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O Corpo de Diadorim. Palavras-chave: Sertão; travessia, corpo, literatura, feminino. Keywords: Backwoods; crossing; body; literature, feminine.

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Academic year: 2021

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http://www.uva.br/trivium/edicao1/artigos-tematicos/8-o-corpo-de-diadorim.pdf

ARTIGOS TEMÁTICOS

O Corpo de Diadorim

Nestor L. Lima Vaz

Resumo

Há leituras que impõem uma escrita, a leitura da obra de Guimarães Rosa, Grande Sertão: Veredas, é uma delas. Partindo da tese de que a psicanálise pode realçar ainda mais a singularidade desta obra - tomando o trabalho intrínseco à própria análise, como comprovando, no real, o que é próprio do trabalho do significante, em sua dimensão de letra, na constituição de um sujeito cujo corpo se decanta de uma travessia -, é que tomamos o texto de Guimarães no que ilustra e expõe na travessia de Riobaldo o que testemunhamos, ou vislumbramos, a cada análise.

Palavras-chave: Sertão; travessia, corpo, literatura, feminino.

Abstract

There are some readings which impose writing, the reading of Guimarães Rosa’s Grande Sertão: Veredas, is one of them. We believe psychoanalysis can emphasize even more the singularity of this book – bringing out the inside work of psychoanalytical process as it confirms, in real, what is proper of signifier’s work, in letter’s dimension, in a subject’s constitution which’s body we can decant from a crossing – we assume that the Guimarães Rosa’s text illustrates and exposes in Riobaldo’s crossing what we testify, or glimmer, at each analysis.

Keywords: Backwoods; crossing; body; literature, feminine.

Psicanalista; Membro da Letra Freudiana; Mestre em Filosofia pela UFRJ.

nestorvaz@globo.com

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a Joel Rufino, Cláudio Oliveira, Paulo Becker e Angela Andrade

Ah, tem uma repetição, que sempre outras vezes em minha vida acontece.

Eu atravesso as coisas – e no meio da travessia não vejo! – só estava era entretido na idéia dos lugares de saída e de chegada. Assaz o senhor sabe: a gente quer passar um rio a nado, e passa; mas vai dar na outra banda é num ponto muito mais embaixo, bem diverso do em que primeiro se pensou. Viver nem não é muito perigoso?

Este texto nasceu da paixão de uma leitura. Não de uma leitura qualquer, mas de uma que impõe uma escrita e uma escrita que fizesse apaziguar, como se fosse possível, os efeitos produzidos por cada significante, por cada letra no seu trabalho incessante de constituir a trama, o corpo de cada personagem. Esse corpo é o corpo da literatura. Ao mesmo tempo em que fixando o meu corpo, o de um leitor, incessantemente perturbado pela leitura, realmente colado a esse livro, subvertido na minha própria temporalidade e entregue ao tempo da letra, pudesse fazê-lo viajar por esse Grande Sertão, padecendo dessa lógica estóica em que, a cada palavra, transitavam como febre esses incorporais a fabricarem montagens de cenas para onde somos conduzidos a participar na pele de cada personagem ou na identidade velada do próprio autor duplicada na ficção de uma dupla narrativa.

Uma vez concluída a dupla leitura inicial, já que após as cem primeiras páginas recomecei a leitura, sem nenhum cansaço ou queixa, era difícil não continuar pensando no fio permanente desse romance digno de figurar ao lado dos maiores da literatura mundial, tendo a vantagem de ter sido escrito em nossa língua. Poderia continuar sua leitura infinita, já que os livros têm essa característica de infinitude, como nos ensinou Borges. Confesso que estou na de número 5, mas não tenho pressa e, depois de algum tempo, deixarei de contar, mas isso não importa, o que importa é que, ao escrever, ao repetir, ao parodiar, há sempre uma certa possibilidade de transfinitização. Isso porque encontrei-me, de repente, prisioneiro desse Grande Sertão, jagunço entre jagunços, testemunha do amor impossível de Riobaldo por Diadorim, fiador da traição sofrida pelo grande chefe Joca Ramiro pelos “judas” do Hermógenes e Ricardão, atravessando incessantemente o Rio São Francisco na tentativa de marcar os limites desse Sertão. Uma vez que se entra aí, a única saída é dada forçosamente pela página final, a qual o autor nos obriga, mas obstinamo-nos em continuar o livro ao interpretá-lo ou a criticá-lo, ao introduzi-lo numa série ainda mais fictícia do que a que se supõe decifrar.

Os elementos que possibilitam qualquer interpretação se encontram sem dúvida no Grande Sertão, Veredas e, portanto, já se afastaria qualquer ideia precipitada de que se trata de uma suposta interpretação psicanalítica, numa concepção anterior a de Lacan, do livro, da obra ou do autor, Guimarães Rosa. A exterioridade da interpretação suporia que se pudesse fazer ler por um outro rótulo literário ou por um saber externo a verdade do livro. Trata-se de traçar algumas homologias. O que Lacan nos possibilita é tomar uma nova conexão entre exterior e interior. O próprio Guimarães Rosa faz uma alusão a isso numa entrevista famosa (ROSA, 1994, p50).

A minha tese, que é bem modesta e francamente apologista e fascinada em face de Guimarães Rosa, é que a própria Psicanálise pode realçar a singularidade dessa obra. Tomando o trabalho intrínseco à própria análise como comprovando, no real, o que é próprio do trabalho do significante, em sua dimensão de letra, na constituição de um sujeito cujo corpo se decanta de

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uma travessia, decorrente de um ato que une de forma contínua o interior no exterior, mas cujo perigo e tragicidade se ilustra e expõe na travessia de Riobaldo. Travessia do Liso do Suçuarão, que lhe custa uma perda. Isso testemunhamos, ou vislumbramos, a cada análise, quer sejamos freudianos, e os psicanalistas o são quer queiram ou não, lacanianos ou riobaldianos.

Um primeiro ponto de meu trabalho: há um bom crítico literário de cujo nome não me recordo, que ressaltou a dívida de Guimarães Rosa em relação aos Sertões de Euclides da Cunha, livro famoso e que descreve a Guerra de Canudos de forma rigorosamente cartesiana: A Terra, o Homem, a Luta. Digamos que encontramos aí os Elementos de Euclides da Cunha: de uma descrição previamente geológica (ou mesmo cartográfica) a uma descrição geográfica. Os Sertões se delimitando a partir do semicírculo traçado pelo Rio São Francisco recortando uma vasta camada de terra, que vai de Minas Gerais até a Bahia, entremeada por um relevo próprio e por um tipo de clima específico. Às margens do São Francisco, de sua Bacia Hidrográfica, se constituem as cidades. O São Francisco é o significante principal, como diria Lacan no seu seminário sobre as Psicoses, em torno do qual se constituirão os sujeitos. Tudo isso é descrito de forma exaustiva, mas exata por Euclides da Cunha. A partir daí, ele fala sobre o Homem numa descrição calcada numa espécie de etnologia criticável para nós hoje em dia, mas que, nem por isso, deixa de trazer questões interessantes: a gênese dos jagunços, os vaqueiros, a herança dos bandeirantes, a oposição entre o jagunço e o gaúcho, até chegar a uma explicação etnológica de Antonio Conselheiro e à formação de Canudos. Por último, uma descrição minuciosa da Guerra de Canudos até a derrota ou o massacre dos jagunços e de Antonio Conselheiro. Encontramos aí uma espécie de genealogia daquilo que poderia definir o brasileiro e a brasilidade.

Sem dúvida que há uma relação entre Os Sertões de Euclides da Cunha e Grande Sertão – Veredas de Guimarães Rosa, mas não é uma relação nem de uma repetição, nem de uma simples apropriação, mas de uma subversão. Diria que Guimarães Rosa é não euclidiano, sua subversão é de outra ordem, ele introduz uma outra geometria, substitui a descrição geográfica cara a Euclides da Cunha por outra que de certa forma é topológica, uma topologia da escrita já que é o elemento da letra, a construção da frase que é subvertida inteiramente. O grande sertão ganha sua espacialidade e sua temporalidade nessa língua, ou nessa alíngua, de Guimarães Rosa. É nesse sentido que ele se infinitiza, e isso no próprio corpo do texto onde o símbolo do infinito aparece.

É a sua álgebra mágica. Não se trata, a meu ver, de regionalismo. Trata-se de brasilidade numa retomada de renovação da própria língua. Carlos Drummond de Andrade, (2001, p.13) em sua poesia sobre Guimarães Rosa, que aparece em todas as novas edições de Guimarães Rosa, fala um pouco disso:

- “(...) Tinha pastos, buritis plantados no apartamento? No peito?

Vegetal ele era ou passarinho sob a robusta ossatura com pinta de boi risonho?”

Essa topologia, tal como na Psicanálise, se constitui enodando nessa escrita desde o elemento do Grande Sertão, o Grande Outro de Lacan, até a constituição de cada personagem, de cada sujeito e sua participação na trama. Esse Grande Sertão comporta um vazio no seu “centro”, que é o Liso do Suçuarão, e deixa um resto no final nesse real do corpo de Diadorim.

Não há uma ordem linear de narrativa. Não sabemos de início a estória dos personagens.

Já se começa direto na luta e, ao mesmo tempo, se descrevem a terra e os homens. A homologia com a Psicanálise surpreende não em função dos elementos teóricos, mas de narrativas, de construções que se assemelham ao percurso mesmo de uma análise.

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Essas são apenas considerações iniciais, pontos de demarcação. O tema central do trabalho nos remete aos dois personagens principais, Riobaldo e Diadorim. Vamos falar de encontros, entrecruzamentos, travessias, as veredas por onde passa a trama do romance: um confronto entre um destino trágico e outro dramático, entre uma espécie de herói antigo e outro moderno.

Riobaldo é o personagem que narra a estória ao autor e, ao mesmo tempo, ao outro personagem, que é o Compadre Quelemém. A narrativa é extensa e tem um caráter retroativo e não linear. Nesse sentido, na medida em que alteramos a ordem da narrativa para enfatizar um aspecto dela, é o próprio livro que acaba perdendo a sua forma inigualável. Por isso, este trabalho é apenas um comentário para os apreciadores de Guimarães Rosa que já leram o romance, que se inscreve ao lado de outros inúmeros trabalhos que já foram escritos e de outros que ainda virão.

Assinalarei algumas partes do romance importantes de serem lembradas. É preciso não esquecer da grande extensão do livro.

O Primeiro Encontro: o Menino

Mas eu olhava esse menino, com um prazer de companhia, como nunca por ninguém eu não tinha sentido. Achava que ele era diferente, gostei daquelas finas feições, a voz mesma, muito leve, muito aprazível. (...) Nem em minha mãe eu não pensava. Eu estava indo a meu esmo. (ROSA, 1984, p96-97).

Riobaldo, com 14 anos, tinha vindo junto da mãe ao Porto de um Rio afluente do São Francisco e estava pedindo esmolas para pagar a promessa que ela havia feito em função de ele ter sarado de uma doença.

Podemos destacar alguns pontos relevantes nesse trecho da obra: o impacto da beleza do menino e seu caráter agalmático recoberto de sensualidade, da sua altivez, do seu destemor, dos olhos verdes, da voz, do acolhimento, do calor do toque das mãos. Isso em contraste com o desamparo, a vergonha, o medo, a humildade de Riobaldo. Ao mesmo tempo em que há um afeto que aparece, admiração, simpatia, um gostar que se supõe recíproco. Contudo há algo de estranho, de mistério que envolve o menino: era o dessemelhante. A maneira como ele falou sobre a beleza das flores, dos pássaros, da natureza (esse é um tema que vai reaparecer), a maneira como ele se vestia. Riobaldo chega a esquecer de sua mãe na companhia do menino.

Essa passagem, que é narrada como o momento inaugural de um encontro, na medida em que é retroativa, nem sempre permite distinguir entre o que seria o sentimento da personagem na época ou uma apreciação acrescentada posteriormente no momento da narração. O estilo dessa passagem se repete em muitos momentos do romance. Na verdade, essa ambiguidade ocorre também na vida comum e, na Psicanálise, podemos encontrar os elementos inconscientes que presidem essas associações.

A primeira travessia do São Francisco:

‘Que é que a gente sente, quando se tem medo?’ – ele indagou, mas não estava remoqueando; não pude ter raiva. – ‘Você nunca teve medo?’ – foi o que me veio de dizer. Ele respondeu: ‘Costumo não...’ – e passado o tempo dum meu suspiro: – ‘Meu pai disse que não se deve de Ter...’ Ao que meio pasmei. Ainda ele terminou: – ‘... Meu pai é o homem mais valente deste mundo’. (ROSA, 1984, p99)

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Na hora em que a canoa sai da vereda e chega ao Rio São Francisco, Riobaldo se apavora diante da imensidade dele. Não deixa de ser divertido pensar no próprio nome do personagem Riobaldo. Riobaldo fica muito inquieto porque a canoa balança muito. Ele pede para voltar, mas o menino não esboça a menor reação de medo e ainda acalma a aflição de Riobaldo.

Após o retorno do passeio, os dois se separaram. A figura desse menino ficou marcada para Riobaldo: uma coragem que tomava como referência o pai, enquanto Riobaldo se apoiava na mãe e nada sabia sobre seu pai.

Um pouco depois, a mãe de Riobaldo morreu e ele acabou indo morar com seu padrinho, Selorico Mendes, que era rico, dono de três fazendas de gado. Ele se encarregou da educação de Riobaldo, contava estórias dos políticos, dos jagunços e do sertão. Fez com que Riobaldo aprendesse a atirar bem, lhe deu um punhal, uma garrucha e uma granadeira e o enviou para uma escola. Seu professor, Mestre Lucas, disse que ele também poderia ser um bom professor e, depois de algum tempo, fez com que ele ajudasse na instrução de outras pessoas. Seu padrinho mandava buscá-lo uma vez por mês. E é numa dessas ocasiões que acaba conhecendo o chefe dos jagunços, Joca Ramiro, e seus segundos, Ricardão e Hermógenes, que se encontravam secretamente na casa do seu padrinho. Eles precisavam de alguém que os guiasse a um determinado lugar onde um bando de jagunços pudesse se esconder, e essa tarefa coube a Riobaldo, Ele fica muito impressionado com esse acontecimento.

Na sequência, alguém conta a Riobaldo que, na verdade, ele seria filho de Selorico Mendes, seu padrinho. Ele resolve, então, fugir da fazenda. Cai no mundo, passa ao avesso por causa de sua mãe e da raiva que sentia em relação ao padrinho.

Resolveu trabalhar como professor, e é dessa forma que conhece Zé Bebelo, que o tomou não só como mestre, mas também como secretário. Zé Bebelo tinha ambições políticas e estava determinado a ajudar o governo a exterminar os jagunços. Ao participar nesse trabalho de várias coisas com as quais não concordava, Riobaldo resolve deixar Zé Bebelo. Vai numa direção contrária.

O Reencontro: Reinaldo. O amor

Amor desse, cresce primeiro; brota é depois...

E desde que ele apareceu, moço e igual, no portal da porta, eu não podia mais, por meu próprio querer, ir me separar da companhia dele, por lei nenhuma; podia?(ROSA, 1984, p.130)

Ao se abrigar numa fazenda, Riobaldo acaba revelando que havia deixado o grupo de Zé Bebelo e, após algumas perguntas insistentes do fazendeiro sobre Joca Ramiro, diz ter fugido porque pretendia se juntar a ele.

Aparecem outros homens. Dá-se o reencontro com o Menino, que agora tem um nome:

Reinaldo.

Riobaldo passa a fazer parte do bando de jagunços, mas questiona a sua diferença para com eles. Ao repartir com Reinaldo o posto de vigia do bando, Reinaldo começa a chamar a atenção de Riobaldo para as belezas da natureza, faz uma abertura ao belo. O modo de falar era de ternura. Aqui se repete um elemento do seu primeiro encontro com o menino. Isso era, para ele, um signo do destino.

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Nessa narrativa retroativa é que os fragmentos se reúnem. Riobaldo já define aí seu amor por Reinaldo. Era amor vivido no conflito, na negação constante, na estranheza, mas trazia esse signo do destino e se ancorava num real do objeto.

As sutilezas:

Era ele estar perto de mim, e nada me faltava. Era ele fechar a cara e estar tristonho, e eu perdia o meu sossego. Era ele estar por longe, e eu só nele pensava. E eu mesmo não entendia então o que aquilo era? (ROSA, 1984, p.137)

A capanga de Reinaldo trazia várias coisas: tesoura, tesourinha, pente, espelho, sabão verde, pincel e navalha. Reinaldo cuidava de si e de Riobaldo. Usou um espelho para acertar seu cabelo e, depois, quis cortar o de Riobaldo. Mandou ele fazer a barba. Depois, ao longo do tempo, deu vários presentes para Riobaldo. Depois, sempre dizia para Riobaldo tomar banho, embora ele mesmo só tomasse banho de madrugada e sempre sozinho.

Riobaldo não tinha dúvidas sobre sua virilidade, mas, ao mesmo tempo, não entendia porque a cada dia crescia sua afeição por Reinaldo. Seria coisa do Diabo, algum feitiço?

Os momentos de manifestação amorosa se multiplicam no texto de Guimarães Rosa.

Reinaldo – Diadorim:

A revelação: Diadorim

Uma certa mudança de humor e questionamento de Riobaldo leva Reinaldo a uma revelação:

Escuta: eu, não me chamo Reinaldo, de verdade. Este é nome apelativo, inventado por necessidade minha, carece de você não me perguntar por quê. (...) A vida da gente faz sete voltas – se diz. A vida nem é da gente... Pois então: o meu nome verdadeiro é Diadorim... (ROSA, 1984, p.145)

Com a revelação do nome real, Diadorim aparece agora num certo grau de desvelamento, ele se expõe mais num aprofundamento da amizade como recobrimento do amor. “Ele dava amizade e amizade dada é amor.” (ROSA, 1984, p.146-147)

Riobaldo não duvidava de que Diadorim gostava dele com a alma. Reinaldo era o guerreiro, o jagunço, o homem terrível, ninguém podia duvidar disso, e Diadorim era a singularidade, a intimidade, a cumplicidade, a abertura poética à beleza do sertão.

Riobaldo se pergunta o que estava fazendo ali, no meio dos jagunços. Desde a descoberta de que seu padrinho era o seu pai, Riobaldo estava sem rumo, estava ali só por Diadorim. E quem era para ele Diadorim? Se Diadorim gostava dele com a alma, Riobaldo gostava dele também com o corpo.

Diante desse impossível Riobaldo formula uma espécie de solução:

“-‘Diadorim, você não tem. não terá alguma irmã, Diadorim?’ (...)

- ‘Só tenho Deus, Joca Ramiro... e você Riobaldo’... ele declarou.” (ROSA, 1984, p170) De maneira impulsiva Riobaldo propõe a Diadorim irem embora juntos, propõe uma volta ao lugar do seu pai ou o lugar de onde vinha Diadorim. Contudo, não esperou uma resposta e saiu.

Diadorim manifestava ciúmes em relação a Riobaldo, não gostava do seu envolvimento com as mulheres. Num outro momento, Riobaldo saindo em grupo com Diadorim e outros

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jagunços acaba conhecendo Octacília e se interessa por ela, o que causa uma cena de ciúme imperdível, a troca de olhares entre Octacília e Diadorim, o ódio de Diadorim, que chega a assustar Riobaldo. Guimarães Rosa acrescenta uma frase que é belíssima na sua tragicidade e reverbera por todo o texto:

O senhor mesmo, o senhor pode imaginar de ver um corpo claro e virgem de moça, morto a mão, esfaqueado, tinto todo de seu sangue, e os lábios da boca descorados no branquiço, os olhos dum terminado estilo, meio abertos meio fechados? E essa moça de quem o senhor gostou, que era um destino e uma surda esperança em sua vida?! Ah, Diadorim... E tantos anos já se passaram. (ROSA, 1984, p178, grifo nosso)

Nesse momento, certamente o leitor é remetido à ideia do que poderia acontecer a Octacília com as ameaças de Diadorim.

O pacto

Diadorim tem o seu ciúme aumentado em relação a Riobaldo. Propõe, então, a ele um pacto de que enquanto estivessem no bando nenhum dos dois botaria as mãos em nenhuma mulher.

Diadorim passa a vigiar Riobaldo, e era visível sua tristeza quando Riobaldo dormia com algumas meretrizes. Não acusava Riobaldo, mas o seu sofrimento era patente.

Mas acontece um novo encontro de Riobaldo e Otacília, onde Riobaldo renega Diadorim e depois se sente culpado em virtude de seu amor. Quando retorna desse encontro, Diadorim pergunta se Riobaldo estava gostando daquela moça, com um punhal preparado. Riobaldo responde que não, renegando Octacília para Diadorim.

Quando os dois estavam mais isolados, a afetividade de Diadorim retornava. Mas algumas atitudes dele eram estranhas para Riobaldo. Quando ele desaparecia para cuidar de uma ferida e se isolava e não procurava ajuda, Riobaldo desconfiava, mas Diadorim tinha sempre palavras afetuosas que o acalmavam.

A vida de jagunço: Guerra e Morte

Riobaldo e Diadorim faziam parte do bando de jagunços chefiados por Joca Ramiro e, naquele, momento combatiam Zé Bebelo, que caçava os jagunços pelo governo. Ele era o maior inimigo do bando e, entretanto, Riobaldo já havia convivido com ele e o respeitava muito.

Riobaldo havia conhecido Joca Ramiro, Hermógenes e Ricardão na fazenda do seu pai, Selorico Mendes. O bando se dividia em vários grupos e andavam pelo sertão sempre mudando de lugares.

Riobaldo se achava diferente dos jagunços e era um fino observador de um certo modo de ser deles. O nomadismo deles era uma forma de escapar da perseguição do governo. Muitas vezes, pareciam bichos, comiam carne quase crua. Aos poucos, Riobaldo foi se acostumando. Ele se destacava sempre por saber atirar muito bem, e ganhou um apelido, Tatarana, lagarta de fogo.

Demonstrar sua habilidade era também uma forma de impor respeito aos outros jagunços.

Riobaldo ficava inquieto com várias crueldades feitas pelos jagunços, tudo em nome da guerra. Homens assassinados, mulheres estupradas.

Hermógenes era a encarnação da maldade, tinha muito gozo em matar, passava horas afiando a faca para matar vagarosamente alguém que havia sido separado pelos seus sequazes especialmente para isso.

Riobaldo tinha ganas de matar Hermógenes. Era uma figura asquerosa para ele.

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Um dia reclamou com Diadorim sobre como era possível que Joca Ramiro tivesse escolhido como alferes a Hermógenes.

Hermógenes, ao contrário, confia em Riobaldo, dá presentes a ele e, num dado momento, o escolhe para uma missão difícil em relação ao grupo de Zé Bebelo. Riobaldo combate sob a chefia de Hermógenes e passa várias situações de risco. Podia ver seu ódio aumentando a cada dia e, ao mesmo tempo, observava as características de Hermógenes tanto nas batalhas, quanto entre os outros jagunços.

Até aquele momento, Riobaldo não havia reencontrado Joca Ramiro, que estava em outras terras, e vários rumores se espalhavam sobre essa ausência, insinuações sobre uma melhor chefia de Hermógenes e Ricardão. Riobaldo sempre suspeitava de alguma tramoia.

Joca Ramiro

Riobaldo se encontra de novo com Diadorim, que havia ficado afastado curando um ferimento, e os dois recebem So Candelário, que vem preparar a chegada do grande chefe Joca Ramiro. Todos saúdam a chegada dele. Os chefes se reuniram em torno de Joca Ramiro. Sua passagem por ali seria rápida. Diadorim olhava para ele, e as lágrimas vinham. Ele se aproximou e beijou a mão de Joca Ramiro.

Joca Ramiro presenteia Riobaldo com um rifle para o grande contentamento de Diadorim.

Em seguida, ele vai embora para voltar à guerra, para entrar direto em combate, montado em seu cavalo branco.

O julgamento de Zé Bebelo. O mundo a revelia

Um grupo formado por Riobaldo e Diadorim encurrala Zé Bebelo e mata quase todos os seus homens. Riobaldo não aceita matá-lo e diz ao resto do grupo que Joca Ramiro queria aquele homem vivo. Todos concordaram, porém, com medo de que judiassem dele, Riobaldo pensou mesmo em matá-lo, mas o resto do grupo foi contra. Após ser desarmado, Zé Bebelo seria levado a Joca Ramiro. Enquanto isso, Diadorim havia ficado muito alegre dizendo que a guerra havia acabado. Zé Bebelo diz, então, para ou matarem ele ali mesmo, ou ele exigia um julgamento.

A sequência desse julgamento de Zé Bebelo por Joca Ramiro e os outros chefes subordinados a ele é um dos pontos altos do livro. O mundo a revelia, o governo sendo julgado pelos jagunços. Mas o que gostaria de assinalar é que é por meio de uma intervenção de Riobaldo, que testemunha a favor de Zé Bebelo ressaltando o valor da palavra dada por este último de que se fosse libertado não combateria mais os jagunços, que Zé Bebelo consegue a absolvição. Durante o julgamento, acontece uma certa divisão do bando de jagunços, principalmente do grupo de Hermógenes, que queria a morte de Zé Bebelo.

Zé Bebelo é libertado e vai embora após um juramento de não voltar às armas enquanto Joca Ramiro fosse vivo.

Diadorim fica muito alegre, julgando que a guerra havia acabado, e propõe a Riobaldo “de ir viver n’Os-Porcos” (ROSA, 1984, p.265), terra natal de Diadorim.

A morte de Joca Ramiro

Depois do julgamento de Zé Bebelo, os grupos se dispersam, e um pouco mais tarde, chega a notícia de que Joca Ramiro tinha sido morto por Hermógenes de forma covarde, e que seus homens também foram mortos numa emboscada pelos homens de Hermógenes e Ricardão.

Diadorim fica muito abalado e quer vingança. Riobaldo vai descobrir um pouco mais tarde que, na verdade, Joca Ramiro era o pai de Diadorim.

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Este é o ponto onde o livro começa. O grupo de Riobaldo e Diadorim, chefiado por Medeiro Vaz resolve atravessar o Liso do Suçuarão para atacar, de surpresa, a casa de Hermógenes, uma fortaleza fortemente guardada, onde ele vivia com a mulher e os filhos. De outro modo, isso não seria possível. O Liso do Suçuarão era o lugar impossível de atravessar, e era desse impossível que viria o ataque final. A ideia era de Diadorim, como forma de tentar vingar a morte do seu pai.

Não havia descanso para Diadorim. Ele não vivia, não podia ter alegria enquanto não realizasse sua vingança. Ele só falava em matar, em sangue.

A Travessia do Liso do Suçuarão. O fracasso

“Digo, o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia.” (ROSA, 1984, p60)

O Liso do Suçuarão era um deserto no meio do sertão.

Riobaldo aceita atravessar o deserto por amor a Diadorim. Amor também impossível, deserto do amor.

As questões sobre a existência de Deus e do Diabo perpassam todo o romance, e demarco apenas um desses muitos lugares onde se fala nisso: os homens são criaturas tão ruins que Deus só pode manobrar com eles mandando um intermediário, e que é o diá:

“Ou que Deus – quando o projeto que ele começa é para muito adiante, a ruindade nativa do homem só é capaz de ver o aproximo de Deus é em figura do Outro?” (ROSA, 1984, p37)

É paradoxal pensar no nome de Diadorim e que ressonâncias esse nome poderia ter para Guimarães Rosa, que era um poliglota e lia vários idiomas. Se o diá é através, o que conotaria o complemento: um presente? Um brilho? Um combate com punhal?

A travessia fracassa, no meio do Liso era o inferno. A quentura, a dor, o cansaço dos cavalos e dos jagunços. Riobaldo só pensava na insensatez de Medeiro Vaz e no pacto de Hermógenes com o Diabo. Não havia sombra, não havia água, não havia. Só pesadelos e delírio.

Num certo, momento Riobaldo disse:

“Daqui, deste mesmo lugar mais não vou! Só desarrastado, vencido...” (ROSA, 1984, p.49)

Com pesar, Diadorim aceita desistir da travessia e retornar.

O retorno é muito difícil, sem água e comida. Chegaram a matar um macaco que, na verdade, se descobriu depois, era um homem. Voltavam sabendo notícias dos bandos de Hermógenes e de Ricardão. Voltavam para o meio da guerra também com as tropas do governo.

O retorno é marcado pela morte do chefe Medeiro Vaz e pela escolha de um novo chefe, Marcelino Pampa, sendo que, na verdade, é Riobaldo que o aponta como novo chefe, depois de recusar ele próprio esse lugar.

No caminho, encontram Zé Bebelo, que já havia reunido homens para vingar a morte de Joca Ramiro.

Marcelino Pampa se abstém de chefiar em favor de Zé Bebelo e se faz um novo grupo para lutar contra os Judas: Hermógenes e Ricardão. Zé Bebelo se intitula, então, Zé Bebelo Vaz Ramiro.

O comando de Zé Bebelo

O fracasso da travessia do Liso implica uma guerra a longo prazo, e um desgaste começa a acontecer com Riobaldo, que fica dividido entre o amor e a lealdade a Diadorim, instado a

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ajudá-lo a realizar sua vingança, e um desejo de viver em paz em outros lugares. Sonha com as mulheres que conheceu: Nhorinhá, que havia escrito uma carta que circulou pelo sertão por oito anos antes de ser recebida por ele, e Octacília, com quem fantasiava se casar e morar nas terras do seu pai, a quem já havia começado a aceitar intimamente. Para ele, Zé Bebelo estava desperdiçando o tempo, já que Hermógenes e Ricardão podiam continuar fugindo indefinidamente.

Num dos encontros com os inimigos, Riobaldo foi ferido a bala. O bando se alojou numa fazenda para que Riobaldo pudesse se recuperar dos ferimentos e lá eles foram cercados pelos jagunços do grupo de Hermógenes e de Ricardão. Uma longa batalha foi iniciada, muitos jagunços do grupo de Riobaldo morreram, e não havia saída para o cerco. Zé Bebelo pediu a Riobaldo que escrevesse mensagens endereçadas aos soldados do governo dizendo que vários jagunços se encontravam naquela fazenda e que os soldados poderiam dar cabo de muitos deles.

Essas mensagens eram assinadas por ele, que ainda representava o governo, que nada sabia sobre a história do seu julgamento.

Diante da desconfiança contínua de Riobaldo, Zé Bebelo explica que era a única maneira de escapar do cerco. Quando os soldados chegassem e surpreendessem os jagunços de Hermógenes, eles aproveitariam para fugir no meio da confusão.

É exatamente isso que acontece depois de muitas mortes e de um acontecimento que havia revoltado a todos: os jagunços inimigos haviam matado os cavalos do grupo de Riobaldo.

Mas, desde esse episódio, o descontentamento de Riobaldo com Zé Bebelo aumentou muito e ele tentou convencer Diadorim a sair do grupo.

Ele oferece a Diadorim uma pedra de safira como um mimo, um presente. Diadorim mostra muito interesse pelo presente, mas, depois de um momento, o entrega de novo a Riobaldo.

Pede para ele guardar e só dar a ele de novo quando se cumprir a vingança pelo pai, Joca Ramiro.

É então que Riobaldo convida Diadorim a largar a jagunçagem, dizendo que já tinham sido muitos os mortos do lado deles e os que haviam sido mortos do lado do bando de Hermógenes já serviam como documento do fim de Joca Ramiro.

Diadorim pergunta se Riobaldo teme algo e depois diz: “-‘Riobaldo, você pensa bem:

você jurou vinga, você é leal. E eu nunca imaginei um desenlace assim, de nossa amizade... E tem o que eu ainda não te disse, mas que, de uns tempos, é meu pressentir: que você pode – mas encobre; que quando você mesmo quiser calcar firme as estribeiras, a guerra varia de figura’...”

(p350)

Riobaldo reage, acha que não é capaz de revirar o sertão para cumprir a vingança de Diadorim. Acha que tem de ir embora. E, então, Diadorim, adivinhando as fantasias de Riobaldo diz, com zombaria, sobre Riobaldo e Octacília. Depois Diadorim continuou a falar, de forma carinhosa, como se alimentasse os sonhos de Riobaldo com Octacília, de uma forma estranhamente meiga, mas triste ao mesmo tempo. Era como se guardasse um segredo “(...) alguma causa que ele até de si guardava e que eu não podia inteligir.” (ROSA, 1984, p353)

Riobaldo via, então, se renovar nesse momento seu amor por Diadorim e continuava com ele. Seguia assim. De um lado Zé Bebelo, do outro, Diadorim. Mas ele mesmo, Riobaldo não sabia o que era, o que queria. Já estava incomodado de permanecerem quase um mês parados em função do medo de doenças.

Começou a pensar muito no inimigo, Hermógenes, que era um pactário do diabo.

Riobaldo achou que era isso o segredo dele, da proteção que ele tinha nas terras dele. No fato de que ele sempre conseguia fugir, escapar, mesmo depois de haver matado Joca Ramiro. Diadorim tinha razão. Lembrou de Diadorim menino, atravessando o Rio São Francisco. Faltava terminar

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com ele: “Esse menino, e eu, é que éramos destinados para dar cabo do Filho do Demo, do Pactário! O que era o direito, que se tinha. O que eu pensei, deu de ser assim.” (ROSA, 1984, p382)

Riobaldo resolveu, então, ser pactário também. Esperar o Maligno numa encruzilhada à meia-noite, mesmo que na verdade real do demo ele não acreditasse. E isso Riobaldo fez se dirigindo às Veredas-Mortas, pensando o tempo todo que queria reduzir aquele homem, Hermógenes. E, assim, meia-noite na encruzilhada ele brame por Satanás, por Lúcifer. Só havia silêncio.

Riobaldo volta e começa a dar ordens e sugestões: mandar um portador comprar remédio para a maleita, enviar um comparsa esperto que procurasse entrar para o bando dos Judas e depois trazer informações ou mesmo dar um jeito de envenenar Hermógenes. Todos estranhavam os novos modos de Riobaldo. Diadorim também estranhou. Pela manhã, Diadorim havia dito que gostaria que Riobaldo fosse parente dele. Isso era motivo de alegria e isso era motivo de tristeza, já que Diadorim era o maior segredo da vida de Riobaldo. Ser parente dele era não ser o escolhido, mas o já demarcado. Riobaldo tinha escolhido para o amor, o amor de Octacília, mas havia também o amor de Diadorim, e havia o ódio de Diadorim que brotava de um nome, Joca Ramiro – José Otávio Ramiro Bettancourt Marins, o pai, como um mandado de ódio. Essa era a sina de Diadorim.

Riobaldo ganha um grande cavalo do Seo Habão e desfila com ele de modo desafiador em frente a Zé Bebelo. Continuava agindo de outro modo, muito imperativo.

No dia seguinte, a chegada de um outro bando de jagunços também ligados anteriormente a Joca Ramiro e chefiados por João Gonhá precipitou em Riobaldo uma questão sobre quem seria o chefe. Zé Bebelo e João Gonhá se entreolharam. Nesse momento, Riobaldo descobre que o chefe era ele mesmo.

Riobaldo: Chefe dos jagunços

Zé Bebelo aceita Riobaldo como chefe assim como João Gonhá. Mas Zé Bebelo diz que vai partir porque só sabe viver para comandar e, assim, a fama de jagunço dele chegava ao fim.

“Daí, riu, e disse, mesmo cortês:

- Mas você é o outro homem, você revira o sertão... Tu é terrível, que nem um urutu branco...” (ROSA, 1984, p409)

Esse passa a ser o novo nome de Riobaldo, numa espécie de rebatismo. Zé Bebelo vai embora.

Riobaldo aparentemente não vai atrás do bando de Hermógenes, passa por vários lugares no sertão, como que se fosse um exercício de sua chefia, num estilo que assusta Diadorim. Pede ao Seo Habão para levar a pedra de topázio para Octacília com grande desgosto de Diadorim.

Agrega novos componentes ao bando. Anda numa deriva, cheio de esquisitices. Mas um dia resolveu pôr um fim nelas e achou finalmente qual era o seu projeto, aquilo em direção ao que ele se movia. Seu projeto era traspassar o Liso do Suçuarão. Ele tinha ido até então muito devagar, mas agora ia passar a ter muita pressa. Nenhum dos homens de Riobaldo se deu conta do seu projeto, só Diadorim.

A Travessia final do Liso do Suçuarão

“(...) eu queria tudo, sem nada! Aprofundar naquele raso perverso – o chão esturricado, solidão, chão aventesma – mas sem preparativos nenhuns, (...). Para que eu carecia de tantos embaraços?” (ROSA, 1984, p.472-473)

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Riobaldo retomou aqui o próprio projeto de Diadorim, que tinha sido executado por Medeiro Vaz. Seu bando de jagunços já havia encontrado em diversos momentos com o bando de Hermógenes nas veredas que cortavam o São Francisco.

Riobaldo reuniu seus homens às margens do Liso e foi adiante.

“Rasgamos sertão. Só o real. Se passou como se passou, nem refiro que fosse difícil-ah;

essa vez não podia ser! Sobrelégios? Tudo ajudou a gente, o caminho mesmo se economizava. As estrelas pareciam muito quentes. Nos nove dias, atravessamos.” (ROSA, 1984, p.475)

Como por acaso, tudo deu certo. Algumas nuvens se formaram, achou-se água. A admiração dos seus jagunços por ele aumentava. Riobaldo só se preocupava em saber se isso era uma ajuda do demo, que depois cobraria seu preço. Num determinado momento, Diadorim se aproximou de Riobaldo e disse:

“Riobaldo, o cumprir de nossa vingança vem perto. Daí quando tudo estiver repago e refeito, um segredo, uma coisa vou contar a você...” (ROSA, 1984, p 476)

Perto da saída do Liso, Riobaldo mata à faca um jagunço que havia encarnado para ele o próprio demo e havia tentado matar Riobaldo. Ao sair do Liso, descobriram que a casa de Hermógenes ficava perto. Logo planejaram de invadi-la à noite, de surpresa. E parecia que o próprio Hermógenes não se encontrava lá. Entraram na casa da fazenda e os homens que estavam lá não resistiram ao bando de jagunços de Riobaldo. O mal imperou, como disse Riobaldo.

Tocaram fogo na casa, mataram animais e, por fim, trouxeram a mulher de Hermógenes presa como refém. Levaram-na para outros lugares e fizeram saber isso para atrair Hermógenes.

Contudo, não se fixavam em nenhum lugar.

A batalha final

O encontro dos dois bandos rivais se dá, então, nos Campos do Tamanduá-tão nos Gerais.

Riobaldo traça algumas estratégias, e o tiroteio é intenso. Ele procura manter Diadorim ao alcance de sua visão. A batalha é longa. E conseguem cercar Ricardão numa casa. Riobaldo manda ele sair e depois atira quando vê que Diadorim quer pular em cima dele com uma faca.

Ricardão morre e Riobaldo diz para ninguém enterrá-lo.

Hermógenes e seu bando não estavam ali. Mais tarde a batalha recomeça e num certo momento Diadorim diz a Riobaldo que ele deveria ficar num lugar mais alto, que era o lugar de um chefe. Riobaldo vai para o alto e fica vendo a batalha de cima, atirando com o seu rifle.

Observava sempre Diadorim em seus movimentos.

Lá do alto, Riobaldo viu a chegada de Hermógenes e dos jagunços, que, numa espécie de desafio, foram para a rua se enfrentar à faca. Viu quando Diadorim correu na direção dele e começaram uma luta corpo a corpo. Ao recobrar os sentidos, Riobaldo descobre que Diadorim havia morrido, que a guerra havia acabado com a vitória do bando de Riobaldo e que Hermógenes também estava morto.

O corpo de Diadorim

“Foi assim. Eu tinha me debruçado na janela, para poder não presenciar o mundo.”

(ROSA, 1984, p560).

A mulher de Hermógenes pediu que trouxessem o corpo do rapaz moço, de olhos verdes.

Riobaldo mandou buscarem o corpo de Diadorim, do Reinaldo. Era preciso lavar e vestir o corpo:

“-‘A Deus dada. Pobrezinha...’ disse a mulher ao lavar o corpo de Diadorim.

Somente no átimo em que eu só soube... Que Diadorim era o corpo de uma mulher, moça perfeita. Estarreci. A dor não pode mais que a surpresa.”( ROSA, 1984, p.560)

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Riobaldo vai em busca de registros sobre Diadorim nas terras onde ela nasceu: “Em um 11 de setembro da era de 1880 e tantos... O senhor lê. De Maria Deodorina da Fé Bettancourt Marins – que nasceu para o dever de guerrear e nunca ter medo, e mais para muito amar, sem gozo de amor...” ( ROSA, 1984, p565)

Como foi assinalado no início deste trabalho, o destino dos dois personagens principais, Riobaldo e Diadorim, nos coloca uma diferença entre o destino trágico de Diadorim e o destino dramático de Riobaldo, uma espécie de diferença entre o herói antigo e o moderno, que foi descrito num interessante trabalho de Slavoj Zizek. (ZIZEK, 1995).

O caráter trágico de Diadorim se encontra justamente desvelado pelas insígnias do batistério onde se gravou, de forma oracular, as frases do seu destino: “Nasceu para o dever de guerrear e nunca ter medo”.

Isso já encontramos logo no primeiro encontro entre Riobaldo e o menino, isto é Diadorim. A referência de Diadorim é justamente o pai, homem mais corajoso do mundo. Age como um menino, estranho menino que não tem medo, quando medo é justamente o que os meninos mais têm. Isso é algo que encontramos numa análise, a menina tomar como referência de identificação ao pai. Considerando mais ainda a ausência da mãe. Podemos acrescentar a isso o próprio sertão e as figuras femininas que aí passeiam: terra de jagunços e do real em sua brutalidade. Para poder sobreviver no mundo do pai, chefe de jagunços, a escolha já havia sido determinada. O pai de Diadorim já é o Pai Ideal. As cenas onde aparece Joca Ramiro são sempre marcadas fortemente pela idealização da presença, da beleza, da firmeza, da bondade (entre os jagunços), mas também pela dessemelhança, termo utilizado por Riobaldo para descrever o menino. Joca Ramiro estava acima.

O velamento da condição feminina de Diadorim atravessa todo o romance, mas podemos ver de forma enigmática sempre o brilho do objeto que aparece principalmente na relação mais íntima com Riobaldo: o comentário sobre a beleza das coisas, da natureza, um certo modo narcísico de se cuidar e cuidar de Riobaldo, a forma carinhosa de algumas falas, o ciúme velado ou até mesmo explícito em relação a Riobaldo. A duplicidade entre Reinaldo, o brabo jagunço, homem que disputa as coisas no corpo-a-corpo, à faca, como vai acontecer no desfecho da estória, e Diadorim, segredo parcialmente revelado a Riobaldo para ser usado na intimidade.

Aqui se encontra a característica do não-toda fálica. Guimarães Rosa revela, no meio do romance, o desfecho final ao descrever o corpo morto de uma moça. É bem impressionante a sua ousadia de trazer a solução do enigma, mas de forma velada, ambígua, já que o leitor (pelo menos o leitor que não conhece o desfecho do romance) não sabe dizer que corpo é esse. O corpo feminino é um velar-se, Diadorim comenta isso sobre Octacília ao dizer que as mulheres adoram usar muitas roupas, como se ela não fosse também mulher. Se o feminino não é um ser, mas um devir, um tornar-se, as promessas para o futuro apareciam em vários pontos. Promessa de revelar algo a Riobaldo, promessa de viajarem juntos para as terras de Diadorim. Como diz Stendal, o amor é uma promessa de felicidade.

Mas no destino de Diadorim estava escrito: “para muito amar, sem gozo de amor”. Nesse sentido, o sentido se cumpre integralmente. O amor era uma promessa para depois. Em primeiro lugar, vinha o guerrear: de início junto ao pai, tentar estar à altura de sua grandiosidade, para combater em sua causa, e depois para vingar a morte do pai como homem, como jagunço, sem medo, apostando no corpo-a-corpo, no punhal onde acaba perdendo sua vida, e o seu corpo feminino só pode aparecer depois da morte. Diadorim aceita a sua Ate, a maldição do batistério, no sertão brasileiro dos jagunços, onde pouco lugar há para uma mulher. Não é sem razão que Diadorim fala como oráculo ao dizer que Riobaldo iria casar com Octacília. Ela própria

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reconhecia a beleza e as qualidades da rival, que nem rival poderia ser, já que o dever de guerrear vinha primeiro. De qualquer forma, ela aparecia como objeto, causa do desejo para Riobaldo e até mesmo para um outro antes desse. Mas isso era sempre vivido como um amor impossível, nos poucos momentos. Mesmo no final, é Riobaldo que aparece no lugar de seu pai. Diadorim pede sempre a ele que ocupe um lugar de comando, que a ajude a cumprir o seu destino trágico, nunca aceita uma possibilidade de fugir, de ter outra vida, de tornar-se mulher. Se no amor ela pode se tornar mulher, é sem gozo de amor. Seu amor por Riobaldo o coloca sempre no alto, como seu pai, lugar de chefe. É ali que Riobaldo assiste à luta corpo-a-corpo de Reinaldo (Diadorim) com Hermógenes. Ela deixa o pai protegido e enfrenta o real do seu destino. É como real de seu corpo morto que sua feminilidade pode emergir no mundo do sertão.

Se o inconsciente pode repetir como uma sina algo, como automaton, como o destino das pulsões, há sempre algo que se colhe e acolhe de um acaso de uma “Zufall” no dizer de Freud, de uma contingência a fazer surgir uma diferença. “Wo Es war, soll Ich werden”, lá onde isso estava, devo vir a ser como marca de uma conquista, de uma outra volta a se inscrever.

Riobaldo é o herói moderno. Seu destino não está marcado por algum oráculo (ou o seu oráculo é o que aparece cifrado no inconsciente), porque ele próprio não sabe do seu destino. Na infância, não sabe quem é o seu pai, vivia no desamparo ao lado da mãe, que seria só ternura, num dizer de Diadorim. O encontro com o seu destino se dá no encontro com Diadorim, o Menino, o dessemelhante. É ele quem faz a dupla volta, revira o sertão e, até mesmo, o Grande Sertão. Pactário com o Diá, para enfrentar Hermógenes, que também era pactário, faz a sua travessia do Liso no seu ato de ir e passar. Contudo, ao realizar seu ato, perde Diadorim que encarnava seu objeto causa do desejo. Perfaz o desejo de vingança de Diadorim e a ajuda a cumprir seu destino trágico. Ele, entretanto, vai poder fazer luto de Diadorim para encontrar uma mulher que é Octacília.

Com Diadorim é o que estava escrito. As contingências, os acasos não a fazem mudar de rumo senão para melhor cumprir o seu destino fatal. O corpo de Diadorim é o resto do seu amor impossível, é o objeto do real, mas ao mesmo tempo, é o objeto da literatura, é o corpo escandido em letras, é o corpo da literatura, tão impalpável, mas tão concreto porque se escreve.

REFERÊNCIAS

ROSA, J. G. Ficção Completa- 2 volumes. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.

______. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.

DRUMMOND DE ANDRADE, C (2001). Um chamado João. In: ROSA, J. G. No Urubuquaquá, no Pinhém, p13. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.

ZIZEK, S. (1995) Hegel avec Lacan. In: VERSTRAETEN, P. Hegel aujourd’hui Bruxelles:

Université Libre de Bruxelles, Institute de philosophie et de sciences Morales.

Recebido em: 01 de junho de 2009 Aprovado em: 01 de julho de 2009

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