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INTRODUÇÃO. No conjunto, o posicionamento do Relator não satisfaz a expectativa dos autores da ADI e dos movimentos sociais.

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Academic year: 2021

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Nota Técnica

Objeto: ADI nº. 1.923

INTRODUÇÃO

A presente nota técnica diz respeito ao voto proferido pelo relator, Ministro Ayres Britto, na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº. 1.923, relativa à lei das organizações sociais (Lei 9.637/98). A intenção é apresentar uma síntese que possa contribuir na construção de um entendimento comum acerca desse voto, e dos possíveis desdobramentos dessa ADI.

Tal voto apresenta realmente certa dificuldade em sua compreensão, seja em razão dos elementos técnicos abordados, sobretudo na parte final, quando trata da licitação, seja por alterar uma concepção e classificação entre nós clássica no que concerne aos serviços públicos. De fato, a classificação concebida pela denominada Escola do Serviço Público, com a qual geralmente operamos, encontra-se em relativo desuso. Há na atualidade diferentes abordagens, denunciando o que se poderia chamar de uma crise metodológica, própria dos períodos de transição de modelos.

No conjunto, o posicionamento do Relator não satisfaz a expectativa dos autores da ADI e dos movimentos sociais.

Manifesta uma concepção de serviço público radicalmente adequada ao modelo neoliberal, e, embora elimine alguns excessos da lei, consagra o entendimento presente acerca do lugar e papel das OS na sociedade e no Estado, além de aperfeiçoá-la ao tratar do tema da licitação, ampliando e racionalizando a competição entre esses entes privados por uma fatia do orçamento público. Ressalva, porém, dois aspectos que poderão ser explorados futuramente, caso se confirme uma decisão do STF nessa direção: o caráter complementar das OS, já previsto na Constituição Federal, e a adoção de nexo de necessidade, e não de mera conveniência, para a transferência da gestão de serviços ou atividades públicas a organismos privados.

A síntese das conclusões a que chega o Ministro, seu voto propriamente dito, permitirá se certificar das conclusões antecipadas acima. Suas noções acerca dos serviços públicos e OS, as razões do voto, serão abordadas ao final.

SINTESE DO VOTO

O Ministro entende que a ADI deve ser julgada parcialmente procedente, declarando-se inconstitucionais certos artigos da lei, ou parte deles, e decidindo-se em relação a outros por uma interpretação conforme a Constituição. A interpretação dita “conforme” significa que o dispositivo da lei será considerado constitucional desde que

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interpretado da maneira indicada. Através desse mecanismo, possível no controle concentrado de constitucionalidade, como na ADI, o STF aprimora a lei, agindo como um legislador positivo.

O voto envolve a análise da constitucionalidade: A) da gestão de serviços ou atividades públicas por organizações sociais; B) da dispensa de licitação para celebração dos contratos de gestão; C) da liberdade de contratação e de definição dos salários de empregados e dirigentes das OS, bem como da concessão de vantagem pecuniária aos servidores cedidos.

A) Gestão de serviços ou atividades públicas por organizações sociais

Quanto ao aspecto central, que é a gestão de serviços ou atividades públicas por esses organismos privados, são considerados inconstitucionais os artigos 18, 19, 20, 21 e 22, ou seja, todos que mencionam o termo “absorção” por organizações sociais de atividades desempenhadas por órgãos ou entidades públicas a ser extintas ou desativadas.

Observa-se que tais artigos não transferem para as OS somente a gestão ou execução dos serviços, mas o serviço ele mesmo ou a própria atividade, uma vez que os órgãos ou entidades públicas então responsáveis deixam de existir. Em outras palavras, transfere a titularidade da prestação do serviço, a qual o Estado não pode renunciar. Entende o Ministro, corretamente, que nesse caso não haveria parceria, mas a completa substituição da ação do Estado. Uma diferença sutil, entre terceirizar a gestão e terceirizar o serviço ou a função estatal, mas não por isso sem importância.

É nesse particular aspecto, que afirmamos que o voto elimina alguns excessos privatizantes da lei, sem, contudo, negar a privatização da gestão. Nas palavras do Ministro:

“Realmente, o problema não está no repasse de verbas públicas a particulares, nem na utilização, por parte do Estado, do regime privado de gestão de pessoas, de compras e contratações. A verdadeira questão é que ele, Estado, pelos arts. 18, 19, 20, 21 e 22 da Lei 9.637/98, (dispositivos que falam em ‘absorção’, por organizações sociais das atividades desempenhadas por entidades públicas a ser extintas) ficou autorizado a abdicar da prestação se serviços públicos de que, constitucionalmente, não pode se demitir”. 1

Trata-se de uma discussão já realizada por nós à época do debate sobre as fundações na saúde. O Estado é responsável pela prestação de certos serviços à população. Pode prestá-lo diretamente ou indiretamente, no caso delegando sua gestão a entes privados. Através da gestão delegada o Estado transfere ou terceiriza a

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execução do serviço, não o serviço, que permanece pertencendo ao Estado, responsável que é por sua prestação.

Também ao examinar a constitucionalidade desses artigos, o voto insiste em uma das mencionadas margens que poderá ser explorada em situações semelhantes: o caráter complementar da iniciativa privada, muito embora, analisado no conjunto, não pareça empregar a noção com o mesmo significado usual entre nós: no seu entendimento autorizaria os contratos de gestão, embora afaste a idéia de “absorção” serviço.

“Ora, o que faz a Lei 9.637/98, em seus artigos 18, 19, 20, 21 e 22, é estabelecer um mecanismo pelo qual o Estado pode transferir para a iniciativa privada toda a prestação de serviço público de saúde, educação, meio ambiente, cultura, ciência e tecnologia. A iniciativa privada a substituir o Poder Público, e não a simplesmente complementar a performance estatal. É dizer, o Estado a, globalmente, terceirizar funções que lhe são típicas. [...] A se ter como válida a mencionada ‘absorção’, nada impediria que, num

curto espaço de tempo, deixássemos de ter estabelecimentos oficiais de ensino, serviços públicos de saúde, etc.” 2

Proposta a inconstitucionalidade dos mencionados artigos, o voto sugere, ao final, a modulação dos efeitos da decisão: as OS que “absorveram” as atividades de entidades públicas extintas até a data do julgamento continuarão prestando o serviço até o término dos respectivos contratos, instaurando-se então novo processo de seleção.3 Em outros termos, a decisão operaria efeitos apenas para o futuro, não alcançando as situações já constituídas, pelo menos até o término desses contratos.

Acerca da gestão por OS de serviços públicos, como a saúde e a educação, além de outras atividades também indicadas no artigo 1º da Lei 9.637/98, a inconstitucionalidade pára por aqui. O Ministro prossegue afirmando a parceria público/privada e a privatização da gestão em termos bastante conhecidos e por nós criticados. O trecho a seguir é de todo ilustrativo.

“O que a Magna Carta admite e até mesmo estimula, agora sim, é a colaboração entre particulares e o poder público. Daí estabelecer o art. 1º da Lei 9.637/98 que o ‘Poder Público poderá qualificar como organizações sociais pessoas jurídicas de direito privado, sem fins lucrativos, cujas atividades sejam dirigidas ao ensino, à pesquisa científica, ao desenvolvimento tecnológico, à proteção e preservação do meio ambiente, à cultura e à saúde, atendidos aos requisitos previstos’ na lei. Organizações sociais que, uma vez assim qualificadas, poderão firmar com o Poder Público um ‘contato de gestão’, ‘com vistas à formação de parceria entre as partes para fomento e execução de atividades relativas às áreas relacionadas no art.1º’ (art. 5º da Lei 9.637/98). Contrato de que poderão constar cláusulas garantidoras: a) do repasse de recursos orçamentários; b) do uso de bens

2 P. 16 3 P. 29-30

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públicos; c) da cessão especial de servidores estatais (arts. 12 e 14 da lei 9.637/98).” 4

Observa-se, que os artigos essenciais permanecem intactos, aqueles que definem as áreas passíveis de transferência para gestão das OS (artigo 1º), a parceria público/privada através de contratos de gestão, para fomento e execução das atividades (artigo 5º), e a abrangência desses contratos, com repasse de recursos orçamentários, uso de bens públicos e cessão de servidores (artigos 12 e 14).

Todas as atividades relacionadas no artigo 1º estão sujeitas a gestão privada através de organizações sociais: saúde, educação, meio ambiente, cultura, ciência e tecnologia, sem distinção de qualquer natureza.

O Estado não pode transferir para a iniciativa privada toda a prestação dos

serviços públicos”, globalmente “terceirizar funções que lhe são típicas”, mas pode

transferir globalmente sua execução, pois “todos os serviços enumerados no art. 1º da

Lei 9.637/98 são do tipo não exclusivos do Estado” 5. No entender do Relator, uma

forma complementar de participação da iniciativa privada, vedada apenas a “absorção”, pois nesse caso o “Estado passaria a exercer, nos serviços públicos, o mesmo papel que

desempenha na atividade econômica” 6. Nesse terreno, a atividade estatal foi de fato

integralmente transferida, ou “absorvida” pela iniciativa privada: não se privatizou somente a gestão desses serviços, mas todo ele, com a venda de estatais responsáveis por serviços industriais, e a quebra do monopólio estatal de serviços comerciais. Já as atividades relacionadas no artigo 1º, serviços mistamente públicos e privados por determinação constitucional, assim devem permanecer. Por essa razão seria inconstitucional toda idéia de “absorção” ou prestação integral desses serviços, seja pelo Estado, seja pela iniciativa privada. Esse nos parece, em síntese, o entendimento manifesto pelo Relator.

B) Dispensa de licitação para celebração dos contratos de gestão

A dispensa de licitação para realização dos contratos de gestão encontra-se prevista no artigo 24, inciso XXIV, da lei 8.666/93.

Art. 24. É dispensável a licitação: (...)

XXIV - para a celebração de contratos de prestação de serviços com as organizações sociais, qualificadas no âmbito das respectivas esferas de governo, para atividades contempladas no contrato de gestão.

A Lei 9.637/98, por sua vez, dispensa ainda de licitação a permissão de uso de bem público pelas OS, prevista no parágrafo 3º do artigo 12. São esses os dispositivos

4 P. 17 5 P. 17 6 P. 17

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considerados pelo Ministro para a análise de sua constitucionalidade frente aos princípios contidos no caput do artigo 37 da Constituição Federal.

Acerca dessa matéria, a manifestação do Ministro é bastante clara, e se dá em dois tempos.

Primeiramente, entende desnecessária a realização de licitação: as OS teriam objetivos e finalidades convergentes com o Poder Público, integrando um setor público não estatal; ausentes os conflitos de interesses que caracterizam os contratos, o que se denomina contrato de gestão não seria realmente contrato, mas convênio; teria natureza jurídica de convênio, instrumento próprio de ajuste entre entes públicos para os quais não se exige licitação. 7

Conclui assim pela constitucionalidade dos mencionados artigos, dispensando a realização de licitação para conclusão dos contratos de gestão e para permissão de uso de bem público pelas OS.

“Assim sendo, tenho que não viola, em linha de princípio, a Constituição Federal o inciso XXIV do art. 24 da Lei 8.666/93, com redação dada pela Lei 9.648/98. É que a excludência do processo licitatório para a celebração do contrato de gestão nada mais retrata que a verdadeira natureza convencional do ajuste. Natureza que possibilita, inclusive, a desnecessidade de licitação para a permissão de uso de bem público (§ 3º do art. 12 da Lei 9.637/98).” 8

Observa-se que o voto não diferencia ou trata de modo particular nenhuma das atividades sujeitas aos contratos de gestão. Todos estão dispensados de licitação, não importa o objeto. Tampouco elimina tais contratos, embora entenda a denominação inapropriada. Importa registrar ainda, que a despeito da denominação que se dê (contrato ou convênio, de gestão, de parceira ou de colaboração), o objetivo é transferir para entidades privadas a gestão de serviços e atividades públicas. Terceirizá-la, portanto. A própria definição legal esclarece o que é na verdade um jogo de palavras, cuja finalidade é dispensar a licitação, dando às OS um tratamento de ente público:

Art. 5º. Para efeitos desta Lei, entende-se por contrato de gestão o instrumento firmado entre o Poder Público e a entidade qualificada como organização social, com vistas à formação de parceria entre as partes para fomento e execução de atividades relacionadas no art. 1º.

Em seguida, o Ministro entende que a dispensa de licitação não desobriga a Administração Pública de realizar um procedimento administrativo, público e objetivo, para qualificação das OS e para celebração dos contratos de gestão. Observará que a lei “organiza um sistema absolutamente aleatório de classificação de

7 Cf.p. 18-19 8 P. 19-20

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organizações que hão de ser laureadas com o título de sociais” 9, e que “ressente-se da falta de regras que coordenem melhor o controle desse processo de transferência” 10. O trecho abaixo condensa o essencial de suas idéias.

“É preciso, porém, fazer a seguinte ressalva: a desnecessidade do processo licitatório: a) não afasta o dever de abertura de processo administrativo que demonstre, objetivamente, em que o regime da parceria com a iniciativa privada se revela como de superior qualidade frente à atuação isolada ou solitária do próprio Estado enquanto titular da atividade em questão, b) não libera a Administração da rigorosa observância dos princípios constitucionais da publicidade, da moralidade, da impessoalidade, da eficiência e, por conseguinte, da garantia de um processo objetivo e público para a qualificação das organizações sociais e sua específica habilitação para determinado ‘contrato de gestão’; c) não afasta a motivação administrativa quanto à seleção de uma determinada pessoa privada, e não outra, se outra houver com idêntica pretensão de emparceiramento com o Poder Público; d) não dispensa de desembaraçada incidência dos mecanismos de controle interno e externo sobre o serviço ou atividade em concreto regime de parceria com a iniciativa privada.” 11

O que o Relator faz realmente em seu voto é afastar a incidência obrigatória da lei de licitações (Lei 8.66/90) e das modalidades fixas ali previstas, substituindo-a pela exigência de um procedimento administrativo com critérios mais flexíveis, pois definidos previamente a cada contratação, porém, suficientemente claros e objetivos, de modo reduzir o poder discricionário da autoridade administrativa, permitindo a participação e controle de todos os interessados em contratar com a Administração Pública. 12

Concretamente vota: pela inconstitucionalidade da parte final do inciso II do artigo 2°, suprimindo da lei a expressão “quanto à conveniência e oportunidade de sua

qualificação como organização social”, por entender que essa qualificação é uma

decisão vinculada e não discricionária, ou seja, todos os entes privados que satisfaçam os requisitos dos artigos 2º à 4º obterão o título de OS e estarão habilitados para contratar com a Administração; o que combina com a interpretação “conforme” dos artigos 5º, 6º e 7º, para afastar toda interpretação que exclua a realização de um procedimento “competitivo público e objetivo para: a) a qualificação de entidade privada como organização social; b) a celebração do impropriamente chamado contrato de gestão” 13.

Os artigos 5º, 6º e 7º são relativos ao contrato de gestão, ou seja, ao mecanismo de transferência da gestão dos serviços para as OS. É nesse particular que o Ministro decide por uma interpretação conforme a Constituição, entendendo que não 9 P. 21 10 P. 22 11 P. 20 12 Cf.p. 25 e 26 especialmente 13 P. 30

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se opõem aos princípios do artigo 37 se interpretados de modo a se garantir um procedimento público e competitivo.

Aqui, o aspecto que pode ser explorado futuramente refere-se à exigência de um nexo de necessidade, e não de mera conveniência, para a adoção pela Administração do regime privado de gestão, ou seja, para a opção pelas OS ou outra forma de gestão privada. Grosso modo, isso significa que a decisão por privatizar a gestão, até aqui inteiramente discricionária, a critério exclusivo da Administração Pública, poderia ser controlada pelo Judiciário através de ação judicial que questionasse a necessidade ou proporcionalidade das escolhas feita pela Administração. O tema acha-se presente especialmente nessa passagem, já citada:

“É preciso, porém, fazer a seguinte ressalva: a desnecessidade do processo licitatório: a) não afasta o dever de abertura de processo administrativo que demonstre, objetivamente, em que o regime da parceria com a iniciativa privada se revela como de superior qualidade frente à atuação isolada ou solitária do próprio Estado enquanto titular da atividade em questão”. 14

C) Liberdade de contratação, definição salarial, e concessão de vantagem a servidores cedidos

Quanto à liberdade de contratação e de definição dos salários de empregados e dirigentes das OS, o Relator vota pela constitucionalidade, dispensando-as da realização de concurso público e fixação de salários por lei, pois “ainda que eventualmente habilitadas a empregar recursos públicos, não se caracterizam jamais como parcela da Administração Pública”. 15

A arbitrariedade nas escolhas do Relator é aqui evidente: a fim de recomendar a desnecessidade de licitação as OS recebem o tratamento reservado aos organismos estatais, no momento seguinte tornam-se inteiramente privadas.

No tocante a situação dos servidores cedidos, a conclusão é toda ela inversa, sendo “vedado o pagamento, pelas organizações sociais, de qualquer vantagem pecuniária a servidores cedidos”, com a indicação pela inconstitucionalidade de parte do parágrafo 2º do artigo 14, a expressão “com recursos provenientes do contrato de gestão, ressalvada a hipótese de adicional relativo ao

exercício ao exercício de função temporária de direção e assessoria”, que alcançaria,

por dispor de maneira mais ampla, o parágrafo 1º do mesmo dispositivo. 16 Mesmo um

possível adicional por exercício de função de direção ou assessoria não poderia ser pago, a servidores cedidos, com recursos públicos, ou seja, oriundos do contrato de gestão.

14 P. 20 15 P. 28 16 P. 29

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Curiosamente, os recursos públicos do contrato de gestão podem remunerar livremente dirigentes e empregados da OS, mas não podem ser destinados aos servidores cedidos, sem ofender o inciso X do artigo 37, e parágrafo 1º do artigo 169 da CF.

A seguir, a transcrição do voto do Ministro Ayres Britto:

Ante o exposto, voto pela procedência parcial desta ação direta. Isto para declarar a inconstitucionalidade dos seguintes dispositivos da Lei 9.637/98: a) o fraseado “quanto à conveniência e oportunidade de sua qualificação como organização social”, contido no inciso II do art. 2º; b) a expressão “com recursos provenientes do contrato de gestão, ressalvada a hipótese de adicional relativo ao exercício ao exercício de função temporária de direção e assessoria”, contida no § 2º do art. 14; c) os arts. 18, 19, 20, 21 e 22, com a modulação proposta no parágrafo anterior. Interpreto ainda “conforme à constituição” os arts. 5º, 6º e 7º da Lei 9.637/98 e o inciso XXI do art. 24 da Lei 8.666/93, para deles afastar qualquer interpretação excludente da realização de um peculiar proceder competitivo público e objetivo para: a) a qualificação de entidade privada como organização social; b) a celebração do impropriamente chamado contrato de gestão. 17

RAZÕES DO VOTO

Observa-se, que o voto do Ministro apresenta uma margem de arbitrariedade, como se as normas constitucionais pendessem ora para um lado, ora para outro. Geralmente são assim as decisões judiciais, sobretudo quando requerem ampla interpretação constitucional, não podendo se concluir desse fato tratar-se de um posicionamento de conjunto incoerente.

Sob esse ponto de vista, no voto é bastante coerente, e preocupante, pois revela um forte compromisso como o modelo neoliberal, na sua versão menos estatal e mais privatizante, pois partidário do Terceiro Setor. Tal concepção está subjacente todo o tempo. É fortemente marcada em uma questão apresentada pelo Ministro, formulada nesses termos: “Existe mesmo um setor público não estatal, ou por definição, todo

setor público tem de ser estatal?” 18 A resposta são as OS e OSCIP, organismos

privados, paradoxalmente tidos como públicos e não estatais. Todas as conseqüências desse enquadramento estão presentes no voto em questão, especialmente ao tratar da dispensa de licitação.

Ainda mais preocupantes são as noções pretensamente extraídas diretamente da Constituição Federal acerca de serviços públicos. Aqui não podemos nos deixar impressionar por algumas expressões para nós muito simpáticas, mas que na

17 P. 30 18 P. 13

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construção do Relator não têm o mesmo significado que nós lhes emprestamos, como “a presença do Poder Público é inafastável” ou “terceirizar funções que lhe são típicas”. Importa assinalar três aspectos que definiriam sua concepção:

a) O emparelhamento, em uma extensa lista de artigos, de praticamente todas as áreas da atividade estatal (de serviço postal, aeroespacial, cartográfico a serviços de saúde e educação), deixando de mencionar quais delas são geradoras de direitos fundamentais sociais. De fato, a idéia de direitos está inteiramente ausente.

b) Uma definição de serviço público tendo como critério o autofinanciamento através da cobrança de taxa ou tarifa.19 Assim, apresenta uma classificação que não

apenas dilui a natureza essencial de certos serviços, como é costume atualmente, mas realiza uma completa inversão do modelo definidor do Estado Social: seriam serviços públicos ou exclusivamente públicos aqueles autofinanciados, como transporte, luz, gás, ou seja, os serviços comerciais tradicionalmente considerados de interesse público; e serviços de relevância pública ou mistamente público e privado, dentre outros, a saúde e a educação, ou seja, aqueles antes considerados serviços públicos essenciais.

A inversão é manifesta em várias passagens, sobretudo ao afirmar, categoricamente, que a ação do Estado em áreas como saúde e educação seria “constitutiva de serviço de relevância pública”, e não de serviço público.20 Em outros

momentos, refere-se a serviços ou atividades públicas sempre que prestadas pelo Poder Público ou em parceria com o setor privado, e de relevância pública, quando oferecido pela iniciativa privada. No conjunto, porém, são definidos a partir do critério privatista, de onde retira a conclusão: sendo a ação estatal constitutiva de serviço de relevância pública (ou misto), natural, portanto, que o Estado estimule e fomente a parceria público/privada através das organizações sociais.

c) Por fim, apresenta logo na abertura de seu voto uma concepção de Estado, ao diferenciar atividades públicas de serviços públicos: as primeiras seriam aquelas financiadas com impostos e contribuições sociais, as “atividades gerais” de legislação, jurisdição, diplomacia, defesa e segurança pública; os segundos, autofinanciados, como mencionado acima. 21 Portanto, providas inteiramente por recursos públicos seriam

apenas as ditas funções de autoridade ou “hegelianas”, essas realmente típicas de Estado. Tal entendimento explica porque ao mencionar a saúde pública o voto do Relator tende a oscilar, definindo-a ora como serviço ora como atividade.

Toda essa classificação, na forma como é desenvolvida no voto, tem uma aparência lógica, pois uma vez emparelhadas todas as atividades estatais, e afastados os direitos, qualquer classificação torna-se possível. Apenas não corresponde ao modelo constitucional, que hierarquiza certos serviços com timbre de direitos fundamentais. Em

19 Cf.p. 1-2 e 8-9 especialmente 20 Cf.p. 14

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outras palavras: o serviço não é público porque é autofinanciado, mas porque corresponde a um interesse social relevante, que deve ser subtraído do mercado e satisfeito pelo Estado em regime integralmente público; do mesmo modo que o Estado é Social não porque presta serviço, o que todo Estado faz, mas porque define alguns serviços como direitos fundamentais. Ao não atender perfeitamente ao modelo constitucional, o voto apresenta contradições.

CONCLUSÃO

Até então, uma concepção com esse viés não havia sido inteiramente manifesta no STF. A decisão, porém, caso se confirme, não encerra em absoluto a questão das OS. É muita ampla e genérica, e deixa margens que permitirá se questionar aspectos específicos presentes em leis e atos administrativos de inserção das OS nos serviços públicos.

Do ponto de vista imediato, dois aspectos parecem mais importantes: a exclusão da saúde e educação da área de abrangência dos contratos de gestão, por corresponderem a direitos fundamentais expressamente declarados pela Constituição Federal; e a observância da licitação, o que asseguraria um procedimento realmente mais objetivo, além de definir claramente o lugar das OS, entidades da sociedade civil, cujos interesses privados pouco ou nada têm em comum com o Poder Público, terceiros em relação ao Estado. A exigência de um processo administrativo prévio, como sugerido pelo Relator, no qual a Administração comprove nexo de necessidade, e não de mera conveniência, para a adoção do regime privado de gestão é também interessante, e não se contrapõe à observância de licitação.

Lembramos por fim, os exatos termos do parágrafo único, do artigo 2º da Lei 8.666/93, lei de licitações: “Para fins desta lei, considera-se contrato todo e qualquer ajuste entre órgão ou entidade da Administração Pública e particulares, em que haja um acordo de vontade para a formação de vínculo e a estipulação de obrigações recíprocas, seja qual for a denominação utilizada”.

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