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O PROJETO PEDAGÓGICO PLATÔNICO EM a REPÚBLICA

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Academic year: 2021

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O PROJETO PEDAGÓGICO PLATÔNICO EM a REPÚBLICA

CAPORALINI, José Beluci1

(...) de que vale a vida se sua (do homem injusto) alma está arruinada e tumultuada?, Rep. IV 445b.

INTRODUÇÃO

Este artigo é parte de uma pesquisa muito mais ampla e que tem por objetivos a análise em profundidade e em detalhe de a República de Platão. O método que se seguiu foi o da análise desta obra, bem como de obras de referências que pudessem esclarecer o pensamento platônico em geral e a pedagogia platônica em a República em particular.

Este artigo aborda alguns aspectos da concepção pedagógica platônica em a República e está dividido assim: primeiro apresentam-se alguns aspectos da reação platônica à pedagogia sofista. Posteriormente, mencionam-se algumas características gerais da pedagogia platônica. Depois, as disciplinas às quais se devem se submeter os futuros guerreiros. Em seguida, são apresentadas brevemente as classes sociais, os tipos de almas e virtudes correspondentes. Após, mencionam-se, não se discutem, o problema espinhoso da censura na pedagogia platônica e algo sobre a questão da presença feminina no discurso pedagógico platônico. Segue-se uma conclusão na qual se chama a atenção para o que Platão reputava ser um perigo por parte dos “imitadores” e o vínculo do pensamento pedagógico platônico aos seus conceitos metafísicos de bem e verdade e à Alegoria Mítica da Caverna.

OS SOFISTAS E A REAÇÃO PLATÔNICA

Os sofistas procuravam ensinar a seus estudantes a conquistarem o tipo mais efetivo de vida, baseado no sucesso sem grandes preocupações morais. Isto não se

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coadunava com o ponto de vista ético de Platão e com a sua proposta pedagógica, fundamentada na justiça. Platão não só não deixava de se interessar pela problemática pedagógica como a tudo submetia a uma cerrada análise crítica, incluindo aí o problemático e questionável conteúdo dos valores morais da pedagogia sofista. Aliás, este problema já foi bem estudado e pode ser visto em FRAILE, Guillermo, 1982, p. 224-236; JAEGER, Werner, 1986, p. 311-322; ZELLER, Edward, 1955, p. 39-83, entre outros. Platão acreditava que a ética deveria estar na base da verdade e de tudo; da pedagogia também, portanto. É o que se vê em a República. Desse modo tinha que ser para que o jovem ateniense não pudesse ser levado a falsas ilusões e por uma educação que não era propriamente uma Paideia, formação humana, mas sim, quase que uma (de)formação. Há que haver valores universais e não apenas e tão somente relativos; subjetivos.

Platão não concordava também com o conceito sofista a respeito de valor humano e de sociedade. Os mais fortes não poderiam prevalecer sobre os mais débeis, Rep. I 338c. Platão acreditava que a verdadeira natureza humana era racional; que a sociedade devia ser organizada e que a vida civilizada devia ser conduzida segundo valores fundamentados em princípios racionais e morais. Os sofistas eram almas pequenas e não retas, servos de sua época e de seus discursos, Teet., 172c-173b. O interesse filosófico e pedagógico platônico era bem diferente dos sofistas, portanto. Os sofistas e o seu relativismo, mais o problema político vivido pela Atenas de seus dias, preocupavam muito o grande filósofo. Com efeito, Atenas falhara com a sua experiência política; o governo deixava a desejar e cada cidadão ateniense estava centrado apenas em seu interesse pessoal, não no da cidade. A serenidade e a tranquilidade que se desenvolvem em a República de Platão e, posteriormente na Política de Aristóteles, quase não deixam vislumbrar o profundo sentimento que se agita no fundo destes trabalhos. De fato, Atenas viveu em poucos anos uma experiência política sumamente intensa.

A cidade-estado grega favorecia essas novas formas e experimentos constitucionais. Isto tudo representava uma decadência moral, FRAILE, 1982, p. 536.

Não era qualquer um que poderia ser chefe da cidade; havia pré-requisitos: a inteligência, a integridade e o verdadeiro interesse dos governados. Inteligência superior fundamentada em verdades morais, não na superioridade e vantagem da força física bruta Rep. I 338c, porque da inteligência deveria surgir o verdadeiro chefe da Kallípolis, Ep. VII,

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385 c ss. A filosofia platônica, como se vê, aspira a ser o caminho para a verdade e, ao mesmo tempo, para o bem, não apenas na vida pública, como na vida privada; o que exigia uma reforma de ideais. Como se pode ver, o seu projeto pedagógico era bem diferente daquele esposado pelos sofistas.

CARACTERÍSTICAS DA PEDAGOGIA PLATÔNICA EM a REPÚBLICA

A República é apenas um dos muitos diálogos platônicos. Ela representa um momento do pensamento e desenvolvimento da produção do filósofo. A helenista italiana PARENTE, Margherita Isnardi afirma que:

Platão interessa-se efetivamente pela educação dos filósofos que deverão conduzir a República, porque ele, nesse diálogo, adere ainda ao tópico socrático segundo o qual quem conhece o bem também será capaz de pô-lo em prática e de ensiná-pô-lo aos demais. Entrevista a Renato Parascandolo,

http://www.donatoromano.it/interviste/54.htm. Acesso em 15/11/09.

Isto quer dizer que Platão, em a República, segue o determinismo socrático. Esse, como se sabe, é a doutrina segundo o qual quem conhece o bem o porá em prática e o poderá ensinar aos outros. Segundo essa teoria ninguém erra voluntariamente e quem erra o faz por ignorância, porque não conhece o bem. Cf. também, Xenofontes Mem. III 9,4-5.

Isso quer dizer que a vontade, uma vez conhecido o bem, não pode senão o querer necessariamente. Segue-se que os erros não são voluntários, pois procedem sempre de uma deficiência de conhecimento. Ao que erra não se deve castigar, mas instruir, Apologia 25e-26ª; Laques 195ª. Ou seja, em termos da pedagogia platônica de a República: somente aqueles que são capazes de conhecer o bem teoricamente o poderão colocar em prática e o poderão exigir como governantes amanhã na Cidade Ideal.

Essa teoria platônica do triunfo do intelectualismo-bem é efetivamente algo bem presente em seu pensamento, inclusive em sua teologia Rep. II, 380b e pedagogia. Dentro deste espírito, para Platão, a punição é um remédio. A ignorância ou o vício é para a alma o que a doença é para o corpo Rep. IV 444c e IX, 591 a-b e o juiz é o médico da alma, Rep. III, 409e ss. Todos devem se apresentar perante a justiça, como o enfermo que vai ao médico, cf. também Leis, 854d, 862e, 934d, etc. O castigo dos maus após a morte visa

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curar suas almas, a menos que sejam incuráveis. De qualquer modo todas as punições servem como exemplo salutar para quem fica Rep. X, 616ª.

A sua concepção pedagógica pode validamente ser comparada a essa doutrina uma vez que o processo pedagógico platônico é algo que se dá aos poucos, progressivamente, não cessando jamais. E é também um processo de cura; uma passagem das trevas da ignorância para o esclarecimento e conhecimento da luz é, pois algo que não se dá de uma vez por todas; é uma espécie de purificação, que supõe pena, dor, sofrimento, passagem. O processo pedagógico deve ser feito através de jogos, Rep. VII, 536b, mas a efetivação do mesmo implica sacrifício por parte do aprendizando. Ao final haverá a cura, ou seja, o conhecimento. Mas isto ao término, ou seja, em termos platônicos, porque a ignorância e as trevas são males sempre a serem superados pela luz do conhecimento que é uma conquista para toda uma existência. Exemplo paradigmático dessa concepção pedagógica-saber-conhecimento, pode ser visto na analogia mítica de a República VII. Ver, conhecer, saber é algo penoso e exige um grande e contínuo esforço pessoal. É algo que é fruto de uma conquista ao longo de toda uma vida; supõe talento intelectual, mas sem dúvida supõe escolha deliberada sem a qual a mulher ou o homem não chegará jamais a ser qualificada ou qualificado para a responsabilidade mais alta do comando da “Kallípolis”. Este, sem dúvida é um dos aspectos muito importante de sua pedagogia, em a República. Os guardiões e guardiãs, em um aprendizado contínuo, deverão saber e conhecer o bem e a verdade para serem capazes de conduzirem a seus co-cidadãos por tais caminhos. Aqui se encontra a teoria do determinismo moral platônico, e o seu vínculo com a sua concepção pedagógica, como já assinalado.

É por isto que em seu projeto pedagógico insista Platão tanto no fato do conhecimento teórico chegando mesmo a afirmar no fim do livro IX, 592 a-b de a República que (o filósofo) Não se ocupará deles no próprio Estado, mas talvez, em sua pátria, a menos que alguma divina sorte lho permita. Ou seja, só com a ajuda de um favor divino podem os filósofos chegar ao poder ou converter à verdadeira filosofia os filhos dos príncipes e dos soberanos. Para PARENTE, mais que um modelo de Estado comunitário perfeito, Platão apresenta um modelo de educação de uma classe dirigente perfeita, feita para um Estado teoricamente possível, mas que jamais existirá, in: entr. cit. Isto é, Platão não se ilude absolutamente quanto à possibilidade de realizar neste mundo a Cidade Ideal.

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A isto se pode acrescentar, dê-se historicamente ou não, independentemente do que PARENTE afirme, que esta teoria platônica pelo menos permanecerá como imagem pura e viva da justiça proposta como exemplo aos homens de boa vontade. E esta é a sua tentativa imensa em a República, da qual o seu projeto pedagógico é exemplo exímio. Que o filósofo tenha fracassado em suas tentativas pessoais pouco importa, desde que ele tenha tentado e, ao fim, tenha deixado uma proposta, da qual certamente ele devia ter consciência que ficaria para gerações futuras.

Não se pode deixar de assinalar, contudo, que há opiniões diversas das de PARENTE sobre a factibilidade da Cidade Ideal platônica e de sua luta para efetivá-la. De fato, bem antes dela tal teoria já havia sido defendida por JAEGER, 1986, p. 760-761.

A filosofia, na época clássica, não era uma ocupação estranha à vida, só própria a sábios de gabinete, mas sempre uma informação positiva da realidade; e nisso consistia, mais que tudo, a Academia platônica. Observe-se ainda que a Academia exercia sempre a sua influência nas relações políticas em várias cidades sob a influência grega e que, em particular, era o lar e refúgio dos adversários dos tiranos e ditadores. O próprio Platão não era homem puramente teórico. Todo o seu alvo era realizar, praticamente, o seu ideal do estado filosófico, não apenas concebê-lo; tal era o sentido de suas viagens à Sicília em 387 e 361 a.C., HIRSCHBERGER, 1969, p. 88. Como se pode ver, as observações de PARENTE, bem como a de outros eruditos, não são compartilhadas unanimemente por todos os estudiosos da questão. Se não existe historicamente tal Cidade, há então que criá-la, mas isto demanda um processo formativo, alguns aspectos do qual serão discutidos abaixo.

O PROCESSO FORMATIVO EDUCACIONAL

Para que alguém, na concepção pedagógica platônica chegasse a ser filósofo, ou filósofo-rei, precisava passar por todo um processo formativo educacional intenso e nem todos conseguiam percorrê-lo com sucesso. A seguir, apresentam-se alguns aspectos relativos à discussão da natureza do filósofo, à sua formação e educação, que começam nos Livros VI e VII. Uma pequena apresentação do programa educativo é oferecida; a

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seguir, então, alguns aspectos das “disciplinas”, como a música, a ginástica, a matemática e a dialética. Posteriormente mencionam-se as virtudes próprias do guerreiro, futuro filósofo.

O futuro filósofo, que pode ser tanto mulher ou homem, é selecionado de um grupo de guardiãs ou guardiões, já que todos participam de uma formação cultural comum a todos. Caso venham a mostrar firmeza moral com talento intelectual serão submetidos a um currículo superior rigoroso que lhes prepara para a ascensão do mundo dos sentidos para o mundo da inteligência e da verdade. A distinção dessa ascensão é apresentada por Platão nas analogias míticas da linha dividida em segmentos e da Caverna, Rep., VI 508ª – Rep., VII, 518b. Para que consiga esta ascensão os postulantes a futuro filósofo devem submeter-se em primeiro lugar a uma preparação intelectual que dura dez anos, nas artes “liberais”, a saber aritmética, geometria, astronomia Rep., VII, 518c-531c, bem como da música e da ginástica. Uma vez feito isso são introduzidos à educação da ciência superior, a dialética, ciência essa que capacita o futuro filósofo a perceber os objetos reais do conhecimento, as Ideias, de modo particular e especial a Ideia de Bem, uma vez que ela é o princípio do bem e de tudo o mais, Rep. VII, 531c-535ª. É a coroa e o aspecto central do currículo ideal descrito em a República. O futuro filósofo, entre os trinta e os trinta e cinco anos, dedicará ao estudo da dialética, Rep. VII, 531d-534e; 537b-539e. Este estudo deve durar outros cinco anos. Os candidatos que o conseguirem fazer com sucesso serão enviados de volta à Caverna da vida política ordinária como administradores por outros quinze anos. Quando tiverem chegado à idade de cinquenta anos voltarão à filosofia, atividade que será interrompida apenas por período como supervisores da ordem da polis. Este ciclo, em poucas palavras, é a descrição da educação e atividades do futuro rei ou futura rainha, Rep. VII, 539d-541b. Uma palavra apenas a respeito da concepção pedagógica platônica que daqui se depreende: 1ª ...o poder do aprendizado está presente na alma de todos..., Rep. VII, 518c; 2ª ...que a educação é a arte que diz respeito exatamente a isso, a essa conversão [à luz, ao ser, ao bem], e a como pode a alma mais fácil e eficientemente ser levada a realizá-la. Não é a arte de introduzir visão na alma. A educação tem como certo que a visão já está presente na alma, mas esta não a dirige corretamente e não arroja o seu olhar para onde deveria; trata-se da arte de redirigir a visão adequadamente, Rep. VII, 518d.

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A MÚSICA, A GINÁSTICA, A MATEMÁTICA E A DIALÉTICA

A educação musical e a ginástica serão obrigatórias para os jovens e o seu progresso e adaptabilidade serão observados e avaliados através de todo o processo educativo. Aqueles que retiverem firmemente em sua memória os ensinamentos neles instilados pela educação serão escolhidos para guardiões e os que se rebelarem contra esse processo formativo serão rejeitados Rep., 413d-414ª. Já a matemática capacita o formando a ver as coisas verdadeiras. Platão apresenta um currículo que avança através da aritmética, geometria plana e sólida, astronomia e música Rep. VII, 522c-534d. Este processo é coroado pela dialética, coroa do sistema educacional platônico e que prepara o futuro filósofo a perceber a realidade transcendente da Ideia, o sol da verdade e do bem, Rep. VII, 531d-534e; 537b-539e.

A música, como uma parte importante do processo educativo deve ter a melodia apropriada. Ela é similar em conteúdo ao estilo dos discursos e por isso somente são permitidas melodias austeras e moderadas. São melodias que imitam os sons que ressaltem a coragem dos homens valentes perante o perigo e adequadas também aos homens de paz. Contudo, melodias que lembrem lamentos ou orgias são proibidas, Rep., III, 399b. Nem todos os instrumentos são permitidos; somente instrumentos simples como a lira, a cítara e a pipa, Rep., III, 399d. Platão também insiste que o ritmo deve seguir o discurso, não o contrário. Todo componente do discurso deve seguir a disposição de uma boa alma. E o bom discurso, a harmonia, a elegância e o ritmo seguem a simplicidade do caráter. Platão ressalta também a cuidadosa inserção de lendas que é tão importante porque representa um método muito efetivo da educação da alma dos guardiões. O ritmo e a harmonia tocam a alma diretamente; assim se o jovem estiver circuncidado por boas lendas e não por más eles aprenderão de pequenos a amar o que eles sabem, ou seja, a bondade e a justiça, e a odiar o que não conhecem, ou seja, a injustiça Rep., 401d-e.

A ênfase na música, que inclui as narrações de lendas, começa quando a criança está em tenra idade, quando é mais maleável. É por isso que as lendas do passado devem ser censuradas; não devem levar o jovenzinho a uma formação equivocada. Os jovens não são capazes de distinguir o que é alegórico do que não é, e as opiniões que absorvem na sua idade são de difícil eliminação e tendentes a se manter inalteradas, Rep., 378d. Isso é

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perigoso porque as lendas negativas podem servir-lhes no futuro como justificação de conduta condenável, Rep., III, 391. Daí que tais lendas devam ser bem selecionadas, para formarem as suas almas, Rep., II, 377b-c. Todo esse cuidado porque é nesse período que o jovem mostra maior maleabilidade, se amoldando a qualquer modelo que se queira lhe aplicar, Rep., II, 377b. Como se pode observar a música, como parte do processo educativo, tem um caráter moral e este deve ser cuidado desde cedo, para que continue sempre nos guardiões e no filósofo. É nesse contexto que Platão fala do cuidado em que os deuses e heróis devam ser apresentados como são, Rep. II, 377e; os deuses não devem ser apresentados jamais lutando entre si, Rep., II, 378c; que eles são causas somente das coisas boas e justas, Rep., II, 380c; eles não mudam de formas ou mentem.

Música para a alma; ginástica para o corpo, Rep., II, 376e4-5. Com efeito, Platão acredita que uma boa alma torna bom o corpo e que um intelecto sadio assegura um corpo sadio, Rep., III, 403d-e. Isso é possível comendo e bebendo com moderação e submetendo-se a um plano razoável de exercícios físicos desde a juventude, o corpo estará tão preparado quanto necessário. Além disso, a ginástica é responsável por impedir doenças e a necessidade da medicina na cidade. (Sobre diferentes aspectos da saúde-medicina, veja-se Rep., III, 406.) É verdade que a música é ainda mais importante na educação dos guardiões que a ginástica, contudo, o equilíbrio entre ela e a ginástica é importante para a formação moral dos guardiões. Com efeito, apenas a educação ginástica pode causar barbaridade e somente a educação musical causa brandura; é por isso que ambos os aspectos da pedagogia platônica devem se equilibrar.

Então aquele que melhor mistura a música e a ginástica e aplica essa combinação mais adequadamente à sua alma é o indivíduo que podemos mais corretamente classificar como perfeitamente equilibrado e educado musicalmente, muito mais do que aquele meramente capaz de afinar as cordas de seu instrumento, Rep. III, 412ª.

Os estudos da matemática, para os futuros/as guardiões/ãs devem duram dez anos, dos 20 aos 30, já os preparando para a dialética, Rep. 537b-d. Por que é que a matemática tem uma grande importância na formação do futuro guerreiro/filósofo? Influência pitagórica? Aristóteles afirma que Platão segue (os pitagóricos) em muitas coisas, Met. 1.5, 987ª30. Seja como for, a educação matemática deve focalizar a alma do formando no reino

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inteligível, afastando-o de sua confiança e preocupação com o perceptível. E nada melhor para isso que prepará-lo para as coisas do intelecto, Rep. VII, 523ª que forçam o estudante a pensar em termos do inteligível e não do sensível, Rep. VII, 524d-525ª.

De fato, os exemplos mais claros de tais experiências instigantes são as que envolvem os números Rep. VII 524d-525ª. Mas a matemática, que interessa Platão, não é a arte de contar, que serve ao mercador ou ao estrategista, mas a ciência que distingue os números em si, independentemente das coisas sensíveis, Rep. VII, 525e. As matemáticas levam gradualmente os futuros filósofos a distinguirem o todo das partes, ou seja, leva-os a saber distinguir as coisas e aos poucos perceberem as coisas em si. Mas isso está além do alcance da percepção e requer pensamento e raciocínio. Assim sendo, a matemática é essencial na reorientação da alma do aprendizando, pois ela ajuda a conduzir o conhecimento rumo ao ser e ao real, Rep. VII, 523ª. O estudo da matemática deve, portanto levar da confiança na percepção sensível para o uso adequado dos processos puramente intelectuais, Rep. VII 526b, 537d, 522c-525b.

Vês então que é provável realmente que esse ramo do conhecimento seja indispensável para nós, uma vez que claramente compele a alma a empregar o pensamento puro visando a verdade mesma, Rep. VII 526b.

Por fim, a ciência da matemática é fundamental na pedagogia platônica, na formação do futuro guardião-filósofo porque ela é propedêutica à dialética, com a qual tem afinidade comum.

Aos trinta anos começa o estudo da dialética, que lhe propicie um conhecimento das coisas que aqueles que não a estudaram não possuem, pois o seu conhecimento permaneceu apenas na opinião e crença, Rep., III, 402b-c; Rep., VII, 520c; Rep., VII, 534b-c, Rep., X, 601-602. A dialética não pressupõe nada, sem exame, como dado; ela examina tudo meticulosamente até chegar ao término das hipóteses intelectuais. É, portanto não um aspecto qualquer da formação da pedagogia platônica, mas o mais importante de todos; o mais fundamental. Este aspecto não pode nunca ser negligenciado.

Por conseguinte, a dialética é o único processo investigatório que percorre essa estrada, suprimindo hipóteses e procedendo ao próprio primeiro princípio, de sorte a oferecer segurança, Rep.,VII, 533c-d.

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Claro que a matemática ajuda muito, no entanto, como se pode ver pela linha dividida, ela permanece na intelecção, mas não no entendimento, a intelecção sendo intermediária entre a opinião e o entendimento, Rep. VI, 533d. A importância maior da dialética, em relação à matemática, é que aquela explica as coisas como são. A dialética procura explicar as coisas e delas dá um conhecimento verdadeiro, Rep., VII, 533c-510c. A dialética explica, não supõe, ao contrário do conhecimento matemático. A sua importância no processo pedagógico deve, por fim, ser ressaltada porque a dialética torna claro aquilo que é. Não basta relatar; há que explicar a realidade em si. O dialético-filósofo de amanhã possuirá uma visão sinótica de todas as áreas da pesquisa, incluindo aí a própria matemática. Isso é fundamental porque o futuro filósofo precisa conhecer o bem em si, o que somente essa ciência maior lhe faculta. Vistos estes aspectos apresentam-se as várias classes sociais, os tipos de almas e virtudes correspondentes e as virtudes próprias do guerreiro, futuro rei ou rainha da cidade Ideal.

CLASSES SOCIAIS, TIPOS DE ALMAS E VIRTUDES CORRESPONDENTES

Quem é o futuro guardião? Aquele que passa com sucesso por todas as etapas pedagógicas às quais é submetido. Não é um homem especial por natureza. Ele pertence a uma das classes sociais da Cidade Ideal, como Platão aborda em a República. Platão desenvolve e descreve a estrutura da cidade ideal e nela estabelece as funções pertinentes às diversas classes. Estas devem trabalhar para o bem comum, mas cada qual em sua esfera própria. Ele, contudo, não cai na fácil tentação de uma possível divisão da sociedade em castas; cada classe tem a sua virtude correspondente.

Na base da sociedade encontram-se os agricultores, marinheiros, comerciantes, etc. que devem seguir os seus dirigentes, enquanto procuram desenvolver as suas atividades correspondentes. A eles corresponde a virtude da moderação ou prudência swfrosunh, Rep. IV, 430d-432a. Esta virtude, neles, quer dizer a subordinação de desejos pessoais a uma finalidade superior. Acima dessa classe encontram-se os defensores da cidade contra inimigos externos e internos. A eles corresponde a virtude da coragem a0ndrei0a, Rep., 429ª-430c. Trata-se da disponibilidade de cumprir ordens perante o perigo sem o temor do risco pessoal. No todo dessa hierarquia encontram-se os dirigentes que devem ser

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filósofos. Deverão ser responsáveis pelas decisões a ser tomadas para o bom governo de toda a cidade. A virtude que lhes corresponde é a sabedoria sofi0a Rep., IV, 428b- 429ª que é a capacidade de compreender a realidade e de tomar decisões com imparcialidade; de tomar decisões sábias.

Cada classe deve desempenhar a função que lhe é específica e não deve procurar desempenhar a função correspondente à outra. Desse modo toda a cidade funcionará sem maiores problemas, em harmonia, ou seja, em verdadeira justiça. Esta não é uma virtude específica de uma classe determinada, mas inter-relaciona harmonicamente entre todos os componentes da sociedade. A justiça é concebida como uma relação das classes do Estado e é comparada à relação das partes da alma no composto individual. Ela é a contribuição à excelência do Estado, Rep., IV 433e.

Estas virtudes têm uma correspondência nas virtudes da alma. Para Platão, com efeito, há uma analogia entre o funcionamento da sociedade como um todo e a vida do indivíduo. Assim sendo, na concepção platônica, o ser humano é propriamente justo quanto as suas três almas realizam suas funções harmonicamente entre si, funcionando para o bem de toda a pessoa.

Para Platão a alma divide-se em três aspectos que ele chama de almas. Cada um deles corresponde a cada uma das três classes componentes da cidade ideal. Cada um destes aspectos, almas ou funções, contribui em sua esfera própria para o bem de toda a pessoa. A alma apetitiva ou concupiscível, que possui emoção ou desejo, é a parte de cada um que deseja e sente muitas coisas. Esses desejos devem ser controlados perante objetivos maiores, racionais, se a pessoa quiser alcançar o autodomínio. Corresponde às classes inferiores cuja virtude é a moderação, temperança ou prudência. A alma volitiva é a parte ativa. Sua função é cumprir corajosamente as determinações da razão na vida cotidiana, fazendo tudo o que o intelecto estabelece como sendo o melhor. Corresponde à classe dos guardiões cuja virtude é a coragem. A alma racional é a parte que raciocina e que discerne o que é real distinguindo-o do meramente aparente; julga o que é verdadeiro e o distingue do falso. Toma decisões racionais sabiamente, decisões que determinam o modo como se há de viver. Corresponde à classe dos filósofos cuja virtude é a sabedoria. Sintética e correspondentemente: classe social; tipo de alma; virtude: Governantes, racional, sabedoria. Guerreiros: irascível, coragem. Artesãos: concupiscível, temperança.

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A justiça, por outro lado, não é uma virtude de nenhuma alma específica, mas ela é, pode-se dizer, a qualidade geral que une todas as virtudes da alma, Rep., 443c-e.

Platão em Rep. III, 415ª, ao expor esta divisão das classes com as suas virtudes próprias e as diversas almas com as suas funções específicas é influenciado pelo mito dos quatro metais de Hesíodo. Observe-se, contudo, que em Hesíodo este mito simboliza quatro sucessivas idades decadentes, Os trabalhos e os dias, 109-201. Note-se ainda que Platão fala de classes, classes abertas, não de castas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Assinalou-se antes que as consequências pedagógicas de as mães e amas narrarem às crianças lendas poéticas do passado, com conteúdo negativo acerca da divindade, são nefastas. Isto, por um lado, porque elas não estão ainda em uma situação de juízo crítico, de saberem separar o que é do que não é alegoria e, por outro lado, pelo fato de que, nesta idade, todas as impressões recebidas tornam-se, em geral, indeléveis e imutáveis Rep., II, 378d-e. Por isso, Platão, em seu zelo pedagógico-formativo ressalta, deixando bem claro que é extremamente importante que as primeiras coisas ouvidas pelos jovens sejam fábulas narradas do melhor modo possível com o intento de incitá-las à virtude Rep., II, 378c-e.

Pois bem, Platão, o criador e fundador da Kallípolis conhece bem o modelo de cidade que está plasmando; sabe das regras que devem nela existirem; conhece bem os modelos a que os poetas devem obedecer em suas histórias e proibir que alguém se afaste deles, Rep., II, 379ª. Os modelos são sempre ideais. Assim sendo, não se pode nem permitir aos poetas que narrem ou se contem histórias que mencionem os supostos vícios dos deuses, as debilidades dos heróis, pois tudo isso pode ter um efeito negativo na educação da criança. Ao invés de ser uma paideia, torna-se uma deformação. Os futuros guardiões e guardiãs precisam ter um caráter forte e firme e por isso deve-se evitar o perigo de fazerem-se surgir nos jovens a facilidade de cometerem o mal. Se os deuses e heróis forem apresentados como faltos moralmente então se introduzem debilidades e maldades em seu ser e para Platão o deus é bom em sua essência, não importa o que dele digam os poetas épicos, líricos ou trágicos Rep., II, 379ª. Se o deus é bom, se a divindade é boa os futuros guardiões e guardiãs poderão espelhar-se neles, evitar o mal e se tornar grandes na

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defesa da Kallípolis. Não podem, pois, no futuro, justificar eventuais quedas pessoais pensando nos exemplos negativos dos deuses ou mesmo dos heróis do passado. É por isso que os poetas e todos os que imitam devem ser censurados.

É neste modelo ideal que se dá o discurso pedagógico. É nessa República de Platão que se encontra o processo educativo que prepara os futuros dirigentes da mesma. Este processo pedagógico, fruto de escolha segundo os critérios de mérito pessoal, não depende do sexo, mas de uma resposta pessoal ao processo educativo e formativo de cada um; são pessoas normais que se preparam para se pautarem sempre pela verdade e pelo bem. Desse modo, também as mulheres estarão aptas a guiarem os seus co-cidadãos por tais caminhos. Elas também poderão se tornar rainhas. Que a cidade ideal se dê ou não historicamente não importa muito; ou, talvez, até importe. Os eruditos não se entendem, a respeito. Importa isto sim, que para Platão os homens e mulheres que chegarem ao final desse processo pedagógico tornaram-se pessoas especiais que deverão continuar todo o seu processo educativo durante a sua vida. Isto quer dizer que o processo de autonomia pessoal e de condução da Cidade Ideal é um procedimento que em última análise aproxima-se com o seu conceito metafísico, como está bem antevisto na alegoria mítica da Caverna, Rep. VII. É neste livro que começa a ficar claro que a ideia de justiça não é a única ideia; é uma dentre muitas. O discurso metafísico se agiganta. O processo de aquisição do bem e da verdade, e consequentemente o processo educativo, é algo extremamente penoso, custoso; bem diferente do que diziam os sofistas a respeito.

Uma palavra final que se pode dizer é que Platão, ao procurar enfatizar o ensino de lendas que apresentam as divindades e os heróis de modo positivo não pode ser censurado sem mais; problema este mencionado, não discutido neste texto. Não; isso seria limitar o pensamento do grande filósofo; o que é realmente fundamental é o seu apego à verdade, ao bem, à verdadeira formação da mente jovem, suscetível a todo tipo de perigos e desvios pedagógicos, como bem mostrava o exemplo dos sofistas. Contra isto tudo Platão aponta um caminho ideal, que teria a sua influência em todas as concepções pedagógicas ocidentais. E aqui, diga-se de passagem, a pedagogia ideal da Kallípolis platônica, em séculos vindouros, por fim, vingar-se-ia e não ficaria apenas no plano ideal. Ela teria sim a sua incidência e influência práticas. Por fim, note-se a alta concepção antropológica platônica; o homem pode mudar a sua natureza pelo ensino se esta for bem cultivada desde

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cedo, daí o seu especial interesse pela correta educação (paideia), presente em toda a República.

Se é correto afirmar que a autêntica filosofia platônica é um voltar-se da alma do dia noturno para o verdadeiro, das trevas para a luz Rep. VII 520b; 521b-c, com toda a razão também se pode dizer que o é a sua concepção pedagógica, pois para ele um bom sistema de educação e instrução, quando preservados de toda e qualquer alteração, cria bons caracteres, Rep., IV, 424ª. (República, 2006. Tradução de Edson Bini.)

REFERÊNCIAS

CAPORALINI, José Beluci. O projeto pedagógico socrático. Acta Académica. Nº 44, mayo 2009, 149-170.

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