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ENTRE DESAFIOS E APOIOS: CAMINHOS DE PRIVADOS DE LIBERDADE DO ENSINO SUPERIOR

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Academic year: 2021

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1 UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

Monique Ayupe Bueno Lordello

ENTRE DESAFIOS E APOIOS: CAMINHOS DE PRIVADOS DE LIBERDADE DO ENSINO SUPERIOR

Niterói 2017

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MONIQUE AYUPE BUENO LORDELLO

Entre Desafios e Apoios: Caminhos de Privados de Liberdade do Ensino

Dissertação apresentada ao Mestrado em Educação do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal Fluminense.

Linha de Pesquisa: Diversidade, Desigualdades Sociais e Educação

Orientador: Profº Drº Paulo César Rodrigues Carrano

Niterói 2017

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MONIQUE AYUPE BUENO LORDELLO

Entre Desafios e Apoios: Caminhos de Privados de Liberdade do Ensino Superior

Dissertação apresentada ao Mestrado em Educação do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal Fluminense.

Linha de Pesquisa: Diversidade, Desigualdades Sociais e Educação

Orientador: Profº Drº Paulo César Rodrigues Carrano

Aprovada em: 14 /02 /2017

BANCA EXAMINADOR

___________________________________________________________________________ Profº Drº Paulo César Rodrigues Carrano (Orientador- UFF)

___________________________________________________________________________ Profa. Dra. Ana Karina Brenner (UERJ)

___________________________________________________________________________ Prof. Dr. Osmar Fávero (UFF)

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4 Ficha catalográfica automática - SDC/BCG

Bibliotecária responsável: Angela Albuquerque de Insfrán - CRB7/2318 L866e Lordêllo, Monique ayupe bueno lordêllo

Entre Desafios e Apoios: Caminhos de Privados de Liberdade do Ensino Superior / Monique ayupe bueno lordêllo Lordêllo; Paulo César Rodrigues Carrano, orientador. Niterói, 2017.

86 f.

Dissertação (mestrado)-Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2017.

1. Privação de Liberdade. 2. Ensino Superior. 3. Produção intelectual. I. Título II. Carrano,Paulo César Rodrigues, orientador. III. Universidade Federal Fluminense. Faculdade de Educação.

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5 AGRADECIMENTOS

O primeiro agradecimento eu dedico a Deus, o todo poderoso, pois foi através dele e de sua misericórdia eterna que pude prosseguir o meu caminho ao longo desses dois anos anos de mestrado. O Senhor esteve comigo em todos os momentos em que pensei em desistir.

A Universidade Federal Fluminense, instituição importantíssima na minha formação. Desde a graduação em Ciências Sociais até o mestrado em Educação.

Ao meu orientador, o professor doutor Paulo César Rodrigues Carrano, que iniciou a minha orientação já no meio do caminho, assumindo todos os riscos, acreditando somente na promessa de que eu conseguiria prosseguir. Com seu profundo conhecimento sobre os estudos que utilizam narrativas de vida, obtive a melhor orientação possível para executar o trabalho. As discussões propostas nos encontros coletivos com os meus pares, aproximaram-me da temática proposta, tornando as reflexões mais fluídas e claras, facilitando a produção final do trabalho. Aos professores doutores Ana Karina Brenner e Osmar Fávero, que se disponibilizaram a participar da minha banca. Os seus ensinamentos e orientações no exame de projeto foram essenciais para a continuidade da pesquisa. Sem falar na honra em tê-los analisando meu trabalho. Professor Osmar, Emérito da Universidade Federal Fluminense- UFF, e Ana Karina, professora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro- UERJ, ambos engajados na luta pela educação.

No âmbito pessoal, agradeço em primeiro lugar ao o meu esposo Thiago Lordêllo Souza, amigo, fiel, companheiro. Esse é só mais um dos projetos que ele me apoiou ao longo desses doze anos de união. Ao longo desses dois anos, era ele que me ouvia nas minhas frustrações e angústias. Ele foi o principal suporte para que eu conseguisse seguir minha trajetória acadêmica.

Aos meus filhos, Rian Ayupe e Mariana Ayupe. Rian com apenas oito anos, sempre com seu carinho e inocência, fortaleceu-me nos momentos mais complicados. Mariana concebida ao longo do mestrado e ainda dentro da barriga, foi minha companheira nesses últimos momentos da pesquisa. Pedi a ela muita paciência e me atendeu. Nasceu somente depois da conclusão do trabalho.

Ao meu irmão Rodrigo Ayupe, um também acadêmico. Nesse último ano estivemos separados fisicamente por causa de sua pesquisa de doutorado realizada no Líbano, mas ver sua força e

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determinação foi o motor necessário para que eu seguisse em frente. Sempre me ajudou muito com a pesquisa, dando-me instrução de como prosseguir e discutindo teorias sociológicas muito importantes para o embasamento do meu trabalho.

Aos meus pais, que desde sempre me apoiam e me ajudam com tudo, inclusive me ajudando a cuidar do meu filho para que conseguisse estudar.

Aos meus amigos do mestrado, Amanda Gonçalves, Fernanda Chaves, Isabel Leite, Joyce Pessanha, Mariana Domingues, Mariane Brito e Renan Saldanha, que estiveram comigo todo esse período, ajudando e trocando experiências.

Aos três entrevistados que participaram voluntariamente da pesquisa, pois foi através da disponibilidade em contar suas histórias que pude realizar a fase empírica.

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7 RESUMO

LORDELLO, Monique A. B. Entre Desafios e Apoios: Caminhos de Privados de Liberdade do Ensino Superior. Orientador: Paulo César Rodrigues Carrano. Niterói, Rio de Janeiro, Universidade Federal Fluminense, 2017. Dissertação de Mestrado, 86 páginas. Linha de pesquisa: Diversidade, Desigualdades Sociais e Educação. Eixo temático: Práticas Sociais e Educativas de Jovens e Adultos.

Esta dissertação busca refletir as narrativas de vida de três estudantes privados de liberdade no ensino superior. O objeto de pesquisa centra a análise na compreensão dos instrumentos disponíveis necessários para obter êxito ou fracassar ao longo dessa trajetória. Acredita-se que através de relatos de vida é possível apreender de forma mais aprofundada os vários dispositivos que envolvem as experiências cotidianas e os processos sociais nos quais estão envolvidos estes universitários. A compreensão sobre as trajetórias individuais implica o diferencial entre os indivíduos que dispõe dos mesmos recursos, e cujas posições sociais aparentam ser muito similares, mas apresentam diferenças importantes no momento do enfrentamento. Portanto, o embasamento teórico para a reflexão volta-se para as discussões sobre a temática da Sociologia do Indivíduo e os processos de singularização e individuação, pautada principalmente pela teoria do Sociólogo peruano Danilo Martucelli. A partir da noção de provas e suportes, defendida em seus escritos, foi possível compreender os principais mecanismos que influenciaram o caminho dessas pessoas. A entrevista compreensiva utilizada como método foi responsável pelo aprofundamento no contato com o entrevistado. O roteiro de entrevista semi-estruturado foi o principal instrumento de coleta dos dados. A partir destas três histórias individuais pode-se perceber as estruturas sociais inerentes à este campo tão singular. A violação de direitos e dificuldades em prosseguir os estudos na universidade, estiveram presentes em ambas as histórias. O suportes, tanto materiais quanto simbólicos, foram essenciais para que conseguissem dar continuidade aos estudos na universidade.

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8 ABSTRACT

This dissertation analyzes the life narratives of three students considered as deprived of liberty in the Higher Education. The object of this research is focusing on the comprehension of available tools that is necessary to succeed of fail along this trajectory. The argument that will be defended here is that through the life narratives is possible to seize deeply a range of devices related to both daily experiences and social processes in which these university students are involved. Analyzing the individuals trajectories allows to understand the diferences among individuals who possesses the same resources and who its social positions seem to be similars. Thus, the theoretical basis of this object leans upon the Sociology of Individual and the Singularization or Individuation processes, based especially on the sociologist Danilo Martucelli’s theory. From the notion of evidences and supports, elaborated in his theoretical model, it is possible to understand the main elements which influenced the trajectories of these people. Using the comprehensive interview as research method enabled me to improve and going deeper in the contact with the interviewees. The semi-structured interview script was the main instrument for collecting data. From these three individuals stories it can be seen the social structures related to this such singular field. The violation of rights and the difficulties in continuing the academical studyings, was highlighted in both narratives. The supports, either materials or symbolics, were essencial to keep these studyings rightly.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO---9

1. O PROCESSO SOCIAL DA VULNERABILIDADE E SUAS CONSEQUÊNCIAS PARA O ENCARCERAMENTO EM MASSA---25

1.1. As transformações nas relações de trabalho e o desemprego ---25

1.2. O “tudo penal”: Estado de bem-estar social versus Estado-mercado---26

1.3. A vulnerabilidade e a incerteza---29

2. A REALIDADE PRISIONAL BRASILEIRA---37

2.1. A escolarização dos privados de liberdade e o direito à educação---40

2.2. Projetos e programas---45

3. A EXPANSÃO DO ACESSO AO ENSINO SUPERIOR NO BRASIL---48

3.1.O Exame Nacional do Ensino Médio 3.1.1. Enem PPL ---48

3.2. As políticas de democratização do acesso e as políticas de permanência---49

3.2.1. Programa de Apoio aos Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais--- 50

3.2.2. Programa Universidade para Todos---51

3.2.3. Plano Nacional de Assistência Estudantil---52

3.3. A Educação Superior no Plano Nacional de Educação---53

4. NARRATIVAS DE VIDA 4.1.Vidas contadas/ histórias vividas. Quem são os sujeitos da pesquisa? ---56

4.2. A mais difícil prova: autorização judicial---56

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4.3.1. Família---61

4.3.2. Amigos---62

4.3.3. Professores--- 64

4.4. O não-suporte: unidade prisional---65

4.5. Da prisão à Universidade---68

4.5.1. A preparação--- 68

4.5.2. A escolha do curso superior---68

4.5.3. O preconceito---70 4.5.4. O exemplo---71 4.6. Da universidade à prisão---72 4.7. O futuro---74 CONSIDERAÇÕES FINAIS---75 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS---78 ANEXO---82 APÊNDICE---84

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11 INTRODUÇÃO

O período de experiência como professora do Programa Brasil Alfabetizado 1, em duas unidades prisionais no estado do Rio de Janeiro, impulsionaram este objeto de estudo. Ao longo de um período de dois anos em que estive em contato com alunos em situação de privação e restrição de liberdade2 pude identificar algumas das dificuldades enfrentadas pelo estudante nesta condição. O desejo pela continuidade dos estudos, baseado na garantia do direito à educação, suscitaram questões acerca das possibilidades dos indivíduos com formação escolar básica3 em acessar o ensino superior. Portanto, esta pesquisa busca investigar os percursos biográficos dos jovens internos do sistema penitenciário, entre o período que antecede a prestação do exame de acesso ao ensino superior e sua aprovação e permanência.

A abordagem biográfica, matriz metodológica de cunho qualitativo utilizada nesta pesquisa, busca compreender como os jovens privados de liberdade enfrentam os desafios e vivenciam as múltiplas experiências nesta trajetória. Acredita-se que através dos relatos de vida é possível analisar de forma profunda os vários mecanismos que envolvem as experiências cotidianas e os processos sociais nos quais estão envolvidos estes universitários.

1 A Secretaria de Estado de Administração Penitenciária (SEAP) em parceria com a Secretaria de Estado de Educação (SEEDUC) e com recursos provenientes do Ministério da Educação SECAD/MEC, implantaram o Programa Brasil Alfabetizado em âmbito nacional pela primeira vez no ano de 2004, e desde o seu surgimento há o Programa no Sistema Penitenciário com o objetivo de contribuir para universalização do Ensino Fundamental, promovendo apoio a ações de alfabetização de jovens, adultos e idosos no Sistema Penitenciário.

2A pena privativa de liberdade denota delimitação total do direito de ir, vir, estar e permanecer, não havendo, inclusive, outra sanção aplicável, pois é a liberdade plena que é atingida. Aqui existe o do cidadão em um estabelecimento penal, que pode ser a penitenciária, a colônia agrícola ou industrial, a casa do albergado ou, no caso dos inimputáveis, em hospital psiquiátrico ou de custódia. Além disso, o sujeito à pena privativa de liberdade submete-se aos regimes penais (fechado, semiaberto ou aberto), na progressão de regime. A pena restritiva de liberdade, que não prevê o confinamento em estabelecimentos, porque a ideia, aqui, é substituir a pena privativa de liberdade (menor locomoção) pela restritiva de direitos (maior locomoção e liberdade). O cidadão ou a cidadã preservam seu direito de ir, vir, estar e permanecer, continuam suas vidas - trabalhando, interagindo etc. - mas têm horários cerceados para que, dentro deles, dediquem-se às atividades que

foram impostas a título de pena.

3 A educação básica é o primeiro nível do ensino escolar no Brasil. Compreende três etapas: a educação infantil (para crianças com até cinco anos), o ensino fundamental (para alunos de seis a 14 anos) e o ensino médio (para alunos de 15 a 17 anos).

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Considerando que o sistema prisional brasileiro atualmente, é composto em grande medida por jovens, negros, com pouca escolarização e baixa renda, o público universitário nessas condições pode indicar uma exceção a regra apresentada. A classificação da composição do público prisional pode demonstrar uma pequena minoria que atinge o nível de escolarização superior.

O cenário prisional brasileiro na atualidade é caracterizado por uma superpopulação incompatível com o número de vagas disponíveis. No segundo semestre de 2014, referente ao último levantamento desse quantitativo (INFOPEN, 2014), o Brasil possuía mais de 600 mil presos para somente 377 mil vagas, o que demonstra um déficit de mais de 231 mil vagas. Esses dados são alarmantes, pois demonstram um sistema falido, que devido ao quantitativo de presos, impossibilita a realização de políticas efetivas de ressocialização.4

O quantitativo de jovens é predominante na população prisional, 56% estão na faixa etária entre 18 a 29 anos, isso equivale a mais da metade do número de presos. Se alagarmos essa faixa para os 34 anos de idade, essa porcentagem chega a 75%. Quanto a raça, a predominância é de negros, com 67 % da composição. Conclui-se que as prisões brasileiras atualmente são compostas predominantemente por jovens e negros, na maioria dos casos, oriundos de classes populares (INFOPEN, 2014).

A maioria dos internos do sistema prisional em algum momento tiveram sua trajetória escolar interrompida. Os dados do Sistema Integrado de Informações Penitenciárias (Infopen, 2014) do Ministério da Justiça, mostram que a quantidade de estudantes que cumprem pena é baixo em todas as etapas de escolarização. Em junho de 2014, quando o último balanço foi feito, apenas 7.952 eram alfabetizados, 23.773 possuíam o Ensino Fundamental, 7.226 completaram o Ensino Médio e 287 possuíam o Ensino Superior. Apesar de o quantitativo de internos que possuem o Ensino Superior ser ainda pequeno, a cada ano cresce o número de indivíduos privados de liberdade que prestam o Exame Nacional do Ensino Médio- Enem.5 Segundo o INEP, o Enem para pessoas privadas de liberdades (Enem PPL) recebeu um total de

4 “Partindo do pressuposto que ressocializar tenha o sentido de socializar novamente, percebemos que lidamos com um conceito utilizado basicamente no interior do sistema penitenciário, que implica a ideia de que o interno volte a sociedade disposto a aceitar e seguir as normas e as regras sociais.” (JULIÃO, 2012, p. 57)

5 Criado em 1998, o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) tem o objetivo de avaliar o desempenho do estudante ao fim da escolaridade básica. Podem participar do exame alunos que estão concluindo ou que já concluíram o ensino médio em anos anteriores.

O Enem é utilizado como critério de seleção para os estudantes que pretendem concorrer a uma bolsa no Programa Universidade para Todos (ProUni). Além disso, cerca de 500 universidades já usam o resultado do exame como critério de seleção para o ingresso no ensino superior, seja complementando ou substituindo o vestibular.

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45,5 mil inscritos no ano de 2015, entre os privados de liberdade e os que cumprem medida sócio-educativa, registando uma aumento de 19% em relação ao ano anterior, que obteve 38,1 mil inscritos.

Para que os presos tenham direito à participar do Enem é necessário que as unidades firmem termo de compromisso com o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep). As inscrições são feitas exclusivamente pela internet, por um coordenador pedagógico. O edital para as pessoas privadas de liberdade é diferente do aplicado às pessoas livres. As provas também acontecem em dias diferentes e são aplicadas nos próprios presídios.

A nota do Enem pode ser usada para o acesso a cursos de educação superior por meio do Sistema de Seleção Unificada (Sisu)6 e para obter bolsas no Programa Universidade para Todos (ProUni).7 O exame pode ser usado também para obter o comprovante de conclusão do Ensino Médio. A certificação pode ser solicitada pelos inscritos que tenham completado dezoito anos e alcançado quatrocentos e cinquenta (450) pontos em cada uma das quatro áreas de conhecimento avaliadas, além de quinhentos (500) pontos na redação. Aqueles que optarem por usar o Enem para certificação do Ensino Médio devem fazer o pedido no ato da inscrição (BRASIL, 2015).

A possibilidade de acesso desse indivíduo aos bancos universitários foi possibilitada principalmente pelo avanço das leis que regem o sistema penitenciário e regulamentam o acesso à educação, dentre elas a Constituição Federal de 1988, a Lei de Execução Penal (Lei nº 7.210 de 11 de julho de 1994) e a Lei de Diretrizes e Bases da EducaçãoNacional- LDB (Lei nº 9.394). A Constituição Federal de 1998 em seu artigo 205 garante a educação como um direito de todos e dever do Estado e da família. Ao determinar a universalização do acesso à educação como "direito fundamental, universal e inalienável deve ser garantida para todos (as), nos diferentes espaços sociais e geopolíticos, em todos os níveis etapas e modalidades da educação" (FNE,2013, p.34). A Lei de Execução Penal- 7210, de 11 de julho de 1994, na seção V, estabelece que o preso deverá receber instrução escolar e educacional, como medida de assistência educacional.

6 O Sistema de Seleção Unificada (Sisu) foi desenvolvido pelo Ministério da Educação para selecionar os candidatos às vagas das instituições públicas de ensino superior que utilizarão a nota do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) como única fase de seu processo seletivo. A seleção é feita pelo Sistema com base na nota obtida pelo candidato no Enem.

7 O Programa Universidade para Todos (Prouni) é um programa do Ministério da Educação, criado pelo Governo Federal em 2004, que concede bolsas de estudo integrais e parciais (50%) em instituições privadas de ensino superior, em cursos de graduação e sequenciais de formação específica, a estudantes brasileiros, sem diploma de nível superior.

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Apesar de todo o respaldo legal, o acesso e a permanência no Ensino Superior esbarra em questões relacionadas ao sistema de justiça brasileiro, que tem se tornado um empecilho para essas pessoas. Alguns casos divulgados na imprensa mostram as dificuldades enfrentadas pelos universitários privados de liberdade em cursar o Ensino Superior. Adriano Almeida de 23 anos, obteve aprovação no ENEM no ano de 2014 e foi classificado na terceira chamada do Sisu no curso de Agronomia para a Universidade Federal do Acre. Sem escolta, a Justiça informou que não teria como liberar o preso, porém o juiz da Vara Criminal, Hugo Torquato, voltou atrás na decisão e liberou-o para ir às aulas. Apesar de, neste caso, a Justiça ter voltado atrás na decisão, na maioria dos casos não é assim que acontece. A chance de cursar uma universidade esbarra em questões além de obter êxito na realização do exame.8 O Ministério Público afirma que o preso do regime fechado, não pode ter acesso a esse tipo de benefício, pois deveria ser mobilizada uma escolta particular. No caso de Adriano, o parecer favorável dependeu de questões interpretativas da própria Justiça, que após analisar o caso, permitiu que ele frequentasse as aulas apenas com a tornozeleira eletrônica. 9

A coordenadora do projeto “Do cárcere à universidade”10 da Universidade do Estado do Rio de Janeiro- UERJ, a professora-doutora Maria do Socorro Calhau, traz alguns aspectos importantes sobre a trajetória dos universitários privados de liberdade na UERJ. Ela destaca que como a educação oferecida nas prisões é encarada como prêmio ou benefício: “os apenados universitários não têm logrado sucesso na sua empreitada de redesenharem suas vidas, pela vergonha de um estigma que limita sua atuação, dificultando sua inserção nas redes de sociabilidade e acadêmicas existentes” (CALHAU, 2013, p.1). Sendo assim, o projeto “objetiva criar uma Política Pública de Inclusão e está construindo um caminho que possa ser capaz de transformar essa dura realidade.”(Idem, ibidem). Segundo Calhau, os alunos do sistema carcerário vivenciam um constante constrangimento que limita sua participação nas atividades acadêmicas. Enfrentam vários tipos de dificuldades, como a autorização para frequentar as

8 http://g1.globo.com/ac/acre/noticia/2015/10/preso-que-passou-no-enem-chora-ao-saber-que-podera-cursar-agronomia.html acesso em 18/02/2016

9 A tornozeleira eletrônica é uma forma de pena de substituição à prisão ou para ser utilizado durante o processo de instrução do processo. O princípio consiste em agregar ao prisioneiro uma marca eletrônica inviolável. Diversas tecnologias podem ser utilizadas para obter esse resultado. A mais conhecida é a que originou o nome, sendo um tipo de tornozeleira que contém uma identificação eletrônica que pode ser monitorada à distância pelas autoridades policiais ou penitenciárias.

10 O Projeto Do cárcere à universidade vai fazer um mapeamento dos universitários da UERJ, que são oriundos do sistema prisional e encontram-se em regimes aberto ou semi-aberto. O conhecimento de que alguns dos estudantes da UERJ são apenados(as), que conseguiram concluir a Educação Básica dentro do sistema carcerário, demonstra que é possível reverter a máxima que diz que para essas pessoas apenas o retorno ao crime ou o trabalho, braçal pesado e mal remunerado.

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aulas, não conseguem cumprir os estágios probatórios, dentre outras atividades curriculares complementares. Como não conseguem cumprir os deveres acadêmicos, muitos evadem e retornam ao cárcere.

A possibilidade de presos acessarem o Ensino Superior resulta do processo de ampliação do número de vagas em universidades no Brasil pelas políticas de democratização do acesso. O indivíduo preso faz parte da parcela populacional que há muito tempo esteve excluída dos bancos universitários, principalmente por causa de um sistema restrito que permitia uma parcela reduzida da população acessar o Ensino Superior.

Nos últimos anos, o Brasil vem passando por um processo de democratização do acesso ao ensino superior que resultou em mudanças significativas na oferta educacional. Algumas iniciativas visando a alteração dessa realidade foram formuladas pelo Governo Federal, entre elas destaca-se o Programa Universidade para Todos (Prouni), o Fundo de Financiamento Estudantil (Fies)11 , o Programa de Apoio aos Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (Reuni)12, a Lei de Cotas13 e a expansão da rede federal de educação profissional e tecnológica.

A implementação dessas políticas não garante a permanência e a conclusão do curso superior dos jovens das camadas populares na universidade, dentre eles, os jovens privados de liberdade, pois na maioria das vezes, o impedimento da continuidade é impossibilitada pela falta de recursos materiais. No caso dos indivíduos privados de liberdade, questões simbólicas também entram no escopo dos obstáculos enfrentados, que podem resultar no abandono do curso superior.

11 O Fundo de Financiamento Estudantil(Fies) é um programa do Ministério da Educação destinado a financiar a

graduação na educação superior de estudantes matriculados em cursos superiores não gratuitas na forma da Lei 10.260/2001. Podem recorrer ao financiamento os estudantes matriculados em cursos superiores que tenham avaliação positiva nos processos conduzidos pelo Ministério da Educação.

12 A expansão da educação superior conta com o Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das

Universidades Federais (Reuni), que tem como principal objetivo ampliar o acesso e a permanência na educação superior. Com o Reuni, o governo federal adotou uma série de medidas para retomar o crescimento do ensino superior público, criando condições para que as universidades federais promovam a expansão física, acadêmica e pedagógica da rede federal de educação superior. As ações do programa contemplam o aumento de vagas nos cursos de graduação, aampliação da oferta de cursos noturnos, a promoção de inovações pedagógicas e o combate à evasão, entre outras metas que têm o propósito de diminuir as desigualdades sociais no país. O Reuni foi instituído pelo Decreto nº 6.096, de 24 de abril de 2007, e é uma das ações que integram o Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE).

13 Lei nº 12.711/2012, sancionada em agosto deste ano, garante a reserva de 50% das matrículas por curso e turno

nas 59 universidades federais e 38 institutos federais de educação, ciência e tecnologia a alunos oriundos integralmente do ensino médio público, em cursos regulares ou da educação de jovens e adultos. Os demais 50% das vagas permanecem para ampla concorrência.

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Esta pesquisa se insere no campo da Sociologia do Indivíduo focando nos mecanismos de orientação da individuação, o que requer uma aproximação com atores e os processos envolvidos. A tese que o indivíduo é uma via relevante para entender as sociedades contemporâneas tem adquirido uma crescente importância nas ciências sociais. (MARTUCELLI, SINGLY, 2009 apud ARAÚJO, MARTUCELLI 2010, p. 78) . Neste contexto, o principal desafio da sociologia é tentar dar conta das principais mudanças sociais que tenham como horizonte o indivíduo e suas experiências.

Para dar conta do novo rol analítico que lhe concerne o indivíduo no período atual, as teorias da socialização e da subjetivação apresentam, como veremos, um conjunto importante de suficiências que convidam a privilegiar uma outra estratégia que, partindo do processo de individuação, seja de descrever o trabalho do indivíduo para fabricar-se como sujeito. (ARAÚJO, MARTUCCELLI, 2010, p. 79) A partir de uma perspectiva socio-histórica a individuação refere-se ao tipo de indivíduo fabricado estruturalmente na sociedade a individuação se interessa, desde uma perspectiva socio-histórica ao tipo de indivíduo que é estruturalmente fabricado. A defesa pela Sociologia do indivíduo já era defendida por Max Weber que é

frequentemente apontado como o mais antigo defensor das perspectivas da ação social. Ainda que reconhecesse a existência de estruturas sociais- como classes, partidos, grupos de status e outros-, ele sustentava que essas estruturas foram criadas através de ações sociais de indivíduos. ( GIDDENS, 2008, p. 35)

A importância da centralidade do indivíduo permite constituir uma nova maneira de fazer a sociedade. A individuação é, portanto, uma perspectiva analítica particular de estudo, que está buscando o tipo de individuo que é fabricado pela sociedade em determinado período histórico. A partir da individuação podemos entender a noção de prova, desenvolvida pelo autor. “Articulando como proporemos um dispositivo particular de estudo da individuação, através da noção de prova, com uma versão específica do trabalho pelo qual o indivíduo se fabrica como sujeito.” (ARAÚJO; MARTUCCELLI, 2010, p. 83)

As provas são desafios históricos produzidos socialmente, apresentados culturalmente e distribuídos de forma desigual as quais os indivíduos estão obrigados a enfrentar em um processo estrutural de individuação. (MARTUCCELLI, 2006)

Para Martuccelli (2007a) os indivíduos, ao serem obrigados a se defrontar com obstáculos diversos (provas), socialmente produzidos e diferencialmente distribuídos, podem ter “êxito” ou “fracassar” (“chumbar”, diz-se em Portugal), tal como ocorre em toda a prova no sentido mais escolar do termo. As provas não são independentes das posições e dos contextos sociais realmente vividos, mas são heterogêneas no

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interior de uma mesma posição social e dos contextos de vida semelhantes. As provas, sendo múltiplas, explicariam os sentimentos plurais que experimentam os atores uma vez que o que “ganham” em determinado momento, podem perder em outro momento. (CARRANO, 2009, p. 11 e 12)

Para grande parte da sociedade, o jovem preso está condenado a um tipo de vida subalterna que o subjuga ao crime cometido, pois em muitos casos este indivíduo reincide no crime. Por outro lado, àqueles que não voltam a prática delituosa enfrentam ao longo da sua vida uma série de violações simbólicas que dificultam a retomada de uma vida social desvinculada do desvio. Entretanto, acessar o ensino superior pode significar uma trajetória alternativa a este tipo de condenação simbólica.

Portanto, a pesquisa baseada em estudos biográficos possibilita compreender como as histórias plurais podem representar aspectos sociais, demonstrando que a sociedade está em constante transformação. Essas transformações poderão ser observadas através dos relatos individuais. A partir da dinâmica social aqui exposta, proponho alguns questionamentos que direcionam esta investigação: Como estes jovens universitários privados de liberdade enfrentam as provas que estão dispostas ao longo do percurso escolar no curso superior? Que tipo de suporte tornou-se essencial para conseguir enfrentar esse tipo de prova? Quais aspectos materiais e simbólicos foram condicionantes para a continuidade dos estudos? Como os jovens privados de liberdade se colocaram diante das provas? O que foi determinante para alcançar êxito em sua trajetória? O que representou sucesso ou fracasso em sua trajetória? Quais critérios determinam como o sujeito consegue se perceber enquanto indivíduo neste processo?

Os estudantes do ensino superior no Brasil, principalmente os oriundos das classes populares, enfrentam uma série de dificuldades para concluir seus estudos. Quando se fala em estudantes que estão em cumprimento de pena de prisão, as dificuldades podem ser ainda maiores ou mais complexas, dependendo de diversos fatores, como o próprio local onde se está cumprindo a pena, o juiz que é responsável pela autorização para se ausentar da prisão para frequentar as aulas, ausência de mecanismos de segurança, etc. Portanto, é interessante demonstrar que tipo de dificuldades são enfrentadas por estes indivíduos para refletirmos sobre a real democratização do acesso.

De modo geral, os estudos sobre o cárcere ou educação em prisões tratam desses sujeitos de forma homogênea, ignorando suas individualidades. Apesar das trajetórias individuais representarem aspectos microssociológicos, em algum momento apresenta o aspecto macrossocial, tão debatido nas inúmeras pesquisas sobre o cárcere. Outro aspecto interessante é o fato de tais estudos interrelacionarem a Educação para privados de liberdade como

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“redentora”, ou “ressocializadora”, como o fim, negligenciando os processos que a constroem. Portanto, esta pesquisa pode representar um impacto social relevante, à medida que lança um olhar singularizante sobre os presos, contribuindo para decompor as recorrentes representações negativas sobre a população prisional.

Percursos teóricos e metodológicos

O método de produção de dados se deu através da entrevista compreensiva que consiste em "uma técnica de coleta de dados qualitativa que articula formas tradicionais de entrevista semidiretiva com técnicas de entrevista de natureza mais etnográfica" (FERREIRA, 2014, p. 979). O procedimento utilizado na investigação foi realizado através de entrevistas com a participação de três jovens universitários em situação de restrição e privação de liberdade que aceitaram participar da pesquisa.

A pesquisa qualitativa permite uma maior compreensão sobre os processos construídos pelos sujeitos e possibilita entender quais sentidos e significados atribuem às suas práticas e vivências. Portanto, permite ao pesquisador uma maior imersão no objeto pesquisado. (ZAGO, 2013).

A pesquisa volta-se, portanto, para a defesa do autor Jean Claude Kauffman a respeito da produção científica, ressaltando a figura do "artesão intelectual"(KAUFFMAN, 2014, p.33), representado pelo pesquisador que não se contenta somente em acumulação e descrição de informações. Quando falamos em "artesão intelectual", remetemo-nos a Wright Mills, pois acredita ser as funções do pesquisador indissociáveis e concomitantes, ou seja, ele é ao mesmo tempo teórico, metodólogo e empírico. (MILLS, 1982)

Kauffman advoga que o pesquisador precisa compreender e participar da realidade dos seus entrevistados. Para ele, as pessoas são "depositárias de um saber importante que deve ser assumido do interior, através do sistema de valores dos indivíduos." (KAUFFMAN, 2014, p.47). Portanto,

a entrevista compreensiva proporciona não a afirmação do entrevistador onde ele, além de comandar aquele momento, estabelece uma barreira hierárquica com o informante, mas sim um momento de compartilhamento, bem mais próximo a uma 'conversa'entre duas pessoas dispostas a dividir um conhecimento, uma ideia. ( FERREIRA, 2014, p. 172)

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A especificidade da perspectiva compreensiva, é sobretudo, o seu direcionamento para a identificação das práticas cotidianas e a emergência dos novos fenômenos sociais (GUERRA, 2006). Devemos ressaltar que o objetivo não é destacar o indivíduo isolado através de um individualismo metodológico, mas demonstrar que os atores agem segundo parâmetros estabelecidos nas relações sociais.

A entrevista em profundidade (compreensiva) permite abordar, de um modo privilegiado, o universo subjectivo do actor, ou seja, as representações e os significados que atribui ao mundo que o rodeia e aos acontecimentos que relata como fazendo parte da sua história. Essa subjectividade é, para o sociólogo, não um mero reflexo da individualidade desse actor, mas de um processo de socialização e de partilha de valores e práticas com outros, ou seja, resulta de uma intersubjectividade. (LALANDA, 1998, p. 875)

O contato entre o entrevistador e o entrevistado mediado pela entrevista compreensiva resultou nas narrativas de vida dos jovens universitários em situação de restrição e privação de liberdade participantes da pesquisa, que contribuiram para o aprofundamento da realidade estudada. Sendo assim, o estudo biográfico no formato relatos de vida, possibilitou aprofundar a reflexão em torno dos sentidos e significados de uma narrativa, baseada principalmente na perspectiva etnossociológica de Daniel Bertaux (2005), tipo de investigação empírica baseada no trabalho de campo que constrói seus objetivos direcionada para determinadas problemáticas sociológicas.

O sociólogo que escolhe a entrevista compreensiva como meio de investigação da dimensão social que o preocupa, encontra através da narrativa de vida, o sentido, o pormenor, a particularidade, que torna um actor social um informador privilegiado e nos permite olhar a realidade social por dentro. (LALANDA, 1998, p.882)

O pesquisar precisa

passar do geral para o particular, descobrindo dentro do campo observado formas sociais- relações sociais, mecanismos sociais, lógicas de atuação, lógicas sociais, processos recorrentes- que se podem apresentar igualmente em múltiplos contextos similares."(BERTAUX, 2005, p. 15 e 16, tradução nossa).

O papel do cientista social, como nos indica Bourdieu (1989), precisa ser o de desconstruir as pré-noções e o senso comum, elaborando novas formas de compreensão das suas relações, seus modos de vida e suas instituições. Bernard Lahire (2006) ao tratar da

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"cultura dos indivíduos"faz o seguinte questionamento: "O que se vê do mundo social quando se olha para ele do ponto de vista dos indivíduos que o compõem e, mais particularmente, da variação intraindividual de comportamentos? (P. 593). Essa reflexão representa o tipo de abordagem a nível individual que nos propusemos a realizar. Lahire destaca que a realidade individual é essencialmente social. Assim, o social nos é apresentado de maneira mais complexa, e portanto, deve ser analisado de forma particular. Esse tipo de análise de escala individual possibilita apreender a complexidade social.

Deste modo, a proposta teórico-metodológica de Danilo Martuccelli, busca através dos aspectos microssociológicos baseados na individuação compreender os mecanismos sociais. Segundo o autor, o indivíduo é a fonte liminar de nossa percepção social. “Progressivamente se impõe a necessidade de reconhecer a singularização crescente das trajetórias pessoais, o feito que os atores tenham acesso a experiências diversas que tendem a singularizar-los e ele ainda ocupa posições sociais similares.” (ARAÚJO; MARTUCCELLI, 2010, p. 82, tradução nossa). A nível individual, o conjunto de provas pessoais é fruto de uma trajetória extremamente singular: “etapas em que se combinam os erros e os êxitos, o destino e a fortuna, as oportunidades e as dominações, os acidentes e os condicionamentos” (ARAÚJO; MARTUCCELLI, 2010, p.8, tradução nossa). Assim, a partir da escala do indivíduo que se define o processo de individuação. A compreensão sobre as trajetórias individuais implica o diferencial entre os indivíduos que dispõe dos mesmos recursos, e cujas posições sociais aparentam muito similares, mas apresentam diferenças importantes na hora do enfrentamento.

As experiências sociais entregam insumos básicos para orientação no mundo porque aportam ao trabalho interpretativo das situações, mas ainda porque contribuem a estabelecer o contexto de possibilidades e impossibilidades desde as quais o indivíduo pode enfrentar as distintas provas. (ARAÚJO; MARTUCCELLI, 2010, p. 88, tradução nossa)

Como nos explica Carrano (2009), Danilo Martuccelli adota uma postura teo ́rico-metodológica que “combina reconhecimento dos posicionamentos sociais e capacidade de agência”, (p.10) mostrando que o que é mais importante na sociologia do indivíduo é de compreender como este indivíduo é capaz de sustentar-se no mundo. A partir desta perspectiva que o autor levanta a discussão sobre os suportes existenciais.

Os suportes podem ser definidos como a relação entre recursos subjetivos que os indivíduos conseguem articular para que se sustentem a si mesmos e o entorno social existente na forma de redes e apoios materiais e simbólicos.

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21 Um suporte não se define, então, apenas como um apoio material, pois ele pode ser mesmo uma relação afetiva ou uma representação que contribua para apoiar o indivíduo na tarefa de sustentar-se no mundo. O indivíduo é sustentado por um conjunto de suportes (materiais e simbólicos). E para um sujeito descentrar-se de si e ao mesmo tempo distanciar-se do mundo social, individuar-se, exige-se, em contrapartida, sua inserção prática em redes sociais. Para a análise sociológica não importam quantos sejam os suportes, não se trata de reconhecer se determinados suportes são bons ou maus, mas sim o papel que esses desempenham nas experiências dos indivíduos. (CARRANO, 2009, p.10)

O caminho da pesquisa

A pesquisa com indivíduos que estão em cumprimento de pena de prisão reserva algumas particularidades que precisam ser consideradas no momento da sua realização. A própria busca por essas pessoas é algo complicado do ponto de vista social. A primeiras perguntas que eu me fiz foram: Onde encontrar essas pessoas? Como conseguir que as pessoas decidissem expor suas histórias em uma pesquisa?

Desde a graduação em Ciências Sociais mantenho estreitos laços com o tema. A minha monografia com o título: "Sistema Punitivo Oculto: A violência no interior do cárcere" , foi realizada no período em que eu exercia um trabalho voluntário em duas prisões do estado do Rio de Janeiro. Trabalhava como professora-alfabetizadora do Programa Brasil-Alfabetizado no Sistema Prisional. Nesta época, o acesso às dependências do presídio eram irrestritas, o que possibilitava o contato com agentes, com outros professores e com os próprios alunos. Pude acompanhar as dificuldades dos presos em continuar os estudos dentro do cárcere.

No mesmo período comecei a amadurecer a ideia de cursar um mestrado em educação que tratasse das dificuldades desses presos em continuar os estudos pós-cárcere. Inicialmente, projetei a pesquisa para as prisões privadas e a forma como a educação era organizada nesses espaços, mas ao longo do processo percebi que o objeto que eu queria explorar eram as histórias individuais. Histórias que de alguma forma pudessem evidenciar a estrutura prisional e pudessem trazer o olhar desse indivíduo sobre a sua realidade. A escolha por uma pesquisa direcionada para as experiências individuais baseia-se no fato de que o indivíduo tornou-se um caminho importante para entender as sociedades contemporâneas, e vem adquirindo uma centralidade nas ciências sociais. (MARTUCELLI, 2010).

A centralidade atual do indivíduo na Sociologia procede da crise da ideia de sociedade e testemunha de uma transformação profunda da nossa sensibilidade- a saber, é isso que o indivíduo é, o horizonte liminar da nossa

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22 percepção social." ( MARTUCCELLI, 2010, p.79, TRADUÇÃO NOSSA).

Além disso, vem ocorrendo mudanças na forma de fazer pesquisa, priorizando métodos de pesquisa qualitativa. (MELUCCI, 2005)

Uma outra dimensão crucial da sociedade contemporânea é a importância da vida cotidiana como espaço no qual os sujeitos constroem o sentido do seu agir e no qual experimentam as oportunidades e os limites para a ação. Esta atenção para a vida cotidiana estende o foco sobre a particularidade dos detalhes e a unidade dos acontecimentos que dificilmente servem para ser observados, contidos e organizados dentro dos modelos de análise unicamente quantitativos. Na vida cotidiana, os indivíduos constroem ativamente o sentido da própria ação, que não é mais somente indicado pelas estruturas sociais e submetidos aos vínculos da ordem constituída. O sentido é sempre mais produzido através de relações e esta dimensão construtiva e relacional acresce na ação o componente de significado da pesquisa. Isto muda a atenção para as dimensões culturais da ação humana e acentua o interesse e a importância da pesquisa de tipo qualitativo. (MELUCCI, 2005, p.29)

Na época em que decidi mudar o foco da pesquisa da instituição para o indivíduo, conheci um rapaz em um encontro internacional sobre Educação em prisões, que estava cursando uma Universidade Pública e ao mesmo tempo estava em período de cumprimento de pena no regime semi-aberto. Conversamos bastante ao final da programação e ele me contou um pouco da sua trajetória. O fato de haver a possibilidade de um preso cursar o Ensino Superior era nova para mim e fez-me pensar em abordar isso na minha pesquisa. Imediatamente comecei a pesquisar sobre o tema e fiz um levantamento de dados estatísticos sobre a realidade prisional brasileira e a escolarização dos presos. Esta etapa foi importante para equacionar em que realidade inseria-se o meu universo de pesquisa. Com o projeto já elaborado e direcionado para o tema da Educação Superior para os sujeitos privados de liberdade, fui em busca dos indivíduos que quisessem participar voluntariamente da pesquisa. Através do Rafael, o rapaz que conheci no evento internacional, conheci mais três presos nesta mesma condição que concordaram em participar da pesquisa. Ele mesmo preferiu não participar, não insisti, afinal ele já tinha colaborado com as indicações. A única forma de encontrar esses sujeitos era através de indicações dos próprios voluntários ou de pessoas ligadas ao tema. Conhecia também uma professora que era voluntária na mesma época em que eu dava aula no Programa Brasil-Alfabetizado, conversamos e descobri que ela conhecia duas pessoas que estavam cumprindo pena no regime aberto e cursando o nível superior. Mantive contato com essas seis pessoas indicadas, através de redes sociais- Whattsapp e Facebook, ambos tinham acesso a internet,

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pois já não estavam mais no regime fechado. Todos eles se mostraram dispostos a participar da pesquisa, mas só consegui realizar a entrevista com três, pelo fato de os horários serem restritos, teve a ocorrência de greves, ocupações em universidades públicas14 e a pesquisa só podia ser realizada em momentos que estivessem extramuro.

Concomitantemente, comecei a ter contato com a teoria do sociólogo peruano Danilo Martuccelli no grupo de pesquisa "Observatório Jovem" na Universidade Federal Fluminense, coordenado pelo meu orientador, o professor-doutor Paulo Carrano. Ao tratar das provas e suportes que os indíviduos passam ao longo da sua trajetória, ele pode fracassar ou obter sucesso. Portanto, a sua teoria veio de encontro ao meu objeto de estudo e possibilitou enxergar nas histórias individuais um caminho para entender a estrutura social.

Martuccelli (2010) discute que no período da modernidade a centralidade estava nas instituições. Quanto mais a sociedade vai se modernizando, vai se voltando para a singularização. Existe uma demanda maior por projetos de vida, escolhas projetivas que demonstra como cada vivência individual enfrenta as provas. As provas nada mais são do que as experiências dos indivíduos. Portanto, a defesa por um tipo de pesquisa que aponte para esses desafios enfrentados pelos indivíduos torna-se essencial para a Sociologia, pois as pessoas não estão mais vinculadas as instituições.

Zygmunt Bauman (2001) defende que os campos de poder afetam as "condições"e as narrativas de vida, ou seja, existe um conjunto de poderes responsável por distribuir as possíveis escolhas dentro de determinada realidade. Portanto, as histórias de vida restringem-se ao campo de opções disponíveis.

As vidas vividas e as vidas contadas são, por essa razão, estreitamente interconectadas e interdependentes. Podemos dizer que é paradoxal, que as histórias de vida contadas interferem nas vidas vividas antes que as vidas tenham sido vividas para serem contadas." (BAUMAN, 2001, p. 15)

Bauman (2001) destaca que o campo de possibilidades disponíveis está de acordo com a realidade social em que o indivíduo está inserido. Neste contexto, o indivíduo privado de liberdade, estando dentro ou fora da prisão, através das suas histórias contadas, encontra-se mecanismos de poder já consolidados, tanto simbólicos quanto materiais, que determinam possíveis histórias que poderão ser contadas, sendo elas, já vividas ou não.

14 O movimento das ocupações das universidades públicas, em 2016, reproduziu as ocupações ocorridas nas

escolas estaduais. Mais de mil escolas foram ocupadas. Os atos das ocupações foram executados pela União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (Ubes), a maior entidade de representação estudantil para o ensino médio. Mais de mil escolas foram ocupadas por secundaristas, segundo o Movimento Ocupa Paraná, da Ubes. A mobilização girou em torno de uma educação pública de qualidade para todos.

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Após o levantamento dos dados estatísticos, já na primeira entrevista que fiz, contrariou um pouco aquilo que eu tinha imaginado encontrar após a pesquisa com os dados. Primeiramente, tinha projetado a pesquisa para jovens, principalmente por causa do levantamento inicial porém somente um deles tinha menos de 30 anos, os outros dois, um tinha 35 e o outro 50 anos. Encontrar sujeitos privados de liberdade que cursam o Ensino Superior é muito difícil, não tinha como simplesmente eu achar que eu podia realizar minha pesquisa somente com jovens. Aos poucos fui percebendo que esse detalhe tinha muito a me dizer. O meu universo de pesquisa não estava enquadrado na grande maioria de presos no Brasil, representava exatamente a minoria. Este 1% de presos que cursava a Universidade cumprindo pena não se enquadrava na grande massa de presos do Sistema Penitenciário Brasileiro, com baixa escolarização e de baixa renda. Segundo Martuccelli (2004) fica cada vez mais difícil analisar e descrever a realidade dentro de determinadas categorias universais. Torna-se insuficiente enquadrar a realidade em uma exclusiva estrutura de posições, e sobretudo, limitar-se a circunscrições gerais. Embora possamos identificar uma estrutura social implícita nas experiências individuais, não podemos categorizar os indivíduos de forma homogênea em determinada realidade social.

Com isso, o primeiro contato com os entrevistados pode esclarecer algumas questões que a priori faziam parte do meu imaginário enquanto pesquisadora da área prisional. O modo de vida do entrevistado, seu conhecimento e intelectualidade não condizia com o que imaginei, pensei de encontrar alguém com uma história de superação, dessas em que o rapaz muito pobre com baixa escolarização conseguisse escolarizar-se na prisão e chegar a Universidade. Mas não foi o que encontrei, ambos vinham de uma realidade diferente da maioria, antes do cárcere já tinham tido algum contato com a universidade, que foi interrompida mediante a prática do crime.

A metodologia de pesquisa utilizada foi pensada de modo a tentar a apreender a realidade dentro do seu campo de possibilidades. Logo, a entrevista compreensiva como método possibilitou compreender as particularidades do campo, pois

o entrevistador não se limita a recolher informações e/ou discursos sobre experiências, vivências e opiniões do entrevistado, e as respostas deste não representam meras descrições dessas vivências, experiências ou opiniões com um certo nível de detalhe e densidade. Correspondem a construções intersubjetivas, ou seja, descrições e posições discursivas que são construídas a partir de uma situação de interação estruturada a partir de pares pergunta-resposta, modelo em que a narração do entrevistado não é automática, e a intervenção do entrevistador não é neutra. (FERREIRA, 2014, p. 984)

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Elaborei um roteiro semi-estruturado, que pudesse fluir de forma mais livre durante a sua realização. A ideia era que a entrevista transcorresse com bastante liberdade e flexibilidade, para que eu conseguisse apreender o máximo de informações da história de vida daquele sujeito. Portanto, ao longo da conversa, eu fazia intervenções curtas quando necessário ou incorporava alguma pergunta que eu julgasse pertinente naquele momento. Todavia, o entrevistado tinha total liberdade para se expressar e relatar a sua história, combinando com a possibilidade de observação das suas expressões.

No momento da análise dos dados, busquei informar de forma resumida quem eram os sujeitos que participaram da pesquisa a fim de apresentá-los e trazer um grau de familiaridade a etapa posterior. Após esse primeiro contato optei por analisar as categorias que estavam presentes nas três histórias com a finalidade de promover um grau de aprofundamento, que pudessem evidenciar o tipo de estrutura social implícita. A ideia era elucidar o que havia de comum nas três narrativas e também demonstrar a particularidade de cada uma delas. O objetivo era mostrar que,

os modos pelos quais se "traduz " em texto o que se viu ou se pensou não podem ser considerados simples automatismos, atos transparentes e mecânicos, porque comportam uma intervenção ativa de interpretação e seleção. O tema da reflexividade evidenciou que os conteúdos de uma narração não são independentes dos modos da sua produção. As escolhas retóricas que se cumprem- de modo mais ou menos consciente- para dar vida a um texto têm implicações sobre a narração que se está em condições de produzir, constroem uma história particular e uma visão específica da realidade. (MELUCCI, 2010, p. 265-266)

Portanto, ao decorrer deste texto serão apresentadas as principais discussões que aprofundam a análise, organizadas da seguinte forma:

No Capítulo 1 – O processo social de vulnerabilidade e suas consequências para o encarceramento em massa- é apresentado um panorama sobre o processo social que vulnerabiliza os sujeitos e consequentemente os coloca na prática criminal. Esta dinâmica social tem como consequência a grande massa de pessoas aprisionadas.

No Capítulo 2- A realidade prisional brasileira, demonstra-se o que representa o sistema prisional brasileiro hoje, o quantitativo de presos e a escolaridade da sua população. Esse capítulo é importante para compreender em que contexto insere-se os sujeitos da pesquisa.

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No Capítulo 3- A expansão do ensino superior no Brasil, discorre-se sobre as políticas de acesso e permanência no ensino superior brasileiro, e as possibilidades de acesso à partir da democratização do acesso para os presos.

No Capítulo 4- trago as narrativas individuais colhidas através da entrevista compreensiva. Trata-se da apresentação dos dados da entrevista realizada com os privados de liberdade universitários voluntários da pesquisa.

Nas considerações finais reflito a relação dos dados empíricos coletados na pesquisa e o sistema de Justiça , demonstrando como as histórias individuais refletem a realidade prisional brasileira na atualidade.

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27 1. O PROCESSO SOCIAL DA VULNERABILIDADE E SUAS CONSEQUÊNCIAS PARA O ENCARCERAMENTO EM MASSA

Este primeiro capítulo apresenta o Sistema Prisional Brasileiro em sua égide, identificando os processos sociais que culminaram no crescente encarceramento em massa. As características predominantes desta população, composta principalmente, por jovens, negros, com baixa escolaridade e oriundos de classes populares, identificam as diversas exclusões vivenciadas por essas pessoas.

O conceito de exclusão desenvolvido aqui apresenta diferentes significados, caracterizado pela visão de vários autores, buscando historicizar quais mecanismos foram determinantes para compor o quadro da população prisional resultante deste processo.

As transformações ocorridas nas relações de trabalho e o consequente desemprego são determinantes para compreender o crescimento do número de presos. O cárcere passa a ser uma espécie de depósito dos excluídos. Wacquant (2013) diz que “o encarceramento serve bem antes à regulação da miséria, quiçá a sua perpetuação, e ao armazenamento dos refugos do Mercado” (p. 33).

A questão da superpopulação prisional deve ser analisada de forma profunda, pois o controle realizado pelo Estado através da sua força punitiva sobre os pobres é um projeto de governo que caracteriza o seu fracasso em desenvolver políticas efetivas de prevenção a crimes. Portanto, compreender como se desenvolveu este processo ao longo da história é essencial para identificarmos o lugar dos participantes da pesquisa neste contexto.

1.1 As transformações nas relações de trabalho e o desemprego

As diversas transformações ocorridas nas relações de trabalho, a partir da década de 1970, trouxeram mudanças significativas para as sociedades modernas. Segundo Robert Castel (1988), tais mudanças tornaram-se o cerne do debate no conceito de desfiliação. Tal conceito foi desenvolvido pelo autor para caracterizar o processo de exclusão social tão debatida nas pesquisas científicas, principalmente na área de Ciências Humanas e Sociais.

A partir da década de 70, houve uma grave crise do emprego em vários países do mundo. Castel em “As metamorfoses da questão social” (1988) desenvolve uma amplo resgaste de

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como aconteceu historicamente este processo. Embora o autor utilize dados empíricos referentes a sociedade francesa, podemos compará-los com a realidade brasileira, pois a nossa sociedade apresentou as mesmas mudanças referentes às relações trabalhistas.

Castel nos alerta que essas novas formas de contratação ditas "atípicas" passam a ser a maioria dos acordos firmados, o que provoca diversidade e descontinuidade, o desemprego não é o mais importante neste percurso. Segundo ele, a precariedade do trabalho nos permite compreender os mecanismos que alimentam as vulnerabilidades sociais, e finalmente, produzir desemprego e desfiliação.

A desfiliação é produzida por essa precarização e escassez do trabalho. Destaca-se, além da vulnerabilidade, a instabilidade e a sensação de insegurança que esse fenômeno provoca. Os desfiliados são os desempregados, os inimpregáveis, os jovens, as mulheres, ou seja, são aqueles que vivem a relações de trabalho de forma instável e insegura. Castel se afasta da categoria exclusão, pois pode caracterizar somente indivíduos que estão a margem, que estão fora das relações sociais. Para ele, a metamorfose da questão social traz muitas especificidades, que tratá-las somente como exclusão não contemplaria o problema.

1.2 O “tudo penal”: Estado de bem-estar social versus Estado-mercado

Neste contexto, em que o aumento do desemprego em massa é iminente, surge um outro fenômeno distinto, porém complementar: o deslocamento do papel do Estado de provedor para repressor. Louic Wacquant em " Punir os pobres" (2013), demonstra as políticas repressivas aplicadas em Nova York baseada na "Teoria das Janelas Quebradas". Segundo esta “teoria”, um único vidro quebrado deve ser punido com rigor para evitar crimes mais graves. Entretanto, o público atingido por essa medida, era composto por pobres, negros, e moradores de guetos. Constata-se que através dessa medida, muitos jovens foram privados de liberdade nessa política do "tudo penal", o que determinou um encarceramento em massa.

Como conter o fluxo crescente das famílias deserdadas, dos marginais das ruas, dos jovens desocupados e alienados e a desesperança e a violência que se intensificam e se acumulam nos bairros? Ao aumento dos deslocamentos sociais pelos quais -paradoxo- elas mesmas são amplamente responsáveis, as autoridades americanas decidiram responder desenvolvendo suas funções repressivas até a hipertrofia. Na medida em que se desfaz a rede de segurança (safety net) do Estado caritativo, vai se tecendo a malha do Estado disciplinar

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29 (dragnet) chamado a substituí-lo nas regiões inferiores do espaço social americano. (WACQUANT, 2013, p. 27)

Há, portanto, uma erupção do Estado Penal, resultante das reformas realizadas pelo neoliberalismo e que se iniciou nos Estados Unidos para se espalhar pela Europa e pela América Latina (WACQUANT, 2013). Nesse Estado Penal, há uma prioridade maciça às funções de polícia e de justiça direcionadas à criminalidade de rua e, consequentemente, às pessoas mais pobres. Ocorre, dessa forma, uma reformatação do Estado devido a um projeto político fruto do neoliberalismo, colocado em curso na “era da ideologia hegemônica do mercado” (WACQUANT, 2013, p.18). Em sua análise de tal cenário, Wacquant pretende fornecer

(...) uma contribuição à antropologia histórica do Estado e das transformações transnacionais do campo do poder, na era do neoliberalismo em ascensão, propondo ligar as modificações das políticas sociais às das políticas penais, de modo a decifrar a dupla regulação à qual o proletariado urbano encontra-se doravante submetido, por meio da ação conjunta dos setores assistencial e penitenciário do Estado. Isso porque a polícia, os tribunais e a prisão são, se examinados mais de perto, a face sombria e severa que o Leviatã exibe, por toda a parte, para as categorias deserdadas e desonradas, capturadas nas cavidades das regiões inferiores do espaço social e urbano, pela desregulamentação econômica e pelo recuo dos esquemas de proteção social. (WACQUANT, 2013, p. 17/18)

A economia deixa de ser uma área política, pois o Estado se torna deliberadamente um impotente econômico no que diz respeito ao controle dos fluxos do capital, que encontra políticas favoráveis ao sistema financeiro, ainda que com consequências sociais desfavoráveis à grande parcela da população. Nos remetemos a Bauman (1999):

A única tarefa econômica permitida ao Estado e que se espera que ele assuma é a de garantir um ‘orçamento equilibrado’, policiando e controlando as pressões locais por intervenções estatais mais vigorosas na direção dos negócios e em defesa da população face às conseqüências mais sinistras da anarquia de mercado (p.65)

Fica claro que é interessante ao capital o enfraquecimento do Estado Providência ou, quando já inexistente ou fraco, a redução ainda maior de sua atuação no campo social, com modificação de suas funções no campo econômico. A extraterritorialidade do capital necessita dessa mudança política, capaz de gerar um Estado que tem como uma de suas principais funções a política penal repressiva. Assim, a questão da lei e da ordem torna-se essencial para o Estado, que deve criar condições favoráveis aos investimentos financeiros, por meios, em especial, da redução do sistema de proteção social e da flexibilização das leis trabalhistas, o que gera subemprego, desemprego e aumento da pobreza.

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Há, portanto, uma clara escolha política de cortes e de investimentos dos recursos públicos. Esse novo Estado retira recursos financeiros da área social e os aplica, de maneira cada vez mais crescente, na área de segurança pública, em especial na construção e manutenção de prisões, ou seja, na área repressiva. A área preventiva fica relegada a segundo plano, recebendo poucos recursos e, consequentemente, podendo fazer pouco para mudar os índices de criminalidade de maneira eficaz.

Em sua obra, Wacquant (2013) demonstra que o crescimento do Estado Penal nos Estados Unidos é concomitante à redução de despesas públicas na área social e ambas as práticas relacionam-se à necessidade de imposição do trabalho assalariado precário como única forma de cidadania possível para as camadas mais baixas da população.

Para prender mais e manter essas pessoas presas, são necessários maiores gastos por parte do Estado. É evidente que o crescimento da população prisional no ritmo acelerado em que esse se deu resultou em precarização das condições de encarceramento. Nos EUA, as penitenciárias eram violentas, insalubres e superlotadas, o que deu origem a ações judiciais e, consequentemente, intervenção judicial no sistema penitenciário que, entretanto, foram incapazes de reverter o quadro de superlotação e condições precárias e violentas de encarceramento. Para tentar melhorar tais condições de encarceramento, o Estado optou por investir na capacidade do sistema, aumentando o número de vagas prisionais disponíveis, construindo mais e mais prisões. (WACQUANT, 2013).

Em nenhum momento do processo, a prisão como mecanismo de controle social é colocada em debate. Apesar de existirem críticas sobre o alto índice de reincidência criminal, o que leva à constatação de que a prisão não funciona para reabilitar o condenado, ela ainda é mantida como a melhor resposta para o crime, sem qualquer discussão acerca da prisão como instituição ou das questões sociológicas, políticas e econômicas que a circundam historicamente.

No discurso dominante, o que predomina é uma redução economicista da crise do sistema penitenciário. Há um diagnóstico peculiar comum da crise das prisões em quase todos os países ocidentais: superpopulação e custos crescentes, que juntos geram precarização das condições do encarceramento.

É nesse cenário que o discurso favorável à privatização dos presídios ganha força. A sociedade, de modo geral, o aceita bem, tendo em vista desejarem mais segurança, mas não enxergam com bons olhos gastos públicos com prisões. Para Laurindo Minhoto (2002), a prisão é um “grande negócio”.

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31 Em tempo de capitalismo turbinado, altos indíces de produtividade, desemprego estrutural e insegurança generalizada, o a cárcere constitui um dos mais prósperos vetores a impulsionar a formação de uma florescente indústria de combate a criminalidade. Na dinâmica instaurada pela “nova economia”, a prisão se converte em meio de controle altamente lucrativo das ilegalidades dos perdedores globais. (MINHOTO, 2002, p. 136)

As empresas, obviamente, têm interesse no negócio das prisões, tendo em vista que o lucro é certo, uma vez que não falta a matéria-prima essencial, qual seja, os presos, além de ser um mercado em crescimento, tendo em vista que o número de presos aumenta exponencialmente nos ú ltimos anos na maioria dos países ocidentais, a exemplo do Brasil, que tem a quarta população carcerária do mundo.

A privatização aparece, então, como a resposta ideal, pois supostamente diminui os gastos públicos com as prisões e ainda conta com a também hipotética maior eficiência do setor privado no gerenciamento dessa instituição.

1. 3 A vulnerabilidade e a incerteza

Todas as medidas em busca da redução da insegurança parece que promoveram o efeito contrário.

Com toda certeza, o mundo hoje parece muito menos seguro do que parecia dez ou vinte anos atrás. Parece que o principal efeito das medidas extraordinárias de segurança profusas e caríssimas implementadas na última década foi um aprofundamento da sensação de perigo, de risco e insegurança. Não há muito na atual tendência que prometa um rápido retorno aos confortos de segurança. Lançar as sementes do temor produz safras abundantes em matéria de política e comércio; e o fascínio de uma colheita opulenta inspira os que buscam ganhos políticos e comerciais a abrir sempre novas terras para plantações que geram medo." (BAUMAN, 1999, p.77)

Zygmunt Bauman também trata da transformação do papel do Estado gerada pela vulnerabilidade e a incerteza. Para ele, ambas "são alicerces de todo poder político", Segundo o autor, a incerteza e a vulnerabilidade são uma dupla de efeitos secundários da condição humana, que apesar de serem constantes, causam uma profunda indignação. (BAUMAN, 1999, p.70)

Numa sociedade moderna "normal", a vulnerabilidade e a insegurança existencial, além da necessidade de viver e agir sob condições de profunda e inescapável incerteza, são garantidas pelos interesses da vida a forças de mercado sabidamente caprichosas e endemicamente imprevisíveis. Os

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