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Inhumas, ano 1, n. 6, set. 2013
ISSN 2316-8102
O PERFORMER É UM IMIGRANTE?
Clóvis DomingosClóvis Domingos, ROL: casa-corpo-palavra, 2011. Performance apresentada no evento Jornada Identidade e Migração – O Inconsciente da Casa do Istituto Biaggi na cidade de Belo
Horizonte no Brasil. © Arquivo Istituto Biaggi
A questão me surgiu quando fui convidado a participar com uma apresentação artística em uma jornada de psicanálise que se propunha a discutir os impactos da migração no psiquismo dos sujeitos. Hoje vivemos um tempo de muitos deslocamentos e diásporas, e a etnopsicanálise mais a psicologia intercultural visam escutar, estudar e acompanhar as cesuras, angústias e renascimentos que acontecem nas trajetórias daqueles que migram. Questões como identidade, estranhamento, adaptação, língua, desenraizamento, descontinuidade, adoecimento, entre outras, seriam abordadas nesse evento
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acontecido em outubro de 2011, na cidade de Belo Horizonte pelo Istituto Biaggi1.
A performance ROL: casa-corpo-palavra (apresentada na Jornada Identidade e Migração – O Inconsciente da Casa) tinha como proposta a vivência de um tempo/espaço em que meu corpo experimentaria o estar perdido, deslocado, somente efetuando ações e relações no presente do ato performático. Uma viagem sem mapa. Uma experiência de estrangeiridade. Eu tinha apenas uma imagem: um corpo carregando uma trouxa (como se fosse uma casa/país que se leva nas costas e tatuado na pele) com roupas (elementos carregados de cultura e identidade), e essa “construção” sendo destruída e refeita ao mesmo tempo, ao vivo, para os outros e para mim mesmo. Mais do que uma apresentação estética, meu desejo era de me colocar em risco, ampliando minha consciência de ser um sujeito dividido e multiplicado, buscando uma desestruturação (como performer) muito próxima a de um imigrante quando aporta num lugar novo e desconhecido. Trata-se de um corpo em crise.
O texto a seguir foi escrito após essa experiência e nele, de forma poética e performática, exponho e reencontro todas as afetações e turbulências vividas naquele dia. Texto estilhaçado como minha sensação após a vivência:
Eu... nasço. Nado. Nada. Navio. Não viu. Não veio. Volto. Voltagem. Vertigem. Virgem. Viagem.
ROL: casa. Corpo. Palavra. O corpo é casa no qual habitam palavras. Palavras são corpos que insistem. Tive uma experiência tão forte nesse trabalho que minha casa sofreu abalos.
Produzo agora uma lista de imagens e um banco de sensações.
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Istituto Biaggi é coordenado pela psicanalista Bernadette Biaggi e desenvolve, entre outras atividades, o PROJETO MIGRANTE, destinado à intervenção clinicopsicológica e à prevenção dos distúrbios mentais provocados pelas dificuldades e sofrimentos decorrentes dos processos migratórios. Ver mais em: <istitutobiaggi.wordpress.com>.
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O performer é sempre um estrangeiro. Nunca está em terra firme. Amante do perigo, do instante, do estranho, do agora. Faço minha trouxa de roupas e listo cada peça escolhida. Evocação de um ritual materno. Volta a imagem da minha mãe fazendo listas de roupas a serem enviadas para a lavadeira. Carregamos uma trouxa de tradições e traições familiares e culturais. Portamos a casa em nosso corpo. Quero migrar! É bom que a bagagem seja remexida e exposta como vísceras adoecidas e inflamadas.
Meu passaporte é um passa-MORTE para se chegar à VIDA?
Meu corpo inflamado e que inflama AÇÃO!!! O imigrante parte com sua mala: pertences e pedaços. Histórias e memórias. O performer não carrega nada a não ser seu desejo de ESTAR no presente. Derivações subjetivas. Um demorado adeus. O imigrante abandona um território. O performer abandona suas certezas e seguranças. Embarque imediato. Entro no espaço e sinto medo. Bendita perdição! Meu corpo treme... como o estrangeiro que, ao chegar numa nova terra, não sabe o que fazer. Não sei se fico ou se passo!
É perdendo que me encontro!
Solo. Trabalho solo. Em busca de um solo? De um lugar?
ROL: a-palavramento. Apavoramento. A-linguagem. A-linhagem de significados. Livramento. Libertação. Libero grunhidos e sons estranhos. Sou cigarra que canta e performa sua desafinação. Não tem orquestra e nem concerto. Nem conserto. Abraço no desastre. Des-“astre” (fora da estrela e da luz).
Uma desorquestração (no sentido de desorganização) de si para a aparição de um outro. “O imigrante é um atopos, sem lugar, deslocado, inclassificável” (BORDIEU, 1998, p. 9). E o que é um performer senão um sujeito perdido entre lugares, abrigos conceituais e experimentações práticas? A arte da performance transborda possíveis classificações.
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Meu corpo migra assustado pelo espaço. Transformo-me em navio. Empurro a trouxa que vai em direção a duas bandeiras: Brasil e Itália. Não tenho país. Nem pais. Sou órfão de referências. Sou mar revolto. Sou andarilho. Corpo migrante-viajante. O performer é um nômade. Produzo susto. Só descubro o que desejo no ato. É sempre um acontecimento no inesperado e revelador para mim: “o elemento inesperado na performance é inesperado não só para o espectador, um dos vértices da relação comunicacional, mas também e primeiramente para o artista da performance, cujo trabalho sempre tem um aspecto de inesperado. Já mencionamos antes que não há performance do tipo cópia carbono, nem repetição nesse tipo de arte; há somente mudanças controladas e estruturas invariantes, porém com as mais diversas formas e conotações” (GLUSBERG,2003, p. 83).
Destruo a trouxa fechada. Roupas são espalhadas. Uma lista se inaugura: “esse é meu pai, mio nonno, mi madre, aqui sou eu...”. Vestimentas são figurinos de personagens reais e imaginários. Da minha casa. Meu corpo se corta com uma memória: quando era pequeno em minha cidade do interior de Minas Gerais, me aproximei de dois velhos imigrantes. Uma idosa libanesa e um ancião italiano. Uma criança e dois velhos choravam saudosos seus países perdidos. Eu chorava a minha estrangeiridade sentida em minha própria casa.
Volto à performance: vestir os nus. Em determinado momento, me dirijo à psicanalista e organizadora da jornada e peço para ser vestido. Estou em carne viva. Sinto a nudez e a dor de todos os imigrantes do mundo. Meu corpo invadido de angústia. A mulher me veste, e choro. Todos estão incomodados com o que acontece. O performer, assim como o imigrante, “suscita o embaraço e a dificuldade que se experimenta em pensá-lo” (BORDIEU, 1998, p. 9) e aceitá-lo como ser ondulatório, transitório e errante.
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Sou vestido por alguém. Depois de um tempo flutuando perdido, alguém me reconhece. O imigrante pede cuidado e ajuda. “Eu preciso de você. Salva-me da solidão. Quero uma pátria. Dá-me um continente para habitar e existir!”.
Sou vestido por uma mulher. Nova lista de imagens: um pedido infantil. A mãe agasalha o filho. Um corpo em estado de proteção. Um pedido final: quem morre precisa ser coberto. De volta ao solo. Trabalho solo? Em busca de um colo?
Essa performance revela minha vulnerabilidade. A fragilidade de todos que ali estão dói em meu corpo: “a performance e a body art devem mostrar não o homo sapiens – que é como nos intitulamos do alto de nosso orgulho –, mas sim o homo vulnerabilis, essa pobre e exposta criatura, cujo corpo sofre o duplo trauma do nascimento e da morte” (BERGER apud GLUSBERG, 1998, p. 46).
NASCER E MORRER – duas formas de migração na vida. Meu corpo renasce na experiência da performance. Se a idealização é a grande vilã do movimento de quem migra, ela não existe no trabalho do performer. Tudo o que acontece é aceito e vivenciado. Vida e arte numa só ação. Não acredito em sucesso ou fracasso de um trabalho performático. Acredito em necessidade de aventura, de se sentir vivo e pulsante. Movente.
A trouxa aberta libertou cores, formas, cheiros, texturas e memórias. Corpo restaurado. Saúde plena. Agora a casa está mais bonita e leve. Começo uma nova construção. Edifico um ser: performer e eterno migrante. Amar o presente e tentar ficar livre do passado. Um novo caminhar. Migração de desejos. Novas propostas para o próximo momento! Novas performances para o próximo instante!
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BIBLIOGRAFIA
BORDIEU, Pierre. “Um Analista do Inconsciente”. In: SAYAD A. A Imigração ou os Paradoxos da Alteridade. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1998.
GLUSBERG, Jorge. A Arte da Performance. São Paulo: Editora Perspectiva, 2003.
PARA CITAR ESTE TEXTO DOMINGOS, Clóvis. “O Performer É um Imigrante?”. eRevista Performatus, Inhumas, ano 1, n. 6, set. 2013. ISSN: 2316-8102.
Revisão ortográfica de Marcio Honorio de Godoy © 2013 eRevista Performatus e autor