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Um dândi negro : o retrato de Arthur Timótheo da Costa de Carlos Chambelland

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

RENATA BITTENCOURT

UM DÂNDI NEGRO:

O RETRATO DE ARTHUR TIMÓTHEO DA COSTA DE CARLOS CHAMBELLAND

CAMPINAS 2015

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

A Comissão Julgadora dos trabalhos de Defesa de Tese de Doutorado, composta pelos Professores Doutores a seguir descritos, em sessão pública realizada em 06/12/2015, considerou a candidata Renata Bittencourt aprovada.

Profa. Dra. Maraliz de Castro Vieira Christo Prof. Dr. Marcelo Mattos Araújo

Prof. Dr. Martinho Alves da Costa Junior Profa. Dra. Fernanda Pitta

Profa. Dra. Josianne Francia Cerasoli

A ata de Defesa, assinada pelos membros da Comissão Examinadora, consta no proceso de vida acadêmica da aluna.

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Dedico este trabalho às minhas figuras negras primordiais: Giselda, Jurandyr, Claudia, Lucas e Arthur. A Ederaldo Nascimento, pelo empurrão decisivo. Em especial ao Prof. Dr. Jorge Coli, que nos ensina a ver com nossos próprios olhos.

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Resumo

Esta tese tem por tema a obra Retrato de Arthur Timótheo da Costa realizada por Carlos Chambelland, que apresenta o pintor negro como um dândi. A pesquisa investiga o dandismo e busca outros exemplos de representação do dândi na história da arte. Estabelece comparações entre a obra e os autorretratos de Timótheo, identificando os diferentes aspectos de construção de identidade que pautam o olhar dos dois artistas. Investiga o contexto artístico cultural da passagem do século XIX para o XX, adotando Gonzaga Duque e João do Rio como figuras referenciais, ambos identificados com o dandismo, tanto o crítico como o escritor. Busca ainda analisar aspectos da representação de homens brasileiros de descendência africana na pintura, adotando obras de Belmiro de Almeida e Rodolpho Bernardelli como exemplos. Por fim, abre espaço para a pintura de artistas nascidos nos EUA como James MacNeill Whistler, citado por Chambelland em seu retrato, e Henry Ossawa Tanner, dentre outros retratistas identificados com uma pintura de inclinação realista, difundida à época.

Palavras Chave:

1. Arthur Timótheo da Costa 2. Carlos Chambelland 3. Artes – Brasil

4. Pintura – Retrato 5. História da Arte

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Abstract

The subject of this thesis is the Portrait of Arthur Timótheo da Costa painted by Carlos Chambelland, which features the black painter as a dandy. The research investigates dandyism, and seeks other examples of the representation of dandies in art history. Comparisons will be drawn between the work and the self-portraits of Timótheo, identifying the different aspects of identity construction that guide the gaze of the two artists. The research also investigates the artistic cultural context of the late nineteenth century and beginning of the twentieth, adopting Gonzaga Duque and João do Rio as reference figures, being both identified with dandyism. We will also analyze aspects of the representation of Brazilian men of African descent in painting, adopting Belmiro de Almeida and Rodolpho Bernardelli works as examples. Finally artists born in the US such as James MacNeill Whistler, quoted by Chambelland in his portrait and also Henry Ossawa Tanner, among other portraitists identified with a realistic painting.

Key words:

1. Arthur Timótheo da Costa 2. Carlos Chambelland 3. Arts - Brazil

4. Painting - Portrait 5. History of Art

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[Digite aqui] Sumário

Introdução 10 1. Os autorretratos de Arthur Timótheo da Costa 20

2. Imagens de dândis em retratos dos séculos XVIII, XIX e XX 42

2.1. A moda masculina e o dândi 44

2.2. O dândi negro primordial – um breve comentário 53

2.3. Dândis artistas: Degas e Manet 57

2.4. Os dândis de Jacques-Émile Blanche 68

3. Dândis e boêmios da Primeira República 79

3.1. O Dandismo de João do Rio e de Baudelaire 79

3.2. A boemia e a representação do artista 103

4. Carlos Chambelland e Arthur Timótheo da Costa: talentos

prometedores 116

4.1. Fim de Jogo e os interesses de Carlos Chambelland 121 4.2. Antes do Aleluia de Arthur Timótheo da Costa 142

4.3. Ambiente de renovação 148

5. A imagem do negro na arte brasileira: exemplos referenciais 161 5.1. O retrato de André Rebouças de Rodolpho Bernardelli 164

5.2. O Príncipe Obá de Belmiro de Almeida 175

6. Whistler e Tanner: americanos na Europa 192

7. Conclusão 213

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Anexo I – 1900 e a presença do retrato americano na França da Belle Époque

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Anexo II - A American Negro Exhibit da Exposição Universal de 1900 247

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Introdução

Figura 1

Carlos Chambelland

Retrato de Artur Timóteo da Costa, 1909 Óleo sobre tela, 74 x 102 cm

Museu Nacional de Belas Artes, Rio de Janeiro

A passagem do século XIX para o XX foi um tempo farto em ambiguidades. Paris se oferecia como o microcosmo de um mundo novo, impulsionado por mudanças profundas nos modos de produção e convivência. As perspectivas trazidas pela ciência, tecnologia e cultura, se evidenciavam na vida na cidade, validando a euforia daqueles que apostavam no Homem e no seu potencial, visto como ilimitado. O Rio de Janeiro teve sua inserção na Belle Époque, descrita por Sevcenko como tendo sido compulsória1, em

processo que se sobrepôs ao advento da ord10 em republicana com seus conflitos e reformas. A tropical metrópole carioca nutriu sonhos de progresso enquanto buscava um molde de cidade para viabilizar seus ideais modernos de civilização. A modernização do Rio pregava o redesenho da paisagem e a sofisticação dos costumes, materializados por

1Sevcenko, Nicolau. Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira República. Vol.

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meio de dinâmicas excludentes mantendo à margem os habitantes da miséria, que os avanços não souberam erradicar.

Ao mesmo tempo, o caráter transitório, expresso na arte e na moda, e apontado por Baudelaire como campo de manifestação da beleza na modernidade, se traduzia em consumo e em critérios de gosto passageiros. No avesso do otimismo modernizante, as Flores do Mal. O Belo e o Mal combinados na manifestação da vida moderna, lugar e tempo em que avançar é também fazer ruir.

Quando Carlos Chambelland2 executa, em 1909, o retrato do pintor Arthur

Timótheo da Costa3 [figura 1], o espírito decadentista traduzia na literatura as desilusões

da época. O pintor escolhe estabelecer os contornos da identidade de seu retratado a partir da figura de um dândi, o mesmo que atravessa as páginas de Às avessas, personificado em Des Esseintes, de Joris-Karl Huysmans4. A fortuna do protagonista do

romance não o conforta de sua decepção com o progresso e, tampouco, o faz imune ao tédio que o impulsiona na direção de experiências sensoriais e estéticas que apenas sublinham a falta de perspectivas pessoais e seu viver desconectado das relações afetivas e da sociedade burguesa5.

2 Carlos Chambelland nasceu no Rio de Janeiro em 1884 e desenvolveu carreira atuando como pintor e professor de desenho e pintura. Conhecido por seus retratos, desenvolveu uma produção marcada por seu interesses naturalistas. Sua formação nas artes se deu na ENBA onde foi aluno de Rodolpho Amoedo e Henrique Bernardelli. Parte para Paris em 19078como resultado do prêmio de viagem concedido pela Escola pela tela Final de Jogo em 1907, permanecendo até 1910. Retorna à Europa em 1911 para participar da decoração do Pavilhão do Brasil na Exposição Internacional de Turim. A fase posterior ao seu retorno é marcada pela investigação de costumes, cenas e personagens de Pernambuco, onde permanece por três anos, estado que o artista elege como exemplo de um caráter autenticamente brasileiro preservado. Entre 1946 e 1950 atua como docente da Escola Nacional de Belas Artes. Carlos Chambelland morre no Rio de Janeiro em 1950.

3Arthur Timótheo da Costa nasce no Rio de Janeiro em 1884. Atua sobretudo como pintor e cenógrafo, tendo desenvolvido sua formação na Escola Nacional de Belas Artes após um período de vinculação à Casa da Moeda, onde é aprendiz de desenho e impressão de moedas e selos. É aluno de Amoedo, Henrique Bernardelli e Bérard, além de discípulo do cenógrafo Oreste Coliva. Recebe o prêmio de viagem em 1907, e durante seus dois anos em Paris se interessa por procedimentos impressionistas e a exploração de efeitos de luz e cor. Após um breve regresso ao Brasil, participa em Turim da Exposição Internacional. De volta ao Brasil desenvolve uma carreira onde a pintura de paisagem tem peso importante. É membro fundador da Sociedade Brasileira de Belas Artes. Morre em 1921 no Hospital dos Alienados do Rio de Janeiro

4Huysmans, Joris-Karl. Às avessas. Companhia das Letras/Penguin, 2011.

5Com este romance o autor rompe com a estrutura naturalista tradicional, mas preserva certo parentesco com esta tendência por meio das descrições minuciosas que caracterizam o universo habitado pelo personagem. Ver CATHARINA, Pedro Paulo Garcia Ferreira. Quadros literários fin-de-siècle: um estudo

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O dândi habita como sujeito privilegiado a sociedade fin de siécle, contemplando, com olhar melancólico, o futuro interrompido e o horizonte histórico fechado sobre si mesmo. É o homem capaz de inventar a si mesmo, especialmente em tempos de transição, a ponto de tornar-se, ele mesmo, uma obra de arte. Pretende situar-se à margem, ou acima, das convenções sociais, enquanto busca controlar as percepções que outros deitam sobre si. É crítico voraz dos valores burgueses, apesar de transitar entre a elite econômica e intelectual. Capaz de sentir-se em casa em qualquer lugar, possui a liberdade de percorrer incógnito e observador tanto dos bulevares quanto das vielas. , Um dândi negro brasileiro pode ser o indivíduo que desenha seu destino, neutralizando as imposições do meio ao educar seus sentidos.

Esta pesquisa busca identificar os elementos sobrepostos neste retrato, em que, certamente a verossimilhança convive com uma identidade projetada, levantando indagações sobre as possibilidades de conciliar imagens construídas de homem, negro, dândi e artista brasileiro, considerando o contexto histórico de produção da obra e as tradições e tendências artísticas com as quais dialoga.

O retrato está integrado à exposição de longa duração do acervo do Museu Nacional de Belas Artes. Mas foi por ocasião da exposição 30 Mestres da Pintura no Brasil, realizada no Museu de Arte de São Paulo, com curadoria de Luiz Marques, que tive um encontro com a obra, encantador na medida da motivação para o desenvolvimento desta pesquisa. Marques faz um comentário ao mencionar o nome de Chambelland, indicado como uma presença talvez incerta6 naquela antologia que

considerou estreita da pintura no Brasil. A ressalva nos ajuda a localizar o status do pintor na história da arte brasileira, possivelmente não tão conhecido ou prestigiado como outros nomes ativos no mesmo período e aponta para a necessidade de maiores investigações sobre sua trajetória e obra, considerando-se a escassez de fontes bibliográficas analíticas a seu respeito. O acervo do MNBA mantém algumas transcrições descritivas de exposições com a participação do artista, nas quais se destaca uma retrospectiva ocorrida no Rio de Janeiro, em 1950.

6 MARQUES, Luiz (org.). 30 Mestres da Pintura no Brasil. São Paulo: MASP / Rio de Janeiro: MNBA, 2001 (Catálogo de exposição). p. 40.

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Emanoel Araújo, ao escrever no catálogo da exposição João e Arthur Timótheo

da Costa7: os dois irmãos pré-modernistas brasileiros, realizada no Museu Afro Brasil8,

menciona o fato de uma relevante fatia da produção de Timótheo estar no mercado de arte ou em coleções particulares. Se por um lado podemos hoje considerar a produção de Arthur como já dentro do campo semântico do modernismo, o título reforça o apontado por Gilda de Mello e Souza que considera ser Arthur um precursor do Modernismo no país9, atribuindo essa percepção à pintura A Forja, em que pinceladas aparentes são

usadas na representação do trabalho industrial. José Roberto Teixeira Leite já afirma em

Pintores negros do oitocentos10 que o artista foi um elo entre a arte brasileira do

Oitocentos e um novo tipo de sensibilidade que só iria cristalizar-se em definitivo a partir da Semana de Arte Moderna de 192211, ano de sua morte precoce aos 41 anos no Hospital dos Alienados do Rio de Janeiro. No momento, o pesquisador da Unicamp Kleber Amâncio desenvolve uma pesquisa de doutorado sobre Arthur Timótheo que certamente jogará nova luz sobre sua trajetória.

Chambelland nos entrega um homem elegante. Arthur é apresentado como um homem dignificado pelas suas roupas, confortável dentro delas e no ambiente em que se encontra. A atmosfera de quase penumbra é austera e elegante. A ambientação permite supor que se trata do interior de um café parisiense, hipótese sugerida também pelo fato de que ambos estudavam na França quando da execução da pintura. Destaca o brilho do cabo da bengala encaixado ao braço e sobreposto aos tons de preto temperado com marrom do terno. Faz luzir o couro dos sapatos e coloca em evidência o branco das pequenas faixas visíveis de punho, criando eco ao metálico da bengala. Despe uma das

7Vale ressaltar a importância da atuação de Emanoel Araújo como diretor da Pinacoteca do Estado de São

Paulo e como fundador e diretor do Museu Afro Brasil, que resultou na incorporação de obras de uma diversidade de artistas relacionadas à cultura afro-brasileira pela autoria e/ou temática, a acervos públicos contribuindo com a formação de público e a produção acadêmica. Esforços dessa natureza caracterizam a trajetória de Araújo, curador, colecionador, sendo um marco importante A mão afro-brasileira: significado da contribuição artística e histórica, projeto de 1987 com exposição e catálogo, com nova edição revista e ampliada em 2010.

9 SOUZA, Gilda de Mello e Souza. Pintura brasileira contemporânea: os precursores. O Baile das Quatro Artes. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1980. p. 223-247.

10LEITE, José Roberto Teixeira. Pintores negros do oitocentos. São Paulo: MWM-IFK, 1988. p. 215 – 241. 11 Idem, p.215.

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mãos de sua luva, enquanto a outra apoia o par e o rosto em atitude pensativa e confiante. Apesar de estar em ambiente interno, o retratado não se despe de seu chapéu, mantém calçada uma das mãos, e não apoia sua bengala no utensílio que vemos no chão. Mantém junto do retratado esses atributos de distinção e elegância recorrentes na representação do dândi o que evidencia a intenção de agregar essa identidade à figura de Timótheo

Esta pesquisa investiga esta pintura de retrato em busca de aspectos da identidade do retratado, da intencionalidade do retratista, e do que ela espelha, refrata ou adapta dos valores da época marcada por transformações sociais, culturais e artísticas. Conhecemos três autorretratos de Arthur Timótheo, todas imagens bastante distintas da criada por Chambelland. O Capítulo I é dedicado à análise dessas obras incorporadas, hoje, aos acervos da Pinacoteca do Estado de São Paulo, ao Museu Nacional de Belas Artes e ao Museu Afro, buscando reconhecer o que informam as representações que o artista faz de si. Para tanto, são analisadas as citações que ele incorpora nessas obras, tais como as que nos apontam para sua admiração por Edgar Degas, enquanto o pintor francês será estudado com interesse especial por suas pesquisas formais baseadas em investigações sobre Rembrandt, bem como pela observação de modos de representação que estabelecem dândi e artista como complementares. Igualmente a admiração de Timótheo por Rubens e pelo próprio Rembrandt será abordada. Neste sentido as obras de Theodore Reff e Carol Armstrong sobre Degas, e de Simon Schama sobre Rembrandt são instrumentais, assim como os textos produzidos a propósito da exposição Rebels and martyrs: The image of the artist

in the Nineteenth Century da National Gallery de Londres. Operações de citação são

comentadas para ajudar a contextualizar a incorporação de elementos da tradição efetuadas por Timótheo, sendo exemplos os autorretratos de Sir Joshua Reynolds.

O Capítulo II aborda retratos de indivíduos apresentados como dândis encontrados na obra de pintores referenciais como Degas, Manet e Jacques-Emile Blanche, no intuito de evidenciar pontos de contato entre as obras desses pintores e a pintura pesquisada. As ideias de Duranty e o realismo de interesse Joseph White de Degas recebem atenção especial por apontar para vetores de afinidade com Chambelland, como poderá ser observado no Capítulo V.

No processo de desenvolvimento desta pesquisa foram localizadas fotografias em que Arthur Timótheo, seu irmão João Timótheo, Carlos e Rodolpho Chambelland, bem como outros artistas ativos no período figuram em vestimentas e ambientes que nos

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permitem identificá-los ora como dândis, ora como boêmios. Essas identidades serão investigadas considerando seus sentidos no Capítulo IV. Os escritos de Charles Baudelaire e João do Rio são adotados como dândis referenciais, cujos escritos e atuação são capazes de definir o significado primordial do dandismo, e a sensibilidade libertária da boemia do Brasil da Primeira República, período contextualizado com a ajuda de autores como José Murilo de Carvalho, Nicolau Sevcenko e Jeffrey Needell. A crítica produzida a partir das obras de João do Rio é exemplificada, em especial, por Orna Levin, e Jerrold Seigel que exploram seu relacionamento com a tendência literária do Decadentismo, importante para a compreensão do ambiente artístico do período, e por sua obra lançar luz sobre os ambientes cultural e urbano do Rio de Janeiro em que circulavam Carlos Chambelland e Arthur Timótheo.

Baudelaire surge na pesquisa como pensador sobre o período que nos provê com interessantes reflexões acerca do dandismo e também do gênero do retrato. Para ele o retrato é um gênero de aparência modesta, que demanda inteligência, obediência e intuição para enxergar o que se dá a ver e ao mesmo tempo intuir o que se oculta, podendo resultar, dessa forma, em uma obra que denomina biografia dramatizada.

Nada, se quisermos examinar bem a coisa, é indiferente num retrato. O gesto, a expressão, a indumentária, o próprio cenário, tudo deve contribuir para representar um caráter12

Baudelaire defendia que um dândi deveria sentir-se em casa em qualquer lugar em que estivesse.

Estar fora de casa, e contudo sentir-se em casa onde quer que se encontre; ver o mundo, estar no centro do mundo e permanecer oculto ao mundo, eis alguns dos pequenos prazeres desses espíritos independentes, apaixonados imparciais, que a linguagem não pode definir senão toscamente. O observador é um príncipe que

frui por toda parte do fato de estar incógnito. 13

Talvez Arthur Timótheo, na representação que lhe faz Carlos Chambelland, possa ser visto como esse dândi descrito por Baudelaire, um homem no mundo, longe de casa, imerso no fugidio da cidade de Paris, anônimo, sobretudo capaz de reinventar sua

12 BAUDELAIRE, Charles. A modernidade de Baudelaire: textos inéditos selecionados por Teixeira

Coelho. Rio de Janeiro. Paz e terra, 1988. P. 121-122.

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identidade. Ou ainda o Arthur Timótheo dândi pode ser o artista conectado ao seu tempo. Para Coli:

Há uma dualidade em Baudelaire. Por um lado, a recusa violenta do progresso, do mundo moderno banalizador, corruptor do espírito, daí seu horror pela fotografia, vista por ele apenas como um modo mecânico de reproduzir a imagem do mundo. Mas, por outro, ele cultiva a ideia de que o artista moderno está ancorado no presente, aprisionado pelo presente, e não pode escapar dele. O presente é uma prisão, e o poeta, o rei de um país chuvoso, do qual não pode fugir.14

A elegância escolhida para o retratado pode ser, antes de tudo, evidência da superioridade de espírito, e não mera expressão de vaidade ou amor excessivo pela indumentária. Essa condição de dândi seja emancipatória, permitindo ao artista negro brasileiro, assumir a posição de observador dessa cidade moderna que se abria diante de seus olhos e lhe permitisse assumir identidades outras, distantes das impostas a um homem marcado pela cor de sua pele em uma sociedade que tinha a abolição da escravidão ainda como fato recente. A leitura de Baudelaire será acompanhada pela investigação ampliada sobre significados vinculados ao vestir masculino e sobre o dândi como parâmetro de representação, considerando a importância do vestuário de padrão burguês para sinalização de posição e mobilidade social.

O Capítulo V busca apresentar a recepção encontrada por Carlos Chambelland e Arthur Timótheo da Costa no período próximo à confecção do retrato e documentada em periódicos. No catálogo da exposição 30 Mestres, na seção de texto denominada Paris

for fora e por dentro: o urbano, o ambiente, o humor, o spleen15, Marques analisa aspectos do período situado entre 1876 e 1915. Ali o autor comenta a geração de 1850 e elenca os nomes de Rodolpho Amoedo, Almeida Jr., Belmiro de Almeida, Pedro Weingärtner e Henrique Bernardelli, mestres de Chambelland e Timótheo. Aponta as mudanças operadas no campo artístico por essa geração elencando: a superação do universo hierárquico dos gêneros, o desarme da gestualidade teatral e da retórica compositiva acadêmicas, a celebração da vida cotidiana e da variedade sociológica dos tipos populares, o culto do anonimato da metrópole, a admiração pela sensualidade dos nus e

14 COLI, Jorge. Consciência e heroísmo no mundo moderno. In: NOVAES, Adauto et al. (Org.). Poetas que

pensaram o mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. p. 296. 12 MARQUES, Luiz (org.)., op. cit.., p 39-41.

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pelo ateliê como metáfora do artista e objeto de uma pintura sem tema. Menciona em especial o fascínio pelo requinte egocêntrico ou pela apatia do dândi. Em seguida, na seção O último naturalismo, a atmosfera, certos ecos do impressionismo (1880 – 1930)11, aborda Chambelland afirmando que suas obras conservam com enorme sabor (...), os

últimos desdobramentos da crônica naturalista da vida e da paisagem urbana cariocas do início do século. Distingue o pintor do grupo em que constam ainda Giovanni Castagneto,

Antonio Parreiras, Eliseu Visconti, Gustavo Dall’Ara, Eugênio Latour e Mario Navarro da Costa, afirmando durante suas estadas em Paris, Nápoles ou Veneza, estes se sentem atraídos pelos já velhos legados simbolista e impressionista11. Chambelland antes mesmo de sua ida a Paris indica, ainda segundo Marques, sua indiferença quanto a essas tendências, em benefício de um último naturalismo16. Este capítulo abordará o sentido de renovação herdado pela geração de Chambelland e o interesse do pintor pelas tendências naturalistas

As obras que possibilitaram o recebimento do prêmio de viagem de 1907 pelos dois artistas são adotadas como ponto de partida: Fim de Jogo, de Carlos Chambelland, e Antes do Aleluia de Arthur Timótheo. Ambas são reveladoras de interesses individuais e questões relevantes do contexto artístico, interessado em tendências realistas e naturalistas que pudessem dar cor às perspectivas científicas em disseminação e a busca de uma arte de identidade brasileira, que prescindisse do imaginário indianista. O próprio Chambelland narra seus interesses em entrevista concedida a Angyone Costa nos anos 1920. Lilia Schwarcz contribui com a compreensão das ideias que articulavam ciência e raça, cuja apropriação pela arte se torna evidente pela reflexão de Jorge Coli e Edward Lucie-Smith acerca da produção que se convencionou denominar naturalista.

Gonzaga Duque, crítico, jornalista e ficcionista, ligado ao Simbolismo, era além de tudo desejoso de ser ele mesmo um dândi, capaz de personificar o projeto estético de uma geração que, a princípio, aposta nas promessas de modernidade da República. Aborda quase sempre de maneira elogiosa Chambelland e Timótheo. Duque defende uma arte afinada com o debate europeu acerca das estéticas modernas, assumindo postura crítica com relação ao gosto acadêmico, adotando um posicionamento contrário à adoção de uma identidade exótica para definir os contornos de uma arte nacional. Gonzaga Duque deseja uma arte intelectualizada que vá além da imitação para

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concretizar uma ideia estética. Nesse sentido, elogia a obra de Rodolpho Amoedo, uma figura central no período de formação de Arthur Timótheo e Carlos Chambelland. Ligado ao Partido Abolicionista, é admirador de José do Patrocínio e acredita que a escravidão e a exploração da metrópole tenham resultado em estagnação para o país.

Sua visão evolui para um entendimento de que a arte brasileira deveria refletir sobre as especificidades nacionais, sendo ao mesmo tempo universal. Essas questões da pauta do crítico estariam na ordem do dia para Chambelland, o que nos ajuda a compreender a escolha da figura cosmopolita do dândi. Por ter produzido seus textos entre 1888 e 1911, Gonzaga Duque situa-se em posição de especial interesse para esta pesquisa, podendo facilitar a compreensão acerca da sensibilidade cambiante do período em que Chambelland e Timótheo fizeram sua transição de estudantes a profissionais.

Este capítulo evidencia que o período de formação dos dois artistas, ocorre após a transformação da Academia em Escola Nacional de Belas Artes, com a consequente modernização de seus métodos e princípios. Rodolpho Amoedo, Henrique Bernardelli e Rodolpho Bernardelli são protagonistas neste processo e mestres de Arthur Timótheo e de Chambelland.

O Capítulo VI traz pinturas que dão visualidade a versões opoentes de dândis negros. Os retratos individuais de negros realizados no Brasil que nos chegam do século XIX e também daquele início de século XX são pouco numerosos, fazendo com que a característica de exceção de nosso retrato provoque uma reflexão sobre questões de etnicidade ou raça. Representam afinidade do artista com o pensamento abolicionista da época ao mesmo tempo em que contrariam o pressuposto das incapacidades inatas atribuídas aos negros. O retrato de André Rebouças, de Rodolpho Bernardelli, revela o alinhamento do artista com o movimento abolicionista. Maria Alice Rezende de Carvalho e Sydney Santos ajudam a compreender o personagem histórico, enquanto Maria do Carmo Couto da Silva trata da trajetória de Rodolpho. Também a escultura que retrata o Maestro Joseph White é abordada, inclinando à interpretação que alinha as intenções do artista por uma defesa do potencial dos indivíduos de pele negra de performarem em uma sociedade que se apoiava em argumentos cientificistas para lhes negar a cidadania. As duas obras de Belmiro de Almeida que representam D. Obá II constroem uma imagem ridicularizante para o personagem pesquisado por Eduardo Silva, adotando uma abordagem caricatural para retratar um homem atacado pelos periódicos e adorado por

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descendentes de africanos residentes no Rio de Janeiro. Abre-se, então, espaço para um paralelo com as considerações de Richard Powell sobre o dandismo negro nos EUA.

A fim de melhor situar a citação de Carlos Chambelland que nos remete ao

Arranjo em cinza e preto no. 1, de James McNeill Whistler, artista americano de destacada

atuação na Europa da segunda metade do século XIX, será abordada a importância da arte americana no cenário francês. O Capítulo VII trata da obra seminal de Whistler, e também da de Henry Ossawa Tanner, artista negro radicado na França, que também adota elementos do vocabulário de Whistler em suas obras. A Exposição Universal de 1900 é exemplar para caracterizar um momento de visibilidade dos artistas americanos, em especial a dos residentes em Paris, a intencionalidade dos EUA em projetar uma imagem mais nítida no cenário artístico francês, e a exposição Negro Exhibit, vista aqui como indicador de um interesse e uma nova sensibilidade internacional para a observação da imagem do negro em diferentes aspectos. A Exposição, com destaque para a retratística americana, e a Negro Exhibit serão abordadas respectivamente nos anexos I e II.

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1. Os autorretratos de Arthur Timótheo da Costa

Quando Peter Paul Rubens faz seu estudos a partir da cabeça de um homem negro [figura 3], parece estar procurando algo mais do que apenas expressões e poses para personagens de suas pinturas. Temos a impressão de que ele está à procura de soluções para a representação da pele negra e experimenta marrons, dos avermelhados aos amarelados, para criar superfícies e volumes. Talvez tenha sido este, também, o exercício de Arthur Timótheo ao copiar Rubens [figura 2]. Ambos parecem desejar encontrar modos de pintar um rosto negro em seu relacionamento com a luz e com a sombra, e suas variações tonais. Sabemos ser uma prática comum de Rubens a realização de estudos de cabeça, alguns a partir de observação direta, mantidos em seu estúdio para eventual incorporação em suas pinturas, sendo Balthazar, o rei mago mouro, a personagem de origem africana mais frequente tanto em suas obras como nas pinturas do Renascimento e do Barroco. A variedade de ângulos facilitava a retomada das figuras estudadas para utilização nas pinturas.

Encontramos o rosto representado por Rubens em algumas de suas obras, e um exemplo é a inserção de sua versão mais sorridente como uma das personagens na

Adoração dos Magos, de Mechelen [figura 6]. Na obra, a cor da pele parece ser um dado

relevante não somente para o mouro, de quem vemos apenas a cabeça, mas também pelas diferenças entre a face rosada, exposta ao sol das figuras de armadura à direita, e a alvura luminosa do rosto da virgem à esquerda. O mesmo homem negro aparece em um retrato melancólico, hoje na Hyde Collection, mas que não está conectado a outras obras do pintor.

Hoje, o estudo de múltiplos rostos é uma das mais populares obras figuras do Museu Real de Belas Artes da Bélgica, talvez por apresentar uma figura humana de modo direto, e não a pretexto de uma narrativa, talvez pela própria maestria demonstrada em sua execução, ou ainda por apresentar um homem de origem africana, pouco frequente na arte, tido como exótico por muitos. O Getty mantém uma versão, possivelmente de um artista de seu ateliê

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Figura 2

Estudos de cabeça, segundo Peter Paul Rubens, s.d. Arthur Timótheo da Costa

Óleo sobre tela, 30 x 36 cm Museu Afro, São Paulo

Figura 3

Quatro Estudos da cabeça de um mouro, 1615 Peter Paul Rubens

Óleo sobre tela, 51 x 66 cm

Musées Royaux des Beaux-Arts de Belgique, Bruxelas

Figura 4

Cabeça de um negro, 1620 Peter Paul Rubens

Óleo sobre painel de madeira, 45,7 x 36,8 cm The Hyde Collection, Glens Falls

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Figura 5

Atelier de Peter Paul Rubens

Quatro estudos de cabeça masculina, ca. 1617 – 1620 Óleo sobre painel de madeira, 25.4 x 67.9 cm

The J. Paul Getty Museum, Los Angeles

Figura 6

Retábulo da Adoração dos Magos, 1617 Peter Paul Rubens

Óleo sobre painel, 318 x 276 cm

Igreja de São João [Sint-Jankerk], Mechelen

[figura 5], demonstrando o interesse em explorar as especificidades de representação da pele escura, e que se apresenta menos obediente ao original do que a cópia de Timótheo, e também menor dramaticidade pela escolha em horizontalizar a disposição das cabeças.

Iniciamos este texto sobre os autorretratos de Timótheo por este diálogo que o pintor estabelece com Rubens, por nos trazer, de certo modo, seu interesse por uma arte que o refletisse. Timótheo se interessa pela obra de Rubens, em que o rosto negro assume um protagonismo que alcança a ubiquidade. Afinal, Timótheo era um pintor em

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busca de modos de representar um homem negro, olhando para a tradição da história da arte e ao mesmo tempo para o espelho. Em um dos primeiros autorretratos da história da arte, aquele de Albrecht Düre aos 28 anos, o pintor inseriu uma inscrição na qual lemos

Eu me pintei em minhas cores verdadeiras. O pintor anuncia algo único que diferenciaria

autorretratos de retratos. Se por um lado não parece haver fundamento em afirmar que os autorretratos seriam portadores de maior potencial para desvelar alguma dimensão verdadeira e fundamental do sujeito representado, por outro podem nos ajudar a criar hipóteses que descortinem elementos constitutivos de sua autopercepção, bem como de suas aspirações relacionadas à sua imagem projetada para a percepção de terceiros. Vamos analisar os autorretratos de Arthur Timótheo, investigando de que modo tocam obras referenciais, indagando o que sugerem sobre as intenções do artista vinculadas à construção de sua imagem. Cabe, como provocação, a frase de Rousseau:

Estou persuadido de que se está pintado de modo excelente quando alguém pinta a si mesmo, mesmo quando o retrato não apresenta grande semelhança17.

São três os autorretratos conhecidos de Arthur Timótheo, todos incorporados a acervos museais brasileiros. Ao contrário da imagem que lhe faz Chambelland, Arthur se apresenta nessas pinturas acompanhado dos atributos de seu ofício. Na obra da Pinacoteca, datada de 1908 [figura 14], portanto um ano antes da pintura de Chambelland, Arthur aparece segurando seus pincéis junto ao rosto. Na pintura do MNBA [figura 7], realizada onze anos depois, vemos além dos pincéis uma palheta em que se percebem tintas de cores quentes e o pintor trajando um avental e uma boina. Ele se mostra em trajes semelhantes na obra do acervo do Museu Afro [figura 9], que apresenta aparência inacabada. O artista faz aqui uma escolha dupla: escolhe a identificação de sua profissão e, como veremos, incorpora citações que o aproximam de artistas que certamente admirava.

O retrato do MNBA parece se relacionar de maneira especial com um autorretrato de Rembrandt van Rijn da Frick Collection [figura 8]. Não há evidencias de que Arthur tenha visto esta ou outras obras de Rembrandt especificamente, mas para além das semelhanças evidentes que iremos abordar, o artista, assim como Rubens, parecia oferecer indicativos que poderiam ser processados em sua obra na busca por uma renovação pictórica. A escolha de um tom amarelado para o avental, que é branco

16 CLARK, Timothy J. Gross David with the Swoln Cheek: An Essay on Self-Portraiture. Rediscovering

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Figura 7

Autorretrato, 1919

Arthur Timótheo da Costa Óleo sobre tela, 86 x 79 cm

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Figura 8

Autorretrato, 1658 Rembrandt van Rijn

Óleo sobre tela, 133,7 x 103,8 cm Frick Collection, New York

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Figura 9

Autorretrato, s.d.

Arthur Timótheo da Costa Óleo sobre tela,

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na obra do Museu Afro, ecoa a massa amarela que envolve o corpo de Rembrandt. O posicionamento de braços e mãos apresenta similaridades em ambas as obras. A mão direita de Arthur se ocupa de pincéis, e se projeta para frente e para baixo. Em Rembrandt, a projeção é mais frontal. A mão esquerda de Arthur apoia a palheta, deixando o polegar em posição equivalente ao da mão de Rembrandt que segura um tento como se fosse um cetro. A situação de evidência das mãos propiciada pelo posicionamento e pelos atributos, reforçam a importância desses instrumentos de trabalho dos artistas. Rembrandt envolve o corpo com uma faixa vermelha, cor que surge em Arthur na gravata acetinada. Ambos têm o pescoço envolto em tecido branco, que em Arthur está na forma de uma gola alta de camisa. Rembrandt aparece com a cabeça coberta por uma boina de artista escura, criando uma sombra que chega à linha dos olhos. Mais uma vez encontramos semelhanças, sendo a boina de Arthur na cor bege. O rosto de cinquenta e dois anos do holandês, que enfrentava uma fase de dificuldades financeiras após conhecer grande sucesso e prosperidade, contribui com a gravidade das feições, ainda não tão severas para o Timótheo de trinta e sete. Em ambas, um ar altivo que em Rembrandt flerta com um sentido de nobreza.

Ao realizar este retrato, Timótheo se situa como pertencente a uma história, reverencia um mestre da tradição e, ao mesmo tempo, afirma seu valor artístico. Para Miceli:

O que está em jogo é o sentido atribuído e perpetrado pelo artista ao expressar uma definição compacta aliando uma fisionomia, aquela modelada na tela, a uma significação simbólica, que tanto pode ser uma pretensão política, uma qualificação institucional, uma afirmação de prestígio, uma filiação doutrinária ou confessional, uma habilitação erótica ou mundana, ou quaisquer misturas desses investimentos sociais18.

Essa operação de citação em autorretratos encontra em Sir Joshua Reynolds um antecedente importante, sendo um exemplo uma pintura de 1780 que também tem Rembrandt como referencial [figura 10]. O desejo de Reynolds de ver a imagem do artista elevada a outro patamar se evidenciou em sua atuação como primeiro presidente da

18MICELI, Sergio. 1996. Imagens Negociadas. Retratos da Elite Brasileira (1920-40). São Paulo:

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Royal Academy, onde defendia em seus discursos a importância da cópia das obras de grandes artistas do passado. Neste, que é um de seus vinte autorretratos, o artista está no ápice de sua carreira. Reynolds desejava elevar o status do gênero do retrato e buscava referências na antiguidade e nos mestres da tradição19.

Encontramos sua figura ladeada por um busto de Michelangelo, artista a quem dedicava sua mais alta admiração. O busto representado, na verdade, fazia parte de seu acervo pessoal. Mas há ainda maiores paralelos existentes entre a pintura e os autorretratos de Rembrandt, bem como é possível reconhecer semelhanças com a obra

Aristóteles com um busto de Homero [figura 12], também de autoria do holandês, e à

época disponível para sua observação em Londres. Adota a vestimenta de um Doutor de Direito Civil para reforçar o prestígio acadêmico das artes, que não tinha um costume oficial, criando um retrato que comunica prestígio e autoridade.

As citações ajudam a estabelecer a dimensão de importância que o artista atribui a si próprio, e como sua relação com uma linhagem histórica da pintura. A admiração por Rembrandt é ainda mais evidente no retrato da Tate Britain [figura 11]. Enquanto em Rembrandt o autorretrato é também ferramenta de investigação subjetiva, Reynolds prioriza seu potencial de projeção de uma imagem pessoal de poder. Também Whistler se inspira em Rembrandt para realizar Arranjo em Cinza: Retrato do Pintor [figura 13], testemunho da grande admiração que nutria pelo holandês.

Em seu retrato de 1908, Arthur Timótheo se apresenta com o rosto na penumbra. Uma mancha de luz incide sobre sua cabeça, iluminando uma porção de sua testa, e também a mão que segura a palheta aparece especialmente iluminada. O olhar é intenso e dirigido ao observador. Há semelhanças entre a pintura e a imagem que nos traz uma fotografia [figura 15] assinalada como sendo de seu período parisiense, portanto próxima, em data, do retrato. O posicionamento do corpo, as golas da casaca e da camisa se assemelham, assim como a gravata de laço, com visível padrão petits pois na fotografia. Na foto, a luz incide sobre o lado esquerdo de Arthur, deixando visível todo seu rosto, e o enquadramento um pouco mais aberto do que o da pintura permite ver os braços cruzados sobre o corpo, a textura do cabelo, penteado para trás e as pregas da

19 STURGIS, Alexander. Rebels and martyrs: The image of the artist in the Nineteenth Century. Yale University Press, 2006.

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vestimenta folgada. A comparação reforça a hipótese de intencionalidade do artista em suas escolhas pela luminosidade que adota para o retrato.

Figura 10

Sir Joshua Reynolds

Autorretrato de Sir Joshua Reynolds, 1780 Óleo sobre painel, 127 x 106 cm

Royal Academy, Londres

Figura 11

Sir Joshua Reynolds Autorretrato, c. 1775

Óleo sobre tela, 73,7 x 61 cm Tate Britain, Londres

Figura 12

Rembrandt van Rijn

Aristóteles com um busto de Homero Óleo sobre tela, 143,5 x 136,5 cm Metropolitan Museum, Nova York

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Figura 13

Arranjo em Cinza, Retrato do Pintor1872 James McNeill Whistler

Óleo sobre tela, 74.9 x 53.3 cm Detroit Institute of Arts, Detroit

A mão que aparece à nossa direita exibe um anel na fotografia, e na pintura suporta palheta e pincéis, apresentados junto ao rosto. O homem da fotografia parece mais jovial do que figura na pintura. Talvez Timótheo quisesse criar um retrato representativo de uma identidade como artista que se beneficiaria de uma aparência mais madura ou severa. Anos depois, em 1916, Henrique Bernardelli explora os efeitos de luz sobre seu rosto em um retrato similar na presença de um foco luminoso sobre o topo da cabeça [figura 16], enquanto o restante da face está sombreada.

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Figura 14

Arthur Timótheo da Costa Autorretrato, 1908

Óleo sobre tela, 41 x 33 cm

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Figura 15

Autor desconhecido

Retrato de Arthur Timótheo, 1908-09 Fotografia, 21,5 x 15 cm

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[Digite aqui] Figura 16

Autorretrato de Henrique Bernardelli, 1916 Henrique Bernardelli

Óleo sobre madeira, 24 x 18 cm Coleção particular, São Paulo

Figura 17

Autorretrato, 1855-56 Edgar Degas

Óleo sobre papel, aplicado a tela, 40,6 x 34,3 cm Metropolitan Museum, Nova York

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[Digite aqui] Figura 18

Autorretrato, 1857-58 Edgar Degas

Óleo sobre papel montado sobre tela, 26 x 19,1 cm Clark Art Institute, Williamstown

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Figura 19

Autorretrato, 1628

Rembrandt Harmenz van Rijn Óleo sobre madeira, 22,6 x 18,7 cm Rijksmuseum, Amsterdam

Figura 20

Autorretrato, 1629

Rembrandt Harmenz van Rijn Óleo sobre madeira, 15,6 x 12,7 cm Alte Pinakothek, Munique

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Figura 21

Autorretrato, 1863 Edgar Degas

Óleo sobre tela, 92,1 x 69 cm

Museu Calouste Gulbenkian, Lisboa

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No autorretrato de 1908 [figura 14], Arthur parece interessado em Degas, mas aquele que constrói sua autoimagem em diálogo com Rembrandt. Quando observamos os autorretratos do Metropolitan e da Clark, realizados entre 1855 e 1858, vemos o Degas que acabara de desistir da École des Beaux-Arts, prestes a partir para a Itália. O francês experimenta o efeito de luzes e sombras sobre o rosto, como Rembrandt já havia feito [figuras 19 e 20]. Na obra do Clark Institute [figura 18] o chapéu parece fazer as vezes dos cabelos de Rembrandt nos autorretratos em que ele também investiga contrastes marcados sobrepostos às suas feições, chegando a quase encobri-las, além de experimentar o cabo do pincel para criar os cachos delicados de cabelos. O enquadramento próximo e o meio perfil são características comum a estas obras juvenis de Degas e Rembrandt e encontram similaridades com a escolha de Timótheo, em que os pintores dirigem um olhar direto ao observador, ou antes, a eles mesmos. Há em Rembrandt uma maior imediatez, em especial na obra de Munique em que a boca aberta e a sugestão de movimento diferem da solidez de pose e expressão que encontramos em Degas e Timótheo. As palavras de Degas são claras:

Quando estávamos começando, Fantin, Whistler, e eu, nós estávamos no mesmo caminho, a estrada da Holanda.20

A admiração se traduziu nos retratos e interiores burgueses construídos com sobriedade que constituíram um realismo avançado encontrado nas obras de Fantin-Latour, Whistler e Degas no final da década de 1850, inspiradas nas cenas da vida ordenada da classe média holandesa.

Schama trata das múltiplas personas reconhecíveis nos retratos de Rembrandt que o possibilitavam ser qualquer homem21. Ao mesmo tempo em que cria versões de si

como mendigo ou nobre, opta, nos exemplos destacados, por ocultar-se ao cobrir os olhos por sombras. Para o autor, as sombras sobre os olhos ou um lado da face estariam vinculadas à melancolia, tendo Rembrandt desejado criar para si imagens de gênio melancólico, fosse este de fato o temperamento do pintor ou não. Schama compara essas obras ao mencionado autorretrato de Albrecht Dürer, de 1500 [figura 23], exemplo de icon

vera ou imagem verdadeira, associada à miraculosa aparição do rosto de Cristo sobre

tecidos que o tocaram. Em Rembrandt a imagem é construída a partir das relações de

20 Paul Poujaud, carta a Marcel Guérin, 11 de julho de 1936, Cartas, p. 256. In Reff, Theodore. Degas: the artist's mind. Metropolitan Museum of Art, 1976. p.26.

21 Schama, Simon, and Rembrandt Harmenszoon van Rijn. Rembrandt's eyes. New York: Alfred A. Knopf,

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claro-escuro imaginadas, criando um jogo de mostra-esconde que resulta na valorização do olhar semioculto.

Para T.J. Clark, a sombra se relaciona com a interioridade do retratado. Usando o retrato de Rembrandt, de Kassel, Staatliche Gemäldegalerie como exemplo, afirma

(...) the look of the painter in a self-portrait [should] be given an “inside”. The face that stares back at us has to be lent a quality of interiority somehow, ideally of a deeper sort than a mere portrait can manage. It is not enough to have the face just blankly be the information in the mirror. (...) A large part of self-portraiture’s best efforts therefore go to conjuring up a dimension in which the surface of the face, and particularly the eyes, can register as something to be looked through or behind. The face has to be robbed of its first self-evidence, and one way of doing that is to put it partly or wholly in shadow, with the shade maybe falling most deeply across the eyes. The shadow is a metaphor for “inside”.22

Figura 23 Autorretrato

Albrecht Dürer, 1500

Óleo sobre painel de madeira, 66,3 c 49 cm Alte Pinakothek, Munique

22 Clark, Timothy J. “Gross David with the Swoln Cheek: An Essay on Self-Portraiture.” In Roth, Michael S., ed. Rediscovering history: Culture, politics, and the psyche. Stanford University Press, 1994. P.283

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Nas obras de Degas e de Timótheo, o rosto velado adquire uma aura de mistério, embora o ocultamento não se dê na mesma medida que em Rembrandt. Outro artista que parece utilizar recursos semelhantes é Édouard Vuillard [figura 24] em um autorretrato de 1889. Também o retrato de Bracet feito por Timótheo [figura 25] faz o rosto emergir das trevas, repetindo o jogo de claro e escuro. No retrato de Chambelland Arthur também está envolvido em sombras. Em 1900 Freud havia publicado A interpretação dos sonhos, obra que inaugura a psicanálise. Obras como Às avessas de Joris-Karl Huysmans e em certa medida Mocidade Morta de Gonzaga Duque se dedicam a exploração da interioridade de seus protagonistas, que podemos associar ao uso de contrastes na pintura.

Figura 24

Autorretrato, 1889 Edouard Vuillard

Óleo sobre tela, 22,2 x 17,4 cm

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Figura 25

Retrato de A. Bracet, s.d. Arthur Timótheo da Costa Óleo sobre tela, x cm

Pinacoteca do Estado de São Paulo, São Paulo

Figura 26

João Timótheo da Costa, 1908 Rodolpho Amoedo

Óleo sobre painel, 49,5 x 29,7 cm

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Contrapor os autorretratos de Arthur Timótheo com a obra de Chambelland evidencia uma dupla representação que apresenta o artista e o dândi como personagens complementares. O mesmo ocorre se consideramos o autorretrato de Degas em que se representa com seus atributos de artista e seu último autorretrato [figura 21], parte do acervo da Gulbenkian , no qual o francês aparece como o polido flâneur que acena para o observador com sua cartola, enquanto segura suas luvas. O pintor alterna sua representação entre duplos: o pintor e o cavalheiro23. Amoedo parece querer conciliar

essas duas personagens na pintura que faz de João Timótheo [figura 26].

Figura 27

James Abbott McNeill Whistler, 1885 William Merritt Chase

Óleo sobre tela, 188.3 x 92.1 cm Metropolitan Museum, Nova York

23ARMSTRONG, Carol M. Odd man out: readings of the work and reputation of Edgar Degas. University of Chicago Press, 1991. p.229-231.

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Figura 28

Marrom e ouro, 1885

James Abbott McNeill Whistler Óleo sobre tela, 51,5 x 95,8 cm Hunterian Museum, Glasgow

Figura 29

Retrato de Whistler de chapéu, 1857-59 James Abbott McNeill Whistler

Óleo sobre tela, 46,3 x 38,1 cm Freer Gallery, Washington D.C.

Essa dinâmica de contrastes é encontrada também em Whistler, cujos retratos se alternam entre imagens que exibem atributos do dândi, do artista e do boêmio. Isso é

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atestado pela comparação entre: seu primeiro autorretrato [figura 29], datado do final da década de 1850 de inspiração holandesa e que o apresenta como o artista boêmio; a obra, que vimos, de 1872, em que está acompanhado dos atributos do pintor; a imagem esguia que o exibe de corpo inteiro contra um fundo neutro, em pose elegante que cita o Valladolid de Velasquez [figura 28]; e também a imagem que lhe faz William Merritt Chase [figura 27] inspirado pelos retratos do colega americano.

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2. Imagens de dândi em retratos dos séculos XVIII, XIX e XX

O vestuário de Arthur Timótheo da Costa é um elemento que parece ter recebido enorme atenção de Carlos Chambelland. A imagem de elegância criada a partir do preto das roupas, da presença do chapéu e da bengala, elementos combinados para situar este homem em uma época e em uma situação social. Cabe-nos investigar onde se quer situar esse homem, com que padrões e imagens se quer dialogar. Podemos tentar compreender o que ordenava os padrões de vestimentas masculina no século XIX, o que se evidencia em obras correlatas, e que identidade social se busca projetar para Timótheo considerando que moda não é um simples inventário de imagens, mas um espelho do articulado

entrelaçamento de fenômenos socioeconômicos, políticos e de costumes que caracterizam determinada época.24

Chambelland destaca o brilho do cabo da bengala encaixado ao braço e sobreposto ao preto absoluto do terno, e também faz luzir o couro dos sapatos. Põe em evidência o branco das pequenas faixas visíveis de punho, criando eco ao metálico da bengala. Despe uma das mãos de sua luva, enquanto a outra apoia o par e o rosto em atitude pensativa e confiante. Apesar de estar em ambiente interno, o retratado não se despe de seu chapéu, mantém calçada uma das mãos, e não apoia sua bengala no utensílio que vemos no chão. Mantém junto do retratado esses atributos de distinção e elegância recorrentes na representação do dândi o que evidencia a intenção de agregar essa identidade à figura de Timótheo. Cabe investigar a moda masculina, sua evolução ao longo do século XIX e a constituição da estética dândi, o que faremos antes de introduzir retratos que sigam este padrão de representação.

As imagens de dândi criadas por Girodet, Edgar Degas, Henri Fantin-Latour, Édouard Manet e Aubrey Vincent Beardsley serão investigadas como antecedentes por suas similaridades temáticas e formais, bem como pelas peculiaridades das soluções dotadas por cada artista.

Dois exemplos brasileiros de representação de dândis negros trazem luz sobre o contexto brasileiro. Veremos o dândi André Rebouças no retrato de Rodolpho Bernardelli,

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obra de exceção na retratística brasileira pela representação individual de homem negro. Em seguida, analisaremos as pinturas de Dom Obá, de Belmiro de Almeida, que apresenta a figura do dândi negro em viés irônico. As reflexões de Richard J. Powell sobre a imagem fotográfica de um dândi negro nas ruas de Paris e a figura do Dandy Jim nos oferecem um paralelo interessante que aproxima os contextos francês, americano e brasileiro.

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2.1. A moda masculina e o dândi

Boucher25 adota o recorte temporal entre 1869 e 1914 para abordar a passagem

do século XIX para o XX, assinalando que o período apresenta duas questões fundamentais: a evolução do traje de tipo europeu nos países do antigo e do Novo Mundo e a predominância da criação francesa sobre esse desenvolvimento. Dessa forma, a expansão comercial e industrial de países europeus e também dos Estados Unidos difundiu para colônias ou países de influência costumes gerados inicialmente na França, mesmo que com variados processos de adaptação.

No Brasil, as influências da moda europeia eram notadamente presentes, mas a realidade da escravidão, e de sua herança no período imediatamente posterior à emancipação, se tornava visível nas diferentes soluções de vestuário exibidas por negros e brancos, por exemplo, nas ruas de cidades brasileiras na passagem do século XIX para o século XX.

Gilberto Freire diferencia os "modos de homem" e as modas de mulher, atribuindo aos gestos e hábitos masculinos um importante papel responsável por evidenciar lugares sociais distintos. Freyre nos lembra como a ocupação da cidade por indivíduos de diferentes classes e heranças podia ser lida e interpretada a partir de sinais visuais impressos no corpo e nas roupas. (...) só aos negros de pé no chão – grandes pés, chatos

e esparramados, alguns de dedos torrados pelo ainhum, outros roídos de aristim ou inchados de bicho – como aos próprios caixeiros de chinelo de tapete e cabelo cortado à escovinha e até aos portugueses gordos de tamanco e cara raspada estavam fechados aqueles jardins e passeios chamados públicos, aquelas calçadas de ruas nobres, por onde os homens de posição, senhores de barba fechada ou de suíças, de botinas de bico fino, de cartola, de gravata, ostentavam todas estas insígnias de raça superior, de classe dominadora (...)26

As roupas usadas pelos negros escravos envolvidos no trabalho rural, e também pelos negros de ganho, se diferenciavam pelos materiais, sendo comum o uso do algodão em camisas e calças de corte simples, sem a estrutura de alfaiataria comum às roupas dos

25 Boucher, François. História do vestuário no Ocidente. São Paulo. Cosac Naify. 2010.

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homens brancos. Outros que desempenhavam funções dentro das casas grandes ou, por vezes, atuavam em residências urbanas, recebiam roupas mais elaboradas por haver uma associação mais direta entre sua imagem e a posição social dos donos da casa. Alguns recebiam joias cujo uso denotava as posses de seus senhores. Mas mesmo o escravo do campo já deveria, por meio de suas roupas, diferenciar-se do negro recém- desembarcado, que independente de seus costumes de origem, era exibido nu nos mercados de escravos, que ao receber suas roupas se civilizava por ação de seus donos, conquistando também conformidade mínima aos padrões de moralidade.

Gilberto Freire fala sobre a adoção das cores escuras também no Brasil a partir dos anos de 1830

(...) O que interessa assinalar é a penetração no Brasil do século XIX – o primeiro século de vida e de cultura nacionalmente brasileiras – pelas modas de mulher vindas da França e de homem, vindas da Grã-Bretanha. Foi uma penetração grandemente reorientadora de gostos brasileiros no setor do trajo, a começar por uma reorientação em preferências de cor que se refletiram num Brasil recém saído da condição colonial. Condição de um quase isolamento do Brasil, de Europas, que não fosse a metropolitanamente portuguesa, e de ligações noutras partes do mundo, limitadas a Orientes e Áfricas relacionados direta ou indiretamente com Portugal. A abertura dos portos brasileiros a europeus não lusitanos trouxe subitamente ao Brasil – uma revolução para cultura brasileira – impactos europeizantes que, a aspectos políticos, econômicos, tecnológicos, juntou o de gostos europeus por cores de inspiração como que austeramente industriais, carboníferas, neotecnológicas e, até, positivistas e – no sentido lato da palavra – antirromânticas. Inspiração marcadamente britânica a que se juntou a francesa. A adoção de pretos, pardos, cinzentos em artigos de vestuário masculino com transbordamento sobre o feminino, acentue-se que foi um desses impactos europeizantes, como que, de certo modo, antibrasileiros, sobre um Brasil em grande parte situado em ambiente tropical.27

Para a Profa. Gilda de Mello e Souza, o uso preto teria se iniciado um pouco mais à frente.. Ela identifica ainda a separação ocorrida no século XIX no que se refere ao uso da cor pelos diferentes gêneros, o que faz com que o preto seja adotado pelos homens de modo preponderante.

27 Idem, p. 133.

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A moda do preto só começará em 1840 mais ou menos, devido a Bulwer Lytton e aos escritores românticos. Ela vai alastrar-se mesmo pela gravata e o homem se cobrirá de luto (...).28

E ainda

Eis em traços rápidos um apanhado da moda no século XIX. Mais do que nas épocas anteriores, ela afastou o grupo feminino do masculino, conferindo a cada um uma forma diferente, um conjunto diverso de tecidos e de cores, restrito para o homem, abundante para a mulher, exilando o primeiro numa existência sombria em que a beleza está ausente, enquanto afoga a segunda em fofos e laçarotes.29

Para Barthes os objetos de moda podem ser investidos de significado pelos usuários ou pelos textos de moda que dão a eles a vida de um sinal; podem também retirar deles esta vida, de modo que o significado é como uma graça recebida pelo objeto.30 Na

moda, portanto, os significados seriam evanescentes, permitindo que alguém esteja ou não na moda, e fazendo com que estas possibilidades se transformem no tempo e de acordo com contextos específicos. Os significados das roupas são construídos sobre elas, a partir de escolhas de quem confecciona as peças e também de quem as usa.

Tudo na linguagem é um sinal, nada é inerte; tudo emite significado, nada o recebe. No código vestuário, a inércia é o estado original (...) uma saia existe sem significado, antes de significar; o significado que recebe é ao mesmo tempo encantador e evanescente. 31

Para Perrot:

Vestuário, assim como a linguagem, sempre ocorre em algum lugar, em um espaço geográfico e social. Em sua forma cor, material, construção e função – e por causa do comportamento que sugere – roupas apresentam sinais óbvios, marcas atenuadas ou traços residuais de embates, contatos entre culturas, empréstimos,

28 Souza, Gilda de Mello e. O espírito das roupas. Companhia das Letras, São Paulo, 1996, p. 69

29 Idem

30 BARTHES, Roland. O sistema da moda. Edições 70. 1999.

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intercâmbios entre regiões econômicas ou áreas culturais assim como entre grupos de uma mesma sociedade.32

O século XIX viu grandes modificações na cultura e nos costumes. Segundo Perrot, nesse período o triunfo da burguesia espalhou seu vestuário através de classes e

oceanos na medida em que a classe média progressivamente impôs sua ordem econômica, política e moral, e junto a isso, seu sistema de vestir com suas implicações morais e ideológicas33. Essa burguesia desenvolveu um sistema baseado na aparência, que

apresentava certa complexidade ao estabelecer diferenças entre elite e classe média, mas também estabelecia estratégias para que a classe média se distanciasse dos trabalhadores.

No caso do vestuário masculino do século XIX muitas das formas perduraram por longos períodos de tempo. O preto e os tons escuros de cores como o azul, o cinza e o verde, seriam o melhor exemplo dessa permanência. A burguesia, após dar fim ao absolutismo, rejeita o uso da cor característica do vestuário exuberante da aristocracia. A extinção da cor seria um sinal político de que uma nova ordem social havia chegado. Também sinalizava o estabelecimento de uma nova ética baseada na vontade, autonegação, parcimônia e mérito. Essa estética austera atravessou incólume todo o século XIX, sendo notável nas roupas de adultos e crianças. A respeitabilidade burguesa teria de ser acompanhada de uma imagem que combinasse dignidade e rigor expressando uma nova moralidade e a glorificação do homem comum. Desse modo, foram revistos o uso de joias, os materiais como renda e brocados, os ornamentos como as grandes fivelas brilhantes dos sapatos de salto e os laços nas jaquetas, bem como os acessórios, tais como caixas de rapé.

Vale lembrar que, na maior parte do século XVII, o artifício era um dado considerado necessário para a interação social civilizada, amaciando a aspereza dos gestos e atenuando as ações instintivas. A vida social era vista como devendo obedecer a dinâmicas teatrais. Nesse sentido, a peruca, importante no vestuário masculino entre 1660

32PERROT, Philippe. Fashioning the bourgeoisie: a history of clothing in the nineteenth century. Princeton

University Press, 1994. p.7 33 . Idem

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e 1810, evidenciava a artificialidade da persona pública e ajudava a construir a imagem de compostura e respeitabilidade desejável. 34

Para Harvey, a emergência do simples e, em seguida, da cor preta no vestuário teria obedecido a um processo complexo com origem na Inglaterra, não na França.

O estilo simples tem suas origens menos num suposto nivelamento social do que nas necessidades práticas da pequena nobreza inglesa, que viajava não em carruagens, mas a cavalo. Em relação ao negro, a primeira peça de roupa masculina a escurecer não foi a casaca da burguesia democrática, mas, sim, o smoking usado pela alta sociedade.35

Uma referência interessante que ilustra as extravagâncias do século XVIII é o londrino Macaroni Club, constituído na década de 1770, onde um grupo da elite inglesa habituado a viagens pelo continente se reunia exibindo roupas justas confeccionadas em tecidos finos, altas ou longas perucas com rabo de cavalo dobrado ao meio, pequenos chapéus adornados com penas, espadas e bengalas decoradas. Precursores do dândi, na verdade os macaroni poderiam ter diferentes origens sociais, tendo sido nascidos na elite ou ascendidos como burgueses. Um macaroni [figuras 30 e 31] não é nascido como tal, mas feito. Sua opção pela excentricidade é um emblema do indivíduo self-made.

De fato a figura do macaroni se tornou um catalisador do debate sobre como os Britânicos poderiam responder ao canto da sereia do consumo do luxo, do individualismo e da sofisticação cultural sem exceder as fronteiras regulares da moda. O nome do clube se relacionava ao tipo de pasta trazido de suas estadas na Itália e identificava inicialmente os indivíduos que se situavam fora dos padrões convencionais da moda, mas depois passou a identificá-los para assinalar seus excessos, representados em caricaturas que os caracterizavam como figuras decadentes. Pode-se pensar nos macaroni como predecessores do dândi, assim como os Beaux, os Bucks, os Exwuisites, Fops e Lions. Além desses ingleses, na França eram chamados Muscadins, os Incroyables e Les Lions, todos dedicados a impressionar, causar choque por meio de seus estilos nada convencionais e, via de regra, acompanhados de estética e comportamento de sexualidade ambígua.

34STEELE, Valerie. The social and political significance of Macaroni fashion. Costume, v. 19, n. 1.1985. p. 103

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Figura 30 Lord, 177336

Anônimo [inglês]

Gravura sobre papel, 183 x 103 mm British Museum, Londres

Figura 31

The Walebone Mac, 1772 Matthew Darly

Gravura sobre papel, 176 x 125 mm British Museum, Londres

Na primeira metade do século XIX, a admiração pelo requinte aristocrático pode permanecer como o avesso de um desejo evidenciado nos forros de pele, cetim ou seda nos coletes, peças quase invisíveis, feitos de tecidos vistosos. Também nos acessórios de seda como luvas, gravatas e chapéus. Merece destaque o corte das peças, com talhe rente ao corpo, ou apresentando detalhes como a cauda dos casacos, criando silhuetas específicas e desenhadas. Os punhos e golas de branco imaculado e severamente engomados surgem como indicadores de elegância, mas, também, como certo afastamento do trabalho braçal. A elegância se desenhava entre o comedimento expresso no conjunto e um tipo de gasto mais generoso concentrado em peças que privilegiavam a forma em detrimento da função, e que funcionavam para estabelecer o sentido de distinção. Assim se buscava o resultado de uma sofisticação pautada pela ética do trabalho, em contraposição à vida de lazeres associada à aristocracia. Da mesma maneira, se modificaram os gestos na passagem do setecentos para o oitocentos, tornando-se mais contidos e naturais.

Para além das mudanças de gosto, o século XIX viu surgir mudanças nos modos de produção e consumo de roupas. As butiques de moda se disseminam e as lojas de

36 A standing man (Viscount Grandison, later Earl of Jersey) striking a pose with arms outstreched,

hat in one hand; a plate from “The Macaroni and Theatrical Magazine”, February 1773, p. 193.

Referências

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