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Machado de Assis para o francês: Memórias

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Academic year: 2021

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Marie-Hélène Torres PGET / UFSC; POET / UFC; CNPq

Nesse capítulo, pretendo confrontar as traduções francesas de Memórias póstumas de Brás Cubas com o intuito de enten-der como funcionam a primeira tradução e a retradução de um clássico. Ao analisar também notas de rodapé, títulos de capítulo, diálogos e pronomes de tratamento, tento esboçar uma concepção diacrônica da tradução, já que temos dois tra-dutores diferentes frente ao texto literário em análise. Divido, portanto, meu texto em duas partes principais: uma sobre o paratexto e outra onde analiso os textos traduzidos, partindo assim de uma análise descritiva da tradução.

1. Ambiguidade do aparato

paratextual em Memórias

póstumas de Brás Cubas

Três romances de Machado de Assis suscitarão retraduções em francês, os três pertencentes à sua trilogia, com dois per-sonagens que rompem com os princípios da invisibilidade e da onisciência: o narrador-autor-protagonista-anti-herói e o leitor-personagem. Memórias póstumas foram traduzidas em

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francês muito antes de Dom Casmurro, 25 anos antes para ser mais precisa, e logo depois da Festa da Latinidade que ocorreu em Paris na Sorbonne em homenagem a Machado de Assis recém-falecido. O primeiro tradutor, Adrien Delpech, era francês, morava no Rio de Janeiro e era professor no Colégio Dom Pedro II. São informações que podem auxiliar na análise textual. Veremos como.

Há duas traduções francesas de dois tradutores diferentes de Memórias Póstumas de Brás Cubas. A primeira tradução é de 1911, traduzida por Adrien Delpech, como já dito, e a retradução de 1944, do general René Chadebec de Lavalade (CdL). Essa última tradução foi reeditada três vezes, em 1948, 1989 e 2000.

Resgatando a nossa memória, posso relembrar aos leitores que o romance é narrado por um defunto-autor, Brás Cubas, solteiro de 64 anos, que morreu de uma pneumonia mal cura-da, obcecado pela ideia de inventar um medicamento an-ti-hipocondríaco. Frente Virgília, seu grande amor, ele entra em delírio, depois, voltando à consciência, começa a narrar suas memórias, história da sua vida desde seu nascimento, sua infância, sua viagem a Portugal forçada por seu pai para que ele não se arruinasse por Marcela, uma cortesã espanhola. Depois, ocorre o reencontro com Virgília, filha do Conselheiro Dutra, que prefere se casar com Lobo Neves. Daí, Brás Cubas perde concomitantemente a carreira política e o pai, que falece. Mas, a partir de então, começa o romance secreto de Virgília e Brás, em uma cabana alugada em nome da costureira de Virgília, Dona Plácida, e que vai durar anos. Brás reencontra Quincas Borba, que lhe explica seu sistema filosófico, o humanitismo23;

23 Sátira, na verdade, ao positivismo de Comte e ao cientificismo do século XIX e à teoria de Charles Darwin acerca da seleção natural.

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Marcela morre; Dona Plácida vive miseravelmente; e Brás Cubas morre também.

Voltando às traduções, é importante notar que a primeira tradução francesa, a de 1911, é publicada pelas edições Garnier em Paris, conforme indicação na capa. O nome do autor apa-rece no topo da capa, seguido de “De l’Académie Brésilienne” [Da Academia Brasileira]. Essa informação sobre a academia informa o leitor que a obra é clássica e a situa, portanto, dentro de seu sistema literário de origem. O romance é claramente as-sumido como sendo uma tradução, pois sob o título, Mémoires Posthumes de Braz Cubas, está escrito:

Traduit du Portugais par ADRIEN DELPECH. [Traduzido do português por ADRIEN DELPECH.]

O efeito do tamanho do corpo da letra utilizado para a im-pressão do nome do tradutor dá conta do lugar central que ocupa. A tradução não apresenta nenhuma outra informa-ção paratextual, nem texto na contracapa, nem prefácio, nem introdução.

A retradução de Memórias póstumas é de 1944 e será reedita-da quatro anos mais tarde, assumindo também seu estatuto de tradução, ou melhor dito, de texto traduzido. Na capa, figuram o nome de Machado de Assis, o título, a origem linguística do romance e o nome do tradutor:

Desta forma, a teoria do «ao vencedor, as batatas» seria uma paródia da ciência da época de Machado, uma forma de desnudar ironicamente o caráter desumano e anti-ético da «lei do mais forte”

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Mémoires d’Outre-Tombe de Braz Cubas: Traduit du Portugais

par

R. CHADEBEC DE LAVALADE

Percebe-se no título, uma variante de tradução, isto é, “d’Ou-tre Tombe” [do Além-Túmulo].

Toda tradução é um ato antropofágico de absorção do tex-to-fonte e criação do texto traduzido, cada tradução sendo única no sentido em que é produzida por um tradutor espe-cífico, num determinado momento. É ao confrontar textos traduzidos por tradutores diferentes, correspondendo ao mes-mo texto-fonte, que se pode estabelecer comes-mo os tradutores traduzem, ou seja, qual o grau de antropofagia.

Portanto, se toda tradução é um ato antropofágico, cada uma será:

– Ou naturalizada, ou mais naturalizada (o que podemos chamar de antropofagia etnocêntrica)

– Ou exotizada ou mais exotizada (o que podemos chamar de antropofagia inovadora)

– Ou um meio-termo entre naturalização e exoticização (o que podemos chamar de antropofagia intercultural).

Ainda sobre a página de rosto, nota-se que o romance, ape-sar de publicado no Brasil (Rio de Janeiro), por uma editora brasileira (Atlântica), está inserido em uma coleção cujo título em francês é “Les maîtres des Littératures Américaines”24.

24 [C]e roman (sic) commence une collection de traductions françaises, destinée à divulguer les chefs-d’œuvre des littératures américaines. Esta tradução de Lavalade será reeditada em 1948 na França pela editora Albin Michel.

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Devemos, portanto, essa tradução a um tradutor francês e a uma editora brasileira. Uma verdadeira tradução-exportação!

Em seguida, na primeira página, a página de rosto25, tem-se um texto parecido com os que são geralmente impressos na contracapa. Trata-se de elogios (“este romance é com certeza o mais original e o mais profundo de todos os livros de Machado de Assis”26), de um resumo grandiloquente e de um parágrafo curto sobre a tradução: “A excelente tradução de R. Chadebec de Lavalade, ele mesmo grande escritor, soube conservar na obra de Machado de Assis o senso de humor que o tornou famoso na literatura do Brasil”27.

Além do mais, a editora Métailié publicou, em 1989, na coleção “Bibliothèque Brésilienne”, Mémoires Posthumes de Brás Cubas de J.M. Machado de Assis, “Traduit du portugais (Brésil) por R. Chadebec de Lavalade”:

25 Conforme Genette, “as páginas 1 e 2, chamadas guardas, ficam em branco”, p. 34.

26 [C]e roman est certainement le plus original et le plus profond de tous les livres de Machado de Assis.

27 L’excellente traduction de R. Chadebec de Lavalade, qui est lui-même un

écrivain de premier ordre, a su conserver à l’œuvre de Machado de Assis le sens de l’humour qui a fait sa célébrité dans la littérature du Brésil.

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A partir de todas as informações paratextuais recolhidas até agora, capa, contracapa, página de rosto, posso afirmar que as edições Métailié fazem referência à língua e à cultura de origem quando especificam “du portugais (Brésil)” [do portu-guês (Brasil)] e isso, no final dos anos 1980. As traduções de 1911 e 1944 só trazem: traduzido do português, portanto, sem referência ao Brasil. Até os anos 1950, a literatura brasileira era considerada uma ramificação da literatura portuguesa.

Outro ponto que percebo é que o título não é mais aquele da tradução de Lavalade, mas sim o da primeira tradução de Delpech, Mémoires d’Outre Tombe de Bras Cubas [Memórias de Além-Túmulo de Brás Cubas]. Mémoires d’Outre-Tombe nos remete à autobiografia de mesmo nome do escritor fran-cês François René de Chateaubriand que, na juventude, se alistou na infantaria, chegando mais tarde a ser embaixador e ministro. Como Lavalade era general do Exército francês, podemos especular sobre a tradução naturalizante do título, ato, de acordo com nossas hipóteses, de antropofagia etnocên-trica. Essas informações nos dizem também que enquanto as traduções de Delpech (1911) e de Lavalade (1944) não fazem menção à data da tradução, nem faz referência à obra original, a edição de 1989 surpreende pela indicação: “© Traduction française, éditions A.-M. Métailié, Paris, 1989 » [© Tradução francesa, editora A.-M. Métailié, Paris, 1989]. Deixa entender que é uma 1a tradução, pois não se refere às outras. Como a tradução poderia ser de 1989, se Lavalade a realizou em 1944? Tal menção dá a entender que Lavalade traduziu o romance em 1989, sendo, portanto, uma tradução nova (1a tradução) ou uma nova tradução, ou seja, uma retradução. O tradu-tor, Lavalade, faleceu em 1967 e, paradoxalmente, as edições Métailié o confirmam por uma nota escrita em letras miúdas, precedendo as referências da obra original e a data da

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tradu-ção: “Não foi possível entrar em contato com os herdeiros do tradutor nem com a editora para solicitar a autorização de reprodução. Tomamos, no entanto, a responsabilidade da publicação desta obra, certos de que ao fazê-lo seguimos a memória do tradutor.”28

Essa confusão de contrainformações, ou seja, a tradução datada de 1989 e o nome do tradutor da edição de 1944 († em 1967) demonstra que não se trata de uma nova tradução.

No que concerne ao discurso de acompanhamento, que é parte integrante do aparato paratextual, verificamos que a tradução de Adrien Delpech (1911) se omite; no entanto, na tradução de Lavalade de 1944, além do texto da contracapa (resumindo a obra), há um prefácio de duas páginas de Afrânio Peixoto. Note-se que Afrânio Peixoto já havia prefaciado a tradução francesa de Dom Casmurro de 1936, ocasião na qual elogiava Machado e confessava que a tradução deixava a desejar frente ao texto original. Curiosamente, é com uma ótica muito diferente que Peixoto constrói seu prefácio das Mémoires.

Valorizando Machado de Assis, o qualificando de “autor difícil”, “sutil, diferenciado, reticente” [subtil, nuancé, réticent], Peixoto valoriza o tradutor francês cuja língua (francesa) é “uma claridade sem véus” [une clarté sans voiles], uma “lim-pidez transparente” [une limpidité transparente], “a da inte-ligência pura” [celle de l’intelligence pure]. Na comparação com a língua portuguesa, Peixoto reforça a superioridade da língua francesa: “O português, língua ‘caçula’ da latinidade, 28 Il nous a été impossible de joindre les héritiers du traducteur de même que la maison d’édition pour solliciter l’autorisation de reproduction. Nous avons cependant pris la responsabilité de la publication de cet-te œuvre, persuadés qu’en ce faisant nous suivions la mémoire du traducteur.

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não chegou ainda à cristalização que exigem as línguas já definitivas e, portanto, imutáveis.29

Afrânio Peixoto, da Academia Brasileira de Letras, como está indicado após a assinatura do prefácio, dá ao romance a canonici-dade requisitada e confessa que, para ele, a língua falada no Brasil é uma língua menor. Sua atitude é a do colonizado que admira e rejeita tudo que é local para idealizar o outro. Ele, inclusive, afir-mou:“Machado de Assis, autor difícil, teria ficado feliz de ver-se mais acessível, graças à virtude da língua francesa, e, sobretudo, ele ficaria orgulhoso por ter se tornado transparente, assimilável, compreensível.”30

Deduz-se que a tradução de Lavalade tornou o romance ‘mais simples’, tão naturalizado que o tradutor antropófago lhe concedeu a alma de escritor francês. A análise textual nos permitirá, talvez, verificar, assim como afirma Peixoto, se “Machado de Assis se sentiria menos hermético ao ler-se na tradução do general de Lavalade”31.

Outro prefácio, de seis páginas, precede o romance reedi-tado em 1989 e é assinado por “André Maurois da Academia Francesa” [André Maurois de l’Académie Française]. A estra-tégia de utilizar um acadêmico francês e não um acadêmico brasileiro desloca a canonicidade no sistema cultural e literário francês. É de certa forma uma maneira de integrar, de anexar e de reconhecer o escritor e o romance no cânone literário francês. Para Maurois, Machado representa uma das vidas 29 Le portugais, langue ‘cadette’ de la latinité, n’est pas encore arrivé à la cristallisation qu’exigent les langues déjà définitives, et par-là immuables…

30 Machado de Assis, auteur difficile, aurait été heureux de se voir rendu plus accessible, par la vertu de la langue française (sic). Et surtout il serait fier d’être devenu transparent, assimilable, compréhensible…

31 Machado de Assis se sentirait moins hermétique en se lisant dans la traduction du général de Lavalade.

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de homem de letras mais singulares e menos conhecidas dos franceses32. Maurois chega a afirmar que a obra de Machado lembra a de Anatole France e a de Laurence Sterne. Machado não é reconhecido como escritor brasileiro, mas assimilado e reduzido ao mesmo. Maurois não menciona em nenhum mo-mento o tradutor ou a tradução, mas focaliza seu prefácio sobre aquilo que Genette chama de “apresentação de ordem pro-priamente biográfica na qual a função é informativa”. Genette, na mesma obra, acrescenta ainda que, além disso, “Todas as edições da época clássica iniciavam-se com o ritual ‘Vida do autor’ que tomava o lugar do estudo crítico”33 .

Em suas dimensões macroestruturais, as edições de 1944 e de 1989 contêm o mesmo número de capítulos, cento e sessenta. Há poucas mudanças de pontuação. Quanto ao número e à distribuição dos parágrafos, eles são idênticos nas duas edições.

A edição de 1944 conta com oito notas de rodapé e a edição de 1989, com cinco. Parto da hipótese de que a supressão de notas pode causar modificações metatextuais. A tradução de 1944 respeita mais a letra (no sentido bermaniano) do que a de 1989 que naturaliza muito mais o texto com Ludgero Cafard, ou ainda quel plaisir de vous voir no lugar de Bom olhos o vejam. E Ludgero Barata é um nome próprio, o nome do velho professor de Brás Cubas!

32 “l’une des vies d’hommes de lettres les plus singulières et les moins connus des Français”

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1944 1989

“Notre maître s’appelait Ludgero; mais je tiens à donner ici son nom

complet: Ludgero Barata – un nom funeste, éternel sujet de plaisanterie pour les enfants”1.

(CHAP. XIII) 1Barata: cancrelat.

“Notre maître s’appelait Ludgero; mais je tiens à donner ici son nom

complet: Ludgero Cafard –un nom funeste, éternel sujet de plaisanterie pour les enfants”.

[sem nota] “Cette idée, idée grandiose,

éclatante – habillée à l’héroïque”1 comme eût dit le père

Bernardès-(CHAP. LIX) 1Dans le texte: trajada ao bizarro.

“Cette idée, idée grandiose, éclatante – bizarrement drapée comme eût dit le père

Bernardès-[sem nota] “— Bons olhos o vejam!1

s’écria-t-elle. Où vous cachez-vous donc, que l’on ne vous voit nulle part?”

(CHAP. LXV) 1Littéralement: “que de bons yeux

vous voient!” Formule d’accueil encore en usage au Brasil.

“— Quel plaisir de vous voir! s’écria-t-elle. Où vous cachez-vous donc,

que l’on ne vous voit nulle part?” [sem nota]

Esta confrontação rápida de algumas notas de rodapé pro-vocando mudanças na tradução, particularmente quando são suprimidas, leva a afirmar que as edições de 1944 e 1989 não são totalmente idênticas. Minha hipótese é que a tradução de Lavalade (1944) foi de alguma forma adaptada em 1989. Resta saber qual grau de adaptação. Somente uma análise textual apurada pode responder a esse questionamento. A “reedição” da Métailié permanece, a meu ver, uma reedição enganosa!

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2. Análise Textual de Memórias

póstumas de Brás Cubas: Da

transparência à intraduzibilidade

O Général de Lavalade, com Memórias póstumas de Brás Cubas, realizou sua única tradução do gênero romanesco, enquanto Adrien Delpech, autor de romances em francês, traduziu, um ano antes de Memórias, em 1910, Quelques contes [Alguns Contos] também de Machado de Assis, acompanhado de um prefácio no qual confessa a impotência do tradutor! Ainda no prefácio, Delpech afirma ter traduzido Machado de Assis de forma a sobrepor à sua mentalidade outra mentalida-de tão “benevolente e harmoniosa” à mentalida-dele. Para ele, é o papel fatal de todo tradutor, tentar fazer uma tradução justalinear, criando neologismos a cada passo”34.

Essas reflexões sobre a intraduzibilidade e a tradução jus-talinear estão ligadas à questão tradicional da “fidelidade” na tradução. Delpech admite, para essa tradução de 1910, que ela nem sempre é justalinear (ou seja, traduzido linha por linha), concepção de tradução que talvez persista em sua tradução de Memórias, em 1911. Lavalade insere palavras e expressões brasileiras em seu texto e se refere a elas em notas que con-fessam sua crença na intraduzibilidade.

No entanto, as notas de rodapé de Delpech em Quelques contes [Alguns Contos (1910)] também dizem respeito à intra-duzibilidade. Há apenas um ano de intervalo entre as traduções de Quelques contes [Alguns Contos (1910)] e Memórias (1911) feitas por Delpech. Admitindo, portanto, a intraduzibilidade em 1910, em 1911 Delpech não a admite tão explicitamente, e 34 Prefácio de Alguns contos, p. 27.

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muda de estratégia, abandonando as explicações nas notas de rodapé, tornando seu texto fluido no sentido de que o leitor não perceba, nesses casos, que se trata de uma tradução.

Analisando a tradução dos nomes próprios a partir do texto de Michel Ballard, Le nom propre en traduction (2001:108-9), o autor afirma que o tradutor pode seguir duas estratégias: ou ele preserva a estrangeiridade do nome de origem (e aí não o traduz) ou traduz e rompe com a origem, obrigando o tradutor a adaptar, apagar ou explicitar. Os tradutores de Memórias póstumas, contudo, mantêm o caráter importado da obra, preservando a estrangeiridade.

Nomes de personagens

Delpech (1911) Lavalade (1944) MdA

Braz Cubas Braz Cubas Brás Cubas

Virgilia Virgilia Virgília

Marcella Marcella Marcela

Dona Placida Dona Placida Dona Plácida

Lobo Neves Lobo Neves Lobo Neves

Sabine Sabina Sabina

Apenas “Sabine” (irmã de Brás Cubas) tem seu nome natu-ralizado por Delpech. Por que ele não traduziu Marcela por Marcelle por exemplo? Essa naturalização de “Sabina” para “Sabine” remete o leitor francês a um prenome conhecido e “atenua” a estranheza provocada pelos nomes brasileiros importados do texto traduzido.

Nos diálogos entre os amantes, os personagens de Brás Cubas e Virgília, para Delpech, se tratam informalmente (utilização do “tu”), enquanto na tradução de Lavalade, eles se tratam formalmente (utilização do “vous”), como no excerto, por

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exemplo, do capítulo CIII, em que Virgília e Brás discutem por causa do atraso de Brás a um encontro:

AD (1911) CdL (1944)

“— Tu ne trouves rien à répondre? demanda Virgilia, en s’arrêtant devant moi. — Que veux-tu que je te dise? Tu t’entêtes dans ta mauvaise humeur. Sais-tu ce que je crois? c’est que tu as assez de notre liaison, et que tu veux en finir… — Justement!”

“— Et vous ne dites rien, rien? demanda Virgilia, en se plantant devant moi. — Qu’ai-je à dire? Je vous ai tout expliqué: : vous persistez à vous fâcher. Qu’ai-je à dire? Savez-vous ce que je pense? Je pense que vous en avez assez, que vous êtes excédée, que vous cherchez à en finir… — Justement!”

O tratamento informal revela a intimidade entre os amantes enquanto o tratamento formal revela a relação entre eles. É verdade que a ação acontece entre 1805 e 1869 e que os amantes franceses dessa época certamente se tratavam formalmente. Machado usa você. Posso especular com base no perfil dos tra-dutores, não somente como figura discursiva segundo Berman, mas como tradutores de carne e osso segundo a concepção de Anthony Pym. Os dois tradutores, que viveram no Rio de Janeiro, não utilizaram a mesma estratégia. Delpech, que se naturalizou brasileiro, é mais inclinado à informalidade brasi-leira e foi o que ele passou na sua tradução francesa utilizando o tratamento informal, enquanto que Lavalade, que só passou quatro anos no Brasil, é mais influenciado pela cultura francesa que pela brasileira.

Delpech engole ainda, antropofagicamente falando, algumas expressões ao longo do romance, como por exemplo:

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AD (1911) CdL (1944) MdA

“Je ne dirai pas qu’elle méritait la pomme de la beauté entre toutes les jeunes filles de son temps, parce que je n’écris pas un roman où

l’auteur dore la réalité et ferme les yeux aux taches de rousseur et autres: ce qui ne veut pas dire qu’elle en eût au visage, non.”

“Je ne dis pas qu’elle eût déjà conquis sur les jeunes filles de son

temps la palme de la beauté: car ce livre n’est pas un roman, dont l’auteur enjolive

à son gré la réalité, fermant les yeux sur les

boutons et les taches de rousseur; mais je ne prétends pas non plus, notez-le bien, que

son visage fût ainsi déparé par quelque bouton ou quelque tache de rousseur.”

“Não digo que já lhe coubesse a primazia da beleza, entre as mocinhas do tempo,

porque isto não é romance, em que o autor sobredoura a realidade e fecha os olhos às sardas e espinhas; mas também não digo que lhe maculasse o rosto nenhuma sarda ou espinha, não.”

Chap. XX

VII

Essas não-traduções demonstram certo grau de adaptação. O que posso dizer dessa breve análise de Memórias póstumas de Brás Cubas é que, por um lado, a questão da intraduzibi-lidade é explícita em Lavalade e implícita em Delpech (o que leva à naturalização de seu texto) e que, por outro lado, a an-tropofagia tradutória se junta estrategicamente à questão da intraduzibilidade, Delpech naturalizou seu texto, o deixando fluido, enquanto que Lavalade tende a exotizá-lo. Mas, de qualquer modo, essas traduções refletem uma naturalização efetiva da língua/cultura brasileira, entendendo que a trans-gressão criativa da linguagem não penetra a língua francesa. E finalmente, posso afirmar que, após a análise das notas de Lavalade e o texto correspondente (sem nota) de Delpech, estamos frente a duas concepções diferentes de tradução. Vale observar, todavia, que os conceitos de tradução apresentados pelos tradutores evoluíram consideravelmente durante o século XX. A intraduzibilidade — decorrente, sobretudo, da questão da fidelidade — das referências culturais brasileiras dominou

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as traduções até os anos 1950. A estratégia dos tradutores era a de não empregar praticamente nenhuma nota de rodapé (AD, 1911), inserindo-se, entretanto, alguns vocábulos indígenas brasileiros em itálico ou entre aspas, sem mais explicações, ou ainda a estratégia utilizada era a de naturalizar essas re-ferências, utilizando-se o recurso de remissão às notas, após aclimatação dos brasileirismos ou vocábulos indígenas nos textos traduzidos (CdL, 1944), explicitando por assim sua intraduzibilidade.

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Bibliografia

ASSIS, Joaquim Maria Machado de. Memórias póstumas de Brás Cubas. Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1881.

_______. Mémoires posthumes de Braz Cubas. Trad. Adrien Delpech. Paris: Garnier, 1911.

_______. Mémoires d´outre-tombe de Braz Cubas. Trad. Ren. Chadebec de Lavalade. Rio de Janeiro: Atl.ntica, 1944. (Col. Les Maîtres des lit-tératures américaines)

________. Mémoires d’outre-tombe de Braz Cubas. Trad. Ren. Chadebec de Lavalade. Paris: Emile-Paul Frères, 1948.

_______. Mémoires posthumes de Brás Cubas. Trad. Ren. Chadebec de Lavalade. Paris: Métailié, 1989. (Col. Bibliothèque Brésilienne) _______. Quelques Contes. Traduit du portugais par Adrien Delpech. Front Cover. Machado de Assis. Garnier frères, 1910.

BALLARD, Michel. Le nom propre en traduction. Paris: Ophrys, 2001. GENETTE, Gérard. Paratextos editoriais. Tradução de Álvaro Faleiros. São Paulo: Ateliê Editorial, 2009.

TORRES, Marie-Hèléne Catherine. Traduzir o Brasil Literário. Paratextos e discurso de acompanhamento. Volume 1. Tradução do francês de Marlova Aseff e Eleonora Castelli. Copiart: Tubarão, 2011.

_______. Traduzir o Brasil Literário: história e crítica. Volume 2. Supervisão de tradução de Germana Henriques Pereira de Sousa, Tradução de Clarissa Prado Marini, Sônia Fernandes e Aída Carla Rangel de Sousa. Copiart: Tubarão, 2014.

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