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STUART HALL E OS DEBATES MARXISTAS: o legado de um teórico cultural

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Revista de Humanidades e Letras

ISSN: 2359-2354 Vol. 5 | Nº. 1 | Ano 2019

Eduardo Antonio Estevam

UNILAB

STUART HALL E OS DEBATES MARXISTAS:

o legado de um teórico cultural

_____________________________________

RESUMO

O presente ensaio visa reconstituir os trabalhos e debates elabora-dos por Stuart Hall sobre o marxismo e, ao mesmo tempo, apre-sentar suas contribuições para as metamorfoses dos estudos mar-xistas.

Palavras-chave: Marxismo, Ideologia, Stuart Hall

____________________________________

ABSTRACT

This essay aims at reconstituting the works and debates elaborated by Stuart Hall on Marxism and, at the same time, presenting its contributions to the metamorphoses of the Marxist studies.

Keywords: Marxism, Ideology, Stuart Hall

Site/Contato

www.capoeirahumanidadeseletras.com.br capoeira.revista@gmail.com

Editores

Marcos Carvalho Lopes marcosclopes@unilab.edu.br Pedro Acosta-Leyva leyva@unilab.edu.br

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Stuart Hall e os debates marxistas: o legado de um teórico cultural

STUART HALL E OS DEBATES MARXISTAS: o legado

de um teórico cultural

Eduardo Antonio Estevam 1

Filho de uma família negra de classe média, Stuart McPhail Hall, nasceu em Kingston

(Jamaica) em 19322. Quando foi estudar literatura em Oxford em 1951, levou consigo a

experi-ência da dependexperi-ência colonial, de classe e cor. Após sua decisão de construir sua carreira acadê-mica e intelectual na Inglaterra, aproximou-se dos militantes nacionalistas e dos meios da es-querda marxista, que lutavam pelo fim do colonialismo. “A maioria dos meus amigos eram expa-triados e retornaram para desempenhar funções na Jamaica, Trindade, Barbados e Guiana. Éra-mos apaixonados pela questão colonial” (HALL, 2006, p. 395).

Foi justamente nas conjunturas das décadas de 50 e 60 do século XX na Inglaterra que se consolidou não apenas um marxismo centrado na análise cultural, mas uma crítica radical a cultura da sociedade burguesa. Hall integra-se ao grupo desses emergentes pesquisadores ingleses, que desconstruíram a noção conservadora de cultura, presente em Para André Mattelart

e Éric Neveu (2004, p.34), em Introdução aos Estudos Culturais3, esses debates característicos do

século XIX, relaciona-se a “(...) centralidade de uma reflexão gerada pelo impacto da revolução industrial, sobre a cultura nacional, com as ameaças que ela faria pesar tanto sobre a coesão social como sobre a preservação de uma vida intelectual.”

O debate no qual Stuart Hall achava-se inserido nesse momento, foi profundamente mar-cado pela conjuntura pós-guerra e pela guerra fria, contexto decisivo para a reconstrução de um pensamento crítico sobre a cultura burguesa. Nesta situação de “ruptura significativa” - conceito desenvolvido por Hall, para analisar aqueles momentos históricos em que velhas correntes de pensamento são rompidas, onde “(...) elementos novos e velhos são reagrupados ao redor de uma nova gama de premissas e temas”(HALL, 2006, p. 123) - os trabalhos mais significativos que determinaram esta ruptura começaram a surgir. São eles, em 1957, As utilizações da cultura, de

1 Professor Adjunto da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afrobrasileira (Unilab/Campus

Malês)

2 Hall faleceu aos 82 anos, em 2014, devido a graves problemas de saúde, era casado com a historiadora Catherine

Hall.

3 Nesse livro os autores procuram reconstituir os trabalhos e debates dos estudos culturais, introduzindo

questionamentos e apresentando as transformações da noção de cultura no século XX. MATTELART, André & NEVEU, Érik. Introdução aos estudos culturais. São Paulo: Parábola Editoral, 2004.

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Richard Hoggart (1918-2014); 1958, Cultura e Sociedade de Raymond Williams (1921-1988) e em 1963, A formação da classe operária inglesa de Edward Palmer Thompson (1924-1993).

Para se tornar um teórico cultural, Hall procurou absorver as produções mais vigorosas sobre a crítica cultural nas décadas de 50 e 60 na Inglaterra. Entre os pais fundadores dos estudos culturais, Hoggart é o que denota menos trato com o marxismo teórico ou prático, enquanto para Raymond Williams e Edward Thompson a inspiração marxista os conduzirá às análises de que é impossível abstrair da cultura as relações de classe (MATTELART & NEVEU, 2004, p.44). Stu-art Hall, igualmente pai fundador dos estudos culturais, o mais jovem, completará os estudos da cultura com mais um elemento, a raça, os estudos sobre gênero aparecerão um pouco mais tarde. Em 1964 foi fundado o Centro de Estudos Culturais Contemporâneo, tendo como objetivo, inici-almente, a análise dos produtos da cultura de massa e o universo das práticas culturais populares centrado em produções de uma cultura material.

O incontornável Marx, ao longo de um século foi objeto de múltiplas interpretações e re-atualizações, tendo em vista que a configuração da luta de classes tornou-se complexa no tempo e no espaço. Hall, nunca se filiou ao partido comunista, mas sempre procurou associar compo-nentes políticos das conjunturas contemporâneas às suas produções científicas. Nota-se em seus trabalhos “mais” marxistas, uma persistência teórica para demonstrar a relação dialética entre os estudos culturais e a economia política, esta última não poderia ser marcada por uma determina-ção linear. Seus textos mais vigorosos, onde demonstra suas influências e heranças marxistas, estão presentes em Significação, representação, ideologia – Althusser e os debates

pós-estruturalistas, produzido em 1980; O Problema da ideologia – o marxismo sem garantias,

pu-blicado em 1983, no livro Marx: 100 anos depois; e A relevância de Gramsci para o estudo de

raça e etnicidade, ensaio apresentado no colóquio Perspectivas teóricas na análise do racismo e

da etnicidade, organizado pela Unesco em 1985. Suas produções de cunho marxista foram pro-fundamente inspiradas pelas obras de Antonio Gramsci.

Em seus trabalhos (dezenas de artigos), questões relacionadas à raça e etnia estão cons-tantemente presentes, ora para exemplificar uma determinada reflexão ou para tornar-se objeto de análise. Afirmava que as contradições entre capital e trabalho não poderia ser eterna e univer-sal, enquanto cadeia de significantes, estas, foram produzidas num momento histórico específico. Ele observava que num exame das relações sociais entre a Jamaica e a Inglaterra, o sistema racial e de classe se sobrepunham um ao outro. Sendo assim, adverte, em qualquer formação social contemporânea faz-se necessário analisar como a classe, a raça e o gênero são articulados um com o outro para estabelecer posições sociais condensadas.

Em entrevista concedida ao professor e pesquisador Kuan-Hsing Chen, da Universidade Chiao Tung, Stuart Hall esclareceu que sua formação intelectual teve início a partir de uma

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for-Stuart Hall e os debates marxistas: o legado de um teórico cultural

mação clássica, quando jovem, leu T. S. Eliot, James Joyce, Freud, Marx, Lenin (2006, p.388). Em sua fase intelectual mais madura os seus trabalhos apresentam influência bastante heterodo-xa, Hegel, Marx, Weber, Gramsci, Barthes, Bakhtin, Louis Althusser, Raymond Williams, Ri-chard Hoggart, Edward P. Thompson, Gayatri Spivak, Paul Gilroy, Cornel West, Homi Bhabha, Judith Butler, Bell Hooks. Desde cedo, ainda jovem, ansiava pelo fim do imperialismo e pela autonomia do governo jamaicano. Começou a se envolver politicamente e se interessar na for-mação dos partidos políticos do seu país e na emergência dos sindicatos e movimentos trabalhis-tas no final da segunda guerra mundial.

Bem, eu li os ensaios de Marx – o manifesto comunista, O trabalho assalariado e o Capi-tal; li Lenin sobre o imperialismo. Foram leituras importantes muito mais no contexto do colonialismo do que do capitalismo ocidental. As questões de classe estavam claramente presentes no debate político sobre o colonialismo na Jamaica, e também a questão da po-breza, o problema do desenvolvimento econômico, etc (2006, p. 390).

Começou a colaborar com a revista New Left Review, tornando-se seu editor entre 1959 e 1961. Hall fez parte da Nova Esquerda na Inglaterra, dado ao seu interesse pelo marxismo, mas a partir do momento em que a União Soviética invadiu a Hungria e a Inglaterra invadiu o Suez, ingressou na ala antistalinista, de oposição a União Soviética. Dialogou com o Partido Comunis-ta, mas de forma independente, nunca se tornou um membro do partido. Na década de 50, ajudou a criar a Sociedade Socialista, lugar de encontro das mentes independentes de esquerda e da clas-se trabalhadora, Perry Anderson fez parte desclas-se grupo. Ainda que não escrevesclas-se sobre diáspora e política negra nesse momento histórico, “tinha uma perspectiva diaspórica sobre minha posição na Nova Esquerda”(2006, 398). Dizia estar mais preocupado com a renovação das ideias socia-listas que a renovação de partidos de esquerda, daí sua recusa e desconfiança a filiação aos parti-dos, à luz da experiência stalinista. “Um pé dentro, outro fora” (2006, p.400). Estava preocupado com o trabalho de base, em promover ocupação de espaço, sem organizá-lo, “(...) sem impor às pessoas a escolha de uma lealdade institucional” (2006).

Sua grande preocupação teórica com o marxismo era não construir uma nova interpreta-ção reducionista, logo, despertou interessou nos estudos culturais pela classe social, numa pers-pectiva dos trabalhos de Richard Hoggart e Raymond Williams. O sentido do materialismo histó-rico empregado por Walter Benjamim, também o influenciou profundamente, entre outros auto-res. Durante os anos de 1980, foi um dos principais críticos do thatcherism, tendo participado ativamente no jornal Marxism Today, que acabou por influenciar líderes trabalhistas.

Escrito em 1983, em meio aos eventos que faziam alusão aos 100 anos da morte de Karl Marx, Hall produziu o ensaio O problema da ideologia – o marxismo sem garantias, publicado

no livro Marx: 100 anos em Londres, sob a organização da Betty Matthews. Esse livro, contou

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ret, Ben Fine, Peter de Francia, Alan Hunt, Yonne Kapp, Gregor McLennan, George Rudé, Göran Therborn e Gwyn Williams.

Cremos que o título desse ensaio foi tomado de empréstimo do trabalho escrito por Gramsci, “Os problemas do marxismo”. Hall procurou identificar as fragilidades e limitações mais marcantes das formulações marxistas clássicas sobre ideologia, ao mesmo tempo, avaliar os seus ganhos e o que merecia ser descartado. Para ele, o que tem garantido uma qualidade de vi-da-aa-morte do marxismo, de estar sempre sendo “transcendido” e “preservado”, é o pós-marxismo, que se utiliza dos seus conceitos e, ao mesmo tempo, “paradoxalmente”, demonstra a inadequação destes. Sua perspectiva sempre fora de uma “aproximação” e “distanciamento” para poder desenvolver uma autocrítica, ou seja, “(...) trabalhar na vizinhança do marxismo, sobre o marxismo, contra o marxismo, com ele e para tentar desenvolvê-lo”(2006, p.191). Esse ensaio surgiu num momento em que as discussões sobre ideologia tornaram-se um problema. Para Perry Anderson (1976), em seu trabalho sobre o marxismo na Europa ocidental, havia uma intensa preocupação com as questões ideológicas, provocando certo descompromisso com outros temas caros apontados por Karl Marx, como por exemplo, as lutas políticas em massa. A preocupação de Hall com a ideologia, enquanto um teórico prático, não se desvinculava da necessidade de atualização do debate com a luta política de massa.

De início, Hall apresenta a sua formulação teórica sobre o seu objeto de análise - o pro-blema da ideologia – dentro de uma teoria materialista.

Por ideologia eu compreendo os referenciais mentais – linguagens, conceitos, categorias, conjunto de imagens do pensamento e sistemas de representação – que as diferentes clas-ses e grupos sociais empregam para dar sentido, definir, decifrar e tornar inteligível a forma como a sociedade funciona (2006, p. 250).

Nesse texto, a questão central reside no “problema da ideologia”, ou seja, como idéias diferentes tomam conta das mentes das massas, tornando-se uma “força material”, ou como um conjunto particular de ideias passa a dominar o pensamento social de um bloco histórico. Ele re-conhece que na obra de Marx e Engels não existe uma teoria da ideologia para um pronto con-sumo, afirma ainda que, Marx não desenvolveu uma explicação geral sobre o funcionamento das ideias sociais, seus “comentários” sobre a ideologia nunca pretenderam alcançar o status de “lei”. Nesse sentido Hall aponta que o problema dos marxistas clássicos foi considerar os “comentá-rios” como teorizações completas. Ele vê nos trabalhos de Karl Marx e Friedrich Engels, mais precisamente em A ideologia alemã e A pobreza da filosofia, livros que combatem as ideias bur-guesas, um rígido determinismo estrutural e um duplo reducionismo – econômico e de classe. Para Hall, Marx empregou com freqüência o termo “ideologia” para se referir às manifestações do pensamento burguês. Uma das teses mais elaboradas de Marx consiste na defesa teórica de que as ideias surgem das condições materiais e refletem as circunstâncias nas quais foram gera-das, elas expressam as relações sociais e suas contradições no pensamento. O seu objetivo era

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Stuart Hall e os debates marxistas: o legado de um teórico cultural

combater a ideologia burguesa, a noção de que as ideias constituíam o motor da história ou que avançavam independentemente das relações materiais, gerando seus próprios efeitos.

Figura 1: Imagem da capa do livro 100 anos depois de Marx

Em O problema da ideologia – o marxismo sem garantias, Hall aponta as críticas que o modelo de ideologia preconizado por Marx sofreu, por não conceber a formação social como al-go complexo, composto de várias práticas, como uma “estrutura expressiva” (2006, p. 254). A questão central para este intelectual caribenho, mas precisamente o problema da ideologia, é afirmar que a superestrutura seja totalmente incapaz de produzir efeitos específicos. A literatura crítica para esse tipo de afirmação aparece desde cedo em Engels, passando por Lukács, Grams-ci, Althusser... Essas revisões abriram caminho para uma concepção mais discursiva da ideolo-gia, ao invés de negligenciá-la, como “falsa consciência” ou “ideias distorcidas”.

O que importa para Hall é perceber como as ideologias são internalizadas, como elas são faladas de maneira “espontânea”, dentro dos limites de pensamento que existem fora de nós, ou seja, a questão da interpelação dos sujeitos no centro do discurso ideológico. Afastando-se do funcionalismo althusseriano que atribui à ideologia a função de reprodutora das relações sociais capitalistas, e aproximando-se das teorias do discurso e psicanalíticas, Hall passa a se preocupar com as formas concretas, com os momentos em os sujeitos são “ideologicamente” formados. No entanto, nos alerta que uma estrutura econômica não pode “garantir” um efeito ideológico, se esta afirmação fosse positiva, como poderíamos explicar as formas alternativas de consciências.

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Hall toma por base as reflexões de Marx sobre o circuito econômico do capital. Sobre as trocas de mercado, Marx afirmara que: “A única força que os une e os coloca em relação um com o outro é o egoísmo, o lucro e os interesses particulares de cada um (apud HALL, 2006, p. 260)”. O problema da ideologia, quando foi produzido, elaborou uma releitura de Marx à luz das críticas e teorias mais recentes e avançadas, desta forma, Hall apresenta a seguinte interpretação:

O mesmo processo – produção e troca capitalista – pode ser expresso por uma estrutura ideológica distinta, pelo uso de diferentes “sistemas de representação”. Existe o discurso do “mercado”, o discurso da “produção”, o discurso dos “circuitos”: cada um produz uma definição distinta do sistema. Cada um nos localiza distintamente – como trabalhador, ca-pitalista, trabalhador assalariado, os escravos do salário, produtor, consumidor, etc. As-sim, cada um nos situa como atores sociais e como membros de um grupo social em uma relação particular com o processo e prescreve para nós certas identidades sociais (2006, p. 267).

E, arrasta este tipo de reflexão para a ideologia, apoiando-se em Laclau e em tantas outras releituras que vigorosamente têm sido apresentadas, de que as ideias e conceitos particulares não “pertencem” exclusivamente a um tipo particular de classe. Tais contestações apóiam-se nos es-tudos da linguagem e do discurso, ao afirmarem que as ideias não ocorrem no pensamento de forma única e isolada com seus conteúdos e referenciais irrevogavelmente fixos. A luta ideológi-ca e a transformação da consciência estão dentro de uma “lógiideológi-ca” que conecta uma proposição a outra na cadeia de significados. Tendo como referencial analítico Mikhail Bakhtin sobre os estu-dos da linguagem e o marxismo de Antonio Gramsci, Hall prefere pensar numa noção mais con-creta da ideologia, ao invés de uma teoria geral e abstrata.

A imagem dos grandes e imutáveis batalhões de classe carregando a pesada bagagem ideológica que lhes é atribuída, no campo da luta, com seus números de registro ideológi-co nas ideológi-costas, ideológi-como se referiu Poulantzas no passado, é substituída aqui pela infinidade de sutis variações pelas quais os elementos de um discurso parecem combinar e recombinar espontaneamente uns com os outros, sem quaisquer restrições materiais a não ser aquelas fornecidas pelas próprias operações discursivas (2006, p. 269).

Na esteira gramsciana, Hall afirma que a luta ideológica não acontece pelo deslocamento integral de um modo de pensamento de classe em favor de um sistema inteiramente pronto de ideias. A luta ideológica é uma guerra de posições, o que significa articular diferentes concep-ções de ideias dentro de toda uma cadeia de ideias associadas, ou seja, “(...) significa articular esse processo de desconstrução e reconstrução ideológica a um conjunto de posições políticas organizadas a um conjunto particular de forças sociais” (2006, p. 270).

Suas releituras são contrárias ao materialismo vulgar no que tange a fixidez das ideias à posição de classe, mas reconhece que ideias surgem das condições materiais nas quais os grupos e classes sociais existem e podem refleti-las. A essa combinação e recombinação de ideias, Hall conceitua como um alinhamento tendencial dentro de certos limites e horizontes, e vê em Marx

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do O Dezoito Brumário de Luis Bonaparte uma relação mais complexa na equação entre posição de classe e as ideias. “Creio que isso é o que Marx tinha em mente ao afirmar no Dezoito brumá-rio, não ser necessário que as pessoas ganhassem a vida como membros da velha pequena bur-guesia para serem atraídas pelas ideias da pequena burbur-guesia” (2006, p.270). Ele afirma ainda que, a predominância das ideias dominantes não é garantida pelo fato de estas estarem atreladas às classes dominantes, ressalta que o domínio do senso comum: essa forma histórica espontânea de pensamento popular, fragmentada, desconexa e episódica; é composto de todas as formações ideológicas contraditórias. “A relação entre o senso comum e o nível superior da filosofia é ga-rantida pela política” (GRAMSCI apud HALL, 2006, p.272) Por fim, Stuart Hall conclui que o econômico não pode produzir um fechamento final do domínio da ideologia, no sentido estrito de sempre garantir um resultado, assegurar sempre um conjunto particular de correspondências ou fornecer modos particulares de raciocínio a classes específicas. A abertura relativa ou a inde-terminação relativa é necessária ao próprio marxismo enquanto teoria.

Compreender a “determinação” em termos do estabelecimento de limites e parâmetros, da definição de espaços de operação, das condições concretas de existência, do caráter “já dado” das práticas sociais, em vez da previsibilidade absoluta de resultados específicos, é

a única base de um “marxismo sem garantias finais” (HALL, 2006, p. 274).4

Hall retorna a esse debate em 1985, no ensaio, Significação, Representação, Ideologia – Althusser e os debates pós-estruturalistas, onde analisa a contribuição de Louis Althusser para a re-conceituação da ideologia. O filósofo francês publicou em 1965 a primeira edição de sua cé-lebre coletânea de ensaios à qual deu o título Pour Marx. Na década de 1970 a editora brasileira Zahar traduziu sob o título A Favor de Marx. Para Armando Boito Júnior (2015) o trabalho de Althusser criou escola e é uma grande referência, fundamental para aqueles que se dedicam a tarefa de desenvolver e renovar a teoria esboçada por Karl Marx. Os seus trabalhos influencia-ram diferentes domínios do conhecimento: filosofia, sociologia, ciência política, lingüística, an-tropologia e na análise histórica.

Ao produzir esse ensaio, seu objetivo era apresentar uma reflexão geral sobre os ganhos teóricos advindos do rompimento de Althusser com as formulações marxistas clássicas de ideo-logia (HALL, 2006, p. 151). Salienta que as reflexões do filósofo francês abriram uma nova

4Hall tinha uma posição contrária às preeminências do econômico sobre todas as outras instâncias indistintamente.

Como se vê em alguns trabalhos, para Octávio Ianni, organizador de um trabalho clássico no Brasil – coleção gran-des clássicos das ciências sociais – na análise do regime capitalista de produção, Marx não se restringiu às relações econômicas, ao analisar o capitalismo ele apanha os fenômenos como fenômenos sociais totais, nos quais sobressa-em o econômico e o político, como duas manifestações combinadas e mais importantes das relações entre as pesso-as, grupos e classes sociais. Em cada época, prossegue Ianni, as determinações econômicpesso-as, políticpesso-as, religiosas ou outras, organizam-se e determinam-se reciprocamente de modo diverso. No capitalismo, os antagonismos fundados nas relações econômicas adquirem preeminência sobre todos os outros, enquanto determinação estrutural. IANNI, Octávio. Marx. São Paulo: Editora Ática, 1980.

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perspectiva dentro do marxismo. Na análise do ensaio em questão, Hall toma por base as refle-xões do Althusser, que por ora já observamos, complementando com os conceitos de diferença, do Jacques Derrida e da linguagem do Bakhtin, passando por Foucault e Gramsci. O texto inicia a discussão a partir da noção de totalidade construída por Karl Marx, como um conjunto das re-lações que compõem a sociedade, como uma estrutura complexa entre os seus níveis, econômico, político e ideológico. Contrário a ideia de que numa formação social tudo interage com tudo, não possuindo assim prioridades determinantes, Hall recorre às teorizações de Althusser sobre dife-rença, para embasar suas reflexões.

Sua [Althusser] ruptura com a concepção monística do marxismo demandou a teorização da diferença – o reconhecimento de que há distintas contradições sociais cujas origens são também diversas; que as contradições que impulsionam os processos históricos nem sem-pre surgem no mesmo lugar, nem causam os mesmos efeitos históricos. Devemos pensar sobre a articulação entre as diversas contradições, sobre as distintas especificidades e du-rações pelas quais elas operam, sobre as diferentes modalidades nas quais funcionam (2006, p. 152).

Contrário ao pensamento marxista que reconhece que há distintas contradições sociais numa formação social, mas teleologicamente, acredita que haverá uma unidade mais adiante, Hall apóia-se na “(...) noção derridiana de différance – uma diferença que não funciona através de binarismos, fronteiras veladas que não separam finalmente, mas são também places de passa-ge (...)” (2006, p. 33). Os significados são posicionais e relacionais, desta forma, pensar a unida-de com a diferença, significa à constatação unida-de uma unidaunida-de complexa, uma unidaunida-de com diferen-ça, “sem que isso implique o privilégio da diferença em si (2006, p. 154).”

Hall demonstra um particular apreço pelo texto A Favor de Marx, especialmente o capítu-lo “Sobre a contradição e a sobre determinação”, onde apresenta os tipos complexos de determi-nação sem reducionismo a uma unidade simples. A grande preocupação de Stuart Hall neste en-saio é com a questão da determinação, lendo Althusser (A Favor de Marx), forneceu-lhe aquilo que tanta ansiava em sua atividade intelectual, a capacidade de teorizar sobre eventos históricos concretos.

O problema da determinação em última instância ou de uma “correspondência necessá-ria” tornou-se cada vez mais insuficiente para a teorização social com o avanço dos estudos pós-estruturalistas. Hall sustenta que não há lei que garanta que a ideologia de uma classe esteja gra-tuita e inequivocamente presente ou corresponda à posição que essa classe ocupa nas relações econômicas de produção capitalista. Afirma ainda que, a não garantia não implica que a ideolo-gia e a classe não possam se articular de forma alguma ou produzir uma força social capaz de articular uma “unidade na ação”. A Revolução Russa de 1917 é o exemplo mais sintomático e concreto usado por Hall para exemplificar a relação de “uma necessária correspondência

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ideoló-Stuart Hall e os debates marxistas: o legado de um teórico cultural

gica de classe”. Essa revolução não foi produto de todo um proletariado, unido por trás de uma única ideologia revolucionária.

Contudo, como Lênin surpreendentemente observou, 1917 aconteceu de fato ‘como resul-tado de uma situação histórica única, correntes absolutamente dessemelhantes, interesses de classe absolutamente heterogêneos, conflitos políticos e sociais absolutamente contrá-rios... fundiram-se de forma espantosamente harmônica (2006, p. 157).

O exemplo da revolução de 1917 serve para nos afastar das posições clássicas de deter-minação. Pois, o intuito de uma prática política teoricamente informada, esclarece Hall, é provo-car ou construir a articulação entre as forças sociais e econômicas e aquelas formas de política e ideologia que possam levá-las, na prática, a intervir na história de forma progressista. Aqui te-mos uma clara articulação entre estrutura e prática. Neste ponto, o teórico caribenho apresenta sua concepção de estrutura, esta, é o resultado das condições dadas de existência, a estrutura das determinações pode ser o resultado de práticas anteriormente estruturadas. “A prática é a forma como uma estrutura é ativamente reproduzida” (2006, p. 158). Há uma relativa autonomia da prática, de forma que as estruturas exibem tendências – linhas de força, aberturas ou fechamentos que constrangem, modelam, canalizam e, nesse sentido, “determinam”.

Em sua obra A Miséria da Teoria ou um planetário de erros – uma crítica ao pensamento de Althusser, Thompson apresenta severas críticas ao trabalho A Favor de Marx, o seu objetivo era oferecer “correções epistemológicas a um rigoroso filósofo parisiense” (1981, p.13). No catá-logo de erros apontados por Thompson ao trabalho de Althusser, alguns fundamentais, o histori-ador inglês foi inábil ao não reconhecer avanços reais na discussão sobre ideologia apresentada por Althusser, aponta Hall. No ensaio Aparelhos Ideológicos do Estado, esse intelectual caribe-nho também constata uma série de problemas no pensamento althusseriano, quanto ao problema da ideologia, aqui ela aparece como exclusiva de uma classe, de forma funcionalista. “A gia parece exercer a função que dela se demanda – qual seja, reproduzir a dominância da ideolo-gia dominante, exercê-la com eficácia e continuar assim, sem encontrar qualquer ‘contra-tendência” (2006, p. 163).

Ao mesmo tempo em que Hall reconhece avanços nos estudos de Althusser sobre a ideo-logia, aponta também certos obscurecimentos, principalmente no ensaio Aparelhos Ideológicos do Estado. Ao apostar na idéia do descentramento do sujeito, Althusser deixa sem solução a questão da subjetivação e da incorporação subjetiva da ideologia, ainda que reconheça que os sujeitos são interpelados pela ideologia. Observa ainda que, num processo de luta ideológica, as ideologias não se encontram inscritas desde sempre, elas apresentam mudanças de ênfase, num processo constante e sem fim. As reflexões de Hall apóiam-se em Bhatkin, na plurivalência do signo ideológico, em termo marxista, na luta de classe na linguagem. Assim o define a ideologia: sistema de representações – composto de conceitos, ideias, mitos ou imagens – nos quais os ho-mens e as mulheres vivem suas relações imaginárias com as reais condições de existência. Por

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Capoeira – Revista de Humanidades e Letras | Vol.5 | Nº. 1 | Ano 2019 | p. 85

fim, para Stuart Hall, Althusser provocou uma revolução teórica, depois de “Contradição e

So-bredeterminação” o debate sobre a formação social e a determinação5 no marxismo nunca será o

mesmo.

A ideologia como sistema de representação, nas décadas posteriores a publicação desse ensaio, foi um dos grandes objetos de estudo de Stuart Hall. Tendo a mídia como uma grande produtora de representações ideológicas, suas análises voltaram-se para as formas como a ideo-logia opera nesses meios. Em Cultura e Representação, mas especificamente no capítulo O papel da representação, Hall sistematiza sua teoria sobre a prática da representação a partir dos traba-lhos de Derrida, Saussure, Barthes e Foucault, entre outros. Em entrevista realizada em 1994, dizia: “Penso que no manuscrito de 1857 já existe uma noção do real como algo cuja existência só pode ser produzida discursivamente” (2006, p. 338). Ele apresenta a ideologia como sistema de representação, como produção de sentidos pela linguagem. Utiliza como exemplo sua experi-ência social enquanto um sujeito negro, que viveu na Inglaterra mais de trinta anos para demons-trar como o conceito geral de ideologia de Althusser nos permite pensar certas formações ideoló-gicas. No breve exemplo pessoal, relata que na Inglaterra era interpelado como “pessoa de cor”, “preto”, “west indian” ou “imigrante”, enquanto na Jamaica, onde viveu sua juventude e adoles-cência, era tratado como “de cor”. Os “negros” na Jamaica eram o resto – a vasta maioria do po-vo, a gente comum. Ser “de cor” era pertencer ao nível da classe média. O relato foi evidenciado para contrapor a idéia presente em Aparelhos ideológicos de estado de que somos “já e sempre” sujeitos. “Na verdade, somos falados ou falam por nós, nos discursos ideológicos que nos aguar-dam desde o nosso nascimento, dentro dos quais nascemos e encontramos nosso lugar” (2006, p. 179).

A relevância de Gramsci para o estudo de raça e etnicidade foi um ensaio originalmente apresentado no colóquio sobre “Perspectivas teóricas na análise do racismo e da etnicidade”, or-ganizado em 1985 pela divisão de Direitos Humanos e Paz da UNESCO em Paris. Apesar de Gramsci não ter escrito ensaios ou teorizado sobre questões da raça, etnia ou racismo, nem ter analisado em profundidade a experiência colonial ou imperialismo, seus conceitos podem “(...) ser úteis à nossa tentativa de pensar a suficiência dos paradigmas da teoria social nessas áreas”, observa Stuart Hall (2006, p. 282). Esse teórico da cultura, sempre se preocupou em analisar a cena política, econômica e cultural, e via nas obras de Gramsci, uma inspiração intelectual

perti-5 Para Michael Löwy, a partir de 1877 os escritos de Karl Marx e Friedrich Engels significam uma ruptura profunda

com qualquer interpretação unilinear, evolucionista, etapista e eurocêntrica do materialismo histórico, “(...) eles [Marx e Engels] sugerem uma perspectiva dialética, policêntrica, que admite uma multiplicidade de formas de transformação histórica, e sobretudo, a possibilidade que as revoluções sociais modernas comecem na periferia do sistema capitalista e, não como afirmavam alguns de seus escritos anteriores, no centro”. MARX, Karl & ENGELS, Friedrich. Lutas de Classes na Rússia. Organização e Introdução Michael Löwy. São Paulo: Editora Boitempo, 2013.

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Stuart Hall e os debates marxistas: o legado de um teórico cultural

nente para análise das relações sociais contemporâneas. E, outro aspecto importante para a esco-lha deste marxista italiano para a construção do seu ensaio sobre raça e etnicidade, foi porque Gramsci sempre trabalhou dentro do paradigma marxista, revisando, renovando e sofisticando muitos dos aspectos de sua estrutura teórica. Para Hall, Gramsci não foi um “marxista” no senti-do senti-doutrinário, ortosenti-doxo ou “religioso”, ele reconhecia que a estrutura geral da teoria de Marx tinha que ser constantemente desenvolvida teoricamente.

A obra de Gramsci não é uma obra geral das ciências sociais, como são as obras dos “pais fundadores”, a exemplo de Max Weber e Émile Durkheim, com esta afirmação, Hall inicia sua exposição sobre a relevância deste marxista. Seus escritos, por vezes produzidos em condições adversas – como é o caso dos Cadernos do Cárcere, condicionou ao corpo principal de suas ideias a escritos dispersos e fragmentados, desta forma sua produção não aparece como uma obra geral e sintetizada, a exemplos dos “pais fundadores”.

O fato de não ter produzido num nível mais geral de abstração, não o isentou de desen-volver conceitos que permitissem compreender os processos mais amplos. Para Hall, Gramsci compreendeu que os seus conceitos deveriam ser aplicados a estágios específicos do desenvol-vimento do capitalismo, desenvolveu suas ideias dentro do quadro geral da teoria de Marx. O próprio Marx, adverte Hall, afirmou que poderíamos “pensar o concreto” através desses níveis sucessivos de abstração, a produção do concreto no pensamento como algo que ocorre através de uma sucessão de aproximações analíticas.

Temas abordados por Gramsci, tais como, a situação política italiana nos anos 30, demo-cracia de classe no ocidente, socialismo, revoluções, hegemonia, a emergência do fascismo, o moderno estado capitalista, entre tantos outros, requeriam uma “(...) análise das conjunturas his-tóricas ou dos aspectos políticos e ideológicos específicos – as dimensões tão frequentemente ignoradas na análise das formações sociais do marxismo clássico” (HALL, 2006, p. 281).

Stuart Hall compreende categoricamente que Gramsci não escreveu diretamente sobre os problemas do racismo, mas reconhece nos seus temas abordados, “linhas teóricas e intelectuais de ligação mais profundas com essas questões contemporâneas do que poderia sugerir um breve olhar sobre seus escritos (2006, p. 284).” Tais constatações são evidentes quando relacionamos a sua formação teórica e a sua experiência política. Gramsci nasceu na Sardenha, esta região vivia uma relação “colonial” com a Itália continental, observa Hall, e acrescenta, ele tinha consciência que as questões de classe eram perpassadas pelas diferenças regionais, culturais e nacionais, pe-los contrastes entre o desenvolvimento regional e nacional na Itália.

Gramsci faz parte do repertório teórico de Hall, dado aos ataques rigorosos que esse teó-rico italiano direcionou contra o “economicismo” e o “reducionismo”, dentro do marxismo. A crítica de Hall a centralidade do econômico, não significa que o mesmo procurou ignorar a

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pode-Capoeira – Revista de Humanidades e Letras | Vol.5 | Nº. 1 | Ano 2019 | p. 87

rosa função que as fundações econômicas de uma ordem social ou das relações econômicas do-minantes de uma sociedade, exercem na forma e estruturação de todo o edifício da vida social. Para ele, os marxistas “economicistas” simplificaram o conceito de determinação, o que em Marx, é bastante complexo. Gramsci, no ensaio “O Príncipe Moderno”, discute como se analisa uma conjuntura histórica específica, nesse trabalho, substitui a abordagem reducionista de inter-pretação do desenvolvimento político e ideológico a partir de suas determinações econômicas, por um tipo de análise mais complexa. Hall se aproxima desta forma de abordagem, que ao invés de caminhar para uma “determinação de mão única”, prefere as “relações de força”, abordagens apresentam os “vários momentos ou níveis” do desenvolvimento de uma determinada conjuntu-ra.

É o problema das relações entre a estrutura e a superestrutura que deve ser adequadamen-te postulado, para que as forças ativas na história de um período específico sejam corre-tamente analisadas e as relações entre elas compreendidas (GRAMSCI apud HALL, 2006, p. 286).

Pensar nas relações de força evita-se reduzir a esfera das superestruturas políticas e ideo-lógicas à estrutura ou a base econômica, salienta Stuart Hall. Pautar-se numa concepção baseada na “(...) convicção férrea de que existem leis objetivas de desenvolvimento histórico semelhantes à lei natural, junto com a crença em uma teleologia predeterminada, como a da religião (...) (GRAMSCI apud HALL, 2006, p. 287)”, é identificar incorretamente com o materialismo histó-rico. O conceito de hegemonia elaborado por Antonio Gramsci foi um dos seus impulsos para entender as sociedades como totalidades complexamente estruturadas, com níveis de articulação combinado distintamente, de forma que cada combinação origina uma nova configuração de for-ças sociais.

A categoria conceitual, relações de força, inspirou Hall em suas análises conjunturais e foi amplamente utilizada em seus estudos sobre cultura e identidade, mais precisamente em seus artigos “Notas sobre a desconstrução do ‘popular’ e no ensaio “Que ‘negro’ é esse na cultura ne-gra?” Nesses debates, ele discute, como os agentes sociais numa cultura de classe ou os ativis-tas/militantes das organizações negras tendem a introduzir a ideia de que se busca a vitória abso-luta ou uma total incorporação de um conjunto de forças em outra. O que interessa a Hall, em sua leitura gramsciana, são os movimentos das forças históricas, no terreno concreto da luta do de-senvolvimento político e social. De forma que, a ideia da vitória “absoluta” e total da burguesia sobre as classes trabalhadoras ou a total incorporação da classe trabalhadora ao projeto burguês é totalmente estranha à definição de hegemonia de Gramsci. A política, desta forma, ocupa uma centralidade no pensamento deste intelectual diaspórico, ao apresentar uma “(...) prioridade sobre o aspecto militar e somente ela cria as possibilidades de manobra e movimento” (GRAMSCI

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Stuart Hall e os debates marxistas: o legado de um teórico cultural

Em suas discussões teóricas sobre cultura e nas análises sobre determinadas conjunturas específicas ele deixa evidente que a hegemonia tem um caráter multidimensional, ela não pode ser construída ou sustentada sobre uma única frente (por exemplo, a econômica). A hegemonia enquanto “bloco histórico”, além de ter seus elementos de liderança, também apresenta em sua composição estratos das classes subalternas e dominadas que foram conquistadas através de con-cessões e compromissos específicos, por vezes por meio do consentimento popular, formando uma constelação social, sendo que estas classes não deixam de ocupar uma função subordinada.

É justamente no interior desse quadro de referências gramscianas que Stuart Hall elabora suas análises sobre o racismo, enquanto um fenômeno social. Apesar de suas características ge-rais, o que mais interessa a Hall são as formas pelas quais essas características são modificadas e transformadas pela especificidade histórica. A estruturação racial e étnica da força de trabalho e sua composição de gênero, o faz pensar no caráter não homogêneo do “sujeito de classe”. Nesse sentido ele aponta para a necessidade de abordagens que privilegiem a estruturação racial das classes trabalhadoras, e que se desprenda do pressuposto: devido ao modo de exploração frente ao capital ser singular, o “sujeito da classe” explorado pelo capital deve ser o mesmo economi-camente, mas também política e ideologicamente. Os modos de operação da exploração dos dis-tintos setores da força de trabalho não são idênticos.

Seja qual for o caso, a análise de Gramsci, que diferencia o processo condicional, os mo-mentos e o caráter contingente da passagem de uma “classe em si” a uma “classe por si” ou dos momentos do desenvolvimento “econômico-corporativo” ao “hegemônico”, pro-blematiza radicalmente essas noções simplistas de unidade. Mesmo o momento “hegemô-nico” não é mais concebido como um momento de unidade simples, mas como um pro-cesso de unificação (nunca totalmente alcançado), fundado nas alianças estratégicas entre os setores, não em sua identidade pré-determinada (HALL, 2006, p. 311).

À guisa de conclusão

Os críticos6 de Stuart Hall, de certa forma, não duvidam do seu caráter anticapitalista,

mas lamentam uma ausência de uma crítica da economia política. Acredita-se que ele se distan-ciou da crítica da economia política, do materialismo, em suas produções teóricas nas décadas posteriores a estes três ensaios analisados, ou seja, a partir dos anos finais da década de 1980, houve um abandono das questões de classes e transformação social. Ledo engano.

Hall sempre apresentou um diálogo constante com o marxismo, sua relação com o mate-rialismo sempre se pautou numa noção problematizadora, na esteira de Antonio Gramsci, Louis Althusser e Mikhail Bakhtin, procurou não estabelecer um vínculo direto entre o materialismo e economicismo, fazendo com que seu método de investigação evidenciasse uma articulação entre

6Ver STEVANIN, Luiz Felipe Ferreira. Sobre pontes e abismos: aproximações e conflitos entre os estudos culturais

e a economia política da comunicação a partir da obra de Stuart Hall. Matrizes. Vol. 10, n.03, set/dez, 2016, pp. 173-186.

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as instâncias políticas, ideológicas e econômicas. “Os homens fazem sua própria história, mas

não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam direta-mente, legadas e transmitidas pelo passado” (MARX apud STEVANIN, 2016).

Quando Hall afirma que é na luta ideológica que se dá a luta de classe, elege o campo da ideologia como categoria de análise teórica, conforme já apresentamos, sua noção de ideologia, envolvia também elementos da linguagem (estudos bakhtinianos) e estava condicionada aos as-pectos históricos e sociais, ou seja, as condições sociais concretas de existência, para compreen-são do real histórico.

REFERÊNCIAS

ALTHUSSER, Louis. Por Marx. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2015.

BURKE, Peter. O que é História Cultural? Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005.

HALL, Stuart. Da diáspora – identidades e mediações culturais. (Org. Liv Sovik) Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006.

____________. Cultura e Representação. Rio de Janeiro: PUC-Rio, Apicuri, 2016. IANNI, Octávio. Marx. São Paulo: Editora Ática, 1980.

MATTELART, André & NEVEU, Érik. Introdução aos estudos culturais. São Paulo: Parábola Editoral, 2004.

MARX, Karl & ENGELS, Friedrich. Lutas de Classes na Rússia. Organização e Introdução Michael Löwy. São Paulo: Editora Boitempo, 2013.

MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. Tradução Conceição Jardim e Eduardo Lúcio Nogueira. Lisboa: Presença; São Paulo: Martins Fontes, [S.d.]. 2 v.

STEVANIN, Luiz Felipe Ferreira. Sobre pontes e abismos: aproximações e conflitos entre os

estudos culturais e a economia política da comunicação a partir da obra de Stuart Hall.

Matrizes. Vol. 10, n.03, set/dez, 2016, pp. 173-186.

THOMPSON, Edward P. A miséria da teoria ou um planetário de erros – uma crítica ao

pensamento de Althusser. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1981.

WILLIAMS, James. Pós-estruturalismo. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2012.

Eduardo Antonio Estevam

Professor Adjunto da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afrobrasileira (Unilab/Campus Malês).

Referências

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