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Signos de Identidade Étnica: comunidades negras rurais e o processo de ressemantizações do conceito de Quilombo" 1

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Academic year: 2021

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Signos de Identidade Étnica: comunidades negras rurais e o processo de ressemantizações do conceito de “Quilombo"1

Cássio LIMA2 Márcia SANTOS3

Victória RODRIGUES4

Universidade do Estado da Bahia, Juazeiro, BA

Resumo

Este artigo apresenta o resultado da revisão de literatura relativa à discussão em torno do conceito de quilombo, realizada em uma das etapas do subprojeto “Percursos da memória quilombola: uma análise fotoetnográfica dos álbuns de família de três comunidades do Submédio São Francisco”5. O artigo busca retratar o lugar que os

quilombos ocuparam no imaginário brasileiro, as inúmeras ressemantizações que o termo sofreu ao longo da história, desde o século XIX aos dias atuais, a importância da autodefinição dos próprios sujeitos em relação a sua identidade e, de modo geral, as controversas formulações envolvidas nesse universo. Esta é uma discussão fundamental para o desenvolvimento desta pesquisa, que pretende investigar os álbuns de famílias quilombolas a partir do discurso que tecem sobre si mesmas e sua historia imagética.

Palavras-Chave

Quilombos; fotoetnografia; ressemantizações; autodefinição; identidade.

Introdução

É inegável que a escravidão de africanos nas Américas por meio do Atlântico compreendeu um dos significativos empreendimentos comercias e culturais da História. O tráfico de africanos arrancados de suas terras ancorou a formação do mundo moderno em sua estrutura de reprodução do capital, mas também na construção de um sistema econômico mundial. Nesse contexto, pelo menos 40% dos africanos escravizados que vieram ao Brasil foram, durante mais de trezentos anos, a principal força de trabalho no território (REIS e GOMES, 1996, p. 9).

1 Trabalho submetido ao XXII Prêmio Expocom 2015, na CategoriaComunicação, Espaço e Cidadania, modalidade Intercom Jr.

2 Graduando em Comunicação Social – Jornalismo em Multimeios. E-mail: cassio-felipe@live.com 3 Coautora do artigo. E-mail: marciaguena@gmail.com

4 Colaboradora do artigo. E-mail: resendeevictoria@gmail.com

5 Este subprojeto integra o projeto de pesquisa “Perfil Fotoetnográfico das Populações Quilombolas do Submédio São Francisco: Identidades em Movimento”, coordenado pela professora Márcia Guena, com bolsa de iniciação científica da Fapesb.

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A escravidão, por sua vez, influenciou significativamente os aspectos da vida brasileira: enquanto moviam os períodos Colonial e Imperial, os africanos escravizados exerciam fortes reverberações nas várias práticas culturais e materiais do Brasil. Além disso, o que nos interessa é pensar como se deu a relação com o sistema escravocrata. O está documentado por muitos historiadores são os diversos movimentos de resistência que acompanharam a presença africana no Brasil.

Onde houve escravidão houve resistência. E de vários tipos. Mesmo sob ameaça do chicote, o escravo negociava espaços de autonomia com os senhores ou fazia corpo mole no trabalho, quebrava ferramentas, incendiava plantações, agredia senhores e feitores, rebelava-se individual e coletivamente (REIS e GOMES, 1996, p. 9). No entanto, a fuga e a formação de grupos de escravos fugidos caracterizaram um tipo de resistência mais comum durante o período da escravidão. A fuga, por sua vez, nem sempre resultava na formação do que mais tarde seria denominado “quilombo”. Segundo Reis e Gomes (1996), a formação de grupos de escravos aconteceu mais frequentemente nas Américas, onde a escravidão atingiu seus maiores números.

Por serem parte comunidades relativamente independentes, esses sujeitos puderam ser estudados “de dentro”, através de fontes orais, memória ainda viva de seus descendentes. No Brasil, essas memórias ainda ecoam se consideradas as comunidades denominadas remanescentes de quilombos que, de fato, podem traçar seu passado até agrupamentos formados antes da abolição, em 1888 (REIS e GOMES, 1996, p.10). Para a criação de uma sociedade afro-brasileira que havia começado nas senzalas dos grandes engenhos, as trocas culturais e as alianças feitas intensamente entre os próprios africanos, além de negros e mestiços aqui nascidos, brancos e índios foram de demasiada importância. Esse processo não se deu de maneira linear, visto a imensidão territorial do Brasil.

O termo “quilombo” vem sendo revisado por teóricos especializados no tema e entidades civis que atuam junto aos segmentos negros do Brasil. Os quilombos não se referem a resíduos arqueológicos, não são isolados, nem sempre tem origem em insurreições, não se definem pelo número de membros e não fazem uma apropriação individual da terra, mas são “grupos que desenvolveram práticas de resistência na

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manutenção e na reprodução de seus modos de vida característicos num determinado lugar” (ARRUTI, 2006, p.316).

Desde 1988 está em vigor o marco legal-institucional, o artigo 68 do Ato das Disposições Transitórias Constitucionais (ADTC), que garante aos “remanescentes de quilombos” o acesso à terra. Entretanto, o termo remanescente apresenta uma falha teórica ao tratar essas comunidades como estáticas no tempo – ou seja, como quilombos do século 19 no século 20, quando o artigo foi redigido. O projeto “Perfil Fotoetnográfico das Populações Quilombolas do Submédio São Francisco: Identidades em Movimento” guia-se, entretanto, pelo conceito articulado pela Associação Brasileira de Antropologia (ABA), onde as comunidades quilombolas constituem grupos étnicos com um tipo organizacional próprio, não dependendo de resíduos arqueológicos ou comprovação biológica dos sujeitos.

O subprojeto “Território e memória nos álbuns de família das comunidades quilombolas do Junco, Lagoa e Capim de Raiz” tem como principal objetivo contar a história das comunidades quilombolas Junco, Lagoa e Capim de Raiz, localizadas no município de Juazeiro, BA, através dos álbuns de família dos próprios sujeitos. Através dessas imagens, é possível localizar as comunidades no tempo, conhecer seus moradores e perceber as mudanças pelas quais os locais foram submetidos ao longo dos anos. Além disso, a reconstituição dessas histórias influencia de maneira decisiva a memória coletiva dos sujeitos que, ao se identificarem como quilombolas, passam a exigir no presente direitos que foram negligenciados pelo Estado no passado. A revisão de literatura aqui faz-se mais que necessária pois só conhecendo o objeto de estudo é possível traçar metas para intervir de maneira positiva no cotidiano dessas comunidades.

Metodologia

A metodologia utilizada para a redação deste artigo foi a revisão de literatura. Assim, foram realizadas leituras, fichamentos e discussões no grupo de pesquisa dos seguintes textos: o livro “Reminiscências dos quilombos - territórios da memória em uma comunidade negra rural”, de Marcelo Moura Melo (2012); o artigo “Quilombos”, de José Maurício Arruti, contido na obra, “Raça - Novas perspectivas antropológicas”, de Osmundo Pinho e Livio Sansone (2008); e a introdução do livro “Liberdade por um

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fio”, João José Reis e Fábio Santos (1996). Além desses autores foi discutida a legislação relativa aos direitos quilombolas.

Os quilombos no imaginário da nação brasileira

Os quilombos sempre ocuparam o imaginário da nação brasileira e são adjetivados tanto para “desqualificar modalidades próprias de gestão de espaço e da vida quanto para inspirar e representar mobilizações políticas” (MELLO, 2012, p.33). No cenário do Brasil contemporâneo, a discussão sobre as denominadas comunidades remanescentes de quilombos é marcada por controvérsias – que envolvem não somente a sociedade civil, mas também os segmentos acadêmico e jurídico.

As diversas ressemantizações que o termo sofreu ao longo da história atingem diretamente as comunidades autointituladas quilombolas – e aquelas que ainda lutam por esse reconhecimento – uma vez que o conceito pode envolvê-las ou excluí-las desse processo. As primeiras definições do termo quilombo são pensadas ainda durante os períodos colonial e imperial, alinhando-se aos interesses das classes dominantes:

Na legislação colonial para caracterizar a existência de um quilombo bastava a reunião de cinco escravos fugidos ocupando ranchos permanentes, mas, depois, na legislação imperial bastavam três escravos fugidos, mesmo que não formassem ranchos permanentes. (ARRUTI, 2006, p.317).

No instante em que a ordem republicana é instaurada, o termo quilombo desaparece da base legal brasileira, mas não deixa de existir na prática, onde sofre suas mais significativas ressemantizações ao passo que deixa de ser usado pela ordem repressiva para tornar-se signo de resistência nos discursos políticos. Arruti (2006, p. 318-319) define três tipos principais de ressemantizações do termo: o quilombo como resistência cultural, o quilombo como resistência política, o quilombo como ícone da resistência negra.

A primeira delas, o quilombo como “resistência cultural”, tem como tema central a persistência ou produção de uma cultural negra no Brasil. A segunda ressemantização compreende o quilombo como “resistência política”, onde a referência à África é substituída pela referência ao Estado e busca refletir a relação entre ordem dominante e classes populares. O terceiro ciclo de ressementização do termo se dá, segundo Arruti, em 1980 com a publicação do livro O Quilombismo, de Abdias do Nascimento. Nesse

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sentido, o quilombo como ícone da “resistência negra” não quer dizer escravo fugido, mas “reunião fraterna e livre, solidariedade, convivência, comunhão existencial” (ARRUTI, 2006, p.320).

De acordo com Arruti (2006, p.329), desde 1970 há uma branda alteração nos estudos sobre comunidades rurais que eram negras, que os torna estudos sobre comunidades

negras que eram rurais. Marcelo Moura Mello também observa esse deslocamento:

Na década de 1990 houve um considerável incremento de investigações sobre as comunidades negras rurais, mas o fato de muitas delas terem passado a reivindicar seu reconhecimento como comunidades remanescentes de quilombos acarretou uma inflexão fundamental: a ênfase teórico-conceitual deslocou-se da condição camponesa dessas comunidades para sua condição étnica (MELLO, 2012, p.40)

Há uma ênfase no termo etnicidade para envolver os processos sociais e simbólicos vividos pela população negra no período pós-escravidão. Ao propiciar interpretações para os mecanismos sociais de manutenção dos chamados “territórios negros”, essas categorias seriam definidas com base em limites étnicos – desenvolvidos “no enfrentamento da situação de alteridade proposta pelos brancos” (ARRUTI, 2006, p.329).

Ao longo dos anos de 1980, começaram a surgir os primeiros estudos antropológicos sobre comunidades negras rurais que polemizavam com “a tendência em projetar sobre tais comunidades a metáfora do quilombo, assim como em lançar mão delas para dar continuidade à busca por ‘africanidades’ no Brasil” (VOGT; FRY apud ARRUTI, 2006, p.321). A categoria de “comunidades negras incrustadas”, que começava a surgir, servia para evitar noções de “isolados negros” e de “quilombos” que, segundo Arruti, era inadequada, ainda que se trabalhasse com a “hipótese de que as comunidades em estudo seriam resíduos de antigos quilombos, que preservaram graças a seu isolamento histórico” (ARRUTI, 2006, p.321).

As disputas no marco legal constitucional

Ainda na década de 1980, os debates acerca das ressemantizações e a luta da militância negra para garantir o acesso à terra e a preservação da cultura desses grupos é retomado a partir do marco legal-institucional que reconhece juridicamente as comunidades

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quilombolas. O polêmico artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), da Constituição Federal de 1988, estabelece que “aos remanescentes das comunidades de quilombolas que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos”. Porém para se chegar a esse texto ocorreram várias discussões entre os grupos políticos de interesse. Uma disputa pelo conceito.

O artigo logo foi questionado: era necessária uma definição precisa de “quilombos” e de “remanescentes”, uma vez que esta última remete a vestígios arqueológicos de ocupação, como se tais comunidades fossem estáticas no tempo-espaço. Diante das demandas que surgiram para a aplicação do tal artigo, a Fundação Cultural Palmares (FCP) realizou o seminário Conceito de Quilombo, lançando mão na noção de “quilombos contemporâneos” pela primeira vez. Em resposta, o Grupo de Trabalho Comunidades Negras Rurais da Associação Brasileira de Antropologia (ABA) se manifestou sobre o tema:

O termo não se refere a resíduos ou resquícios arqueológicos de ocupação temporal ou de comprovação biológica. Também não se trata de grupos isolados ou de uma população estritamente homogênea. Da mesma forma nem sempre foram constituídos a partir de uma referência histórica comum, construída a partir de vivências e valores partilhados. Neste sentido, constituem grupos étnicos conceitualmente definidos pela Antropologia como um tipo organizacional que confere pertencimento através de normas e meios empregado para indicar afiliação ou exclusão.6

O movimento das identidades, a autodefinição enquanto remanescentes de quilombo e, consequentemente, a busca por direitos garantidos constitucionalmente, resultou em uma nova percepção à categoria. Em razão desses fatores a autoimagem do grupo foi significativamente influenciada. Sobre essa dilatação da memória para além dos limites geográficos da terra, Mello relata sua observação no caso de Cambará, uma comunidade negra rural do Rio Grande do Sul:

É comum, por exemplo, os moradores negros coloquem seus animais para pastar os restos deixados pelas colheitas mecânicas. A lenha também é retirada daquilo que sobrou da derrubada das árvores promovidas pelos brancos. A caça e a pesca, em propriedades alheias,

6 Grupo de Trabalho “Comunidades Negras Rurais”/ABA. Documento do Grupo de Trabalho sobre Comunidades

Negras Rurais, Associação Brasileira de Antropologia, 1994. Disponível em: <www.abant.org.br/file?id=548>.

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é outra alternativa, embora dependa do aval dos proprietários, que é compensado pela cessão de parte da carne e dos peixes. (MELLO, 2012, p.23).

O processo de autodefinição tornou a participação ativa dos sujeitos na estrada para a efetivação dos direitos garantidos pela Constituição e possibilitou a construção de significados à categoria. Isso ocorre pela tentativa em superar abordagens essencialistas da identidade étnica e desarticular a postura do “pesquisador-censor” (MELLO, 2012, p.44) – aquele que se determina capaz, pelo seu prestígio acadêmico, de afirmar ou negar a identidade de outros sujeitos:

O ponto de partida da análise crítica é a indagação de como os próprios agentes sociais definem e representam suas relações e práticas em face dos grupos sociais e agências com que interagem (...) O importante aqui não é tanto como as agências definem, ou como uma ONG define, ou como um partido político define, e sim como os próprios sujeitos se autorrepresentam e quais os critérios político-organizativos que norteiam suas mobilizações e forjam coesão em torno de uma certa identidade (Almeida apud Mello, 2012, p.44). Assim, Mello (2012, p.44-45) também ressalta a insuficiência conceitual, prática, histórica e política do termo “quilombo” para as mais distintas formas de acesso à terra e de como os sujeitos se relacionam com a mesma. Ainda que o discurso seja viável aos segmentos negros, como forma de resistência, este apresenta-se, ainda, unificar e generalizante daquilo que é historicamente múltiplo e singular. O processo de ressemantização, entretanto, tal qual as comunidades quilombolas, encontra-se em constante construção e modificação, não somente pelos movimentos analíticos, mas também pelos avanços dos movimentos sociais.

Considerações Finais

Traçando cronologicamente o conceito de quilombos, através da revisão de literatura sobre o tema, é possível notar o quanto essas comunidades foram negligenciadas através dos séculos e como, por diversas vezes, o termo quilombo sofreu ressemantizações não para atender aos interesses dos seus sujeitos, mas aos interesses das classes dominantes. Ainda que essas comunidades desenvolvam modos de existir muito característicos, singulares em sua essência, e os conceitos acerca de quilombo acabem generalizando-as e enquadrando-as por vezes, é necessário conhecer aquilo que elas possuem em comum – as lutas pela terra, as opressões, dentre outros – para que o pesquisador possa intervir

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de maneira positiva, alargando as possibilidades desses sujeitos de se apropriarem de sua terra, que não é vista somente como um lugar para morar ou desenvolver a agricultura familiar, mas como parte da identidade dessas pessoas.

Referências Bibliográficas

ARRUTI, J. Quilombos. In: PINHO, O. e SANSONE, L. Raças: Novas perspectivas antropológicas. – Salvador: Associação Brasileira de Antropologia: EDUFBA, 2006, 315-342p.

Grupo de Trabalho “Comunidades Negras Rurais”/ABA. Documento do Grupo de Trabalho sobre Comunidades Negras Rurais, Associação Brasileira de Antropologia, 1994. Disponível em: <www.abant.org.br/file?id=548>. Acesso em: 26 mai. 2015.

MELLO, Marcelo Moura. Reminiscências dos quilombos – Territórios da memória em uma comunidade negra rural. São Paulo: Terceiro Nome, 2012, 19-64p.

REIS, João José & GOMES, Flávio dos Santos. Liberdade por um fio: história dos quilombos no Brasil. São Paulo: companhia das Letras, 1996.9-23p.

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