar e que nêle se realiza. Elin1ina-se assim o movimento prOpriamente, e com êle a dialética do fato, concen
trando-o por assim dizer nos dois extremos estáticos da trajetória, como estados sucessivos do corpo movido: em potência num dêles,
enteléquia no outro. Ora êsse jôgo verbal de Arist6teles (realizável graças únicamente à estrutura e natureza estaticista da linguagem) se manteve, em essência, na Mecânica moderna, e 1nal se disfarça na generalidade de suas noções, como em particular nas de inércia, momento, fôrça viva, energia, etc. O influxo do estaticismo é aí patente. Além disso, o que vem a ser o mecanicismo como con
cepção geral que pretendeu um momento abranger todo o conheci
mento científico - e a tendência nesse sentido ainda se faz tanto sentir - se não em essência um programa de escamoteação da dia-
20 CA I O P R ADO JúN!OR
!ética, uma vez que o movhnento n1ecânico ou mudança de luga·r a que se tratava de reduzir todos os fatos da Natureza, é precisa
mente a única mudança que não hnplica modificação, pelo n1cnos aparente e considerável, de estado. O n1ecanicisn10 consagra assün a permanência e imutabilidade.
Não precisamos insistir. A primeira solução dada ao problema inicial e fundamental do c011hecimento, e .que é o da uniformidade na multiplicidade, e da per1nanência no fluxo, sol11ção essa que tão flagrantemente sacrificou a consideração da dialética dos fatos natu
rais em proveito da da estaticidade, imprimiu fundamente seu cunho na evolução elo con11ccbnento l1u1nano, estruturando a interpretação dos fatos da Natureza, isto é, estabelecendo a norma geral da con
ceituação dêsses fatos, em função exclusiva ou pelo menos prepon
derantemente de u1n dos têrn1os contraditórios do problen1a: a uni
formidade e permanência. Daí as deformações que a conceituação vai sofrer como representação adequada dos fatos da Natureza, e sua falta de flexibilidade em se ajustar corretamente a êles. Abre-se assim o fértil campo dos debates filosóficos e da construção de sistemas em que se procura incluir e enquadrar a experiênca hu- 1nana que se vai alargando co1n o correr dos tempos, nos rígidos e inadequados esquemas conceptuais da Lógica clássica. Está claro que os fatos reais sairão daí torturados e deformados; mas essa de
formação ainda se faz pouco sentir nos primeiros estágios do desen
volvimento da cultura. É que a tarefa do conhecimento ainda se propç>e então mais acentuadan1.ente con1 o objeto prellininar de um simples reconhecimento da Realidade, e identificação de suas feições nocivas e favoráveis a serem respectivamente evitadas e pro
curadas pela ação do homem. É ainda a fase de adaptação passiva do homem a seu meio, em que o objetivo essencial dêle consiste Unica1nente naquilo que se exprime na clássica fónnula ética: "'evitar o mal e procurar o bem". O assunto s(nnente se proporá de 011h·a inaneira quando se h·atar de "transformar o mal em bem", e intervir ativamente para isso nos fatos da Natureza; quando, na expressão famosa de Descartes, se objetivar "uma prática pela qual, conhe
cendo a fôrça e as ações do fogo, da água, dos astros, dos céus e de todos os outros corpos que nos cercam, tão distintamente como CO-·
nhecemos os diferentes misteres de nossos artesãos, pudésse1nos
NOTAS INTRO DUTÓRIAS A LÓ GICA DlAL1':TICA 21
a1jlicá-los pela mesma forma a todos os usos para os quais são pró
prios, e tornando-nos as.sin1 co1no senhores e possuidores do Uni
verso.'· (Discours de la Méthode).
Antes disso, e enquanto a tarefa principal do Conhecimento consiste apenas ou sobretudo em utilizar o pensamento no plano inicial e primário da sünples preservação e adaptação passiva à Na
tlrreza, plano êsse em que outras funções orgânicas já desempenha1n um papel (como aliás tanto no homem como no animal), intervindo o pensamento apenas como refi\rço suplementar e de alta enverga
dma e potencialidade; aí o processo pensante elementar da iden
tificação siniples1nente discrimínat6ria é relativamente suficiente. E assim a uniformidade e permanência da Natureza, cuja consideração constitui o essencial daquele processo, tomam relêvo desproporcio
nado, e a multiplicidade e fluxo dos fatos naturais, a dialética da Natureza, em suma, pode em rigor passar, e passa efetivamente a um segundo plano.
Essa posição contudo se tornará, co1n o correr do tempo e a6úmulo da experiência 11umana, cada vez mais falsa, pois as clás
sicas concepções lógicas-filosóficas encontrarão dificuldades crescen
tes para enquadrarem convenientemente um tal acúmulo de novas experiências, e estruturarem adequadamnte a conceituação q11e re
sulta daquele progresso do conhecimento; e bem assim, p01tanto, para fazerem face às necessidades da ação humana. Isso se observará particularmente bem na incompatibilidade cada vez maior entre as clássicas concepções lógico-filosóficas e a ciência, isto é, o setor da elaboração sistemática do conhecimento. Enb·e outros, a crítica de Descartes e o esfôrço estéril dos filósofos dos sécs. XVII e XVIII em harmonizar ciência e filosofia, inostra1n isso claramente. A si.:.
tuação se toma particularmente aguda naqueles séculos, quando por circunstâncias históricas várias, a elaboração da ciência se intensi'"
fica consideràvelmente. E se a crise final do esquema lógico-filo
sófico foi diferida para um ou dois séculos depois, isso se deve ao fato que tal elaboração científica se fará na 111aior parte à margem daquele esquema e dentro de outro sistema lógico que é o da Mate- 1nática. Mas êsse assunto não nos interessa aqui particularmente.
O fato é que o primeiro a dar o sinal de rompimento com a Lógica clássica será Hegel. A solução hegeliana se reduz em última
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análise a uma reinterpretação (que êle fundamentará com os dados da ciência e da elaboração científica de seu tempo) da noção fun
damental do esquema lógico-filosófico clássico, a saber, da noção de SER. Como vimos, foi para· dar «consistência" à Natureza tão variável e fluida, que a filosofia clássica criara a noção de SER imutável, imóvel e sempre idêntico a si próprio, no seio do apa
rente fluxo universal que não seria senão o acidental e contingente dêsse Ser. Numa palavra, o SER é sempre êle próprio, e exclui por isso necessàriamente o que não é êle, o não-ser. E de fato, como se sabe, a Lógica clássica se fundamenta precisamente na exclusão dessa contradição entre o Ser e o Não-ser, o que constitui o principio da identidade inscrito no ponto de partida de tôda aquela Lógica. E nessa base ou com êsse critério ela estrutura a concei
tuação, e considera e interpreta por conseguinte os fatos da Natu
reza, ressalvando assim a uniformidade e permanência, em prejuízo, como vimos, da dialética. A Lógica de Hegel, pelo contrálio par
tindo embora da filosofia clássica, isto é, dessa mesma noção de SER (que é dada no processo de identificação e por isso necessália e inelutável, pois explime a uniformidade e peimanência da Natu
reza que representam o dado essencial na base de que o pensamento opera e o conhecimento se elabora) considera o SER não em si e na sua identidade, como faz a Lógica clássica, mas como incluindo a não-identidade, ou antes, tomando-se permanentemente em NÃO
-SER por fôrça de sna própria identidade. Em suma, a Lógica de Hegel deriva a dialética da própria identidade, isto é, deriva a multiplicidade da uniformidade e o fluxo da permanência. E assim, em vez de contornar a contradição dialética pela exclusão de um de sens têrmos, à moda da Lógica clássica (contradição essa, note
-se, imanente nos fatos naturais e que se enconh·a por isso necessà
riamente implícita na conceituação em geral, e nos conceitos em particular, em que se representam mentalmente aquêles fatos), a nova Lógica tratará pelo contrário, em cada caso, de descobrir e pôr em evidência aquela contradição do SER e NÃO-SER que ex
p1ime conceptualmente a dialética dos fatos. E permitirá assim conceituar, isto é, representar mentalmente em tê1mos conceptuais, o fluxo incessante da Natureza, a sua dialética em suma.