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A câmera e a flecha em Corumbiara

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Academic year: 2021

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clarissecastroalvarenga

A câmera e a flecha em

Corumbiara

Doutoranda do Programa de Comunicação Social da UFMG

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Numa gota de tinta há um bom estoque De caçadores de olho semicerrado Prontos a correr pena abaixo, Rodear a corça, preparar o tiro. Esquecem-se de que isso não é a vida. Outras leis, preto no branco aqui vigoram. Um pestanejar vai durar quanto eu quiser, E se deixar dividir em pequenas eternidades cheias de balas suspensas no voo.

Wislawa Szymborska

Do lado de fora da casa está Vincent Carelli com sua câmera ligada. De dentro, o chamado “índio do buraco” com uma flecha apontada para o cineasta. A imagem mostra apenas parte do rosto daquele personagem que permanece até o fim como uma incógnita e que o cineasta busca retratar a todo custo. Vemos à distância e, para acentuar ainda mais o espaço que separa o índio e o cineasta, está posto, como uma espécie de anteparo, um monte de palhas que recobre a casa. O índio do buraco permanece cuidadosamente escondido durante toda a sequência que mostra a tentativa de estabelecer um primeiro contato com ele.

Ambos sustentam por alguns instantes a situação de embate, frente a frente. Até que Vincent, não sem hesitar, recua, numa reação que – não apenas pela arma que lhe está apontada mas também pelo alerta vindo de seus companheiros em off repetindo “cuidado Vincent” – parece mais lenta do que requer a situação de risco envolvida. É como se o cineasta não reagisse prontamente. Na tentativa de captar a imagem do índio do buraco, ele está também, e em via reversa, na iminência de ser de fato capturado.

Esse fotograma é um instante por mim recolhido de uma experiência que envolveu 20 anos (1986-2006), nos quais Vincent, tendo sempre ao seu lado o indigenista Marcelo Santos, realizou uma série de filmagens cujo objetivo manifesto, em principio, não era exatamente o de fazer um filme. A proposta então era acompanhar o trabalho da Funai (Fundação Nacional do Índio), instituição à qual Marcelo

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estava vinculado, registrando as “evidências”, para usar uma palavra de Vincent, que pudessem convencer a justiça brasileira da existência de um pequeno grupo de índios – que depois souberam tratar-se de índios Canoê –, sobreviventes de um massacre empreendido por fazendeiros. Os Canoê viviam isolados na gleba de terra Corumbiara, território que tradicionalmente lhes pertenceu, no Sul de Rondônia.

Todo o esforço de Vincent caminha no sentido de captar “vestígios”, para usar outra expressão repetida diversas vezes tanto por ele quanto pelos integrantes da equipe da Funai, da existência dos índios nessas terras. Tendo em mãos objetos achados, entre eles panelas de barro e flautas, e, sobretudo, tendo imagens dos índios habitando a área, acreditava-se que seria possível interditar a terra que fora leiloada pelo governo militar ainda na década de 1960 a preços módicos para empresários paulistas. Ao longo das buscas, surgem, contudo, uma série de obstáculos, entre eles estão ações sistemáticas de fazendeiros, advogados e trabalhadores rurais da região, que tentam impedir o acesso da equipe ao território.

Diferentemente de todos os demais contatos com índios isolados que são filmados em Corumbiara (2009), o encontro com o índio do buraco se destaca pela radicalidade dos gestos de parte a parte: alguém que decide filmar a todo custo

versus alguém que não cede ao contato. Tal como o buraco

que o índio constrói para se escamotear dentro de sua própria casa e que é usado pela equipe da Funai para nomeá-lo, esse encontro, sintetizado no fotograma em questão, provoca um aprofundamento do sentido do filme, como se a escritura fosse escavada por debaixo da tentativa do contato.

Se a experiência de filmar o índio do buraco é problemática, coloca o diretor em risco e consequentemente em crise, é também aquilo que afasta o filme de sua proposta inicial, tornando-o mais complexo e também menos controlado pelo diretor. “Que filho de uma puta que a gente é”, foi o que, posteriormente, Vincent disse ter passado pela sua cabeça no momento de maior aproximação ao índio do buraco. Ele questionava a si mesmo e a equipe da Funai sobre até onde eles estavam dispostos a ir para ter uma imagem do índio do buraco. Vincent relata ainda que, naquele dia, depois da tentativa de primeiro contato, sonhou que havia usado um

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anestésico para sedar o índio (que não cede), da maneira como é feito nos documentários que filmam animais, e então quando o índio acordava estava feito o contato.

Outro aspecto importante de ser levantado é que o posicionamento de Vincent, ao fornecer imagens que sirvam para defender os índios na justiça, é de estar do lado dos índios. Entretanto, essa premissa é colocada em cheque a partir da negativa do índio do buraco. Se Vincent e a equipe da Funai pretendem estar do lado do índio, inclusive demonstram que estão dispostos a defendê-lo a todo custo, essa não é uma decisão unívoca de ambas as partes.

Essa singular experiência de primeiro contato tal como mostrada no filme – e que produz a primeira imagem do índio do buraco – pode ser vinculada conceitualmente à defesa, por Eduardo Viveiros de Castro, do equívoco, denominado “equivocação controlada” na antropologia. Para o autor, o equívoco não é um erro, mas um problema que aponta afirmativamente para uma condição de possibilidade.

O equívoco não é o que impede a relação, mas o que a funda e impele: a diferença de perspectiva. Para traduzir é preciso presumir que um equívoco sempre existe, e é isso que comunica as diferenças ao invés de silenciar o outro presumindo uma univocidade – a similaridade essencial – entre o que o Outro e nós estamos dizendo. (VIVEIROS DE CASTRO, 2004: 8, tradução nossa)1.

Dessa forma, o equívoco pode ser tomado não como um erro que seja fruto do desconhecimento, da incompetência, da falta de condições de entendimento, mas como uma condição fundante da própria situação de comunicação e de encontro, algo que se intensifica e se explicita fortemente na experiência do primeiro contato. É justamente porque não são a mesma coisa um para o outro que indígenas e indigenistas têm entre si a possibilidade da comunicação.

Se brancos, sejam eles indigenistas, fazendeiros ou funcionários do governo e indígenas entendessem perfeitamente o que são um e outro, e soubessem de antemão qual a relação que estabelecem entre o que sabem um do outro e o mundo, não haveria necessidade de comunicação, não haveria necessidade de um primeiro contato permeado por uma série de cuidados, preparativos, procedimentos. Muito do que se faz numa situação de primeiro contato é

1. No original: “The

equivocation is not that which impedes the relation, but that which founds and impels it: a difference in perspective. To translate is to presume that an equivocation always exists; it is to communicate by differences, instead of silencing the Other by presuming a univocality—the essential similarity—between what the Other and We are saying”.

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feito exatamente porque se sabe que existe um equívoco inevitável, incontornável.

Nesse caso, o que está em jogo, portanto, não é um mundo em comum sobre o qual existem pontos de vista diferentes. Mais que isso, cada entendimento distinto aponta para a descrição de um mundo diferente. O mundo que os indígenas descrevem com o seu entendimento é diferente do mundo que descrevem os indigenistas ou o cineasta. O que os difere não é a forma como entendem, mas os mundos que seus entendimentos fundam.

Ao que parece é exatamente com essa diferença entre mundos que aqueles que vivem a situação do primeiro contato têm que lidar, na prática, no domínio de suas ações. No caso do enfrentamento entre Vincent e o índio do buraco esse equívoco se manifesta, não dando sequer margem a aproximações, explicações ou traduções. O mundo do índio do buraco permanece opaco ao olhar do cineasta branco. Ele não deixa a câmera filmá-lo, nem sequer devolve o olhar a Vincent. Justamente em função do equívoco, acredito que não seja possível uma tradução literal ou direta entre câmera e flecha ou talvez essa relação seja mais complexa do que se supõe, em princípio.

A câmera, no filme, busca atrair o olhar do sujeito filmado para si, buscando aproximação, buscando o contato, com um objetivo claro de retratá-lo, de produzir uma imagem dele. A flecha, ainda no filme, faz um movimento distinto: ela demarca uma distância, assegura a possibilidade da não-relação, permite resistir ao olhar do outro e instaura um espaço interno, que pode ser identificado ao espaço interior da casa do índio do buraco ao qual não se tem acesso enquanto ele lá está. O filme mostra duas moradias anteriores do índio do buraco, mas sempre que ele percebe a intervenção da equipe feita na sua ausência, ele abandona a casa e não mais retorna. A câmera propõe o espaço externo onde será possível o encontro. A flecha permite ao índio não comparecer ao encontro, não ceder ao convite.

Outro aspecto importante é que a situação de primeiro contato com o índio do buraco tira a câmera do lugar de centralidade, de frontalidade, ao qual ela em geral é vinculada. A forma como a sequência do primeiro contato é filmada é clara. Não há

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centralidade da câmera, apesar de Vincent querer imprimir esse sentido às imagens posteriormente a partir de seu comentário.

Vincent observa, ainda no seu comentário narrativo, que, durante a aproximação ao índio do buraco, Alemão, funcionário da Funai, havia se exposto mais que ele sem, no entanto, ser ameaçado. Por estar com a câmera, Vincent teria sofrido uma ameaça mais ostensiva. Apesar disso ser falado na narração, no filme quem se expõe mais é Marcelo, líder do grupo. É contra ele que o índio do buraco investe de forma mais contundente. Para além da sugestão explícita de que o índio tomava a câmera como uma flecha, que parece um pressuposto de Vincent, o que o filme mostra é que a câmera perde a posição de centralidade da cena e não consegue forjar um espaço e um tempo de aproximação para retratar o personagem.

A tentativa de estabelecer o primeiro contato com o índio do buraco envolveu uma série de procedimentos, muitos deles lançando mão do uso da imagem. Tudo começa com Marcelo e Alemão, que examinam uma foto de satélite e identificam um desmatamento feito no período das chuvas, o que é considerado atípico porque a mata não queima e o serviço fica perdido. Esse desmatamento levantou a suspeita dos indigenistas em relação a uma investida do fazendeiro proprietário da Fazenda Modelo contra os índios que habitavam a área.

Em seguida, Vincent consegue, através de uma filmagem usando câmera escondida, entrevistar Dona Elenice, cozinheira da pensão onde o cineasta estava hospedado. Ela e o marido, coincidentemente, haviam sido contratados para queimar a derrubada das árvores na Fazenda Modelo. No depoimento, ela confirma a existência do índio do buraco.

Depois de muitas tentativas, de idas e vindas ao longo dos anos, finalmente a equipe consegue perceber a presença do índio do buraco dentro da mata. A partir daí a tentativa de aproximação durou seis horas, tempo em que a equipe da Funai, junto com Vincent e o índio Purá, estiveram ao redor da casa do índio tentando, em vão, que ele cedesse ao contato. Do ponto de vista do filme, seria como se ao optar pela busca de evidências, pela retratação dos indígenas, ou seja, ao optar por essa visualidade, o filme tivesse agora

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que lidar também com uma invisibilidade que ele faz surgir e que resiste a ele. Além de fazer uso de uma série de procedimentos ilícitos para chegar a filmar o índio do buraco – e não é isso o que pretendo questionar de forma alguma – o diretor parece criar, com sua narração um fato para a câmera ao dizer que o índio reagiu mais fortemente a ele, pelo fato dele estar com a câmera. Ele parece querer garantir à câmera o lugar que lhe foi tirado.

Na verdade, a câmera parece mais importante para o filme do que para o índio do buraco. Ele reagiu frente à investida de todos os integrantes da equipe, inclusive a Vincent. É isso o que a imagem nos mostra de fato. Da mesma forma que ele recusou os presentes, mudou-se de casa todas as vezes em que foi descoberto, abandonou as roças que haviam sido mapeadas pela Funai. Enfim, a recusa do índio do buraco não é exatamente uma recusa da imagem, mas uma recusa anterior, mais radical. É uma recusa do contato e o uso da flecha é fundamental nesse sentido.

No fundo, as evidências ou vestígios recolhidos indicam não para uma prova a ser aproveitada pela justiça, mas para uma dúvida em relação aos contatos, seus equívocos, e às formas possíveis de filmá-los, de torná-los escritura. Entre a câmera e a flecha há uma diferença irredutível, que dificulta a tradução: a primeira é que uma sugere aproximação e a outra distanciamento. Ao propor uma equivalência entre câmera e arma ou ao colocá-las frente a frente, nessa situação, é preciso também em seguida atentar para as suas diferenças.

Referências:

BRASIL, André. O Olho do mito: perspectivismo em Histórias de Mawary. In: ENCONTRO ANUAL DA COMPÓS, 21, 2012, Juiz de Fora. Anais... Juiz de Fora, 2012.

GUIMARÃES, César. Apresentação. Devires – Cinema e Humanidades, Belo Horizonte, v. 5, n. 2, p. 6-9, jul./dez. 2008.

MAIA, Paulo. O Animal e a câmera. In: Catálogo do forumdoc.bh.2011 – 15º Festival do filme documentário e etnográfico – Fórum de Antropologia, Cinema e Vídeo. Belo Horizonte: Filmes de Quintal, 2011. p. 85-96. SARAIVA, Leandro. Enfia essa câmera no rabo. Retrato do Brasil, n. 27, p.

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VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. O Nativo relativo. Mana, São Paulo, v. 8, n. 1, p. 113-148, 2002.

______. Perspectival anthropology and the method of controlled equivocation. Tipití: Journal of the Society for the Anthropology of Lowland South America, v. 2, n. 1, p. 1-22, 2004.

______. No Brasil todo mundo é índio, exceto quem não é. In: RICARDO, Beto; RICARDO, Fany (orgs.). Povos indígenas no Brasil 2001/2005. São Paulo: Instituto Socioambiental, 2006.

Data do recebimento: 12 de novembro de 2012 Data da aceitação: 16 de janeiro de 2013

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