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Práticas de letramento e igualdade de gênero: a literatura (trans)formando leitores

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Práticas de letramento e igualdade de

gênero: a literatura (trans)formando

leitores

Lívia Maria Rosa Soares1

1 Mestre em Letras pela Universidade Estadual do Piaui. Professora EBTT de Língua Portuguesa - Campus Araioses, Coordenadora do Projeto de Pesquisa A relação entre analfabetismo funcional e fracasso escolar na adolescência: panoramas e iniciativas possíveis através de oficinas de letramento literário em Araioses-MA.

RESUMO

Quando se fala sobre as questões de gênero no espaço educacional, a Literatura é uma das maneiras mais acessíveis de fazer esse tema chegar ao mundo infantil e juvenil de uma maneira eficaz e oportuna, especialmente em um país que ocupa a 5ª posição no ranking mundial em casos de violência contra as mulheres. Este trabalho objetiva ana-lisar a importância da leitura de obras que permitam a (res)significação das questões de gênero na literatura infantojuvenil contemporânea, aqui exemplificada pelos contos de fadas de Marina Colasanti. Essas narrativas permitem o diálogo com histórias reunidas da tradição popular e associam-se aos novos discursos sociais, relacionados à igualdade de gênero, além de ajudar na construção do senso critico dos leitores, constituindo-se como prática de letramento. Os contos infantojuvenis da autora apresentam personagens que (re)constroem e (re)dimensionam a representação da mulher, as quais agem de forma in-dependente e altiva frente às conflituosas relações de afeto com o oponente masculino, geralmente o pai, o companheiro ou até mesmo toda a sociedade. A partir da linguagem simbólica proposta nessas obras, os enredos redimensionam papéis que indicam a assimi-lação/transformação do passado, ao mesmo tempo em que põem às claras desequilíbrios presentes no contexto histórico, político e social de várias épocas. Isso permite ao leitor iniciante uma postura crítica e questionadora, uma vez que mais do que decodificar a linguagem escrita, a produção de Colasanti incentiva a exploração dos sentidos do texto por meio da relação entre os elementos que compõem as narrativas maravilhosas e a reali-dade, possibilitando às crianças e jovens um aprendizado que as situações do mundo real não oferecem. Como fundamentação teórica deste estudo apresentam-se os pressupos-tos de Arroyo (2010), Lajolo e Zilberman (2005), Cecil Zinani (2009), Lúcia Zolin (2003, 2006), Cosson (2007) para esclarecer de que forma essas configurações literárias contri-buem para as práticas de letramento e a construção de novos valores, contribuindo para a consolidação de uma sociedade mais justa e democrática.

Palavras-chave: Formação de leitores. Letramento. Igualdade.

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Literacy practices and gender equality:

literature (trans)forming readers

ABSTRACT

When talking about gender issues in the educational space, Literature is one of the most accessible ways to make this topic reach the world of children and youth in an effective and timely manner, especially in a country that ranks 5th in the world ranking in violen-ce against women. This work aims to analyze the importanviolen-ce of reading works that allow the (re) signification of gender issues in contemporary juvenile literature, here exempli-fied by the fairy tales of Marina Colasanti. These narratives allow dialogue with stories gathered from popular tradition and are associated with new social discourses related to gender equality. The author’s children stories present characters who (re) construct and (re) dimension the woman’s representation, who act in an active manner in the face of conflicting affective relations with the male opponent, usually the father, the partner or even the whole society . From the symbolic language proposed in these works, the entan-glements re-dimension roles that indicate the assimilation / transformation of the past, while at the same time putting clear imbalances present in the historical, political and social context of various eras. This allows the beginning reader a critical and questioning posture, since rather than decoding the written code, Colasanti’s production encourages the exploration of the meanings of the text through the relation between the elements that compose the wonderful narratives and reality, constituting as a practice of literacy, enabling children and young people to learn what real-world situations do not offer. As a theoretical basis of this study, we present the assumptions of Arroyo (2010), Lajolo and Zilberman (2005), Cecil Zinani (2009), Lúcia Zolin (2003, 2006) and Cosson (2007) to cla-rify how these literary configurations contribute to literacy practices and the construction of new values, contributing to the consolidation of a more just and democratic society.

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1 INTRODUÇÃO

O presente texto pretende provocar uma reflexão acerca da importância de práticas de letramento que contribuam para a con-solidação de uma sociedade mais democrá-tica, especialmente no que diz respeito às questões de gênero. A partir da seleção e lei-tura literária no espaço escolar é possível ao leitor vivenciar questões percebidas exter-namente à obra de arte. Este recurso peda-gógico pode auxiliar na formação do senso estético, além de contribuir para a supera-ção de desigualdades observadas ao longo dos anos, uma vez que a literatura trabalha com imagens simbólicas, o que permite um aprendizado que muitas vezes as situações reais de aprendizagem não oferecem.

Dessa forma, este artigo versa sobre inves-tigações relacionadas à mediação e seleção de obras no espaço escolar que abordem a representação da mulher na modernidade, aqui representada por um dos contos in-fantojuvenis de Marina Colasanti.

Discutiremos como a Literatura pode ser uma ferramenta que pode ajudar na cons-cientização de sujeitos em formação sobre os diversos tipos de violência que as mulheres foram e são vitimas ao longo do tempo. Para tanto, será feita a análise do conto mulher

ramada de Marina Colasanti. Nele, o leitor

em formação poderá interpretar “o outro lado da história”, pois há uma protagonista que escreve seu próprio destino e apresenta um comportamento que subverte a passivi-dade e a submissão das princesas representa-das nos contos de farepresenta-das tradicionais.

Essas abordagens, mesmo no plano ficcio-nal, permitem ao sujeito refinar os senti-mentos e harmonizá-los com sua natureza e cultura, ajudando a superar os dilacera-mentos e a fragmentação da sociedade mo-derna, formando seres humanos completos e aptos a atuarem de forma ética, justa e de-mocrática dentro e fora do espaço escolar.

2 LITERATURA E

ENGAJAMENTO NO

ESPAÇO ESCOLAR

É incontestável a importância da leitura li-terária no espaço escolar e/ou familiar. Por isso, as obras que circulam em ambientes de leitura destinados a crianças e jovens, além de estimular o desenvolvimento do senso estético dos leitores em formação, devem, a partir de um trabalho artístico com a lingua-gem, permitir reflexões sobre questões que os ajudem a perceber as relações entre si, os outros e o mundo. Considerando que a escri-ta acompanha a vida das pessoas do começo ao fim, as práticas sociais que articulam a leitura e a produção de textos em contextos diversificados são denominadas Letramento. Entre esses contextos, a literatura ocupa uma posição privilegiada porque conduz ao do-mínio da palavra a partir dela mesma.

Cabe ressaltar que a Literatura infantil e juvenil contemporânea produzida por im-portantes autores brasileiros, vem apresen-tando histórias que descrevem a realidade muitas vezes marcada por desigualdades e desequilíbrios, sem deixar de apresentar uma linguagem lúdica adequada aos leito-res em formação.

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E, quando se fala sobre as questões de gêne-ro no espaço educacional, sem dúvida, a Li-teratura é uma das maneiras mais acessíveis de fazer esse tema chegar ao mundo infan-til e juvenil de uma maneira eficaz e opor-tuna, especialmente em um país que ocupa a 5ª posição no ranking mundial em vio-lência contra as mulheres segundo a ONU. Cotidianamente, ainda se registram inúme-ras disparidades no meio profissional e so-cial em relação a homens e mulheres. São expressivos os casos de violência explícita e velada, construindo toda uma rede de pre-conceitos e interdições que se perpetua ao longo dos anos. Por essa razão, as questões de gênero merecem ter um espaço maior de debates dentro e fora da escola.

No passado, as mulheres ocupavam somen-te o espaço doméstico, não tinham direito ao voto e estavam subordinadas a lugares periféricos. Eram submetidas aos desarran-jos de uma sociedade patriarcal e misógi-na, que rotulava suas produções científicas, artísticas e profissionais como inferiores ou sem valor algum. Especificamente, em re-lação às obras de autoria feminina, muitas autoras usavam codinomes masculinos ou transvestiam suas insatifações em metáfo-ras ou alegorias, pois a crítica literária tam-bém era essencialmente misógina. Por isso, as obras que pertenciam ao cânone literário também representAavam discursos oriun-dos da sociedade patriarcal, que durante muitas décadas dominaram as produções artístico-culturais.

A esse respeito, no ensaio Por que nos

pergun-tam se existimos? a escritora Marina

Colasan-ti reflete sobre o preconceito com que ainda hoje se pensa a relação mulher/escrita:

Ora, as escritoras estão perfeitamen-te conscienperfeitamen-tes de que ainda hoje um preconceito pesado tende a colorir de rosa qualquer obra de literatura feminina. Apesar da onda dos anos sessenta que envolveu os escritos das mulheres em um grande e esperan-çoso movimento, não conseguimos vencer a barreira. O preconceito per-dura. Pesquisas mostram que basta a palavra mulher em um título para es-pantar os leitores homens e abrandar o entusiasmo dos críticos. E embora não precisemos mais nos esconder atrás de pseudônimos masculinos, como no século XIX, sabemos que os leitores abordam um livro de ma-neira diferente quando ele é escrito por uma mulher ou por um homem. (COLASANTI, 2004 p.70-71)

Por essa razão, a literarura assume uma fun-ção humanizadora, pois é plena de saberes sobre o homem e o mundo, onde eu amplia o saber da vida por meio da experiência do outro. Na escola, a leitura literária deve ser compartilhada, e isso se faz através de aná-lise literária que “toma a literatura como um processo de comunicação” e se efetiva quando a obra é explorada sob os mais va-riados aspectos.

Essa exploração cabe ao professor, que cria condições para o encontro do aluno com a li-teratura. A esse respeito, Cosson (2006) afirma

Em primeiro lugar, o letramento li-terário é diferente dos outros tipos de letramento porque a literatura ocupa um lugar único em relação à

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linguagem, ou seja, cabe à literatura “[...] tornar o mundo compreensível transformando a sua materialidade em palavras de cores, odores, sabo-res e formas intensamente huma-nas” (COSSON, 2006, p. 17).

Por essa razão, discutir gênero na escola é uma forma de ampliar o debate acerca des-sa problemática, contribuindo para apro-fundar os debates sobre essa questão e es-timular a construção de novos paradigmas e a (re)definição dos papéis sociais. Como exemplo da importância dessas aborda-gens no espaço escolar, A ONU Mulheres, desenvolve o projeto Gênero e Educação: fortalecendo uma agenda fortalecendo es-sas abordagens, que tem por objetivo for-talecer relações de igualdade de gênero nas políticas educacionais.

O órgão também lidera algumas iniciativas importantes que incentivam a implementa-ção de políticas públicas na área de educa-ção e gênero, tais como o programa Gênero e Diversidade na Escola, Escola sem Homo-fobia, Mulher e Ciência. Contudo, infeliz-mente essas são políticas públicas que ainda não chegaram à maioria das escolas, pois co-meçaram a ser desenvolvidas recentemente através das recém-criadas Secretarias de Po-líticas para as Mulheres, Direitos Humanos e Igualdade Racial, ainda com pouca repre-sentatividade em estados e municípios. Assim, além dessas iniciativas, é impor-tante que os educadores também abram espaço para discussão em torno de ques-tões relacionadas a gênero, discriminação, igualdade, raça, etnia, entre outras

temáti-cas, a partir de rotinas escolares que colo-quem essa temática em protagonismo, fa-vorecendo o debate sobre o feminismo de forma contextualizada e condizente com cada nível de ensino.

3 PRINCESAS QUE

ESCREVEM SEUS

DESTINOS: A OBRA

COLANSANTIANA

Marina Colasanti é uma das autoras contemporâneas que mostra empenho em fazer uma literatura que humaniza os lei-tores, resgatando a tradição dos contos de fadas, porém com um discurso que “veste roupa nova”, despertando inquietações e questionamentos, sem perder as afinidades com o passado, a tradição oral e popular. Assim, a maioria de seus contos infanto-juvenis segue a esteira dos escritores que optam por uma literatura questionadora, revelando em suas narrativas as relações convencionais existentes entre a criança e o mundo em que ela vive e questionando os valores sobre os quais nossa sociedade está assentada (COELHO, 2010).

Ao analisar o protagonismo feminino den-tro da literatura infantil brasileira, Lajolo (1989) enfatiza a importância de conside-rar a historicidade da condição feminina, apontando a “docilidade com que a litera-tura infantil espelha e reforça as sucessivas imagens de mulher endossadas em diferen-tes momentos da sociedade brasileira” (LA-JOLO 1989 p. 19).

Assim como as autoras Lygia Fagundes Tel-les, Cecília MeirelTel-les, Rachel de Queiroz,

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Lygia Bojunga Nunes, entre outras contem-porâneas femininas, Colasanti encontra-se também, intensamente ligada à libertação da mulher por meio das ideologias de suas narrativas. Em seus livros, os assuntos su-gestivamente nos remetem para o universo feminino. Deste modo, as suas narrativas se enchem de fantasia com a finalidade de discutir comportamentos sociais, frutos de convicções dominadoras.

Boa parte dos contos infantojuvenis da au-tora destinados a leitores em formação pro-põe uma (re)definição da condição femini-na no mundo. E podem ser usados como material didático que permite repensar a representação dos papéis de gênero na so-ciedade.

4 A MULHER RAMADA:

NOVOS TEMPOS, NOVOS

DESTINOS

A seguir apresentaremos a análise de um dos contos da autora que permite um diá-logo com as questões de gênero e que tam-bém possililita ao docente o trabalho com a leitura a partir de práticas de letramento literário.

O conto mulher ramada faz parte da cole-tânea infantojuvenil Antes de virar gigan-te, publicada em 2001. A história se passa em um lugar longínquo, com personagens inominados e apresenta um único conflito central, ou seja, segue a mesma estrutura e sequência dos contos de fadas tradicionais, porém com novas configurações para os papéis sociais.

Um jardineiro realiza seu trabalho com muita disciplina, contudo nunca é nota-do pelos outros habitantes daquele reino: “Há damas e cavaleiros, mas ninguém o via afastado no jardim, confundia-se com as plantas, tão sozinho, pensou no dia que seria bom ter uma companheira” (COLA-SANTI, 2001, p. 27).

Apesar da solidão, o jardineiro cumpria sua tarefa de cuidar das flores para que elas fi-cassem sempre vistosas, mas lamentava por não ter ninguém com quem compartilhar a vida. Diante dessa falta, o jardineiro de-cidiu “cultivar uma companheira”. No dia seguinte, trouxe um saco com duas belas mudas. Escolheu o lugar, cavou a primeira cova e com gestos sábios de amor enterrou as raízes. Quando os primeiros galhos des-pontaram, carinhosamente os podou, até que outros galhos brotassem mais fortes. Durante meses, trabalhou conduzindo os ramos de forma a preencher o desenho que só ele sabia, retirando os espigões teimosos que escapavam à harmonia exigida. O jar-dineiro vai trabalhando na imagem de sua amada, sempre eliminando os excessos, conforme descrição a seguir:

Aos poucos, entre suas mãos, o arbusto foi tomando forma, fazendo surgir dos pés plantados no gramado duas lindas pernas, depois o ventre, os gentis braços da mulher que seria sua. Por último, cuidado maior, a cabeça, levemente inclinada para o lado. O jardineiro ainda deu os últimos retoques com a ponta da tesoura. Ajeitou o cabelo, arredondou a curva de um joelho. Depois, afastando-se para olhar, murmurou

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tado: - Bom dia, Rosamulher. (COLASANTI 2001. p. 10):

No trecho acima, o jovem leitor percebe-rá o insólito, o elemento sobrenatural que é típico dos contos de fadas que herdaram muitas caracteríscicas dos contos folclóricos produzidos a partir dos saberes humanos empíricos oriundos da tradição oral. Nesse trecho também é perceptível ao leitor, as-sim como no mito biblico de Adão e Eva que a mulher surgiu como obra do homem: nasce a Rosamulher, que se tornaria com-panheira do solitário jardineiro. E, da mes-ma formes-ma como no mito bíblico a mulher “recém-criada” deveria ser subordinada ao seu criador. Talvez fosse esse o desfecho de um conto de fadas clássico, mas essa ordem estabelecida será subvertida como forma de diálogo com os novos paradigmas típicos da modernidade e os novos discursos so-ciais presenciados no mundo real.

Inicialmente, a personagem “Rosamulher” tinha a cabeça inclinada para o lado e não para frente. O amor que o jardineiro parece sentir por sua nova companheira apresen-ta um paradigma de dominação. Essa ima-gem simbólica é constante, como um dos fios condutores da narrativa colasantiana. Com o passar dos dias, a admiração do jar-dineiro pela “Rosamulher” só aumentava, por diversas vezes ele é descrito como fiel contemplador de sua obra.

Porém, mesmo com todos os cuidados de seu criador, Rosa mulher não se desenvolvia como as outras plantas daquele jardim. Essa imagem poética dá margem a interpretações e reflexões referenciadas nos papeis de gênero:

E, mesmo no escuro da terra, as raízes acor-daram, espreguiçando-se em pequenas pon-tas verdes. Mas, enquanto todos os arbustos se enfeitavam de flores, nem uma só gota de vermelho brilhava no corpo da roseira. Nua, obedecia ao esforço do seu jardineiro que, temendo viesse a floração romper tan-ta beleza, cortan-tava todos os botões. De tan-tanto contrariar a primavera, adoeceu, porém, o jardineiro. E, ardendo de amor e febre na cama, inutilmente chamou por sua amada. (COLASANTI 2001. p. 08)

Neste trecho, percebemos que todos os cui-dados destinados a sua amada impediam o desenvolvimento da planta. O jardineiro cor-tava todos os botões, sempre contrariando a natureza. Todavia, a rosa resistia às dificul-dades. Muitos dias se passaram antes que ele pudesse voltar ao jardim. Quando afinal con-seguiu se levantar para procurar por sua ama-da, o jardineiro percebeu que sua ausência havia feito a “Rosamulher” se desenvolver. Isso fez com que o jardineiro se surpreen-desse, pois a “Rosamulher”, sem os seus cuidados parecia ainda mais bela: “Florida, pareceu-lhe ainda mais linda” (op cit 2001. p. 10). Perdida estava a perfeição do rosto, perdida a expressão do olhar, mas do seu amor nada se perdia. Nunca “Rosamulher” fora tão rosa e seu coração de jardineiro soube que jamais teria coragem de podá--la. Nem mesmo para mantê-la presa em seu desenho. Então, docemente a abraçou descansando a cabeça no seu ombro. E es-perou, o jardineiro envolvido por aquele contato perdeu-se entre as folhagens.

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Em todo o conto, a plurissignificação é evi-dente. O trabalho com a linguagem e as imagens construídas permite uma correla-ção entre o discurso literário e as tensões so-ciais, uma vez que, enquanto vivia subordi-nada aos cuidados de seu criador, a rosa em nada se desenvolvia. O homem percebe que enquanto esteve longe, a vida de sua rosa se desenvolveu muito mais. Diante disso, o jardineiro se entrega eternamente à aman-te, conforme o trecho descrito a seguir: E sentindo sua espera a mulher-rosa co-meçou a brotar: lançando galhos, abrindo folhas, envolvendo-o em botões, casulo de flores e perfumes. Ao longe, raras damas surpreenderam-se com o súbito esplendor da roseira. Um cavaleiro reteve seu cavalo. Por um instante pararam, atraídos. Depois voltaram a cabeça e a atenção, remontando seus caminhos. Sem perceber debaixo das flores o estreito abraço dos amantes. (CO-LASANTI 2001. p. 10)

Percebemos que a tessitura narrativa de A

mulher ramada apresenta o

reconhecimen-to da experiência de uma mulher que passa a viver de forma independente por meio de uma linguagem esteticamente trabalhada e acessível à criança e ao jovem, conforme exemplificado a seguir:

Verde claro, verde escuro, canteiro de flores, arbusto entalhado, e de novo verde claro, verde escuro, imenso lençol do gramado; lá longe o palácio. Assim o jardineiro via o mundo, toda vez que levantava a cabeça para ir ao trabalho [...]. E aos poucos, entre suas mãos, o arbusto foi tomando forma, fazendo surgir dos pés plantados no

grama-do duas lindas pernas, depois o ventre, os gentis braços da mulher que seria sua. (CO-LASANTI 2001. p. 10)

Além disso, esta narrativa também apre-senta uma herança de crenças e práticas ri-tualísticas sugeridas a partir das mudanças observadas nos dois personagens do conto. Entretanto, essas transformações destacam a inversão de papéis: ao invés de a mulher render-se à imposição masculina, o homem entrega-se à sua beleza e aceita sua liberdade, ou seja, a história estrutura-se nos moldes das narrativas clássicas, porém, a maneira de representar os sujeitos sociais se atualiza. A partir dessa configuração narrativa, o dis-curso ficcional reproduz valores e compor-tamentos também vivenciados externamen-te à obra liexternamen-terária. É possível localizar uma interpretação do contexto social no qual a mulher está inserida, construindo por meio de recursos enunciativos diferenciados, a representação da imagem feminina. A esse respeito, Lucia Zolin (2009, p. 107) ressalta as contribuições que essas novas representa-ções trazem aos estudos culturais:

No contexto da pós-modernidade – profí-cuo às manifestações da heterogeneidade e da multiplicidade, e inóspito aos discursos totalizantes –, a crítica literária feminista, bem como o feminismo entendido como pensamento social e político da diferença, surge com o intuito de desestabilizar a le-gitimidade da representação, ideológica e tradicional, da mulher na literatura canôni-ca. Após um momento inicial de denúncia e problematização da misoginia que per-meia as representações femininas tradicio-nais, ora presas à nobreza de sentimentos e

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ao caráter elevado, ora relacionadas com a Eva pecadora e sensual, o feminismo crítico volta-se para as formas de expressão oriun-das dos próprios sujeitos femininos.

Essa mudança de representação é observada neste conto, pois sugere interpretações so-bre a quebra de estereótipos por muito tem-po conferidos a homens e mulheres. E, em se tratando de obras voltadas para crianças e jovens, essas imagens vêm carregadas de simbologias e de forma subliminar.

Além disso, leva para o espaço escolar uma temática relevante que subjaz várias ten-sões presentes no cotidiano dos alunos. Ou-tra questão relevante é a semelhança com histórias recolhidas do imaginário coletivo que faz recordar que durante muitos anos, as mulheres foram as grandes narradoras que mantiveram vivas histórias milenares propagadoras de valores patriarcais. Agora, na modernidade, as histórias aparecem es-truturadas e amalgamadas pela própria vi-vência do feminino, no ato de viver. Isto é, propõem uma realidade outra, traçando um retrato da memória coletiva que guarda um discurso que permite o questionamen-to em relação aos embates de gênero, ao mesmo tempo em que dialoga com as nar-rativas tradicionais, sem perder a fantasia e permitindo o despertar da imaginação. Se-gundo Nelly Novaes Coelho:

A consciência desse poder criador é uma das bases da literatura infantojuvenil contem-porânea que vem se revelando como um dos férteis campos de experimentação do verbal e do visual para a invenção de novos modos de ver, sentir, pensar, etc. A partir dessa nova interpretação da palavra como

construtora do real, explora-se a técnica da intertextualidade (absorção de um texto antigo por um novo), técnica resultante de que não há texto original, pois cada texto novo depende visceralmente de um texto anterior a este. Nesta linha estão as sátiras, paródias ou reinvenção dos antigos contos de fadas, fábulas, contos maravilhosos, etc. (COELHO, 2001 p. 103)

Uma nova forma de pensar, mas com carac-terísticas centradas nas bases do gênero ma-ravilhoso, permite que uma nova atitude diante da vida seja engendrada. A literatura lúdica e metafórica para leitores de várias idades se oferece como espaço de confron-to entre razão e imaginação. É nessa pers-pectiva que a literatura como prática de le-tramento é uma das ferramentas adequadas para a abordagem sobre igualdade de gêne-ro no espaço escolar, ajudando a construir valores verdadeiramente democráticos. A esse respeito, o crítico Antonio Cândido, em sua obra Literatura e Sociedade repercu-tiu sobre essa questão, ao defender que “o fator social determina a matéria, que são o ambiente, os costumes, os traços grupais e ideias, que servem de veículo para condu-zir a corrente criadora, como elemento que constitui o essencial da obra como obra de arte” (CANDIDO, p. 91 2006).

Nesse sentido, o conto A mulher ramada é uma narrativa que apresenta uma estrutu-ra semelhante com os contos testrutu-radicionais surgidos há vários séculos, porém atuali-zada com novos discursos sociais, pois a protagonista assume funções até então não exercidas por nenhuma mulher e desafia uma ordem já estabelecida. A partir do

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prego de um tom lírico e suave e de uma ambientação medieval, a autora redesenha a intervenção do maravilhoso na resolução dos conflitos. A esse respeito, Cecil Zinani (2006, p. 22) afirma:

Dominação e autoritarismo são elementos que envolvem as relações que permeiam a situação da mulher em sociedade e que são questionados em obras que procuram veri-ficar como ocorre a representação feminina e que são apresentadas a partir de posicio-namentos teóricos sempre convergentes, mas que apresentam como elemento co-mum a questão da diferença.

Com base nessas ideias, a análise crítica dessa narrativa comprova que sua interpre-tação desencadeia reflexões em leitores de todas as idades. Nesse aspecto, à criança e ao jovem a representação desses valores é de fundamental importância, uma vez que a relação entre uma leitura mais superficial e outra mais profunda, sem dúvida, contri-bui para a formação do sujeito, ajudando a ordenar novas experiências.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir das análises apresentadas neste es-tudo, constatou-se que Marina Colasanti por meio de seus contos infantojuvenis atu-aliza um gênero literário que é cultivado há muitos séculos: o conto de fadas. Essas his-tórias, no passado, apresentavam uma voz autoral masculina. As princesas apareciam marcadas pela submissão e subserviência à figura masculina. Aquelas que desobede-ciam à ordem estabelecida eram punidas com castigos ou até mesmo com a perda da

própria vida. Este modelo perpetuou-se nas produções culturais e na sociedade como um todo, ajudando a legitimar a ideia de papéis sociais marcados pela tradição. Por essa razão, por meio da análise do con-to A mulher ramada intencionou-se explorar as várias significações que a obra literária infantojuvenil apresenta, e por meio dela é possível trazer para o espaço escolar uma temática que ainda é alvo de conflitos nas vivências dos alunos. Por meio da ficção, o mediador de leitura pode estabelecer novas relações com a realidade.

Cabe ressaltar que, assim como esse conto, há outras obras contemporâneas que tam-bém permitem o debate em torno das ques-tões de gênero e empoderamento femini-no. Por isso, é fundamental que o Professor atualize e selecione obras que ajudem nessa e em outras discussões, além de contribuir para o desenvolvimento da competência leitora contribui para a formação do senso crítico do indivíduo em formação. Desse modo, a literatura contribuirá para o desen-volvimento da educação estética e assimila-ção de novos valores, pois o contato e a cor-reta mediação dessas produções artísticas permitem ao sujeito refinar os sentimentos e harmonizá-los com sua natureza e cultura. Isso ajudará na superação dos conflitos pre-sentes registrados na sociedade moderna. Ademais, a escola é espaço privilegiado para se desnudar preconceitos, questionar valores cristalizados ao longo dos anos e abrir espaço para discussões em torno da igualdade de gênero que podem contribuir para a construção de relações sociais mais justas e isonômicas.

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REFERÊNCIAS

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COELHO, Nelly Novaes. Panorama histórico da literatura infantil juvenil: das origens indo-europeias ao Brasil contemporâneo. 4. ed. rev. São Paulo: Ática, 2003.

_____________________. Literatura: arte, conhecimento e vida. São Paulo: Petrópolis, 2000. COLASANTI, Marina. Por que nos perguntam se existimos. In: SHARPE, P. (org.). Entre resistir e identificar-se: para uma teoria da prática da narrativa brasileira de autoria femi-nina. Florianópolis: Mulheres, 1997.p. 08-27

_______________. Antes de virar gigante. 14.ed. Rio de Janeiro: Nórdica, 1979. COSSON, Rildo. Letramento Literário: teoria e prática. São Paulo: Contexto, 2006. LAJOLO, Marisa. No reino do livro infantil. In: ZILBERMAN, Regina (Org.) Os preferidos do pú-blico: os gêneros da literatura de massa. Petrópolis: Vozes, 2001. (Debates Culturais, 4). p. 52-64. SOARES. Lívia Maria Rosa. Representações Femininas nos contos de fadas de Marina Co-lasanti. Dissertação (Mestrado em Letras) Universidade Estadual do Piaui, Teresina, 2014. ZINANI, Cecil Jeanine Albert. Literatura e gênero. Caxias do Sul: EDUCS, 2006.

ZOLIN, Lúcia Osana. Crítica feminista. In: BONNICI, Thomas; ZOLIN, Lúcia Osana (Org.). Teoria Literária: abordagens históricas e tendências contemporâneas. 3. ed. Maringá: EDUEM, 2009. p. 217-242.

Referências

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