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António Ferreira Lopes

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Academic year: 2021

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António Ferreira Lopes

CONTOS POPULARES DA ADIÇA

Recolhidos da tradição oral, em duas freguesias vizinhas, dos Concelhos de Serpa e Moura

Edições Colibri

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À memória de Mariana da Cruz Oliveira (1883- 1978), minha avó materna, que me embalou e contou histórias.

E a Francisco Valente Machado (1900¬ 1990) que desde jovem amou fervorosamente e procurou engrandecer em todas as instâncias o seu torrão natal. E de cuja paixão por Vila Verde de Ficalho muita gente tem saudades.

AGRADECIMENTOS _______________

A todos quantos nos acompanharam, ao longo desta caminhada, com os mais diversos auxílios, estamos infinitamente gratos.

À Prof.ª Isabel Cardigos, Coordenadora do Centro de Estudos Ataíde de Oliveira, da FCSH da Universidade do Algarve, pela sua disponibilidade e sabedoria e, muito especialmente pela imensa ajuda na classificação dos contos, revisão do texto, pelas suas lições e críticas. E ainda pela gentileza de ter escrito a apresentação. Sem o seu zelo e empenho este trabalho não teria sido publicado.

Ao Prof. Américo Oliveira, nosso orientador da dissertação de mestrado, a quem

agradeço toda a disponibilidade, paciência, orientação e atenção à situação particular de um trabalho produzido à distância.

Ao Prof. João David Pinto Correia, arguente na defesa da dissertação de mestrado, agradeço a imensa atenção e crítica minuciosa, a sensibilidade revelada em relação aos pontos fortes da dissertação, a motivação e auxílio precioso com que apontou passos conducentes à publicação do trabalho.

Ao António Monge, à Maria Josefa e à Fernanda Soares, que generosamente nos cederam o registo em videograma de um animado convívio de contadoras.

À Raquel que, com os seus dez anos, era elemento integrante da equipa de recolha, e agora, aos vinte, produz a capa e as fotos dos contadores.

Ao João Dinis, presidente da Junta de Freguesia de Sobral da Adiça, pela amizade e disponibilidade, e por todo o apoio com informações e documentos.

Ao António Fontinha pelo empréstimo do equipamento de gravação e pela disponibilidade na troca de opiniões.

Ao António Lúcio, jornalista da Rádio Pax, pela recuperação dos registos áudio. Ao Paulo Monteiro, pela recuperação dos filmes VHS.

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Ao Hélio Craveiro pela cedência do equipamento de reprodução e gravação.

E ainda, por tanta atenção e solicitação: Maria João Marreiros; Mariana Margarida R. Valente; Maria José Oliveira Guerreiro; Isaías Garcia; António Correia Ferreira, e António José Limpo, funcionário da Junta de Freguesia de Sobral da Adiça.

Dos contadores de histórias, a lista é longa. Têm, é claro, o nosso agradecimento mais carinhoso, mas quero expressar especial gratidão aos meus conterrâneos: Francisca Calvinho e Francisco Rodrigues Galamba.

Quero agradecer por fim ao Instituto de Estudos de Literatura Tradicional, cujo apoio principal permitiu a publicação deste livro, à Anabela Gonçalves pela delicadeza e pelo empenho, e à Prof.ª Ana Paula Guimarães pelo acolhimento à publicação desde a primeira hora. Agradeço ainda os patrocínios às Câmaras Municipais de Serpa e Moura, Juntas de Freguesia de Vila Verde de Ficalho e Sobral da Adiça, e ex-co-directores da Biblioteca-Museu de Vila Verde de Ficalho: António Monge Soares, António Santiago Guerra, Virgílio Esperança, e José Manuel Paulino.

Em geral a todos os alunos, colegas de profissão, informantes, familiares nossos e a todos aqueles que, de uma forma ou de outra, estiveram a nosso lado, e com quem, no decorrer das nossas demandas, partilhámos momentos de convívio.

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ÍNDICE ______ APRESENTAÇÃO 11 INTRODUÇÃO 15 METODOLOGIA DE RECOLHA

Do trabalho de campo à problemática da literalização do oral 21

1. O trabalho de campo 23

1.1 – À descoberta dos informantes e das informações 23 1.2 – Características e forma de apresentação da colecção 30 1.3 – Ambientes de contar e formas de registo adoptadas 41

2. A problemática da literalização do oral 51 Normas de transcrição utilizadas:

2.1 – Sinais gráficos adoptados 55 2.2 – Pontuação 57

2.3 – Ortografia 61

2.4 – Outras referências 64

2.5 – Pequena seara vocabular 65

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ANEXOS:

1. ÍNDICE DE CONTOS 453

2. ÍNDICE DOS INFORMANTES 457 3. QUADRO VI 458

4. ABREVIATURAS 459

BIBLIOGRAFIA 461

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Conheci António Ferreira Lopes e o “seu tesouro” de contos quando ele entrou em contacto comigo ainda em 1999, por causa de um mestrado que estava a preparar. Tratava¬ se de dar uma ordem aos contos por ele recolhidos em Vila Verde de Ficalho e Sobral da Adiça, nos concelhos de Serpa e Moura.

Tive então ampla oportunidade de me familiarizar não só com os contos como com o seu trabalho nos dois anos que se seguiram e em que António Ferreira Lopes visitou com alguma frequência o nosso Centro de Estudos, quando o arquivo português de contos (APCT) estava ainda a ser elaborado.

Impressionou¬ me o desvelo com que este seu trabalho se ia desenvolvendo. Desvelo, palavra difícil de encontrar, até porque se vai tornando rara. “Desvelo” é fruto de uma aliança feliz, aquilo que as boas mães têm para com os filhos, e os bons professores têm para com os alunos: alia coração a paciência e rigor.

Bem presentes neste livro, a frente e o verso que teceram este trabalho de desvelo. A frente, na recuperação do falar e da identidade dos contadores, agora tão longe, tornando¬ os presentes e acessíveis ao leitor. E o verso desse mesmo desvelo, no meticuloso rigor da transcrição dos contos recolhidos, antecedidos, na introdução, de uma detalhada explanação, assim como de um glossário de todas as expressões regionais e idiossincrasias individuais.

Falemos um pouco dos contos – nunca desligados de quem os contou, chegados a nós por mão segura e cuidadosa, que requer um tempo que já não é o nosso, que nos obriga a abrandar. Não estranhemos a ortografia, escolhida criteriosamente pelo autor: o seu “contrato ortográfico”, inspirado num compromisso proposto por Maria Helena Mira Mateus, prestigiada professora da Faculdade de Letras de Lisboa, é apenas destinado a recuperar quanto possível a voz dos contadores. De facto, primeiro estranha¬ se mas depois sintonizamos melhor com a “voz” de quem conta.

Os contos são de pasmar. Deparamo-nos com uma riqueza, uma alegria, uma

criatividade no acto de contar que não deixa dúvidas quanto à sólida e fecunda tradição que terá dado voz a tantos, tão diferentes e tão bons contadores de histórias.

Ao agrupar esta colectânea por contadores, o seu responsável destaca assim cada um daqueles que deram vida aos contos na altura em que os contaram. Desfilam por ordem alfabética do seu primeiro nome, independentemente de qualquer outro factor (como o lugar de recolha ou as histórias narradas). À medida que os vamos percorrendo vamos observando traços comuns, laços de família que se conjugam com uma espontaneidade que os torna “únicos” quando incarnados diferentemente por cada contador.

Reconhecemos o prazer do reconto, nas diferentes formas de adoptar certos grandes temas dos contos maravilhosos . A bela e a fera, a mulher em busca do marido desaparecido, a torre da má hora, o cavalo mágico, a princesa Magalona, os meninos com a estrela na testa, a Maria Sabida, o Touro Azul… Só que são vozes que se

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soltaram dos livros que alguma vez terão sido lidos, vozes que os receberam de ouvir outras vozes, de vozes que amaram e adoptaram, sem medo de inovar porque torna-los seus é a maior honra que se presta aos contos recebidos e amados. Aqui, o “Era…” ou “Era uma vez…” não está assim tanto noutro espaço ou noutro tempo. No “Montinho dos Ladrões” (n.º 7), de Francisca Valente Calvinho, reconhecemos quem é a menina banida pela mãe, essa má mãe que quer para si o amor que o enteado tem pela filha. Que longe estamos da Branca de Neve, quando ela nos é recontada desta forma! Muito consciente da sua actualização dos contos “intemporais”, vai dizendo, noutros contos, que o menino “telefona para o Sr. rei”; que, no Touro Azul, “liam os jornais, porque naquele tempo não havia outra coisa”. E tem a magia de fazer rir, magia que partilha com tantos outros contadores.

Magia de fazer rir grandes e pequenos. Podemos ver também como as mulheres se aplicam nos contos para os mais pequenos. O autor da colectânea tem o cuidado de anotar, de uma forma ou doutra, a presença e a reacção das crianças que assistem a uma sessão de contos. São eles A Velha da Cabaça, enriquecido com toques realistas ainda por Francisca Valente Calvinho (n.º 57), que também conta O Pinto Calçudo: “Metade pinto, isso nem pesava nada!” – tal como os pequenos ouvintes; mas com tanto poder, que acaba por meter o rei na ordem e pôr todos a rir: “Cucurucucu, qu’eu já vi el rei por o cu!” (n.º 1).

São contos que se estruturam de fórmulas repetitivas, que as crianças podem

acompanhar e prever, como o da cabra cabrês (n.º 29, por Antónia Marta Oliveira); o do lobo, da cabra e cabritinhos (n.os 61, F. Calvinho e 77, Mariana da Cruz Oliveira); como o da galinha alarmada com o que lhe caiu na cabeça (n.os 12, Mariana Garcias Valente; 43, Mariana Pires Afonso; 37, Cândida Valente Calvinho); o da cegonha e da raposa, que em ambas as ver-sões (n.º 75, Mariana da Cruz Oliveira, e n.º 6, Francisca Calvinho) desenvolve uma mesma estrutura, muito rara, que acaba com o conhecido conto cumulativo d“o mais forte”; uma história do João Ratão (n.º 67, Mariana Rosa Rodrigues) a terminar com a hoje rara sequência do lamento feito à morte do herói); e a variante única nos nossos arquivos do “Cagadinho que caiu na panela” (n.º 26, Antónia Marta Oliveira).

Admiramos a simplicidade com que as contadoras naturalizam a morte nestes contos dedicados aos pequeninos. Pasmamos com a doçura com que abordam contos hoje tão difíceis de contar – como “Periquito e Periquita” (n.os 13, Mariana Garcias Valente, e 35, Florinda Valente). O irmãozinho, morto pela mãe, esfolado pela avó, e comido pelo pai, ressuscita dos ossos que a irmã enterra junto a uma laranjeira. Diz D. Mariana, “‘tava lá, nasceu dos ossinhos e ‘tava lá com um grande ramo de laranjas na mão”. Estava vivo e tem a última palavra para denunciar os adultos e recusar¬ lhes as laranjas, dando¬ as todas à irmãzinha que o salvou. Termina a contadora: “Tamein é bonito, na éi? E est’é pequenino.”

É curioso surpreender a “voz” masculina e feminina, tanto na escolha dos contos como na forma de os contar. O Touro Azul, por exemplo é sempre contado por mulheres, três

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delas já bem longe do livro de cordel que lhes terá dado origem, e tornando¬ o

verdadeiramente seu: Inês Joaquina (n.º 41) remata¬ o com uma discussão entre sogra e nora; Francisca Valente Calvinho (n.º 59) sublinha a rivalidade entre a menina e a madrasta, que também quer conquistar o príncipe, neste caso o próprio Touro Azul; Mariana Rosa Rodrigues (n.º 69), em que (tal como o herói masculino doutros contos) a protagonista ganha umas cavalhadas, seduzindo e frustrando assim o príncipe que, furioso, a fere numa perna!

Contada por dois esplêndidos contadores, Francisco Rodrigues Galamba (n.º 71) e José Francisco Lameira (n.º 83), a aventura que remata com a busca do marido encantado (ATU 425) começa, invulgarmente, com a busca da cura para o pai cego (n.os 71 e 83) – uma aventura típica de um conto de herói, aqui desempenhada pela heroína. Contado por uma mulher, “O Príncipe Ai de Mim” (n.º 10, Mariana Garcias Valente) surge quando a heroína, saída de casa dos pais pobres para encontrar vida melhor, se chega a um poço já muito cansada, “põe os braços no bocal”, suspira “ai de mim!” … e ali aparece ele, príncipe encantado, lamento dela feito carne. “Ai de Mim” suspira ela mais tarde, Procurando/chamando o desaparecido. Uma versão mais clássica deste mesmo conto, a das prendas pedidas ao pai pelas filhas, vem a ser contada por João Pedro Valente (n.º 74), mas com um “maravilhoso” bem enraizado no humano.

Permita¬ se¬ me um olhar de coleccionadora destas borboletas tão especiais que são os contos tradicionais em Portugal nas suas diferentes versões, para sublinhar a raridade de alguns deles. Além da história do cágado que caiu na panela (n.º 26) já antes

mencionada como única nos nossos arquivos, vejamos outras:

Ao contar a história do vencedor do dragão (n.º 80), cujas sete línguas serão prova de que é ele quem merece a “filha de rei” (ATU 300), José Francisco Lameira (transcrito de Francisco Valente Machado) conjuga¬ a com a história da irmã traidora (ATU 315), uma preciosidade encontrada entre os grandes contadores açorianos e única em Portugal continental; também do mesmo contador “O Nunes e a Enévoa” (n.º 86), esplêndida versão de um conto predominantemente mediterrânico e do Médio Oriente, que por vezes inclui uma forma incipiente da lindíssima história das mulheres cisnes, de resto inexistente em Portugal. É precisamente nesta versão que as encontramos, ainda que como pombas, na forma portuguesa mais reconhecível deste conto.

Raros são a maioria deles, pela forma como são contados. Pela voz de Francisco Rodrigues Galamba, o conto do gigante que estava numa torre (A Vida do Gigante Escondida num Ovo) começa com três irmãos que tinham acabado de receber uma herança e não havia meio de chegarem a um entendimento sobre as partilhas. Quando o ouvinte está totalmente absorvido no problema dos três irmãos... aparece o vigarista que ao pretender ajudᬠlos lhes rouba os três objectos mágicos e – damo¬ nos conta só então – é afinal o herói que, com a ajuda duma velhota (Nossa Senhora), vai matar o gigante canibal e salvar a princesa (“acabou¬ se o comer lá moças”). O fim da história regressa aos três irmãos, ainda a discutir, e a quem o nosso herói ajuda finalmente a fazer as tais partilhas… com vantagem para ele.

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Também de Francisco Galamba, a história de “António Cozinheiro”, n.º 47, conhecida como O pescador casado com uma princesa (ATU 879 A) – outro conto da área mediterrânica, de que só temos conhecimento de mais uma versão de Portugal continental. Digamos apenas que o herói prova merecer a princesa mas, quando esta prova não o merecer, o herói desaparece e, mesmo quando ela o encontra, não consegue que ele lhe fale (em sentido figurado e literal). O conto acaba bem em todas as versões, só que esta tem um remate com um trocadilho genial, que terá desencadeado

gargalhadas a quem o ouviu. Acaba em festa, dentro e fora do conto. É de facto na originalidade do reconto que se manifesta a tradição em toda a sua pujança.

Sabíamos já que o Alentejo tem excelentes contadores. No passado, sem dúvida – leia¬ se o extraordinário repertório de Catarina Rosa Riga, Granja, Mourão, Beja, gravado há cinquenta anos e publicado nos Contos Populares Portugueses (Inéditos) – e ainda no presente: basta ir espreitar o site Memoriamedia para não termos dúvidas. É altura de dar a palavra àqueles que são agora apresentados por António Ferreira Lopes – altura de me calar para que o regozijo de os ler chegue fresco aos olhos do leitor.

Isabel Cardigos

Centro de Estudos Ataíde Oliveira (CEAO), Universidade do Algarve Instituto de Estudos de Literatura Tradicional (IELT)

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INTRODUÇÃO __________

Nos meus tempos de criança tive a felicidade de viver e crescer numa família com irmãos e que tinha no seu seio uma avó materna que nos contava histórias deliciosas. Tinha o seu lugar especial no recanto mais abrigado e estratégico da sala de estar, sentada no seu cadeirão de verga. Cansados das brincadeiras, refugiávamo-nos no seu regaço e ouvíamos contar. Decorriam os anos 60 do último século, numa aldeia do Baixo Alentejo, na margem esquerda do Guadiana, mais irmã de “nuestros hermanos” que do Portugal que lhe morava ao lado. Precisamente a raiana Vila Verde de Ficalho, uma das comunidades agora alvo desta abordagem. O pai falava espanhol o dia inteiro, comerciando na loja. Era o nosso sustento. A mãe ajudava o pai e ainda cuidava da casa. E a avó educava os netos. Contava¬ lhes contos do seu vasto repertório, mas reservava as histórias mais desenvolvidas para uma plateia alargada: a garotada da rua.

A minha afeição pelos contos vem deste tempo e confunde¬ se ainda com a nostalgia dos afectos vividos na infância. Este trabalho pretende, de algum modo, proporcionar o reencontro com esses momentos em que, na roda dos irmãos e dos amigos, sentados e alheios a tudo mais, apenas ouvíamos contar. Fosse qual fosse a história, o mais

importante era a plenitude do momento, essa relação intensa e autêntica, onde a magia, a poesia e o símbolo se conjugavam e fluíam num todo coerente, para ir desaguar na resolução harmoniosa dos conflitos.

Mais tarde, já adulto, bastas vezes, em conversa com irmãos, primos e tios, todos netos ou filhos da avó dos contos, (também lhe chamávamos assim) comentávamos, com alguma tristeza, o facto de ninguém na família saber ao menos alinhavar as histórias que ela contava. Recordávamo-nos de alguns títulos e pouco mais.

Foi, porém, no decurso do exercício de funções como professor de Português, que nos demos conta de que havia familiares dos nossos alunos que ainda contavam contos tradicionais. Passava¬ se isto em Sobral da Adiça, uma aldeia alentejana, freguesia do concelho de Moura, perdida nos limites de Portugal, escondida deste pela Serra da Adiça, já confinando com Espanha. Começámos a ficar atentos e eis senão quando começámos a reencontrar¬ nos com os contos da avó. Não com as narrativas integrais. Eram pedaços, episódios, semelhanças curiosas aqui e ali. Parecia tratar¬ se de um jogo. Por essa altura não sabíamos o que eram “motivos” e não fazíamos ideia da

complexidade que caracteriza estas narrativas transmitidas oralmente, geração após geração, através dos séculos. Foi ao ler a Morfologia do Conto, de Vladimir Propp, (trabalho onde o autor descreve as partes constituintes do conto e suas funções) que

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compreendemos melhor. Os contos eram de facto autênticas peças de artesanato,

remendadas, cosidas umas com outras, buriladas pelo rolar, contar e recontar, filtradas e constantemente adaptadas, através de sucessivas gerações de contadores. Digamos que a empresa começou por aqui. As recolhas do património oral levadas a cabo pelos alunos, foram¬ nos revelando, paulatinamente, no capítulo dos contos, fragmentos interessantes dos tesouros escondidos.

O trabalho de recolha que verdadeiramente iniciáramos com os alunos foi desenvolvido e concluído mais tarde, no âmbito da preparação da nossa dissertação de mestrado e foi deveras apaixonante. O fascínio e o prazer sentidos pela re/descoberta suplantaram as dificuldades sentidas, quer as que decorriam das características próprias do tipo de actividade que é a recolha da tradição oral, no terreno, quer as relacionadas com a sobrecarga de trabalho inerente ao curso de mestrado.

O valor e a importância dos contos, estas “formas simples” como lhes chamou André Jolles, têm¬ se vindo progressivamente a impor. Enquanto que os primeiros estudiosos se preocupavam sobretudo com a sua génese, com a descoberta do suposto texto original, nos dias de hoje prevalece o estudo da sua forma, da sua utilidade e do seu significado, constituindo¬ se o conto como objecto de estudo das mais diversas

disciplinas: psicologia, psicanálise, linguística, antropologia e etnologia. Neste sentido terá descolado de um estatuto de inferioridade, soltado as amarras que aí o prendiam pelo facto de ser um texto predominantemente oral, de ser do povo iletrado, simples e ingénuo, por oposição ao que é erudito e próprio de uma cultura das letras, de uma literatura consagrada.

A importância psicológica dos contos maravilhosos encontra¬ se hoje muito bem documentada. A autora junguiana Marie Louise von Franz e o freudiano Bruno

Bettelheim destacam¬ se neste campo. Este último, na sua obra Psicanálise do Conto de Fadas, explica¬ nos como estas narrativas podem ajudar a criança a resolver os seus conflitos interiores, fornecendo¬ lhe, de forma velada, soluções para a resolução dos mesmos e para a sua integração social.

Por outro lado, importância do conto reside na sua função social, frequentemente niveladora: os fracos tornam¬ se fortes, e os humildes, poderosos. Têm também uma função educativa e lúdica. Tanto ensinam como divertem, caricaturam e castigam. As comunidades que os usam fazem deles instrumentos de ensinamento das regras estabelecidas e fonte de coesão social.

Porém, o modo de transmissão do conto através da oralidade, que funcionou durante milénios, alterou¬ se devido às modificações produzidas nos modos de vida. Os avós deixaram de viver com os netos. A estrutura familiar alterou¬ se e a vida das pessoas também. Chegou a iluminação, a rádio, a televisão, a internet. Os detentores do saber deixaram de ser os mais velhos. A cadeia de transmissão oral quebrou¬ se. Por isso, passou a fazer sentido recolher os contos e registá-los num suporte escrito. Assim procederam os compiladores portugueses, desde Adolfo Coelho ao casal Soromenho, cujas colectas datam respectivamente de 1879 e 1984, e, recentemente, a colectores de

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recolhas regionais, como a de Loulé e a de Trás¬ os- Montes. E se por um lado passou a ser urgente e importante recorrer ao registo escrito, não deixou de o ser menos a retoma do processo de transmissão pela via oral. De facto, é no contar e recontar que reside a essência do conto. Eles só vivem e sobrevivem porque e quando se contam. Disto se terão dado conta os contadores profissionais que ultimamente têm

desenvolvido a sua actividade recuperando os textos que nas suas diferentes versões encontram em recolhas, actualizando¬ os no acto de contar e recontar, atestando, deste modo, que a vida dos contos se encontra na sua essência oral e andarilha, e que o seu registo escrito é simplesmente um lugar efémero, uma pegada que assinala um momento, uma passagem.

Recolher e estudar os contos foi pois o objectivo que perseguimos e que procurámos cumprir, com dignidade e uma humildade que cresceu na razão directa do “gigante” que, durante o decurso do processo de recolha, vimos erguer¬ se a nossos olhos, para espanto dos nossos sentidos.

A nossa relação com os contos remonta, como dissemos, à infância, e situa¬ se muito no plano dos afectos e da comunicação. Foi esse o fio do novelo que nos conduziu até aqui, prolongando na investigação o prazer que sentíamos em criança a ouvir as

histórias da avó. Não pensámos foi que o mundo, a vida, o homem na sua complexidade pudessem ser compreendidos, olhados e admirados por esta “porta”. Essa foi a grande revelação deste percurso, o primeiro e maior ensinamento que colhemos, traduzido também e afinal num “crescimento” pessoal estimável.

No âmbito da constituição da colecta, a primeira parte do trabalho é aquela que, costuma dizer¬ se, “não se vê”. É um sorvedouro de tempo e canseiras e, neste

momento, deveríamos já ser capazes de explicar a razão por que escolhemos partir para a recolha dos contos no terreno. A resposta reside em razões do domínio dos afectos, e essas geralmente desprezam os cálculos. A quem cedo faltaram pai e mãe, e avós, apetece procurar por entre o povo as raízes que permitem crescer e “estar de pé”. O trabalho de campo começa pela procura/reconhecimento das “fontes” – essas memórias privilegiadas – e do verbo. Onde a palavra se ouvir, estamos lá: “fulano conta, beltrano diz, a minha vizinha sabe contos muito bonitos”. Conhecimentos anteriores, fruto da integração/filiação no meio, aliados ao contacto com as crianças – esses “auxiliares mágicos” – cuja proximidade a actividade docente proporciona, estiveram na base do encontro com essa figura lhana e especial que é o contador tradicional. Grande parte dos informantes, pelas razões que as condições de vida moderna impõem, já não contava havia muito tempo e, para que pudéssemos ouvir as suas narrativas, tiveram que fazer o exercício de as recordar e sonhá-las de novo. Assim, o ritmo dos contactos previa, geralmente, esse tempo de “(re)gestação”.

Cientes de que a vida e sobrevivência dos contos passam hoje pelo registo escrito e pela atenção que lhes é dada pelas novas instâncias ligadas ao acto de contar, pensámos também que iríamos contribuir, na medida das nossas possibilidades, para a salvaguarda

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e preservação de uma parte da memória oral das duas freguesias, alvo da nossa incursão. Simultaneamente, o próprio processo, pela participação que nele tiveram os nossos alunos, colocou¬ nos no caminho certo da transmissão aos mais novos, dos elementos que Maria Augusta Seabra Diniz considera, e bem, “decisivos na ligação às raízes culturais do povo a que pertencemos, sendo, portanto, da maior importância na transmissão da matriz cultural em que nos inserimos”.

O registo dos contos fez¬ se. Não sem preocupações de rigor e respeito pela forma primeira, o oral. Conscientes da descontextualização e da “desqualificação” inevitáveis, fundamentámos a intervenção, esclarecemos e justificámos as regras adoptadas. No entanto, estas limitações serão parcialmente colmatadas com a adição ao presente livro de um suporte sonoro contendo uma narrativa por contador.

Num contexto social confrangedoramente descaracterizador da nossa identidade

cultural, esperamos que o registo escrito desta particular recriação de “formas simples” – elementos caracterizadores da nossa identidade e fonte de coesão social – seja um contributo para a preservação duma pequena parte da nossa memória oral.

Uma última palavra sobre a apresentação da colecção centrada nos contadores/informantes.

Na dissertação de mestrado que está na base desta publicação, os contos figuravam pela ordem com que tinham sido transcritos, sendo daí que provém o seu número de ordem, que ainda os acompanha. Porém, ultimamente, os cânones da recolha científica têm atribuído aos contadores uma importância que não se verificara no passado. Tendo em conta este facto, decidimos centrar neles a apresentação da colecção.

Valeu a pena ter tomado esta decisão. Fazê-lo foi uma última tentativa de os resgatar para sua merecida condição de sujeitos. Aqui também no livro. Na posição dos

separadores, eles são as janelas que se abrem ao nosso disfrutar de uma palavra que vem de longe e emerge aqui nas suas diferentes vozes, que se erguem e ouvem, marcando as pausas e assinalando a mudança. Com as suas peculiaridades, quer de estilo, quer de preponderância narrativa, falam¬ nos de outro tempo e lançam um derradeiro apelo a quem queira arriscar¬ se a actualizar essa palavra: render vida ao escrito e devolvê-lo à sua matriz ancestral: o oral.

Com a apresentação deste trabalho de recolha, pretendemos pois participar no movimento dos que acreditam que é possível salvar do esquecimento os contos da tradição oral. Assim eles inspirem quem os ler e ouvir a ganhar ânimo e vontade para os recontar. Se assim for, faremos nossas as palavras de Adolfo Coelho citado pelo actor e contador de histórias António Fontinha, para concluir que já “nos daremos por pagos do nosso trabalho”.

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19. [OS FILHOS DO REI]

Erom três irmãs, mas elas todas queriom casar com o rei. Mas ele só casou com a mais nova, na qu’ri’ ás ôtras. E as ôtras erom criadas.

Foi e a mulher teve tamém dois meninos, e elas nã lhe desserom a ele. El’ andava lá com as tropas tamém.

E agarrarom na mulher e entarrarom¬ na até à centura d’ areia, a mulhé dele, e apanharom nos dois meninos e ‘tirarom com eles p’rá rebêra, p’rô pé dum moinho, e ‘stava lá ‘ma velhinha e um velhinho, e agarrarom aquela caxa, tinhom nos meninos lá. E atão, estava lá um melitara, e ia¬ lh’ a dar de comer e a dar água sem elas saberem e nem ele. E o rei dezia:

– Homem! Todos os dias saem todos, e tu nã queres sair dia ne-nhum?!

– Você nã hᬠde tê pena, dexe lá que você nã hᬠde tê pena. Dêxe¬ me lá que mais tarde você saberá porqu’ é qu’...

O rei ia à caça mas pendia sempre p’ra onde ‘tavom nos velhos. Aquilo era por Deus. – Olhe lá, ti velhinha, dêxa lá estes meninos a jantar à minha casa?

– Váiom!

E a velhinha disse¬ lh’ ãssim:

– Olhem lá, cond’ elas ponhom na menza, aquelas mulheres, vocês nã comem nada. Nada, nada, nada! Elas hã’¬ de¬ lhe pôr ali veneno, p’ra vocês morrerem. Vocês nã comom nada.

– Atã mas, na querem isto?! – o rei tod’ apaxonado porqu’ eles na qu’riom comer. – Nã querem isto, nã querem aquilo?...

– Nós só qu’ríamos o melhó manjar! – er’ á mãe.

– Atã mas o qu’ é o melhó manjar? – nã erom capaz de saber o que er’ ó melhó manjar...

Foi, tanto lhe desserom, tanto lhe desserom, até qu’ os rapazes desserom assim: – Olhem, sabe o qu’ é melhó manjara? É minha mãe. ‘Tá entarrada até à centura d’ areia.

– Aonde???

– Ali naquele quarto. E o melitar que está aqui, é quem tem dado de comer a minha mãe, e é qu’ a tem viva, senão ela já tinha morrido.

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Ora, forom lá, lá estava ela.

‘Pois fizerom¬ lh’ o mêmo castigo: puserom¬ na[s] ó rabo do cavalo e foi o que lhe fizerom.1

Os rapazes na comerom nada. Era veneno!

Nôtro tempo andava tudo protegido por Deus. Hoje ninguém tem féi...

ANTÓNIA DE LURDES MARTA OLIVEIRA n. 11/02/1929, Vila Verde de Ficalho.

Doméstica, 3.ª Classe.

Fontes: Disse-nos que era sua mãe que lhe contava os contos. Local e data de recolha: Vila Verde de Ficalho, Junho de 2000. Forma de Recolha: audiocassete.

Referências

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