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O IMAGINÁRIO SOCIAL NA OBRA DE EVALDO CABRAL DE MELLO NA PERSPECTIVA DE CORNELIUS CASTORIADIS

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O IMAGINÁRIO SOCIAL NA OBRA DE EVALDO CABRAL DE MELLO NA PERSPECTIVA DE CORNELIUS CASTORIADIS

MOURA, Maria Lenúcia de Resumo:

Este artigo discorre sobre o imaginário social, conceito desenvolvido por Cornelius Castoriadis e utilizado por Evaldo Cabral de Mello em Rubro veio, obra cujo objetivo é entender a contestação do poder colonial que teve lugar em Pernambuco até as revoluções liberais do século XIX. A concepção de imaginário social de Castoriadis - dimensão cognitiva e reprodutiva das próprias relações sociais - é o processo pelo qual os grupos sociais se instituem como tais. O emprego deste conceito por Mello procura compreender como os pernambucanos de seiscentos buscaram empreender esforços na guerra contra os holandeses. A instituição do nativismo é perpassada pelo simbólico, partindo este do natural, do histórico, do racional. Assim, o nativismo para os pernambucanos foi projeção de uma necessidade real, surgida na guerra contra os holandeses, modificando-se ao longo de dois séculos e meio pelas necessidades do cenário, onde trafegavam os descendentes daqueles que o instituíram.

Palavras-chave: imaginário social, nativismo, simbolismo.

THE SOCIAL IMAGINARY IN THE WORK OF EVALDO CABRAL DE MELLO IN THE PERSPECTIVE OF CORNELIUS CASTORIADIS

Abstract:

This article discusses the social imaginary, concept developed by Cornelius Castoriadis and used by Evaldo Cabral de Mello in work whose objective is to understand the response of colonial power which took place in Pernambuco to the liberal revolutions of the nineteenth century. The concept of social imaginary of Castoriadis - cognitive and reproductive dimension of social relations themselves - is the process by which social groups are instituted as such. The use of this concept by Mello seeks to understand how the Pernambuco six hundred sought to make efforts in the war against the Dutch. The institution of nativism is permeated by the symbolic starting this natural, history, rational. Thus nativism for Pernambuco was projecting a real need, which arose in the war against the Dutch, changing over two and a half centuries the needs of the scene, where driving along the descendants of those who instituted.

Keywords: social imaginary, nativism, symbolism.

Recebido: 16/10/2017 Aprovado: 21/11/2017

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Introdução

Este trabalho busca adentrar no rico universo da obra Rubro veio1, de Evaldo Cabral de Mello, e verificar a sua abordagem do imaginário social na perspectiva de Cornelius Castoriadis. Este texto foi construído a partir das reflexões feitas durante a disciplina de Tópicos de Teoria da História e Historiografia Brasileira, ministrada na Universidade Federal de Minas Gerais pelo professor José Carlos Reis, incentivador de leituras que busquem novas interpretações da História do Brasil. Não ouso dizer que o texto pretende contribuir para a leitura da obra deste historiador regionalista, haja vista o próprio Evaldo Cabral de Mello citar Cornelius Castoriadis no prefácio de sua obra, mas não oferecer uma relação mais explícita entre Rubro veio e A

instituição imaginária da sociedade. Prefiro dizer, na qualidade de pesquisadora iniciante, que os

calouros têm um impulso ao risco deliberado e é assim que me sinto: arriscando-me no denso universo destas obras.

Para tanto, inicio falando um pouco da obra aqui retratada no intuito de expor a complexidade com que esta se apresenta, não apenas na forma de escrita, assumida pelo autor como não cartesiana, mas pela quantidade de fontes utilizadas, bem como pela narrativa que compreende o contexto do objeto da obra. A mencionada complexidade se apresenta inicialmente nos prefácios da segunda (1997) e da terceira edição (2008). Nestes, o autor, além do revisionismo de praxe, reitera alguns pontos e move de lugar alguns capítulos2, o que nos leva a percorrer todas as edições em busca de um novo olhar.

Rubro veio trata da sociedade do Nordeste açucareiro e tem como objetivo entender a

contestação do poder colonial que teve lugar em Pernambuco até as revoluções liberais do século XIX, quando esta sociedade, segundo o próprio autor, deixou de ser socialmente atuante. Ao percorrer as páginas do livro, confrontamo-nos logo de início com uma infinidade de fontes historiográficas e não historiográficas – respectivamente, no primeiro e no segundo capítulos –, produtos de sua incursão aos acervos documentais de vários países, quando de sua vida como diplomata3, tais fontes são essenciais a compreensão do imaginário e da cultura histórica nativista no período holandês. As memórias que o autor apresenta têm diversos narradores4 do

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Evaldo Cabral de Mello em Rubro veio trata da “restauração pernambucana no imaginário nativista, as conexões entre ocupação holandesa e nativismo ao nível das representações mentais vigentes na capitania e depois província de Pernambuco entre o período batavo e os últimos decênios do século XIX”.(MELLO: 2008; p.13) Segundo o autor, Rubro veio é uma extensão do que fora trabalhado em Olinda restaurada.

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O capítulo 4º da segunda edição, “Holanda ou Olinda”, toma o lugar do 10º capítulo na terceira edição; e “Os alecrins no canavial”, o 10º capítulo na segunda edição, toma o lugar do 4º. Vale ressaltar que o autor não avisa ao leitor desta mudança, nem mesmo a justifica. Uma justificativa pode ser encontrada numa entrevista concedida a Lilia Schwarcz e Heloísa Maria Murgel Starling, realizada em 2005.

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Ocupou inúmeros cargos, prestando serviço ao Itamaraty em diversos países como UEA, Suíça, Espanha, França, Portugal, Peru e nas Nações Unidas. A carreira de diplomata facilitou o contato com acervos e arquivos de bibliotecas em vários países, bem como a livrarias, local de frequentes visitas.

4 Há uma infinidade de memórias narradas pelo autor. Exponho algumas para situar o leitor no rico universo de diálogo que o autor travou na escrita desta

obra. Estes são: Oliveira Lima, Conde das Galveias, Fernando Gama, Jaboatão, Loreto Couto, Rafael de Jesus, Brito Freyre, Koster, D Pedro II, Gilberto Freyre, Ernesto Veiga de Oliveira, Fernando Galhano, Alfredo de Carvalho, Herbert H. Smith, Antônio Pedro de Figueiredo, Diogo Lopes de Santiago, Antonio Joaquim de Melo, Câmara Cascudo, Varnhagen, Abreu de Lima, Padre Lino Carmelo, Muniz Tavares, dentre outros.

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período, narrações escritas nas crônicas luso-brasileiras impressas na segunda metade do século XVII, memórias ainda muito vivas no século XVI, que se alimentaram nos monumentos, nas festividades, na iconografia e na toponímia:

Ao longo do século XVIII, empobrecera-se a tradição oral, ainda quente nos decênios seguintes à restauração, quando ainda viviam os que a haviam feito ou assistido aos acontecimentos e também os que haviam escutado sua narração da boca de uns e de outros. (MELLO, 2008, p. 26).

Algumas das fontes historiográficas5 situam-se num universo de louvor à matéria tratada, haja vista algumas destas terem sido “encomendadas” por alguns personagens, como é o caso do

Castrioto, Valeroso Lucideno e História da guerra de Pernambuco, que Fernandes Vieira tivera

o cuidado de mandar fazer. A esse respeito, o autor reitera que

a reconstrução do imaginário da restauração pernambucana pressupôs apenas que as representações, verdadeiras ou falsas, de um grupo social acerca de seu passado podem ser tão relevantes para explicar seu comportamento quanto seus interesses materiais. (MELLO, 2008, p. 19).

Desta forma o tom panegírico de algumas obras em nada as desqualifica.

Recomendo ao leitor antes de ler o referido livro leia Olinda restaurada para uma melhor compreensão, posto que trata dos níveis da economia canavieira sob o impacto da guerra holandesa. É válido dizer que esta leitura não se faz necessária à compreensão do Rubro veio, mas corrobora à ampliação da perspectiva do leitor em relação ao objeto da obra citada.

O objeto desenvolvido pelo autor tem como cenário a Zona da Mata de Pernambuco, com prolongamento espacial para Alagoas, Paraíba e Rio Grande do Norte, compreendendo dois séculos e meio – do século XVI ao XVIII –, repercutindo no sistema de representações mentais e na conjuntura econômica, política e social. Sobre o imaginário social, preliminarmente afirmo que este foi além do alcance geográfico referido, chegando mesmo ao Ceará. Mais adiante, reitero este pensamento, ao projetar algumas interrogações para além do objeto ora abordado neste trabalho, numa tentativa de remeter a novas ideias.

5 Dentre as fontes examinadas, encontram-se: Memórias diárias de la guerra del Brasil (1654), de Duarte de Albuquerque Coelho, Nova Lusitânea ou

História da guerra brasílica (1676), de Francisco de Brito Freyre, História do Portugal restaurado (1679), do Conde de Ericeira, Epanáforas de várias histórias portuguesas (1660), de D. Francisco Manuel de Melo.

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O Imáginário Social

Devo prevenir o leitor logo de início que o conceito de imaginário aqui abordado não se refere à identidade, embora numa primeira leitura possamos escorregar no conceito e cometer o engano de empregá-lo. O próprio Mello em entrevista a Lilia Schwarcz e Heloísa Maria Murgel Starling, realizada em 2005, aborda esta questão ao ser perguntado se fazer uma história de Pernambuco implicaria nomear uma identidade pernambucana, ele foi enfático:

Não há identidade pernambucana nenhuma. Identidade é um conceito que abomino. O que é identidade? É aquilo que permanece igual a si mesmo. É, portanto, o conceito mais anti-histórico que você pode conceber. O que existia era uma série de atitudes, de comportamentos, de mentalidades que desapareceram no tempo. Hoje você já não encontra, aliás, o pernambucano dos meus livros, o de antigamente, que era bem mais interessante do que o atual, que está abrasileirado. Tanto que, à proporção que eu cheguei ao tempo do império, dei um pulo grande, da independência aos últimos dias do Segundo Reinado. (SCHWARCZ; STARLING, 2008, p. 160).

O autor desconstrói a possibilidade de uma identidade pernambucana. Aqui há a possibilidade de uma outra leitura, segundo a qual a não aceitação da identidade, por parte do autor, parece ter uma conotação impositiva. Mas afinal, o que ele faz ao longo da obra não é construção de uma identidade? Esta indagação insere-se apenas como provocação ao leitor, haja vista não ser o foco deste trabalho.

Desta forma, problematizo o que Evaldo Cabral de Mello denomina de imaginário social em sua obra. Como este conceito é retratado por Cornelius Castoriadis? Qual a relevância do seu emprego em Rubro veio? Como este conceito pode ajudar o leitor a compreender a complexidade com que o autor trata o seu objeto de estudo? No percurso do texto, tento elucidar estas questões, embora, como já foi frisado pode ser uma empreitada ousada demais, haja vista o próprio Evaldo Cabral não se debruçar em demasia sobre o conceito tratado por Castoriadis.

O conceito de imaginário já foi trabalhado por alguns autores, a exemplo de Henri Lefevbre. Para Cornelius Castoriadis consiste em ligar símbolos,

A expressão “imaginário” será empregada, (...) mas, na de “imaginário social” formulada por C. Castoriadis, para quem o imaginário não é uma super estrutura ideológica, mas uma dimensão cognitiva e reprodutiva das próprias relações sociais, é o processo pelo qual os grupos sociais se instituem como tais. Este conceito engloba uma faixa ampla de conteúdos ideológicos, desde a invenção pura e simples e a falsificação histórica, até os meros deslocamentos de significado, através dos quais o simbólico, linguagem do imaginário, gera uma série de conotações. (MELLO, 2008, p. 14).

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As fontes para o estabelecimento do conceito de imaginário surgem densamente a partir do terceiro capítulo de Rubro veio, quando o autor narra a articulação em torno do discurso do nativismo e de seus topoi. Para compreender como num espaço de duzentos anos os holandeses passaram de invasores repudiados a elementos exaltados em verso e prosa pelos herdeiros do nativismo, adentrasse no universo de Cornelius Castoriadis e no seu conceito de imaginário social. Iniciando a discussão Castoriadis emprega o sentido corrente do termo imaginário como alguma coisa “inventada” – quer se trate de uma invenção “absoluta” (uma história imaginada em todas as suas partes), ou de um deslizamento, de um deslocamento de sentido, onde símbolos já disponíveis são investidos de outras significações, que não são suas significações “normais” ou “canônicas”.

A despeito das teses que perpassam a obra de Castoriadis o interesse aqui é pelo imaginário, categoria apresentada pelo autor para explicar o movimento por meio do qual uma sociedade se define e define suas necessidades. Nesse sentido, nossa atenção se voltará para o terceiro capítulo, “A instituição e o imaginário: primeira abordagem”, em que a tese sobre o conceito em apreço melhor se explica.

O autor busca uma discussão sobre a alienação para explicar o que vem a ser instituição. Enquanto conceito discorda de que a alienação esteja impregnada na estrutura de classe, pois ultrapassa essa referência existindo para além das classes, muito embora não sobreviva sem elas6: “A alienação apresenta-se de início como alienação da sociedade às suas instituições, como autonomização das instituições com relação à sociedade” (CASTORIADIS, 2000, p. 139-140).

O questionamento econômico-funcional da instituição se faz pela visão que quer tanto explicar sua existência quanto suas características no espaço ocupado pela instituição na sociedade e seu papel na economia de conjunto da vida social7. A contestação central recai sobre o vazio frente ao preenchimento das “reais” necessidades da sociedade. E nesse sentido, o autor assinala que “A visão funcionalista só pode realizar seu programa se ela se outorga um critério da realidade da necessidade de uma sociedade” (MELLO, 2008, p. 140-141).

A partir dessa premissa, o simbólico surge como elemento central da constituição da instituição, destarte esta última não se reduzir ao simbólico, contudo só exista nele. O simbólico, segundo o Mello, está indissociavelmente entrelaçado ao mundo social -histórico, lembrando ainda que a escolha de um símbolo não é inevitável nem aleatória. Tampouco o simbolismo se caracteriza pela neutralidade ou é adequado ao funcionamento dos processos reais8. Segundo Mello,

6 O autor destaca esta prerrogativa apoiado pelo parâmetro da existência da alienação em sociedades sem classes. 7 Não há contestação com relação à função vital que a instituição ocupa, mas às limitações daí decorrentes.

8 “Todo simbolismo se edifica sobre as ruínas dos edifícios simbólicos precedentes, utilizando seus materiais – mesmo que seja para preencher as

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A sociedade constitui seu simbolismo, mas não dentro de uma liberdade total. O simbolismo se crava no natural e se crava no histórico (ao que já está lá); participa, enfim, do racional. Tudo isso faz com que surjam encadeamentos de significantes, relações entre significantes e significados, conexões e consequências que não eram nem visadas, nem previstas. (...) o simbolismo determina aspectos da vida da sociedade (e não somente o que era suposto determinar) estando, ao mesmo tempo, cheio de interstícios e graus de liberdade. (CASTORIADIS, 2008, p. 153).

Segundo o autor reside nessas características o problema, para a sociedade, da natureza simbólica de suas instituições. No entanto este problema não se coloca de forma insolúvel e não é suficiente para a compreensão da autonomização das instituições. A utilização do simbólico pelo sujeito pode se dar de forma lúcida ou refletida, ao mesmo tempo em que o simbólico pode deixar-se dominar pelo sujeito. Um simbolismo é dominável quando remete a algo que não é simbólico.

Nos entraves entre o simbólico e o imaginário Mello sugere que o simbólico deve ser utilizado pelo imaginário para existir, para que passe do “virtual” para qualquer coisa a mais, bem como o simbolismo necessita do imaginário, haja vista este ser encarado como uma coisa que não é.

Para melhor explicar este fato recorro a um exemplo muito pertinente dado por Castoriadis, que tem sua referência na Bíblia Sagrada. Os judeus, tendo descoberto um homem que trabalhava no Sabá, o que era proibido por lei, o levam a Moisés. A lei não fixava nenhuma pena para a transgressão, mas o senhor se manifestou a Moisés e exigiu que o homem fosse lapidado. Diz Castoriadis.

Lembremos que o próprio senhor é o imaginário. Por trás da lei que é real, uma instituição social efetiva, mantém-se o Senhor imaginário que apresenta-se como sua fonte e sanção final. A existência imaginária do Senhor é racional? Dir-se-á que numa etapa da evolução das sociedades humanas, a instituição de um imaginário investido de mais realidade do que o real – Deus é mais genericamente um imaginário religiosos – é “conforme” as finalidades da sociedade, decorre de condições reais e preenche uma função essencial”.(CASTORIADIS, 2008, p. 155-156)

A utilização do simbólico pelo imaginário pressupõe que a sociedade produz este imaginário para o seu funcionamento. É no núcleo deste imaginário e através de todas as suas expressões que se encontra algo de irredutível ao funcional, a sociedade faz um investimento de si e do mundo, não sendo este um sentido exigido pelos fatores reais, mas antes é este sentido que dá importância e um lugar a estes fatores no universo que constitui para si a sociedade.

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O Sentido da Alienação no Imaginário em Castoriadis

Está claro que a instituição é uma rede simbólica que recebe o aval da sociedade, sendo o lugar onde se complementam um componente imaginário e um funcional. Para Castoriadis (2000) a alienação é a autonomização e a supremacia do imaginário na instituição “que propicia a autonomização e a dominância da instituição relativa à sociedade” , que passa a fazer parte da materialidade da vida social. Contudo, a sociedade “não reconhece no imaginário das instituições seu próprio produto” (CASTORIADIS, 2000, p. 160).

Esta relação, entre o imaginário, a sociedade e a instituição se consolida nos problemas reais. Ao mesmo tempo em que o imaginário só se projeta pela necessidade de resolução de um problema real, os homens somente chegam à resolução deste problema porque utilizam o imaginário. Além disso os problemas surgidos num contexto dado, numa determinada sociedade, partiram de uma imaginária central, que não significa “invenção”, algo que tenha surgido do vazio, mas as problemáticas surgidas fazem parte da forma como esta sociedade se insere no mundo e se vê nele. A esse respeito, afirma Castoriadis (2000):

O homem não é essa necessidade que comporta seu “bom objeto” complementar, uma fechadura que tem sua chave (a encontrar ou fabricar). O homem só pode existir definindo-se cada vez como um conjunto de necessidades e de objetos correspondentes, mas ultrapassa sempre as definições – e, se as ultrapassa (não somente em um virtual permanente, mas na efetividade do movimento histórico), é porque saem dele próprio, porque ele as inventa (não arbitrariamente por certo, existe sempre a natureza, o mínimo de coerência que a racionalidade exige e a história precede), portanto que ele as faz fazendo e se fazendo, e nenhuma definição racional, natural ou histórica permite fixá-las em definitivo. (CASTORIADIS, 2000, p. 164).

O autor considera que não se podem compreender as instituições apenas como uma rede simbólica, destarte esta rede remeter a algo fora do simbolismo. Desta forma, para compreender como uma sociedade escolhe seu simbolismo é necessário ultrapassar as considerações formais ou mesmo estruturais. Para tanto faz-se imprescindível captar as significações que qualquer símbolo carrega. Muito embora, por se tratar da sociedade, a “reconstrução dos códigos é muito mais radical, e muito mais profunda – em suma, a constituição dos signos em função de um sentido é um processo infinitamente mais complexo”. (CASTORIADIS, 2000, p. 156.) A consideração do sentido mais simples, como resultado da diferença entre os signos, transforma as condições necessárias de leitura da história em condições suficientes para sua existência, que por certo, para o autor, serão as mesmas, pois só existe história porque os homens comunicam e cooperam num meio simbólico.

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Contudo, não podemos precisar uma sucessão do simbolismo como algo dado, partindo da compreensão de que a história existe nas e pelas várias formas de linguagem e está em constante criação. Em outros termos, não se pode eliminar a questão histórica, já que esta estabelece a produção de novos sistemas de significados e significantes, que são coletivos e não individuais, pois o indivíduo produz fantasmas individuais e não instituições. Nos termos do próprio pensador, “A história é impossível e inconcebível fora da imaginação produtiva ou

criadora, do que nós chamamos de imaginário radical, tal como se manifesta ao mesmo tempo e

indissoluvelmente no fazer histórico” (CASTORIADIS, 2000, p. 176) e na constituição de um universo de significações.

Estas significações constituem e articulam o mundo social. Assim, a sociedade elabora uma imagem de mundo e produz um conjunto de significantes, que devem ter o lugar que importa para a coletividade e para sua ordem. Neste fazer efetivo, ligam-se as imagens tanto do mundo como de si baseadas nas necessidades.

Guerra, Sangue, Vidas e Fazendas: Simbolismo, Imaginário e Nativismo

Os conceitos chaves da abordagem de Castoriadis sobre a instituição imaginária da sociedade e a construção que faz da instituição nos transportam à constituição do imaginário que cerca o nativismo pernambucano. A construção narrativa de Evaldo Cabral de Melo, que dispensa apresentações, nos remete de início ao equívoco de dispensar os conceitos trabalhados por Castoriadis. No entanto, numa aproximação maior com o Rubro veio (MELLO, 2008), percebemos a imersão/apropriação que o autor desta obra faz daqueles conceitos de Castoriadis.

A denominação de imaginário social, em Rubro veio, partindo do contexto da própria obra – a guerra pela restauração de Pernambuco na segunda metade do XVI é encontrada numa coletividade abalada pela mudança repentina de senhor, com implicações econômicas, sociais, políticas e religiosas, cenário perfeito para a construção de novas necessidades, sejam de ordem individuais e/ou coletivas, que articulariam o discurso de formação da instituição do nativismo, o qual na esteira da restauração pernambucana articula o discurso do primeiro nativismo na busca por definir suas relações com a Coroa Portuguesa entre 1654 e o Segundo Reinado. Desse modo,

Os vínculos entre Pernambuco e Portugal foram assim reformulados a partir do papel exercido pela açucarocracia na liquidação do domínio holandês, apresentada como realização sua, a maneira do que alegava a Câmara de Olinda desde 1651, ainda em

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plena guerra. É, alias, a esta instituição eminentemente açucarocrática que caberá formular inicialmente o discurso político do nativismo. (MELLO, 2008, p. 92).

O nativismo foi a instituição criada pelo imaginário pernambucano para dar retorno ao contexto em que estavam inserido. Espoliado pela guerra, fragilizado economicamente e abandonado por seu rei, o discurso da nobreza da terra, faz frente às necessidades de uma coletividade ansiosa por adentrar no universo da Corte através de cargos públicos. Com base neste desejo, “Os filhos e moradores da terra”9

enviam memorial a D. João IV estabelecendo um marco de alcance de suas pretensões.

Reflexões Acerca do Alcance Geográfico do Nativismo Pernambucano

O imaginário social, partindo da existência da instituição, permitiu com que os pernambucanos lutassem pelo reconhecimento de seus feitos com legítima arguição frente à Coroa Portuguesa. Evaldo Cabral de Mello (2008), mesmo não revelando a apropriação do imaginário em Castoriadis (2000), faz uso dos conceitos de instituição e imaginário, haja vista ser o nativismo a instituição criada a partir das necessidades e envolta em pressupostos ideológicos que se explicam na obra.

Para além das ideias desenvolvidas neste artigo afirmo que o imaginário, que justifica ao longo do tempo o nativismo pernambucano, teve seu alcance geográfico bem maior do que o que foi pensado por Evaldo Cabral de Mello.

Embora Evaldo Cabral de Mello cite o Ceará apenas na perspectiva geográfica, ouso dizer que parte do universo imaginário construído em torno da invasão holandesa fez parte do imaginário cearense sob a forma de lendas. No interior do Ceará ainda é relativamente comum ouvir relatos dos mais velhos sobre as “botijas” cheias de riquezas que foram enterradas por viajantes perseguidos10.

Em conversas com idosos que viveram na capital do Ceará11, confirmamos uma série de lendas em torno das “botijas” de ouro enterradas por viajantes perseguidos, lendas estas também replicadas no sertão do Ceará. Os idosos relataram que as pessoas sonham com os santos que os

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Nesta referência, há a equiparação entre mazombos e reinóis, que são, respectivamente, os filhos da terra e os moradores da terra.

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Nas lendas não fica clara a origem destes viajantes. No entanto, os santos ao quais se devem recorrer fazem parte do panteão de santos que perpassavam o imaginário português, Santo Antônio e Nossa Senhora da Luz.

11 As entrevistas não constam no artigo pelo fato de que o mesmo não tinha como pretensão abordar o assunto e sim, o imaginário social, com base em

Castoriadis trabalhado na obra de Evaldo Cabral. No entanto, durante a pesquisa bibliográfica – feita em decorrência da disciplina cursada – várias ilações foram surgindo à medida que a leitura se aprofundava. Não escapa aos olhos do pesquisador os fatos, por esse motivo, as relações “enxergadas” teriam que fazer parte do artigo, mesmo não sendo seu foco.

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teria levado ao local da “botija”, mas que ao acordar o indivíduo que teve o sonho revelador teria que realizar uma série de rituais para enfim desenterrar a “botija”. Alguns idosos relataram serem contemporâneos de pessoas que haviam encontrado “botijas”.

Estas lendas são acompanhadas de um ritual para encontrá-las, do qual participam os santos, em especial Santa Clara e Santo Antônio. Estes últimos teriam a função de indicar o local exato onde estariam enterradas as botijas, após um ritual de rezas. Entre o panteão de santos citados no Rubro Veio e os citados pelos idosos cearenses, há uma diferenciação, os idosos citam Santa Clara, enquanto que Cabral cita Nossa Senhora da Luz.

A perspectiva aqui desenvolvida ainda necessita de estudos aprofundados não apenas da obra de Mello e Castoriadis, bem como do papel do imaginário cearense em sua relação com a invasão holandesa e, mesmo, do pensamento cearense sobre o Brasil.

Para dar conta dessa tarefa, ou seja, de traçar uma relação entre o imaginário da restauração pernambucana e as lendas das botijas no Ceará, faz-se necessário uma ampla investigação – o que não estava nas pretensões desse artigo, como já anunciadas acima – haja vista, no relato dos idosos tanto do interior do Ceará quanto da capital, não ficar claro o porquê desses viajantes estarem em fuga e nem o porquê de enterrarem o ouro.

O que se faz evidente é a extrema relação dessas lendas com a instituição do nativismo pernambucano. Outra hipótese, seria a incorporação do imaginário através da literatura que teria chegado ao Ceará. O lendário cearense aprovisionou-se do imaginário pernambucano.

Essa relação pode ser ampliada através da desmistificação do ser cearense que poderá ser explicada na leitura que cearenses fazem do Brasil ou mesmo de si.

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Considerações Finais

Como intérprete do Brasil Mello elabora extensa literatura para tratar da restauração pernambucana. A partir de Olinda restaurada: guerra e açúcar no Nordeste 1630-1654, trata da expulsão dos holandeses argumentando que o feito foi fruto dos recursos da sociedade açucareira, tratando no Rubro veio da restauração e do imaginário nativista.

Imaginário social este que possibilitou, partindo da instituição, a luta pelo reconhecimento de seus feitos frente a coroa portuguesa. Herdeiro da restauração o nativismo encontrou forças para galgar junto à coroa portuguesa mais regalias, uma vez que se encontravam abandonados. Nessa singularidade da história pernambucana frente à brasileira, como cita o autor, o imaginário foi a via pela qual o nativismo criou formas de “sentimento local” que impulsionaram a guerra. Válido dizer, como afirma MELLO (2001), que nossos dicionários não conferem a definição de nativismo um sentido amplo, desta forma deficiente, haja vista se limitar a um conteúdo anti-estrangeiro.

O conceito de imaginário social em Rubro veio nos permite compreender o processo de longa duração da criação do nativismo e o porquê de este ter perdido sua dimensão reivindicatória após o advento da República. Os pernambucanos em nenhum momento, nos duzentos anos de nativismo, propuseram uma separação de Portugal mas a inserção nos negócios da coroa e mais tarde a federalização. O imaginário tinha uma função real durante os duzentos anos de permanência do nativismo. Sua função era assegurar a estabilidade social e financeira dos pernambucanos12. Para isto Castoriadis nos lembra muito bem que o simbolismo não se caracteriza pela neutralidade, nem muito menos a escolha de um símbolo, mas faz-se de forma aleatória. Deste modo a instituição do nativismo foi fundamental para a continuidade do imaginário que possibilitou a busca das mercês.

Confirmando esta premissa na segunda edição de Rubro veio Mello sintetiza sua crítica ao nativismo pernambucano afirmando que o livro se propõe a explorar as deformações que dentro do espectro que vai da mistificação histórica à derrapagem de significado, o nativismo impôs à visão local da experiência holandesa13.

O imaginário social sob a ótica de Castoriadis utilizado por Mello remete ao que o próprio autor cita ao final do Prefácio da obra, de que as representações de um povo - sejam elas verdadeiras ou falsas - sobre o seu passado podem ter relevância para explicar o seu comportamento, tanto quanto seus interesses materiais. Outrossim o imaginário social descreveu como os pernambucanos buscaram no imaginário forças para vender as intempéries do período.

12 O nativismo, enquanto fenômeno político e ideológico em processo, pode ser dividido em: a 1ª – 1654 – capitulação holandesa à derrota da “nobreza da

terra” na guerra dos mascates; a 2ª – 1801/1850 – com a Revolução de 1817, o movimento de Goiana de 1821, a Confederação do Equador de 1824, a Rebelião Praieira (período de radicalização lusitana): definitiva integração da província na ordem imperial; agonia do nativismo como força política; nativismo reduzido ao seu significado ideológico, como indica a fundação do Instituto Arqueológico Pernambucano em 1862.

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Referências

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