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A Questão Meridional e a Aliança Operário-Camponesa em Gramsci

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Academic year: 2021

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Airton Souza de Lima*

Resumo: Através do tema da “aliança operário-camponesa” verifica-se o amadurecimento da análise gramsciana pela comparação entre o modo como a concepção dessa aliança é trabalhada no texto de “Alguns temas da questão Meridional” e a forma como Gramsci a retoma nos Cadernos do Cárcere. Nestes últimos escritos, o conceito de hegemonia aprimora a idéia de aliança operário-camponesa ao significar uma “reforma intelectual e moral” que objetiva a formação de um novo Estado. O que se verifica é que não há sentido em reduzir esse pensador a um teórico das “superestruturas”, antes, comprova-se seu matiz pela dialética característica do materialismo histórico marxiano.

Palavras-chave: Gramsci; aliança operário-camponesa; materialismo histórico dialético. Abstract: At theme of the “worker-peasant alliance” it verify the maturation of gramscian analysis across of confrontation between the form as the conception of that alliance is worked in the text of the “Any themes of the Meridian Question” and the mode how Gramsci retake it in the “Prison Copybooks”. In these copybooks, the concept of hegemony improves the “worker-peasant alliance” strategy, expressing an “intellectual and moral reform” that objectifies the new State formation. What is verified is that haven’t good sense in to reduce this thinker in a theoretical of “super-structures”, meanwhile it prove your tendency through dialectics characteristic of the historical-materialism of Marx.

Key works: Gramsci, worker-peasant alliance, dialectical materialism-historical.

1. A questão meridional e a influência leniniana: o conceito de aliança operário camponesa.

São comuns tentativas de dissociar Gramsci do chamado marxismo-leninismo, como se marxismo-leninismo dissesse respeito ao materialismo histórico vulgar, que de acordo com uma ironia gramsciana, explicaria as mudanças sociais e econômicas pela invenção do aeroplano. Ao focalizarmos a questão da aliança operário-camponesa pretendemos averiguar se ela se desfaz entre o Gramsci de “Alguns temas da questão Meridional1” e o

modo como ele aborda esses mesmos temas nos chamados “Cadernos do Cárcere”. Ao que parece, as preocupações de Gramsci no manuscrito de 1926 são aprofundadas analiticamente nos Cadernos e, de um modo geral, se pode dizer que a aliança operário-camponesa é retomada nas entrelinhas das discussões sobre a hegemonia, a história dos grupos sociais subalternos e sobre o sindicalismo teórico.

O mote que abre a discussão de Gramsci sobre “Alguns temas da questão Meridional” é um preâmbulo da redação da revista Quarto Stato2 de setembro de 1926, que anunciava o

* Mestrando em Ciência Política pela UNESP (campus de Marília-SP).

1 Texto escrito em setembro de 1926 e que provavelmente ficou inacabado devido sua prisão em novembro

do mesmo ano.

2 Revista socialista fundada por Carlo Rosselli em Milão, ao ano 1926. O “quarto estado” era um modo de

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livro de Guido Dorso3, La Revolucione meridionale, e a alusão nele contida sobre a atuação do Partido Comunista em relação à questão do Sul da Itália. Com uma pitada de sarcasmo, Gramsci polemiza com os jovens da redação que declaravam conhecer “perfeitamente em suas linhas gerais” o problema meridional, os quais, mediante esse cabedal perfeito em linhas gerais, consideravam a atuação dos comunistas de Turim como sendo pautada na “fórmula mágica” da divisão do latifúndio entre os proletários rurais. Foi por esse alvitre que Gramsci esclareceu o ponto de vista dos ditos comunistas através de um artigo do L` Ordine Nuovo4 de 3 de janeiro de 1920, onde, ao invés da repartição do

latifúndio, era proposta a “solidariedade” dos camponeses com o proletariado industrial. Trata-se, desse modo, não da “fórmula milagrosa”, mas sim, enfatiza Gramsci, da “aliança política entre os operários do Norte e os camponeses do Sul para derrubar a burguesia do poder de Estado. [...]” (Gramsci, 1987, p.137)

Desde já, podemos demonstrar o modo de abordagem sobre as classes ou grupos subalternos, especialmente sobre os camponeses, em Gramsci. Ao lançar o tema da questão meridional, ele se volta para a especificidade da trajetória histórica italiana, e ao pontuar a perspectiva dos comunistas turinenses e o alcance almejado por uma aliança entre operários e camponeses (a derrubada da burguesia do poder de Estado), nos fornece os elementos que o comprovam como um intelectual revolucionário. Tudo o que dissemos então fica mais claro quando posto pelo próprio autor:

Mas a questão camponesa na Itália está historicamente determinada, não é a “questão camponesa e agrária em geral”. Na Itália, em decorrência da tradição e do desenvolvimento determinado da história italiana, a questão camponesa assume duas formas típicas e peculiares: a questão meridional e a questão vaticana. (Gramsci, 1987, p. 139)

Até aqui temos seu método historiográfico, mas para além do método, ou em decorrência dele, emerge a importância do protagonismo operário revolucionário na questão meridional. Para Gramsci, a compreensão da necessidade histórica da aliança operário-camponesa supera as abordagens que restringiam a questão meridional a seus particularismos.

Para Del Roio, a retomada da reflexão de Gramsci sobre a questão agrária e camponesa, foi possível pela

“fórmula política da frente única, que estabelecia o vínculo entre a tática da Internacional Comunista de resistência a ofensiva do capital e a política de transição socialista por meio do capitalismo monopolista de Estado induzida pela NEP [Novo Programa Econômico] aviada na URSS”. (2003, p. 243)

A proposição política, implicada na aliança operário-camponesa, parece relacionada às idéias de Lênin em “Duas Táticas da Social Democracia”5. É sugestivo o fato de, após ter contato com as idéias desse revolucionário russo, Gramsci, no lugar do termo

3 Meridionalista que, com Piero Gobetti representava a corrente mais avançada dos liberais do primeiro

Partido D´ Azione

4 Revista fundada em Turim por Gramsci e seu grupo e que tinha por subtítulo: “resenha de cultura

socialista”, e que esteve vinculada com os operários dos Conselhos de fábrica de 1919.

5 Assim Lênin colocava a questão das “duas táticas”: “O proletariado deve levar a seu término a revolução

democrática, atraindo as massas camponesas, para deter pela força a resistência da autocracia e paralisar a instabilidade da burguesia. O proletariado deve levar a cabo a revolução socialista, atraindo a massa de elementos semiproletários da população, para romper pela força a resistência da burguesia e paralisar a instabilidade dos camponeses e da pequena burguesia. (Tradução nossa) Conf. Lenin, Obras escogidas,

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“solidariedade” utilizado no artigo citado “Operários e camponeses” (de 1920), falar de “aliança operário-camponesa”, além do que, ele utiliza pela primeira vez o termo “hegemonia do proletariado”, que define como sendo a base social da ditadura proletária e do Estado operário. Trata-se da capacidade do proletariado em forjar uma aliança de classes contra o capitalismo e o Estado burguês. Para o caso da Itália, a aliança possível era com a massa camponesa, cujas exigências o proletariado italiano deveria incorporar ao programa revolucionário de transição. (Gramsci, 1987, p. 139)

No pensamento de Gramsci podemos identificar pelo menos três preocupações que interagem constantemente ao longo do desenvolvimento de seu pensamento político: o papel do proletariado industrial, as particularidades históricas sociais e políticas da Itália e a procura da relação (exemplos históricos concretos) entre a perspectiva comunista e as demandas dos camponeses do Sul em detrimento da consolidação do Estado burguês e pela viabilização do Estado operário.

Uma singularidade histórica italiana destacada foi o cientificismo da antropologia positivista, com nomes como os de Eurico Ferri, Neciforo, Orano, Lombroso, Sergi, entre outros, e cuja teoria, pautada na biologia e na antropometria, era aceita pelo Partido Socialista. Ora, segundo essa ideologia

o Sul é a bola de chumbo que impede progressos mais rápidos no desenvolvimento civil da Itália; os meridionais são seres biologicamente inferiores, semibárbaros ou bárbaros completos, por destino natural;[...]” (Gramsci, 1987,p. 141)

O combate a tal ideologia Gramsci procura em acontecimentos relacionados aos comunistas e as formas práticas que utilizaram para enfrentar esse preconceito difundido no espírito popular. Dois casos despontam na análise, um deles ocorrido em Turim antes da I Grande Guerra, quando os operários decidiram apoiar a eleição de um deputado para os camponeses das Pulhas. Os camponeses aventavam o nome do ex-membro do Partido Socialista Italiano (PSI), Gaetano Salvemini, todavia ele não aceitou ser candidato.

Fatos “mais salientes e sintomáticos” Gramsci encontrou na formação da Associação da Jovem Sardenha, que culminaria no Partido Sardo de Ação. Objetivava-se formar um bloco regional para pressionar o governo a cumprir as promessas feitas aos soldados durante a Guerra. Resulta que, na reunião para formar a Associação, o discurso que invocava um bloco de “todos os filhos da Sardenha” foi derrotado ante a comunicação dos comunistas sardos que anunciavam um bloco com os operários do continente contra as explorações e opressões perpetradas pelos “senhores da Sardenha, guardiões locais da exploração capitalista”. (Gramsci, 1987,p. 143)

O combate à ideologia burguesa evidencia-se, também, no episódio onde um operário comunista do curtume de Sassari infiltrou-se no acampamento da brigada Sassari (brigada que reprimira os movimentos operários de 1917 em Turim) e dialogou com um soldado. A brigada estava ali para deter os “senhores” que fazem a greve, explicou o soldado, ao que respondeu o operário: “Mas não são os senhores que fazem greve e sim os operários e são pobres.” Mas, para o soldado, pobre era o lavrador de Sassari ou se era pobre pelo fato de ser sardo. A brigada foi retirada de Turim as vésperas da greve geral de 20 e 21 de julho de 1920.

Diante desses fatos, Gramsci demonstra, a um só tempo, o antagonismo com as classes dominantes, o protagonismo do operariado revolucionário e a possibilidade de aliança entre estes e os camponeses do Sul. Cartas coletivas assinadas por ex-combatentes

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enviadas à redação turinesa do Avanti!6; a própria formação do Partido Sardo de Ação; uma declaração de vários carabinieres (soldados), enviados a Turim em 1922 para repressão aos movimentos operários, a qual coadunava com a colocação dos comunistas a respeito da questão Meridional, etc; eram todos prova da conseqüência e justeza da orientação do Partido Comunista da Itália.

Para exercer sua hegemonia, para governar como classe, o proletariado deve, afirma Gramsci, superar o corporativismo, as distinções entre profissões, e, além disso, a fim de obter o consenso dos camponeses e dos semi-proletários urbanos, devem se despojar de preconceitos e egoísmos. Deve se pensar enquanto classe para dirigir os camponeses e os intelectuais, ou então, tais seguimentos permanecem sob a direção burguesa e sob o Estado burguês. (Gramsci, 1987, p. 146)

No caso italiano, Gramsci observa que desde revoltas do operariado e camponeses do fim do século XIX, a burguesia se viu obrigada a escolher entre uma democracia rural, uma aliança com os camponeses meridionais, e um bloco industrial capitalista operário, sem sufrágio universal, com protecionismo, centralização estatal e reformas salariais e sindicais. A burguesia italiana opta pelo bloco industrial com o apoio do PSI. Em reação aos líderes reformistas, os operários formam sindicatos a favor de um bloco com os camponeses meridionais. Gramsci considera o sindicalismo uma débil tentativa dos camponeses meridionais, representados por seus intelectuais mais avançados, de dirigir o proletariado. Todavia, “a essência ideológica do sindicalismo é um novo liberalismo, mais enérgico, mais lutador” do que o tradicional. O destino histórico dos sindicalistas foi o nacionalismo e o Partido Nacionalista. Com o avanço do capitalismo e a conseqüente diferenciação que causa entre os camponeses do Norte, os meridionais influenciam movimentos agrários no Vale Padana, o que leva a ineficiência aquele bloco industrial. Em decorrência, a classe dirigente da burguesia busca uma aliança com os católicos, vale dizer, com os camponeses da Itália setentrional e central. Dessa forma, através do reformismo corporativo enquadravam os operários de Turim no sistema estatal burguês, ou seja, impossibilitava a fundamental autonomia da classe, que implica na perda da sua capacidade de exercer a hegemonia, da sua função de classe dirigente e guia. A classe operária, além de existir, nessas condições, apenas como apêndice do Estado burguês, aparece aos camponeses como um “explorador ao estilo dos burgueses.” (Gramsci, 1987, p. 152)

Dessa forma, a análise das manifestações ou das condições do campesinato está subsumida ao foco da revolução, da formação do Estado operário. É por isso que Gramsci procura, para a questão meridional, o momento e/ou o lugar onde se estabelece a dominação. No geral, os camponeses do Sul da Itália são desagregados, sem coesão entre si e fazem parte de um bloco agrário onde grassam outros dois estratos sociais: os intelectuais da pequena e média burguesia (pequenos e médios proprietários de terras) e os grandes proprietários juntamente com os grandes intelectuais. Toda efervescência do campesinato é dissolvida no campo ideológico, no qual Giustino Fortunato e Benedetto Croce “soldam” as fissuras do bloco agrário.

Apesar das exceções como a da Sardenha, Sicília e das Pulhas, “O camponês meridional está ligado ao grande proprietário de terras por meio do intelectual. Os movimentos dos camponeses, na medida em que não se resumem a ser organizações de massa autônomas e independentes ainda que formalmente, terminam sempre por se reduzir às ordinárias articulações do aparato estatal [...] através de composições e decomposições dos partidos

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locais, cujo pessoal é constituído de intelectuais, mas que são controlados pelos grandes proprietários e por seus homens de confiança [...] (Gramsci, 1987, p. 157)

É o intelectual, portanto, o elo desse “bloco” que amalgama o campesinato desagregado e que tem como conseqüência, ou mesmo, o objetivo de manter o status quo. O tipo de intelectual do Sul, segundo Gramsci, é o tradicional e não o técnico especialista desenvolvido pelo capitalismo e predominante no Norte da Itália. O intelectual tradicional é o elemento organizativo dessa sociedade camponesa e artesanal, o qual organiza o comércio, exerce funções administrativas e organiza o Estado. Além do clero, a origem desses intelectuais são os pequenos e médios proprietários de terras, que não são camponeses, mas que participam de uma dada aversão ao trabalho braçal e, conseqüentemente, ao camponês trabalhador. (Gramsci, 1987, p. 156) O camponês, por sua vez, está ligado ao grande proprietário por meio do intelectual, formando assim um bloco agrário que ampara o capitalismo setentrional e os grandes bancos. “Seu único objetivo é conservar o status quo”. (Gramsci, 1987, p. 158)

No Sul não se configurou uma formação média de intelectuais, apenas centros de grande erudição, aqueles que abordavam a questão meridional de forma radical só encontravam abrigo em revistas impressas fora do Sul. Todavia, todas as iniciativas tinham como moderadores políticos Giustino Fortunato e Benedetto Croce, o que garantiu que a abordagem dos problemas meridionais não ultrapassasse certos limites e não se tornasse revolucionária. Esses grandes expoentes separaram os intelectuais radicais do Sul das massas camponesas, absorvendo-os, pela cultura, à burguesia nacional e, portanto, ao bloco agrário. (Gramsci, 1987, p. 162)

Eram os comunistas, exceto o grupo ligado a Amadeo Bordiga7, que punham em conta a questão meridional, bem como Piero Gobetti e Guido Dorso, sem fazer abstração da posição social e histórica do proletariado. Desse modo, avançavam sobre a abordagem tradicional que se fazia da questão meridional. Tais intelectuais serviram de ligação entre os nascidos da técnica capitalista e os intelectuais meridionais, e que, além disso, haviam assumido uma posição de esquerda pela ditadura do proletariado em 1919-20. (Gramsci, 1987, p. 165) A formação de intelectuais orientada para o proletariado revolucionário é essencial para a aliança operário-camponesa, configurando organizações autônomas e independentes, capazes de desagregar o bloco intelectual que constitui a “armadura flexível, mas resistente” do bloco agrário. (Gramsci, 1987, p. 165)

Sabe-se que o manuscrito sobre a Questão Meridional provavelmente esteja inconcluso por conta da prisão de Gramsci que acontece logo em novembro de 1926. No período em que esteve preso, ele desenvolveu suas idéias escrevendo o que ficou conhecido como “Cadernos do Cárcere”. Resta-nos averiguar se ocorreu ou não uma mudança profunda na análise do problema meridional e, ainda, verificar o pressuposto teórico fundamental do protagonismo revolucionário do operariado no processo histórico, ou seja, a classe que tem por função ser hegemônica sobre outros segmentos sociais, como os intelectuais e os camponeses. Gramsci se afasta nos “Cadernos” da preocupação leniniana com o papel central do operariado como classe dirigente em detrimento da hegemonia burguesa, e com a importância da aliança operário-camponesa?

7 Segundo Del Roio, este “era o mais influente dirigente comunista”, e negava a existência de uma questão

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2. Sob o prisma do conceito hegemonia: aliança operário-camponesa como reforma intelectual e moral.

No tópico dos Cadernos “A relação cidade-campo no Resorgimento e na estrutura

nacional italiana”, portanto, no trecho do Caderno que data de 1934 e 1935, e que tem

como objeto o Resorgimento italiano, Gramsci retoma os temas da questão meridional. A primeira observação do autor dos Cadernos é que no caso italiano nem sempre a cidade é mais progressista do que o meio rural, a exemplo de Nápoles, muitas cidades na Itália não eram cidades industrializadas, mas sim de tipo medieval. Embora tais cidades tivessem um contingente de populações do tipo urbano moderno, ele estava comprimido pela maioria que não era moderna. (Gramsci, 2004, p 88, v.5) Novamente, o pensador italiano aborda o problema meridional a partir do que, nesse momento, define como “unidade ideológica contra o campo”, que inclui núcleos modernos da sociedade civil.

“Existe um ódio contra o “camponês”, uma frente única implícita contra as reivindicações do campo, que, realizadas, tornariam impossível a existência deste tipo de cidade. Reciprocamente, existe uma aversão “genérica”, [...] do campo contra a cidade, contra toda a cidade, contra todos os grupos que a constituem”. (Gramsci, 2004, p.88, v.5)

Ora, não está claro que volta o problema da ideologia burguesa da inferioridade biológica do camponês meridional? Dos problemas que implica para uma aliança necessária entre o operariado e os camponeses, uma vez que tal ideologia provoca tanto o ódio dos trabalhadores urbanos contra os rurais, bem como o contrário. No longo período de conflitos suscitados por essas contradições que vão desde 1799 (não por acaso em Nápoles) até a invasão de terras em 1919, no Mezzogiorno (região Meridional) e na Sicília, e a ocupação das fábricas em Turim, em 1920, Gramsci percebe uma sincronia e simultaneidade entre os acontecimentos, que mostra uma estrutura econômica-política homogenia, bem como o fato de que nas crises é a parte mais fraca e periférica que reage inicialmente. (Gramsci, 2004, p. 89, v.5)

A questão do intelectual volta sob a tese de que o movimento cultural de Croce e Fortunato se contrapunha ao movimento cultural do norte (idealismo contra positivismo). Antes do fascismo, Gramsci afirma que a relação que ligava a cidade e campo era perpassada pelo papel do intelectual, que no Mezzogiorno ainda era o tipo do “bacharel”, e no Norte o tipo do “técnico” de fábrica. Sendo que o primeiro representava o elo entre o camponês, o grande proprietário de terras e o aparelho estatal, e o segundo, serve de ligação entre operário e o empresário, a relação com estado, por outro lado, era função dos sindicatos e dos partidos políticos, dirigidos por uma camada intelectual completamente nova. (Gramsci, 2004, p. 90, v.5) Note-se que preocupação com os intelectuais está novamente associada com a análise da dominação política.

Em decorrência dessas contradições entre cidade-campo desenvolveram-se vários programas políticos na Itália, que em comparação com a análise feita sobre tais programas nos manuscritos de 1926, Gramsci aprimora os argumentos: o programa liberal-democrata que formou em bloco “urbano” em detrimento da aliança com os camponeses do Sul, reduziu oMezzogiorno

“a um mercado de venda semicolonial, a uma fonte de poupança e de impostos, e era mantido “sob disciplina” com duas séries de medidas: medidas policiais de repressão impiedosa ao movimento de massa; [...] medidas político policiais: favores pessoais à camada dos “intelectuais” ou bacharéis [...]

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Assim, o estrato social que poderia organizar o endêmico descontentamento meridional se tornava, ao contrário, um instrumento da política setentrional, [...]” (Gramsci, 2004, pp, 90-91, v.5)

A pressão dos meridionalistas com apoio de socialistas pelo livre câmbio, pelas eleições e a conseqüente implantação do sufrágio universal, fez com que o governo burguês substituísse o bloco urbano por um outro entre a indústria setentrional e as forças do campo (diga-se as forças eleitorais católicas). (Gramsci, 2004, p. 91, v.5)

Na busca da origem da função político social dos intelectuais na Itália, Gramsci concluiu que:

“No desenvolvimento do Risorgimento, o chamado Partido da Ação tinha uma atitude “paternalista” e, por isto, não conseguiu, a não ser em medida muito limitada, pôr as grandes massas populares em contato com o Estado. O chamado “transformismo” é tão somente a expressão parlamentar do fato de que o Partido da Ação é incorporado molecularmente pelos moderados e as massas populares são decapitadas, não absorvidas no âmbito do novo Estado”. (Gramsci, 2004, p. 93, v.5)

O Partido da Ação, que representaria as forças progressistas, sequer chegou a por em sua plenitude a questão agrária, no que os moderados (representantes das forças de direita, dos grandes proprietários, Exército, etc.) foram mais determinantes, pois ao expropriarem os bens eclesiásticos criaram uma “nova camada de grandes e médios proprietários”. (Gramsci, 2004, p. 97, v.5)

Os conceitos parecem mais cuidadosos nesses trechos dos Cadernos, fala-se mais em camadas e grupos sociais do que em classes, há um certo refinamento, mas a preocupação de Gramsci mudara radicalmente em relação ao manuscrito de 1926? Não se trata de aliança operário-camponesa ou de Estado operário?

No Caderno de 1934, onde aborda a história dos grupos sociais subalternos, ao discutir metodologia, Gramsci desnuda tais questões:

“As classes subalternas, por definição, não podem se unificar enquanto não puderem se tornar “Estado”. [...]

O historiador deve observar e justificar a linha de desenvolvimento para a autonomia integral a partir das fases mais primitivas, [...]

Pode-se construir muitos cânones de investigação histórica a partir do exame das forças inovadoras italianas que guiaram o Risorgimento nacional: estas forças tomaram o poder, unificaram-se no Estado moderno italiano, lutando contra determinadas outras forças e ajudadas por determinados auxiliares ou aliados; para se tornarem Estado, deviam subordinar a si ou eliminar as primeiras e ter o consentimento ativo ou passivo das outras. Portanto, o estudo do desenvolvimento destas forças inovadoras, de grupos subalternos a dirigentes e dominantes, deve investigar e identificar as fases através das quais elas adquiriram a autonomia em relação aos inimigos a abater e a adesão dos grupos que as ajudaram ativa ou passivamente, uma vez que todo este processo era necessário historicamente para se unificarem em Estado”. (Gramsci, 2004, pp. 139-141, v.5)

Nos Cadernos, outro traço marcante de Gramsci, que vem dos anos de sua juventude, é sua crítica ao “reformismo” socialista8, a qual é recolocada e voltada ao sindicalismo teórico nas Breves notas sobre a política de Maquiavel, escritas entre 1932 e 1934. Aqui se tem claro a questão da hegemonia da classe operária como meta revolucionária e a necessidade

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de abrir mão daquilo que no escrito de 1926, ele chamava de “corporativismo”, distinção entre profissões e de preconceitos e egoísmos.

O sindicalismo teórico além de uma variante do liberalismo, é uma variante subordinada, pois o liberalismo é próprio do grupo dirigente, enquanto que o sindicalismo teórico é de um grupo subalterno que não alçou a consciência de suas possibilidades. Pois

“É inegável que, neste último, a independência e a autonomia do grupo subalterno que ele diz exprimir são sacrificadas à hegemonia intelectual do grupo dominante. [...] (Gramsci, 2004, p 48, v. 3)

[...] na medida em que se refere a um grupo subalterno, o qual, por meio dessa teoria, é impedido de se tornar dominante, de se desenvolver para além da fase econômico-corporativa a fim de alcançar a fase de hegemonia ético-política na sociedade civil e de tornar-se dominante no Estado”. (Gramsci, 2004, p.47, v.3)

Ao não falar em classes camponesas, mas em grupos subalternos, grupos dirigentes, dominantes, etc., não significa que Gramsci tenha abdicado dos pressupostos da aliança operário-camponesa, pois, como acabamos de verificar pelo seu método de abordar a história dos grupos subalternos e pela crítica que desfere ao sindicalismo teórico, Gramsci reafirma a necessidade histórica do exercício da hegemonia dos grupos subalternos, que só podem deixar sua situação de dispersão, desagregação e falta de coesão para se unificarem se tornando “Estado”. Para tanto, precisam abrir concessões aos grupos que lhe são favoráveis e aniquilar os antagonistas. Não é este um modo mais elaborado de recolocar a aliança operário-camponesa, no caso italiano, mediada por um novo intelectual que possibilite romper com o bloco agrário e sua “armadura”, expressa pelo idealismo crociano? Todavia, a fórmula da aliança operária camponesa não dava conta das complexidades da relação entre os grupos subalternos entre si e destes em relação aos dirigentes.

Mais do que incluir as reivindicações dos camponeses no programa do partido trata-se de fazer avançar a “concepção de mundo” dos grupos subalternos, a qual não é elaborada sistematicamente, tornando tais grupos instrumentais a toda forma de sociedade que já existiu. (Gramsci, 2004, p. 134, v. 5) Longe de desejar um conhecimento desinteressado do folclore e da moral popular, a abordagem gramsciana visa distinguir as camadas dessa moral: aquelas que refletem as condições de vida passadas, e portanto reacionárias, daquelas que são inovadoras e progressistas,

“[...] determinadas espontaneamente por formas e condições de vida em processo de desenvolvimento, e que estão em contradição com a moral dos estratos dirigentes, ou são apenas diferentes dela”. (Gramsci, 2004, p. 135, v.5)

O conceito de hegemonia aprimora a estratégia da aliança operário-camponesa ao significar uma “reforma intelectual e moral” que avança para a formação de um novo Estado. Ocorre aqui o inverso do que se verifica em “Alguns temas da questão meridional”, onde o proletariado só seria capaz de produzir seus próprios intelectuais após a tomada do poder de Estado (Gramsci, 1987, p.164). Dessa forma, compreende-se porque, em “Americanismo e Fordismo”, Gramsci procura o momento onde pode nascer a hegemonia do proletariado, que tal como a ofensiva do capital contra os movimentos revolucionários de 1917 a 19209 nasce na fábrica, pois o cérebro do “gorila amestrado”

9 Del Roio, apresentação na mesa redonda, Classes Subalternas, sociedade civil e Estado. 5° Seminário

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pelo taylorismo, ao mecanizar os gestos na produção, em vez de “mumificar-se, alcançou um estado de completa liberdade”.

Os industriais norte-americanos compreenderam que o “gorila amestrado” é uma frase, que o operário “infelizmente” continua homem e até mesmo que, durante o trabalho, pensa mais ou, pelo menos, tem muito mais possibilidade de pensar, pelo menos quando superou a crise de adaptação e não foi eliminado: e não só pensa, mas o fato de que o trabalho não lhe dá satisfações imediatas, e que ele compreenda que se quer reduzi-lo a gorila amestrado, pode levá-lo a pensamentos pouco conformistas. (Gramsci, 2004, p. 272, v. 40) A “reforma moral e intelectual”, expressão do exercício da hegemonia, objetiva fazer avançar a moral popular de sua multiplicidade e desagregação, que, para Gramsci, é mais do que o sentido de diversificado e justaposto, é também “algo estratificado do mais grosseiro ao menos grosseiro, [...] um aglomerado indigesto de concepções do mundo e da vida que se sucederam na história”. (Gramsci, 2004, p.134, v.5) Mas, de que forma? Por um lado, identificando o espaço e o momento da rebeldia nos fragmentos que compõe o folclore, para pensar no caso do campesinato, e por outro, o espaço e o momento da contradição no processo produtivo, na dialética presente nos novos métodos industriais, para a formação da classe que é antagonista ao capital, o operariado. Para esses últimos havia um espaço aberto pela própria mecanização taylorista, que libera o cérebro para pensamentos subversivos, já quanto ao que chamamos de “campesinato” (pois Gramsci, nesse momento, trata de grandes massas populares), o ensino haveria que determinar o nascimento de uma nova cultura, que supere o folclore, diluindo a separação entre cultura popular e cultura moderna. “Uma atividade deste gênero, feita em profundidade, corresponderia no plano intelectual ao que foi a Reforma nos países protestantes.” (Gramsci, 2004, p. 136, v.5)

Não é vã a comparação feita com a Reforma protestante se atentarmos para o papel que ela desempenhou na construção do “espírito de capitalismo”, o ethos de acumulação, como bem demonstrou Max Weber. Só que diferentemente de Weber, Gramsci é um intelectual revolucionário e se posiciona diante da realidade, pois conhecer as condições da dominação do proletariado implica a necessidade de superá-las, bem como importa conhecer o folclore e a moral popular, não pelo conhecimento em si, mas conhecê-los para superá-los. Trata-se de investir naquilo que há de “novo” e progressista em detrimento daquilo que é reacionário, ou seja, daquilo que é conservação de condições herdadas de formações sociais anteriores e das atuais, representadas pela opressão da ofensiva do capitalismo sobre o mundo do trabalho. Nesse sentido, a hegemonia que desde o manuscrito de 1926 se realizava na aliança operário camponesa, configurando a classe operária como classe dirigente para a consolidação do Estado operário, ganha seus contornos em uma reforma intelectual e moral que se processa de modo molecular ao longo da história.

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Referências

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__________, Caderno 19 (1934-1935): Risorgimento italiano. In: Cadernos do Cárcere. 3 ed., Rio de Janeiro, ed. Civilização brasileira, 2004, v.5

__________, Caderno 22 (1934): Americanismo e Fordismo. In: Cadernos do Cárcere. 3 ed., Rio de Janeiro, ed. Civilização brasileira, 2004, v.4.

__________, Caderno 25 (1934): Às margens da história. (História dos grupos sociais subalternos) In:

Cadernos do Cárcere. 3 ed., Rio de Janeiro, ed. Civilização brasileira, 2004, v.5

__________, Caderno 27 (1935): Observações sobre o “Folclore” In: Cadernos do Cárcere. 3 ed., Rio de Janeiro, ed. Civilização brasileira, 2004, v.5

Referências

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