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O PAPEL DAS LEITURAS ENGAJADAS EM MARXISMO E FILOSOFIA DA LINGUAGEM. Ana Zandwais* 1

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O PAPEL DAS LEITURAS ENGAJADAS EM MARXISMO E FILOSOFIA DA

LINGUAGEM

Ana Zandwais*1

Abstract: The purpose of this study is to reflect on some conceptions explored in the book ‘Marxism and Philosophy of Language’. Through an analysis on the events of the years 1920-30 and mainly about the linguistics’s ideas of Nicolai Yakovlevitch Marr and their contradictions, we try to characterize how Mikhail Bakhtin/Valentin Volochinov inscribe themselves in marxist’s ideologies and at the same time move away from the ideas developed by N. Marr on language, identity and nationality.

Key-words: Language, Nationalism, Historical materialism, Ideology

Resumo: O presente estudo propõe uma reflexão em torno de alguns conceitos que são investigados na obra ‘Marxismo e Filosofia da Linguagem’. Através de uma análise dos acontecimentos dos anos 1920-1930 e, sobretudo, das idéias lingüísticas de Nicolai Yakovlevitch Marr e de suas contradições, buscamos caracterizar de que modo Mikhail Bakhtin/Valentin Volochinov inscrevem-se nas ideologias marxistas, afastando-se, ao mesmo tempo, das idéias de N. Marr sobre linguagem, identidade e nacionalidade.

Palavras-chave: Língua, Nacionalismo, Materialismo histórico, Ideologia

INTRODUÇÃO

Produzir uma reflexão sobre conceitos que entendemos serem fundamentais na obra “Marxismo e Filosofia da Linguagem”, publicada em 1929, durante o regime de Joseph Vissorionovich Djougachvilli (Stalin) na URSS implica trazer à tona não somente o modo como determinadas concepções marxistas teriam sido refletidas pelo ‘Círculo de Bakhtin’1, um grupo de jovens camaradas que se reunia informalmente em Nével e Vitebsk,2 mas também suscitar questões diretamente vinculadas às relações constitutivas entre linguagem e sujeito. Tais questões, por outro lado, não podem ser refletidas fora de um contexto histórico específico, estando relacionadas, deste modo, a um “embate histórico” instituído entre Stalin, Nicolai Marr, lingüista, paleontólogo e mentor intelectual dos fundamentos lingüísticos propagados entre o povo russo-soviético, e os integrantes do Círculo de Círculo de Bakhtin, em torno de entrecruzamentos entre a filosofia da práxis e questões de linguagem. Trata-se, assim, de refletir sobre como determinadas intervenções políticas superestruturais afetam a infra estrutura, em primeiro lugar. A seguir, de se pensar como a

Docente dos Cursos de Graduação e Pós-Graduação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul 1 O Círculo de Bakhtin constitui-se, sobretudo, como um grupo de estudos interdisciplinares composto, fundamentalmente, por Valentin Volochinov (1835-1936) lingüista e docente, Mikhail Bakhtin ( 1895-1975), filólogo e historiador, Pavel Medvedev ( 1891-1938), membro do Comitê do PCUS, Boris Michailovitch Zoubakine, poeta e escultor ( 1894-1937), Matvei Isaevich Kagan (1889-1937), lingüista e Lev Isaevich Poumpianski (1891-1940).

2 É preciso salientar que o Círculo forma-se na Escola de Nével, onde Bakhtin começa a lecionar em 1918 e, posteriormente, se amplia em Vitebsk com a inserção de Pavel Medvedev, Ivan Kanaev,Boris Zoubakine e a pianista M.B. Youdina.

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língua, sendo um componente da infra estrutura, foi colocada a serviço da construção de um imaginário nação com vistas a “formatar” a identidade do povo russo-soviético.

1 O CONTEXTO HISTÓRICO E O MOMENTO DE PRODUÇÃO DE ‘MARXISMO E FILOSOFIA LINGUAGEM’

O ano de 1929, na URSS, pode ser representado como o quinto ano de hegemonia do regime de Stalin; um regime que, após a morte de Vladimir I.Ulianov ( Lênin), em 1924, busca não somente descaracterizar as bases do caráter internacionalista de sua ação política, mas também provocar um efeito de distanciamento entre as posições políticas assumidas anteriormente por Lênin e por Lev Davidovich Bronstein (Trotsky), que defendia a importância de uma prática transformadora de caráter permanente. Assim, com vistas também à eliminação política de Trotski do regime, o que ocorre em 1929, e da promoção de diferentes “manobras”de apagamento, na memória do povo, das práticas e concepções leninistas de ação revolucionária e a partir da proibição de rememorar o ideário trotskista, o regime stalinista produz discursos que promovem o “esquecimento”.

Conforme Sériot (1999:23), Não há nenhum país no mundo onde as

descontinuidades discursivas tenham sido tão violentas. É como se a memória de uma nação inteira tivesse sido apagada.

E ainda, conforme Sériot (1999: 25), o trabalho de destruição dos nomes foi profundamente marcante : primeiro o apagamento dos sobrenomes, após, dos nomes de praças e de ruas, uma obsessão por eliminar determinados valores simbólicos da história, um programa articulado de estilhaçamento da memória do povo soviético.

No bojo desta contradição, é colocando-se como sucessor de Lênin e, ao mesmo tempo como revisionista em relação às políticas que tinham sido desencadeadas por Lênin, que Stalin irá colocar em prática, desde 1925, a tese do “socialismo nacional”, ou seja, uma política populista, de caráter intransigente e, ao mesmo tempo, burocrática, que visa à homogeneização “de todo o povo”3 através :

a) da fortificação do Partido como instância superior reguladora e controladora de toda a prática política;

b) da eliminação de instituições e práticas políticas dominantes durante o regime de Lênin;

c) da construção de uma política articulada em torno da hegemonia das superestruturas sobre a infra-estrutura.

No que diz respeito às bases para a sedimentação do culto ao nacionalismo, ou seja, da construção de um imaginário capaz de produzir o efeito de homogeneização entre todo “o povo”, J. Stalin irá associar-se a Nicolai Marr4, precursor dos estudos de paleontologia

3 A expressão acima também é referida em Marxismo e Filosofia da Linguagem, reportando-se ao termo [todo o povo] que foi utilizado por Stalin a fim de consolidar um efeito de identificação plena entre os soviéticos de todos os Estados que passaram a compor a URSS, e que poderiam ser identificados tanto a filiações históricas como a dialetos distintos.

4 Nicolai Yakovlevitch Marr (1864-1934) ,lingüista e paleontólogo de formação, ficou muito conhecido como precursor dos estudos de paleontologia lingüística entre o povo russo em virtude de seu interesse pela descrição de relações identitárias entre línguas exóticas, tais como relações entre as línguas Armênia, Georgiana e Turca, conforme Ekaterina Velmezova (2007).

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lingüística na URSS e grande crítico dos estudos lingüísticos comparatistas e estruturalistas realizados na Europa, que buscavam investigar as relações de hibridação entre as línguas e, contraditoriamente, construir uma teoria “unificada” da língua, o que, segundo Sériot (1989:475) “não o diferenciava dos lingüistas europeus da primeira metade do século xix”. Mas o objetivo de elaborar uma teoria capaz de inscrever o componente lingüístico na superestrutura, e, portanto, conferir à língua um estatuto hegemônico situado acima das forças orgânicas, da massa social, capaz de torná-la imune às transformações da base é que iria conferir a Marr um lugar político privilegiado na história do stalinismo. Eis o grande trunfo de Nicolai Marr: atribuir à língua Russa o estatuto de uma língua homogênea, auto-suficiente, e, portanto, capaz de representar todos os segmentos do povo, uma língua acima de toda transformação. E ainda conforme Jean Jacques Courtine (1999:16): É na ordem do

discurso das “línguas de estado” que se dividem em pedaços a lembrança dos eventos históricos, preenchidos na memória coletiva. Deste modo, o Grande Russo dos anos

1920-30 pode ser pensado, conforme Courtine (id.p.16) como uma língua de madeira, língua de

ferro, língua de Estado que recorta em pedaços as lembranças históricas, que fragmenta as

relações identitárias do povo, mas que, contraditoriamente, estaria apta a servir como “matéria estruturadora” para forjar um imaginário de unidade da nação.

Cabe salientar, por outro lado, o fato de que Nicolai Marr, assim como Stalin, tinha o poder de conquistar, ao mesmo tempo, muitos admiradores e grandes críticos. Se Marr, deste modo, desfrutava, por um lado, de grande prestígio entre intelectuais ilustres como Baudoin de Courtenay, lingüista polonês que partilha com Marr das críticas que este tece aos estudos comparatistas, e Iakubinskii5,lingüista renomado no contexto soviético e que tinha sido professor de Volochinov, tornara-se, ao mesmo tempo, alvo de severas críticas por parte do Jazykfront,6 em virtude desta Associação não ter reconhecido na “Nova

Teoria” de Marr uma relação entre princípios filosóficos marxistas e lingüísticos, acusando-a, portanto, de ser mecanicistacusando-a, de estar a serviço de outros interesses distintos, enfim, de simular uma concepção marxista de linguagem.

Um dos principais pivôs desta “contenda” pode ser identificado como a discórdia sobre o espaço a ser ocupado pela língua, a partir das relações entre infra-estrutura e superestrutura, dois conceitos fundamentais explorados em ‘Marxismo e Filosofia da Linguagem’(1986)7 por Bakhtin/Volochinov.

Cabe observar, por outro lado, a partir das considerações acima feitas, que o Círculo de Bakhtin não se colocava de modo isolado neste cenário político, uma vez que teria havido uma certa identidade entre as posições assumidas por intelectuais do jazykfront e as considerações feitas pelos membros do Círculo, em ‘Marxismo e Filosofia da Linguagem,’acerca do papel dominante das relações infra-estruturais, desde uma ótica que considerasse a práxis social e lingüística de “todo o povo”como o emblema maior de uma nação governada pelo proletariado.

5 Lev Petrovich Iakubinskii (1892-1945) era discípulo do lingüista polonês Baudoin de Courtenay e um lingüista de destaque em Leningrado. Segundo Alpatov ( 2003), o Iakubinskii dos anos 1930 também foi uma figura proeminente no PCUS e , nessa fase, costumava tratar os marristas como se fossem marxistas.

6 Reportamo-nos ao Jazikfront (front lingüístico) como um grupo de jovens soviéticos integrado sobretudo por intlectuais bolcheviques comoGeorgij K. Danilov (1896-1937), Timofej Petrovič Lomtev (1906-1972), Jan V. Loja (1896-1969) que se ocupavam em refletir acerca das relações entre lingüística e marxismo da mesma forma que o Círculo de Bakhtin.

7 Para fins deste estudo, estamos utilizando, notadamente, a tradução da língua francesa para a portuguesa, datada de 1986.

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As reflexões apresentadas pelo Círculo de Bakhtin e pelo Jazikfront como expressão de engajamento a uma ótica marxista-soviética, e a concepção apresentada por Nicolai Marr, forjada, e que postulava uma relação de dependência direta entre a base econômica e os aspectos da língua, instauraram também entre os intelectuais soviéticos tanto querelas no domínio filosófico, como disputas acirradas pelo poder no seio do PCUS.

Não obstante todas as discordâncias, a “Nova Teoria” representaria, no contexto soviético da época, o alicerce de sustentação da “doutrina” do socialismo-nacional. Ou seja, o alicerce sobre o qual se ergueriam os princípios identitários da nação russo-soviética.

Reportemo-nos, então, ao texto a fim de caracterizar algumas das dúvidas postas em relevância por Bakhtin/Volochinov.

Uma das questões focalizadas com maior ênfase no capítulo “A Relação entre a

infra-estrutura e as superestruturas “ (1986, p.39) diz respeito, sobretudo, à confusão entre

materialismo dialético e materialismo mecanicista, conceitos que se opõem, na medida em que o último estaria associado às correntes positivistas de ciência, e, notadamente, à escola naturalista, que investiga os processos sociais e psicológicos a partir de determinantes fisiológicos, bem como coloca as transformações lingüísticas na esteira de determinações apartadas de fatos históricos.

Bakhtin/Volochinov não somente criticam as teorias mecanicistas que refratam os modos através dos quais as relações de causalidade e as práticas sociais e discursivas se interpenetram e constituem esferas concretas de caracterização do modo de vida do povo, como também questionam o papel ambíguo atribuído por Marr8 à condição ideológica daquilo que se torna simbólico na infra-estrutura, já que ao relacionar de modo direto os fenômenos derivados da base econômica e os fatos lingüísticos, Marr não consegue dar conta do fato de que a inscrição simbólica do signo na ordem ideológica não é transparente ou acessível à materialidade estrutural da língua. Assim, ao perceberem a diferença entre leituras marxistas e leituras mecanicistas de ciência, eles colocam, de modo claro, sua percepção em torno dos equívocos produzidos acerca da compreensão das bases que alicerçam posturas engajadas ao materialismo histórico, e, sobretudo, em relação ao papel que o materialismo dialético deveria cumprir nos processos de investigação de fatos lingüísticos, estabelecendo novas relações que teriam ficado lacunares na obra de Marx; ou seja, os entrelaçamentos entre o materialismo histórico, o materialismo dialético e o funcionamento da linguagem. Desta forma, para Bakhtin/Volochinov, o funcionamento concreto da linguagem precisaria ser objetivado para além da noção de “instrumento de que se servem as classes para a sua alteridade ou para a realização de trocas e de relações comerciais.”

É, pois, na busca de uma superação das concepções acima9 que Bakhtin/Volochinov buscam investigar os diferentes modos de intersecção entre ideologia e linguagem, bem como caracterizar como as ideologias constroem laços simbólicos no seio da infra estrutura.

8 Fazemos referência ao fato de que Marr não estaria preocupado em investigar as relações de assimetria entre forma e conteúdo, constitutivas de toda linguagem. E cabe ainda considerar, conforme Velmezova (2007:220), que o começo da aproximação de N. Marr de concepções marxistas corresponderia ao período em que ele elabora sua ‘Nova Teoria’, de modo que as citações sobre obras clássicas de Karl Marx e Lênin não aparecem nos artigos de Marr antes dos anos 1927-28, sendo, portanto, enfocadas somente uma dezena de anos após a Revolução.

9 Cabe considerar que se no ‘Manifesto do Partido Comunista’ (1998) Marx e Engels colocam em destaque o papel do proletariado como classe revolucionária, e na “Ideologia alemã ( 2008) os autores desenvolvem reflexões que são determinantes sobretudo para o entendimento da concepção de materialismo histórico e das

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E conforme a posição crítica dos autores sobre a indeterminação de determinadas leituras tidas como marxistas:

Sempre que se coloca a questão de saber como a infra-estrutura determina a ideologia, encontramos a seguinte resposta que, embora justa, mostra-se por demais genérica e por isso ambígua: “ a causalidade.” (id.,p.39)

Parece-nos que a ênfase dada a esta questão, por Bakhtin/Volochinov, vem diretamente de encontro a dois pressupostos não-marxistas implícitos na ‘Nova Teoria’ de Marr e que consistiriam em:

a) dar maior sustentação às questões superestruturais do que àquelas próprias da infra-estrutura;

estabelecer relações de simetria entre a essência ( o conteúdo) e aparência (a forma) b) do objeto lingüístico, tratando, mesmo os processos de hibridação entre línguas, como fatos objetivos, transparentes.

Trata-se, assim, de pensar, por outro lado, conforme Bakhtin/Volochinov (id., p.40), que os processos realmente dialéticos deveriam ser explicados a partir de sua procedência na infra-estrutura e das formas através das quais estes adquirem expressão nas superestruturas, já que organizar a prática política, tomando como referência as necessidades do proletariado implicaria , notadamente, reverter as relações de hegemonia entre as superestruturas e a infra-estrutura, considerando as formas de inscrição do simbólico na história; ou seja, que as modalidades de ideologização do simbólico deveriam ser investigadas desde a base, e não, conforme os autores (id.,p.40), passar à margem da

substância dos fenômenos ideológicos característicos da vida do povo.

Ligar, portanto, a infra-estrutura à realidade da sociedade soviética implicaria, conforme os autores (id.,p.41) poder explicar como o material verbal, estribado em signos ideológicos, registra as transformações produzidas tanto no cotidiano da vida , tanto nos diferentes setores de produção e de interação, como em diferentes campos do conhecimento (a ciência, a arte, a religião), não de forma direta, nem transparente, mas a partir da reflexão sobre o funcionamento das mediações históricas nos modos de circulação e de dominância de determinados sentidos sobre outros nas práticas concretas vivenciadas pelo povo.

Ao constatar, entretanto, que Nicolai Marr não estaria levando em conta a necessidade de observar as formas de transformação das estruturas políticas e suas relações com os processos de criatividade ideológica, oriundos dos mecanismos de interface entre a infra e as superestruturas, em um regime que deveria ser de “soberania do proletariado”, Bakhtin/Volochinov apontam para o fato de que Marr não está preocupado com a legitimidade que deveria ser conferida às questões infra-estruturais, às forças orgânicas e suas práticas sociais, considerando-se o papel que o proletariado deveria assumir na sociedade desde a Revolução de 1917.

Tratava-se, deste modo, de uma política lingüística falaciosa, meramente populista, voltada aos interesses da “unificação do Estado para os fins específicos de administração das diferenças, de dominação, de “naturalização” de práticas e de redução do heterogêneo ao homogêneo entre o povo russo-soviético.

relações entre sujeito, consciência de classe e trabalho social, as relações entre linguagem e ideologia, por outro lado, não encontram um espaço de reflexão.

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Tal política, dominada pelo culto ao nacionalismo, pelo culto à “personalidade”e subjugada por uma burocracia de Estado, não poderia deter-se, sob pena de ir de encontro aos seus princípios: isto é, não poderia conceder espaço para reflexões sobre como as redes de relações de produção e de transformação engendradas na infra-estrutura são significadas pelas próprias forças sociais e, em conseqüência, atestadas na materialidade dos signos enquanto índices portadores deste ou daquele valor simbólico.

1.1 AS QUESTÕES LINGÜÍSTICAS TOMADAS DESDE UMA ÓTICA MARXISTA

Pensar, por outro lado, as condições de funcionamento do objeto lingüístico, diluindo as redes de relações simétricas entre o que as superestruturas produzem e as formas através das quais a infra-estrutura apreende e confere sentidos ao modo de produção superestrutural, implicaria, para Bakhtin/Volochinov (id., p.70), não perder de vista a própria essência da práxis lingüística, seria preciso observar as formas através das quais os discursos circulavam como redes de interação verbal, não reduzindo, assim, a língua a uma mera ferramenta, alienada da realidade social, e, portanto, privada de história e de relações causais.

É a partir desta polêmica que a concepção de língua, em ‘Marxismo e Filosofia da Linguagem’ precisa ser recolocada para além dos limiares da estrutura, para além de um projeto de “congelamento” das possíveis formas de transformação do objeto lingüístico, e, portanto, de apagamento da própria memória histórica do povo.

Tratava-se, deste modo, de reinscrever a língua em uma outra esfera, em uma ordem de ubiqüidade social real, capaz de retratar tanto as relações de produção do povo como suas contradições. E aqui faz se necessário salientar que as contribuições de Bakhtin/Volochinov, em torno de uma concepção de língua, tomada não como um dispositivo criado para unificar a nação russo-soviética, ou ainda como uma concepção abstrata, objeto do conhecimento distante da práxis, estão totalmente engajadas a uma percepção marxista de linguagem, e para além desta, já que ao observarem que a realidade da língua escapa:

a) aos mecanismos dominantemente prescritivos da gramática;

b) às relações de continuidade e linearidade histórica com que a filologia a descreve; c) às descrições abstratas e apartadas das práticas sociais vivenciadas na infra-estrutura; os autores passam a refletir sobre o funcionamento real da língua como um “corpo material que reflete e refrata, de modo permanente, as formas de divisão dos sujeitos nas relações de produção, suas formas de medir as correlações de forças, bem como os modos através dos quais os falantes se estratificam em relação à modalidade lingüística que lhes serve de suporte identitário e de meio de expressão.

Assim, para Bakhtin/Volochinov ainda que a língua se apresente sob uma aparência de estabilidade num dado momento do tempo, está sob a ação permanente das forças de transformação, de tal modo que o sistema sincrônico da língua, enquanto sistema de regularidades estáveis não passa de uma invenção desprovida de caráter objetivo.

È a partir deste pressuposto que os autores, na perspectiva de flagrar uma relação dialética entre língua e signo, apontam para o fato de que o que torna a forma lingüística um signo é a sua condição de mobilidade permanente ( id.p.94).

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Ao deslocarem a investigação sobre a língua do campo teórico para os domínios da práxis, portanto, Bakhtin/Volochinov oferecem aos estudos lingüísticos e filológicos algo que estes não teriam, quer com o objetivismo abstrato10, ou com os estudos historicistas-comparatistas. Isto é, possibilitam reflexões sobre o funcionamento da língua a partir das experiências vividas na infra-estrutura. Trata-se, então, de inscrever os fenômenos ideológicos na realidade social concreta do povo, na Lebenphilosophie (filosofia da vida) e, a partir desta, refletir em torno das implicações entre as relações de produção, as relações de interação vivenciadas no cotidiano da sociedade e as formas através das quais tais relações são discursivizadas em situações concretas da vida.

O momento histórico de escrita de ‘Marxismo e Filosofia da Linguagem’ demandaria, por outro lado, que os modos de investigação dos temas que seriam incorporados à vida do proletariado russo, bem como as modalidades apreciativas atribuídas a tais temas não poderiam ser consideradas de modo casual ou acidental; ao contrário, tais tendências temáticas e remáticas dominantes somente ocupariam espaços reconhecidos por traduzirem os repertórios ideológico-discursivos que teriam adquirido expressão e valores nas formas de organização social e política da infra-estrutura. Não poderiam, portanto, estar descoladas do cotidiano da vida do povo, nem de suas relações identitárias, configurando, em síntese, sua consciência social sobre o vivido.

Eis porque “as formas de ser dos enunciados,”11 as modalidades como estes traduzem as ideologias do cotidiano podem ser melhor apreendidas a partir do termo

sobytie viskazyvanie, conforme Bubnova (2009) e Sériot (2009), o qual precisaria ser

compreendido como o ‘acontecimento do enunciado’ e não simplesmente como ‘enunciação’, de modo genérico, como ocorreu na tradução para a língua francesa. Aqui é preciso, então, pensar sobre as condições de recepção e também sobre o próprio trabalho de tradução de ‘Marxismo e Filosofia da Linguagem’, como um processo de desconstrução constituído não pela falha da língua, mas pela falha da memória sobretudo, já que o texto foi traduzido somente na metade da década de 70, e, portanto, após mais de quarenta anos de seu momento de escritura, já em um momento histórico em que as concepções enunciativas, notadamente benvenisteanas, estavam em grande voga na França, despertando muito interesse entre todos os estudiosos da linguagem, e mesmo dos intelectuais oriundos do Leste europeu.

Eis porque este espaço lacunar entre o “zeitgeist” de ‘Marxismo e Filosofia da Linguagem’ e o momento da tradução, em 1977, para a língua francesa influenciou, notadamente, o olhar de Tzvetan Todorov sobre como determinadas significações deveriam funcionar ajustando-se, quem sabe, melhor ao “espírito” dos anos 70.

10 Embora ao colocar o estatuto da língua na dimensão superestrutural a teoria de N. Marr encontrasse eco em concepções objetivistas e estruturalistas de língua, tal como a concepção apresentada no “Curso de

Lingüística Geral”, este tipo de relação não “passou em branco” para Bakhtin/Volochinov e pode ser aprofundada sobretudo no cap. 4 “Das orientações do pensamento filosófico-lingüístico”, onde os autores analisam as relações dialéticas entre o que integra os domínios da língua e o que constitui os domínios do enunciado.

11 A expressão sobytie (acontecimento) vizkazyvanie (enunciado), traduzida por Tatiana Bubnova (2009:41) como um processo, enquanto a condição do próprio enunciado ser tomado como acontecimento, nos reporta à idéia de enunciado enquanto uma realidade inscrita na história, concepção esta que traduz melhor as

implicações envolvidas no processo tradutório, primeiramente na versão francesa de ‘Marxismo e Filosofia da Linguagem’, traduzida por Tzvetan Todorov (1977), e, posteriormente, na tradução brasileira (1986) oriunda do francês.

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É a partir deste viés, pois, que queremos chamar a atenção para o lugar do ‘Outro’, enquanto um espaço filosófico e existencial que demandaria, via de regra, um gesto de retorno às condições históricas de produção de ‘Marxismo e Filosofia da Linguagem’, e, portanto, às implicações contidas nas relações entre a ‘enunciação’ e o ‘acontecimento do enunciado’. É certo, pois, que a seleção lexical do termo ‘enunciação’ acabou remetendo a própria expressão à condição de ato de fala, a uma enunciação do tipo pragmático, conforme Sériot (2009), mas sobytie viskazyvanie não pode ser reduzido simplesmente ao ato enunciativo, porquanto o acontecimento trabalha o enunciado (viskazyvanie) de modo permanente e irrepetível, ressignificando-o.

Eis porque se “ a palavra está sempre carregada de um conteúdo ou sentido

ideológico (id.p.95) é porque tudo que significa através da palavra, significa, ao mesmo

tempo, como experiência vivida, avaliada, relacionada com um determinado momento de produção, com uma consciência social e também histórica em torno dos valores apropriados e significados nas “vicissitudes” da experiência dos sujeitos.

Tais questões tornam-se fundamentais para o momento histórico de produção de ‘Marxismo e Filosofia da Linguagem’por permitirem colocar em perspectiva a lucidez de Bakhtin/Volochinov acerca da inconsistência entre os pressupostos de uma filosofia marxista sobre a linguagem e pressupostos positivistas e idealistas que podem ser descritos como:

a) os pressupostos preconizados pelo objetivismo abstrato, que não tratam da subjetividade porque a língua é representada como produto histórico sobre o qual os sujeitos não têm condições para intervir;

b) as bases teóricas do subjetivismo idealista12, que tomam a enunciação como um ato individual de apropriação do aparelho formal da língua, e os sentidos como efeitos de escolhas estilísticas, retóricas, individuais e apartadas de relações histórico-simbólicas.

Tais críticas em torno dos pressupostos acima convertem-se também em questões ameaçadoras, na medida em que colocam sob suspeita as fronteiras estabelecidas e já sedimentadas entre os domínios da psicologia e da sociologia, no que diz respeito aos estudos desenvolvidos em torno das relações entre linguagem, sentido e psiquê, e no que diz respeito ao próprio entendimento do papel que a consciência adquire, enquanto fruto da experiência, nas relações entre as classes.

Entretanto podem ser justificadas, sobretudo porque refletem acerca do entendimento sobre como os sujeitos se reconhecem enquanto representantes de uma ou outra classe, sobre como as relações entre classe e consciência tornam-se indissociáveis desde a ótica de uma filosofia marxista de linguagem.

Pensar, pois, as relações de interdependência entre a psicologia e a sociologia, desde uma ótica materialista, para os autores, implicaria uma concepção de consciência permeada não somente por determinações do sentimento em relação ao vivido, experimentado, mas notadamente pelos modos de objetivar o vivido e o sentido, a partir do reconhecimento de uma forma de identificação nesta ou naquela classe social, neste ou naquele grupo, e ,

12 Reportamo-nos, notadamente, às críticas feitas à escola de Vossler (1953), cujos estudos sintáticos e estilísticos sobre a enunciação colocam a subjetividade em um plano psíquico de subjetividade individual e interior desconectada das relações de troca entre forças centrífugas e centrípetas.

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enfim, do reconhecimento de um processo identitário permeado, simultaneamente, pela linguagem e pela história.

Assim, as possibilidades de apreender os sentidos em relação aos determinantes históricos, enfim, os modos de objetivação da ordem do real, pelos sujeitos é que viriam a determinar, segundo Bakhtin/Volochinov, o papel da consciência de classe, das relações do sujeito com seus deveres para com a sociedade, bem como as formas de sujeição deste às interdições impostas pelos representantes de sua classe.

Esta questão parece ter sido retomada com muito mais propriedade em ‘O freudismo’ (2001), quando Bakhtin/Volochinov remetem à teoria freudiana a fim de refletir em torno das ideologias do cotidiano, considerando que “todo nosso conhecimento está ligado à consciência”, e que mesmo “o inconsciente somente se dá a conhecer por sua transformação em consciência”pelo viés da linguagem . (id., p.47)

A partir desta constatação já se faz necessário o estabelecimento de um diálogo entre ‘Marxismo e Filosofia da Linguagem’ e ‘O Freudismo’, não há mais como dividir as duas obras, senão metodologicamente, porquanto as posições assumidas pelos autores em torno do volksgeist (espírito do povo) vêm reforçar a concepção marxista de que não pode haver consciência fora de relações estreitas com a experiência, ou seja, com as próprias formas através das quais os sujeitos produzem em seu meio social, passando a significar a si mesmos e também os outros. E, ao mesmo tempo, na medida em que colocam a linguagem e a história como condições estruturantes do modo de produção da consciência dos sujeitos os autores abrem um campo de possibilidades para refletirmos em torno do funcionamento da alienação no seio do corpo social.

Entretanto, esta já seria uma reflexão bem mais complexa para retomarmos em uma outra abordagem posterior, já que tratar do papel da consciência, desde uma ótica materialista histórica e dialética nos remete ao desafio de termos de lidar com as relações já sedimentadas nas formas de ordenamento do corpo social e os modos através dos quais as ideologias respondem, através das práticas, dos rituais e dos discursos, aos interesses de manutenção e transformação desse corpo social.

REFERÊNCIAS

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Referências

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