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Processo 14563/19.3T8SNT.L1-9 Data do documento 2 de julho de 2020 Relator Abrunhosa De Carvalho

TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA | PENAL

Acórdão

DESCRITORES

Ofensa à integridade física > Poder dever de correcção a filho menor > Exclusão da ilicitude da conduta

SUMÁRIO

Embora a conduta da mãe que, agindo com a intenção de corrigir a atitude desrespeitosa do filho, dá uma bofetada na cara deste, que tem 15 anos de idade, porque não só não obedeceu à ordem para se retirar para o quarto, como se dirigiu em atitude fisicamente agressiva à sua mãe, preencha, em abstracto, os elementos do tipo da ofensa à integridade física, a ilicitude dessa conduta está excluída, nos termos do art.º 31º/1/2-b) do CP.

TEXTO INTEGRAL

Nos presentes autos de recurso, acordam, em audiência, os Juízes da 9ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

No Juízo Local Criminal de Sintra, por sentença de 13/01/2020, constante de fls. 245/262, foi a Arg.[1] AA, com os restantes sinais dos autos (cf. TIR[2] de fls. 57/58[3]) condenada nos seguintes termos:

“… Face ao exposto, julgo a acusação parcialmente procedente, por parcialmente provada, e, em consequência, decido:

A) ABSOLVER a arguida AA da prática, como autor material, do crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.ºs 1, alínea d), 2, 4, 5 e 6 do Código Penal, de que se encontrava acusada; B) CONDENAR a arguida AA pela prática, em autoria material, de um crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punido pelo artigo 143.º, n.º 1 do Código Penal, na pena de 50 (cinquenta) dias de multa, à taxa diária de € 6,00 (seis euros), o que perfaz o montante global de € 300,00 (trezentos euros). *

Custas criminais pela arguida, fixando-se a taxa de justiça em 2 UC’s …”. *

(2)

Não se conformando, a Arg. interpôs recurso da referida decisão, com os fundamentos constantes da motivação de fls. 267/279, com as seguintes conclusões:

“… A. O presente recurso tem como objeto a matéria de direito da sentença proferida nos autos, a qual condenou a arguida pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punido pelo art. 143.º, n.º 1 do Código Penal, na pena de 50 (cinquenta) dias de multa, à taxa diária de €6,00 (seis). B. O tribunal a quo deu, designadamente, como provado que:

...

C. Porém, importa, desde logo, atender ao caso concreto e analisar a questão de saber qual a fronteira entre poder-dever de educar e o crime de ofensa à integridade física,

D. O artigo 1878.º do CC estabelece como conteúdo das responsabilidades parentais, “velar pela segurança e saúde (...), prover ao seu sustento, dirigir a sua educação, representá-los (...) e administrar os seus bens”.

E. Do qual se destaca o poder dever de educar que encontra assento no artigo 1885.º do CC e que PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA (código civil anotado; Vol. V) definem como “educar é (...) preparar o menor para a autonomia, para a independência (...) mas preparar para a vida numa sociedade civilizada, que tem regras necessárias de conduta individual e social”.

F. E no qual se poderá incluir o “poder de correção” numa perspetiva restritiva, que depende do preenchimento de um conjunto de exigentes pressupostos, a fim de garantir os direitos e a dignidade das crianças.

G. Neste sentido, FIGUEIREDO DIAS, TAIPA DE CARVALHO e PINTO DE ALBUQUERQUE que consideram que o poder de correção pode configurar, desde que preenchidos determinados requisitos, uma causa de exclusão de ilicitude de determinadas condutas castigadoras que, porque típicas, deveriam ser tidas como ilícitas.

H. De entre os quais se podem mencionar os seguintes: (i) Que o agente tenha agido com uma finalidade meramente educativa; (ii) Que o castigo seja aplicado de forma criteriosa e proporcional, devendo ser leve; (iii) A necessidade de moderação na aplicação do castigo, não colocando em causa os direitos e a dignidade da criança.

I. Devendo-se ainda atentar à situação do caso concreto e respetivas circunstâncias, revelando-se o castigo necessário, adequado, proporcional e razoável.

J. E, neste conspecto, importa, desde logo, atentar à conduta do assistente que, reiteradamente, contestou as explicações apresentadas pela sua mãe quanto à demora do seu companheiro em chegar para irem jantar, “de modo agressivo” conforme declarações da arguida ao minuto 11:42 da gravação 20191127145944_4263090_2871311.

K. E na postura desafiadora assumida pelo assistente que provoca a sua mãe (arguida) com diferentes expressões como “Ao menos eu pago as minhas dívidas quando as tenho (…) ao minuto 3:03 da gravação 20191127153652_4263090_2871311 e “cresce” na sua direção,

L. Conforme declarações da aqui Arguida “Ele vem direito a mim a crescer a olhar para mim assim. o BB tem mais corpo e altura que eu já não era a primeira vez que ele tinha feito isto (…) quando ele me faz isto eu dou lhe assim uma estalada …” ao minuto 13:10 da gravação 20191127145944_4263090_2871311.

(3)

M. E do próprio assistente que aquando da questão sobre se discute com a sua mãe refere “ tento sempre ganhar a discussão mostrar à mãe que tenho razão ahh mas é tudo oral e nunca passou para o físico excepto a vez que eu fiz peito ou cresci para ela nessa situação de Março…” ao minuto 16:48 da gravação 20191127153652_4263090_2871311.

N. Bem como da testemunha, irmã do assistente, “eu ouvi-os a discutir (…) ele estava sempre a insistir quando é que chega, quando é que chega, quando é que chega (…)” ao minuto 5:43 da gravação 20191205142409_4263090_2871311.

O. Referindo ainda, quando questionada sobre se alguma vez viu o seu irmão perante o desacordo a “crescer” para mãe: “eu vi o BB a fazer frente à mãe (…) a mãe dizer alguma coisa para o Ari e o Ari olhar nos olhos da mãe por exemplo para dentro mesmo a dizer que eu não tenho medo não tenho medo (…) mostra que não tem medo do que a mãe vai dizer ou fazer e é capaz de dizer coisas” ao minuto 12:07 da gravação 20191205142409_4263090_2871311.

P. Conduzindo a uma situação limite e pontual, que culmina numa única bofetada desferida na face do menor de 17 anos, da qual não resultaram danos significantes,

Q. Pelo que estamos perante uma ofensa proporcional, moderada e leve, fundamentada numa finalidade meramente educativa, motivada por um sentimento de impotência e de prevenção geral,

R. Perante um filho que não respeita a sua mãe, reiteradamente, afrontando-a e com uma compleição física visivelmente superior à da sua mãe (estatura e corpulência) cerca de 1,80m/80kg o assistente e 1,55m/55kg a arguida.

S. Pelo que a arguida com a sua conduta não pretendeu atingir a saúde e bem- estar do menor, e, consequentemente, não violou o princípio da dignidade da pessoa humana.

T. Tendo apenas e tão só a intenção de educar o seu filho, que esgotada a vertente do diálogo persiste em desrespeitar a sua mãe.

U. In casu conforme douta sentença “estamos perante um acto isolado, perpetrado num contexto de discussão e em que o assistente adopta uma postura desafiadora perante a arguida, sua mãe. (…) a agressão perpetrada pela arguida traduziu-se numa única bofetada, não se tendo apurado que da mesma tenham resultado lesões mais gravosas”.

V. Relevando para a análise a intensidade e gravidade do castigo, o motivo que lhe deu causa, a idade (17 anos) e constituição física do assistente.

W. Sendo que, o problema manifesta-se quando as situações ocorridas não se enquadram num contexto educativo, mas de violência e agressividade com vista à lesão do corpo ou saúde da criança.

X. Assumindo, apenas nestes casos (fora do intuito educativo), relevância penal.

Y. Concluindo-se, numa valoração global da conduta da aqui arguida, por uma ofensa jurídico-penalmente irrelevante e, portanto, atípica, destituída de dignidade penal.

Z. Ou caso assim não se entenda, sem conceder, lícito, nos termos do artigo 31.º do Código Penal, por ocorrência de uma causa de exclusão da ilicitude.

AA. Porquanto, deve o douto acórdão proferido pelo tribunal a quo ser revogado no sentido supra exposto, assim se fazendo justiça.

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“persiga” processualmente todo o e qualquer caso de castigo corporal que surja.

TERMOS EM QUE E NOS DEMAIS DE DIREITO, DEVE O PRESENTE RECURSO SER JULGADO PROCEDENTE E EM CONSEQUÊNCIA:

A) SER A ARGUIDA ABSOLVIDA DA PRÁTICA DO CRIME DE OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA SIMPLES, PREVISTO E PUNIDO PELO ART. 143.º, N.º 1 DO CÓDIGO PENAL,

B) E, CONSEQUENTEMENTE, DA PENA APLICADA DE 50 (CINQUENTA) DIAS DE MULTA, À TAXA DIÁRIA DE €6,00 (SEIS).

FAZENDO-SE, ASSIM, A HABITUAL E NECESSÁRIA JUSTIÇA. …”. *

A Exm.ª Magistrada do MP[4] respondeu ao recurso, a fls. 285/286, concluindo da seguinte forma: “… 1- A decisão recorrida não merece censura.

2- Devendo ser mantida na integra. …”. *

Neste tribunal, a Exm.ª Procuradora-Geral Adjunta emitiu o parecer de fls. 292, em suma, subscrevendo a posição assumida pelo MP na 1ª instância e pugnando pela improcedência do recurso.

*

A sentença (ou acórdão) proferida em processo penal integra três partes distintas: o relatório, a fundamentação e o dispositivo. A fundamentação abrange a enumeração dos factos provados e não provados relevantes para a decisão e que o tribunal podia e devia investigar; expõe os motivos de facto e de direito que fundamentam a mesma decisão e indica, procedendo ao seu exame crítico e explanando o processo de formação da sua convicção, as provas que serviram para fundamentar a decisão do tribunal. Tais provas terão de ser produzidas de acordo com os princípios fundamentais aplicáveis, ou seja, os princípios da verdade material; da livre apreciação da prova e “in dubio pro reo”. Igualmente é certo que, no caso vertente, tendo a prova sido produzida em sede de audiência de julgamento, está sujeita aos princípios da publicidade bem como da oralidade e da imediação.

O tribunal recorrido fixou da seguinte forma a matéria de facto: “… Factos provados

Da prova produzida e com interesse para a boa decisão da causa resultou provado que:

1) O ofendido BB, nascido em ………../2002 e CC, nascida em ………..2005 são filhos da arguida AA.

2) Desde data não concretamente determinada, mas que se situa no ano de 2012, foi fixada no processo de Regulação das Responsabilidades Parentais, a guarda conjunta dos menores, com residência semanal alternada, passando os mesmos uma semana na residência da progenitora e a outra semana na residência do progenitor.

3) No dia 10/03/2018, cerca das 20h00m, o menor e a arguida iniciam uma discussão, motivada pelo facto daquele se encontrar desagradado por ter que esperar pelo companheiro da arguida para irem jantar. 4) No decurso da aludida discussão, após a arguida o mandar para o quarto, o menor dirige-se àquela, proferindo expressões de teor não concretamente apurado, e começa a “crescer” na sua direcção.

5) Nesta sequência, a arguida desferiu uma bofetada na face do menor.

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casa de morada de família.

7) A arguida sabia que a sua conduta descrita em 3) era proibida e punida por lei e, ainda assim, prosseguiu os seus intentos, actuando da forma supra descrita.

Mais se provou que:

8) A arguida tem os seguintes antecedentes criminais registados:

- no processo n.º 4665/07.4TDLSB, por sentença datada de 11/05/2009, transitada em julgado em 05/07/2010, foi condenada pela prática, em 29/12/2006, de um crime de difamação e de um crime de denúncia caluniosa, na pena única de 100 dias de multa, à taxa diária de € 6,00 – pena que foi substituída pela prestação de trabalho a favor da comunidade e se encontra extinta pelo cumprimento;

- no processo n.º 2248/06.5GFSNT, por sentença datada de 07/06/2011, transitada em julgado em 04/07/2011, foi condenada pela prática, em 12/10/2006, 20/09/2006 e 12/11/2006, de um crime de injúria e dois crimes de ofensa à integridade física simples, na pena única de 150 dias de multa, à taxa diária de € 6,00 – pena que foi substituída pela prestação de trabalho a favor da comunidade e se encontra extinta por prescrição.

9) A arguida trabalha como cabeleireira de cães, por conta própria, auferindo rendimentos variáveis, que em média oscilam entre os € 300,00 por mês na época baixa e os € 1.200,00 na época alta.

10) Vive com a filha, estudante, e o companheiro, que trabalha em webdesign, em casa arrendada, sendo de € 700,00 por mês o valor da renda mensal.

11) A renda da casa e as despesas domésticas são asseguradas pelo rendimento do companheiro da arguida.

12) De habilitações literárias tem o 9.º ano de escolaridade.

13) Após os factos descritos em 3), o assistente passou a viver com o pai, mantendo apenas contactos pontuais com a mãe.

*

Factos não provados

Com interesse para a boa decisão da causa não se provou que:

A) Com as condutas descritas, a arguida AA agiu movida pelo sentimento de impunidade que a tenra idade do ofendido e relação familiar que mantinha com o mesmo lhe proporcionavam, tendo consciência de que esses factores tornavam BB numa pessoa especialmente vulnerável.

B) A arguida agiu com o propósito concretizado de atingir a dignidade humana do menor BB. ***

A demais matéria alegada por referência à arguida (sendo certo que os autos apenas prosseguiram para apuramento da responsabilidade criminal da mesma), concretamente a descrita sob os pontos 4) e 5) da acusação pública, não foi atendida, considerando-se não escrita, por ser conclusiva, vaga, imprecisa e genérica.

Com efeito, atendendo à estrutura do processo penal, impõe-se como nível de exigência mínimo que os factos imputados sejam claros, concretos, precisos e, tanto quanto possível, completos, de forma a que o arguido deles se possa eficazmente defender, o que não sucede com a descrita matéria – veja-se, neste sentido, entre outros, a propósito de situações de contornos aproximados com aquela de que ora cuidamos

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(em que também estavam em causa crimes de violência doméstica), o Ac. do TRP de 08/07/2015, proc. n.º 1133/13.9PHMTS.P1, e o Ac. do TRE de 01/10/2013, proc. n.º 948/11.7PBSTR.E1, ambos disponíveis em www.dgsi.pt. Isso mesmo vem sendo afirmado de modo lapidar pelo STJ, como sucedeu no Ac. de 21/02/2007 (proc. 06P3932, com sumário publicado em www.dgsi.pt), onde se ponderou que “não são factos susceptíveis de sustentar uma condenação penal as imputações genéricas, em que não se indica o lugar, nem o tempo, nem a motivação, nem o grau de participação, nem as circunstâncias relevantes, mas um conjunto fáctico não concretizado, visto que as afirmações genéricas não são susceptíveis de impugnação, (…), sendo que a aceitação das afirmações genéricas como «factos» inviabiliza o direito de defesa que ao arguido assiste, constituindo grave ofensa aos direitos constitucionais previstos no art. 32.° da CRP.”.

É precisamente esse o caso da matéria acima discriminada, que é absolutamente omissa quanto à data, regularidade (diária, semanal, mensal, anual ou outra?), contexto (no decurso de discussões?), modo, circunstâncias envolventes ou local (no interior da residência ou noutro local?) onde ocorreram os descritos factos imputados de modo genérico à arguida, pelo que não pode ter-se a mesma como juridicamente relevante, o que justifica que não tenha a mesma sido atendida pelo Tribunal.

A restante factualidade alegada, designadamente em sede de contestação, não levada aos factos provados e não provados, não tendo sido atendida, por se ter por conclusiva ou irrelevante para a boa decisão da causa. …”.

*

Como dissemos, o art.º 374º/2 do CPP[5] determina que, na sentença, ao relatório se segue a fundamentação que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.

A redacção deste preceito inculca a ideia, que a obediência a regras de bom senso, clareza e precisão apoiam, de que a fundamentação da decisão se repartirá pela enumeração dos factos provados, depois dos não provados e, seguidamente, pela exposição dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão com o exame crítico das provas.

Necessário e imprescindível é que o tribunal indique os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência se possa controlar a razoabilidade da convicção sobre o julgamento do facto provado ou não provado[6].

No cumprimento desse dever, o tribunal recorrido fundamentou a sua decisão de facto da seguinte forma: “… Para a formação da sua convicção, o Tribunal procedeu ao exame da prova produzida em audiência de julgamento bem como dos documentos juntos aos autos, tendo-os tido em consideração após uma análise global, conjugada e crítica, segundo as regras expressas no artigo 127.º do Código do Processo Penal, isto é, tendo em atenção o princípio de que a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador.

Relevaram em particular e desde logo as declarações da arguida, a qual assumiu na sua essência os factos vertentes, nos moldes dados como provados, esclarecendo o contexto em que os mesmos ocorreram,

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relato que se revelou espontâneo e frontal, pelo que mereceu credibilidade.

Acresce que o assistente, BB, apresentou uma versão que se mostrou globalmente coincidente com aquela, sustentando, porém, que apenas “cresceu” para a mãe na sequência da bofetada desferida por aquela. Ora, neste circunspecto mereceu credibilidade a versão da arguida, a qual se revelou mais consistente e compatível com a postura de afronta e desafio assumida pelo assistente perante aquela e com a dinâmica dos factos descrita, sendo certo que a arguida apenas conseguiria desferir a bofetada tendo o assistente de frente para si. Acresce que nenhuma outra testemunha revelou conhecimento cabal de tais factos. Na verdade, apenas CC, filha da arguida e irmã do ofendido, estava presente no momento da ocorrência do descrito episódio, mas não se revelou capaz de esclarecer de modo circunstanciado o modo como os mesmos ocorreram, circunstância a que não será alheia a sua idade e posicionamento relativamente à situação e aos envolvidos.

Mais se atendeu ao teor de fls. 25 a 35, correspondente à cópia da conversação mantida via facebook entre o assistente e o pai imediatamente após a situação vertente, para circunstanciação temporal dos factos. Relevou ainda a cópia do assento de nascimento do assistente de fls. 114 para prova da data de nascimento e relação familiar entre este e a arguida.

Quanto aos demais factos imputados à arguida, como acima se referiu, os mesmos não foram atendidos, por serem vagos, conclusivos e genéricos. É certo que a arguida assumiu que, pelo menos numa outra situação, quando o menor tinha 13 anos, lhe desferiu uma bofetada, desavença o mesmo também referiu, mas ambos descreveram contextos absolutamente díspares quanto à ocorrência de tais factos, não permitindo ao Tribunal formar uma convicção segura relativamente ao que efectivamente ocorreu, em termos de permitir aferir da sua relevância criminal. Neste particular cumpre, porém, referir que o relato apresentado pelo assistente se revelou empolado e pouco circunstanciado, não esclarecendo nem as razões nem o contexto concreto em que a arguida teria assumido a conduta particularmente violenta que descreveu, não deixando de estranhar-se que o mesmo recorde com precisão não só o número de estalos (sete, como enfatizou), mas ainda que semelhantes actos não tenham deixado quaisquer marcas físicas, como reconheceu.

Sob outra perspectiva, se bem que a arguida igualmente assuma que chegou a dizer ao assistente que era “igual ao pai”, nem aquela nem o assistente lograram concretizar o circunstancialismo em que tal expressão foi proferida, de molde a conferir-lhe relevância autónoma.

A testemunha PP, pai do assistente, apesar de ter aludido a episódios de agressões prestou um depoimento vago e parcial, a que não será alheia a conflitualidade que mantém com a arguida e a divergência que existe entre ambos, desde logo em termos educativos, pelo que o seu depoimento não foi de molde a permitir um maior esclarecimento ou concretização dos factos.

Por sua vez, as testemunhas TT, assistente social que acompanha o agregado familiar, revelou não ter conhecimento efectivo dos factos sob apreço, o mesmo sucedendo com a testemunha II, amiga de longa data da arguida.

Os factos atinentes ao elemento subjectivo foram considerados provados tendo por base a concreta conduta perpetrada pela arguida, bem como o contexto em que o foram, considerando o normal devir dos acontecimentos. Por outro lado, qualquer cidadão medianamente diligente e sagaz, como revelou ser a

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arguida, sabe que os factos apurados constituem crime. Donde, neste circunspecto, apenas não se provou que a arguida tenha agido movida pelo sentimento de impunidade que a tenra idade do ofendido e relação familiar que mantinha com o mesmo lhe proporcionavam, tendo consciência de que esses factores tornavam BB numa pessoa especialmente vulnerável, o que, aliás, não é compatível com a sua postura, bem patente na conversação de fls. 25 a 35, e compleição física, ou que tenha agido com o propósito concretizado de atingir a dignidade humana daquele, asserção que não tem correspondência nos factos objectivos apurados, atenta a sua concreta natureza.

A prova dos antecedentes criminais foi aferida tendo por base o teor do CRC junto aos autos, emitido a 18/12/2019.

As condições sócio-económicas da arguida resultaram das suas próprias declarações, que não afrontam as regras da normalidade social e da experiência comum nem resultam contrariadas por qualquer elemento de prova produzido nos autos, pelo que mereceram credibilidade. …”.

*

É pacífica a jurisprudência do STJ[7] no sentido de que o âmbito do recurso se define pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação[8], sem prejuízo, contudo, das questões do conhecimento oficioso.

Da leitura dessas conclusões e tendo em conta as questões de conhecimento oficioso, afigura-se-nos que as questões fundamentais a decidir no presente recurso são as seguintes:

I – Impugnação da matéria de facto; II - Tipificação da conduta da Arg.. *

Cumpre decidir.

I –Embora a Recorrente afirme que só pretende recorrer da matéria de direito, na verdade, impugnou a matéria de facto, quanto à intenção com que agiu, como resulta das conclusões J a O, S e T.

Uma vez que a Recorrente entende que foi mal julgada a matéria de facto, o que invocam é a existência de erro na avaliação dos depoimentos e declarações dos intervenientes, bem como da restante prova produzida em audiência ou constante dos autos.

A garantia do duplo grau de jurisdição não subverte o princípio da livre apreciação da prova pelo juiz. Este princípio da livre apreciação da prova está consagrado no art. 127º do CPP nos seguintes termos «... a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente».

E embora este Tribunal da Relação tenha poderes de intromissão em aspectos fácticos (art.ºs 428º e 431º/b) do CPP), não pode sindicar a valoração das provas feitas pelo tribunal em termos de o criticar por ter dado prevalência a uma em detrimento de outra, salvo se houver erros de julgamento e as provas produzidas impuserem outras conclusões de facto[9],[10],[11].

A garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência - visando apenas a detecção e correcção de pontuais, concretos e seguramente excepcionais erros de julgamento, incidindo sobre pontos determinados da matéria de facto[12].

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a relevância que têm para a formação da convicção do julgador «elementos intraduzíveis e subtis», tais como «a mímica e todo o aspecto exterior do depoente» e «as próprias reacções, por vezes quase imperceptíveis, do auditório» que vão agitando o espírito de quem julga (no mesmo sentido Castro Mendes, Direito Processual Civil, 1980, vol. III, pág. 211, para acrescentar depois, a págs. 271, que «existem aspectos comportamentais ou reacções dos depoentes que apenas podem ser percebidos, apreendidos, interiorizados ou valorizados por quem os presencia e que jamais podem ficar gravados ou registados para aproveitamento posterior por outro tribunal que vá reapreciar o modo como no primeiro se formou a convicção dos julgadores»)[13].

O que é necessário e imprescindível é que, no seu livre exercício de convicção, o tribunal indique «os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela convicção sobre o julgamento do facto como provado ou não provado». E, convém referir que, quando o tribunal recorrido forma a sua convicção com provas não proibidas por lei, prevalece a convicção do tribunal sobre aquelas que formulem os Recorrentes.

Normalmente, os erros de julgamento capazes de conduzir à modificação da matéria de facto pelo tribunal de recurso consistem no seguinte: dar-se como provado um facto com base no depoimento de uma testemunha que nada disse sobre o assunto; dar-se como provado um facto sem que tenha sido produzida qualquer prova sobre o mesmo; dar-se como provado um facto com base no depoimento de testemunha, sem razão de ciência da mesma que permita a referida prova; dar-se como provado um facto com base em prova que se valorou com violação das regras sobre a sua força legal[14]; dar-se como provado um facto com base em depoimento ou declaração, em que a testemunha, o arguido ou o declarante não afirmaram aquilo que na fundamentação se diz que afirmaram; dar-se como provado um facto com base num documento do qual não consta o que se deu como provado; dar-se como provado um facto com recurso à presunção judicial fora das condições em que esta podia operar.

No presente caso, conforme resulta da fundamentação supra transcrita, o tribunal recorrido lançou mão da presunção judicial para dar como provado que “Com a conduta descrita, a arguida quis e conseguiu molestar fisicamente o menor ..., no interior da casa de morada de família.” e que “... sabia que a sua conduta ... era proibida e punida por lei e, ainda assim, prosseguiu os seus intentos, actuando da forma supra descrita.”.

O que é perfeitamente aceitável e acontece normalmente na prática judiciária, porque a intenção com que se age e o dolo[15], quando não confessados, porque elementos da subjectividade humana, são revelados por outros elementos objectivos apurados, ou seja por presunção[16].

Presunções judiciais são as que, assentando no simples raciocínio de quem julga, decorrem das máximas da experiência, dos juízos correntes de probabilidade, dos princípios da lógica ou dos próprios dados da intuição humana – art.º 349º e 351º do CC[17],[18], e o recurso a estas presunções é perfeitamente constitucional[19] e legítima em processo penal[20],[21],[22],[23], podendo, inclusivamente, os Tribunais da Relação, quando esteja em causa a matéria de facto, fazer uso dessas presunções, para dar como provados/indiciados ou não provados/indiciados factos que o não vinham da 1ª instância[24].

Mas o recurso às presunções judiciais tem regras[25].

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com o filho, em que este, desobedecendo à ordem para ir para o seu quarto, se dirigiu à Arg., em atitude corporalmente agressiva e desafiadora, esta deu-lhe uma bofetada na cara) retirou os fatos relativos aos elementos subjectivos do tipo da ofensa à integridade física.

Resulta do princípio in dubio pro reo[26], dir-se-á, em síntese, que quando o tribunal fica na dúvida quanto à ocorrência de determinado facto, deve daí retirar a consequência jurídica que mais beneficie o arguido. Mas para que a dúvida seja relevante para este efeito, há-de ser uma dúvida razoável, uma dúvida fundada em razões adequadas e não qualquer dúvida (Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, I, p. 205)[27]. O presente caso, não só não é evidente que a Arg. tivesse que saber que a sua conduta era proibida por lei (porque os métodos educativos com recurso à punição física são ainda muito aceites na comunidade, mais ainda nas camadas de menor nível sócio-económico, e porque certamente, terá sido objecto desses métodos educativos, sendo as pessoas têm tendência a reproduzir os métodos educativos que lhes foram aplicados[28]), como porque a intenção de molestar fisicamente o filho não é a única causa provável para a sua acção, sendo admissível que tenha agido com a intenção de corrigir a atitude reprovável deste, convencida que essa acção era legítima.

Não pode, pois, dizer-se que o cidadão médio tem a consciência de que é sempre ilícito o uso de punição física como método educativo.

Pode-se dizer que, na normalidade dos casos, quem dá uma bofetada sabe que esta causa algum grau de sofrimento físico, pelo que, havendo dúvidas quanto ao dolo da Arg. e aplicando o princípio in dubio pro reo, o que se pode concluir com suficiente segurança, por presunção judicial, é que agiu com intenção de corrigir a atitude reprovável do filho, conformando-se com a necessária consequência da sua conduta: o sofrimento físico que tal bofetada causou neste.

Alteraremos, pois, a matéria de facto fixada no facto provado 6), passando este a ter a seguinte redacção: “A Arg. agiu livre e conscientemente com a intenção de corrigir a atitude desrespeitosa do seu filho, conformando-se com o sofrimento físico que tal bofetada necessariamente causaria”.

Por aplicação do mesmo princípio, daremos como não provado que tenha agido sabendo que a sua conduta era proibida por lei.

É, pois, procedente, nesta parte, o recurso. *

II – Entende a Recorrente que a sua conduta não preenche os elementos do tipo pelo qual vem condenada. São elementos do tipo de ofensa simples à integridade física, p. e p.[29] pelo art. 143º do CP[30], a ofensa no corpo ou na saúde de outrem.

Esta ofensa é qualquer alteração desfavorável produzida no organismo de outrem, anatómica ou funcional, local ou generalizada, de natureza física ou psíquica, seja qual for o meio empregado para a produzir. Não se exige a existência de dor ou de lesão externa[31].

Quanto aos elementos subjectivos do tipo, é um crime doloso.

Atenta a matéria de facto que fixamos, a conduta da Arg. integraria a prática de um crime deste tipo, com dolo necessário (art.º 14º/2 do CP).

A jurisprudência vem-se firmando no sentido de que a punição física de um filho constitui sempre a prática de, pelo menos, um crime de ofensa à integridade física[32].

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Já alguma doutrina admite, em certos casos, que a punição física não constitua crime[33],[34].

Não concordamos com a jurisprudência maioritária, por entendermos que, embora desejável, a abolição completa da punição física, não corresponde ao estado actual da consciência jurídica da generalidade da população, não só por desconhecimento ou crença (para que se atinja um tal estado é necessário, como diz vária doutrina, que se faça uma campanha publica de esclarecimento e capacitação), como, muitas vezes, por falta de recursos educativos alternativos.

Pelo contrário, subscrevemos a posição defendida por Leandra Correia[35], no sentido de que “... a aplicação de CF pelos progenitores deve considerar-se justificada, contudo a exclusão da ilicitude só ocorrerá quando verificados um conjunto de pressupostos que só num juízo casuístico, perante uma situação concreta, poderão ser aferidos.

Em primeiro lugar avançamos dois pressupostos subjetivos: 1. legitimidade do agente;

2. finalidade/intenção educativa por parte do aplicador, não podendo ser uma forma de descarregar tensões ou raiva, nem uma forma de prevenção geral/ intimidação aplicando um castigo a um filho de forma a que os restantes aprendam.

Em segundo lugar, como requisitos objetivos consideramos que o CF deve ser:

1. proporcional - entre a gravidade da falta do menor e a intensidade do castigo, nunca podendo ultrapassar o limite do razoável suscetível de colocar em causa a dignidade do menor por mais grave que tenha sido a falta cometida, não podendo ser um castigo violento e abusivo;

2. adequado - ter em consideração a idade, grau de maturidade, grau de discernimento e desenvolvimento, tendo sempre em atenção eventuais patologias do menor (...) (somos da opinião que quando estamos perante, por exemplo, uma criança hiperativa a aplicação de CF por parte dos pais dever ser alvo de um juízo mais criterioso);

3. necessário - consideramos que se devem privilegiar métodos positivos de educação como o diálogo, devendo partir-se de uma mera advertência ao menor e apenas mediante reiteração do comportamento, em ultimo recurso se devem aplicar CF;

4. atual - consideramos que os educadores apenas devem lançar mão do seu direito de correção, aplicando CF quando, a falta cometida pelo menor, justificativa da conduta dos pais, tiver ocorrido num curto espaço de tempo pois, quanto mais dilatado for este, menos efeitos produz, principalmente quanto mais pequena for a criança, dada a propensão para o rápido esquecimento.

...

esta questão deve ser resolvida mediante de uma análise casuística, através da averiguação se, no caso concreto, o agente atuou ao abrigo de uma eventual causa de exclusão da ilicitude da conduta, nos termos do art.31º nºs 1 e 2 al. b) do CP. ...”.

Aplicando estes entendimento e parâmetros ao nosso caso, entendemos que a punição física que a Arg. infligiu ao seu filho, cumpre os pressupostos para considerarmos excluída a ilicitude desses factos, nos termos do art.º 31º/1/2-b) do CP (exercício de um direito).

Na verdade, a punição foi legítima, porque a Arg. é mãe do Assistente e partilhava a sua guarda conjunta alternada com o pai; agiu com a intenção de corrigir a atitude desrespeitosa do filho; uma bofetada foi um

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castigo leve e proporcional à atitude desrespeitosa do filho (que não só não obedeceu à ordem para se retirar para o quarto, como se dirigiu em atitude fisicamente agressiva à sua mãe); adequada, atenta a idade do filho; necessária, uma vez que o filho não aceitou a advertência verbal; actual, uma vez que produzida no momento imediatamente seguinte ao comportamento do filho.

Concluímos, assim, que embora a conduta da Arg. preencha, em abstracto, os elementos do tipo da ofensa à integridade física, a ilicitude dessa conduta está excluída, nos termos do art.º 31º/1/2-b) do CP, pelo que não pode deixar de ser procedente o recurso.

*****

Nestes termos e nos mais de direito aplicáveis, julgamos provido o recurso e, consequentemente, decidimos:

a) Alterar a matéria de facto provada, passando o facto provado 6) a ter a seguinte redacção : “A Arg. agiu livre e conscientemente com a intenção de corrigir a atitude desrespeitosa do seu filho, conformando-se com o sofrimento físico que tal bofetada necessariamente causaria.” e dando como não provado o facto 7); b) Absolver a Arg. da prática do crime pelo qual vinha condenada.

* Sem custas. * Notifique. D.N.. *****

Elaborado em computador e integralmente revisto pelo relator (art.º 94º/2 do CPP). *****

Lisboa,2/07/2020 Abrunhosa de Carvalho Maria Leonor Botelho

_______________________________________________________ [1] Arguido/a/s.

[2] Termo/s de Identidade e Residência. [3] Prestado em 23/10/2018.

[4] Ministério Público.

[5] Código de Processo Penal.

[6] Relativamente à fundamentação de facto, cf. a jurisprudência plasmada no Ac. STJ de 17/11/1999, relatado por Martins Ramires, in CJSTJ, III, p. 200 e ss., do qual citamos: “O entendimento do STJ sobre o cumprimento deste preceito encontra-se sedimentado: trata-se de exposição tanto quanto possível completa, mas concisa, dos motivos de facto e indicação das provas que serviram para formar a convicção do Tribunal, sem necessidade de esgotar todas as induções ou critérios de valoração das provas e contraprovas, mas permitindo verificar que a decisão seguiu um processo lógico e racional na apreciação da prova, não sendo ilógica, arbitrária contraditória ou violadora das regras da experiência comum ... .”. Também neste sentido, ver Maria do Carmo Silva Dias, in “Particularidades da Prova em Processo Penal.

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Algumas Questões Ligadas à Prova Pericial”, Revista do CEJ, 2º Semestre de 2005, pp. 178 e ss., bem como a doutrina e a jurisprudência constitucional citadas. No mesmo sentido, cf. Sérgio Gonçalves Poças, in “Da sentença penal – Fundamentação de facto”, revista “Julgar”, n.º 3, Coimbra Editora, p. 21 e ss..

Ver ainda José I. M. Rainho, in “Decisão da matéria de facto – exame crítico das provas”, Revista do CEJ, 1º Semestre de 2006, pp. 145 e ss. donde citamos: “Em que consiste portanto a especificação dos fundamentos que foram decisivos para a formação da convicção? Consiste simplesmente na indicação das razões fundamentais, retiradas a partir das provas segundo a análise que delas fez o julgador, que levaram o tribunal a assumir como real certo facto. Ou, se se quiser, consiste em dizer por que motivo ou razão as provas produzidas se revelam credíveis e decisivas ou não credíveis ou não decisivas. No primeiro caso o tribunal explica por que julgou provado o facto; no segundo explica por que não julgou provado o facto. … a motivação não tem porque ser extensa, de modo a significar tudo o que foi probatoriamente percepcionado pelo julgador. Pelo contrário, deve ser concisa, como é próprio do que é instrumental, conquanto não possa deixar de ser completa.”.

Ver, por último, o acórdão do Tribunal Constitucional de 17/01/2007, in DR, 2ª Série, n.º 39, de 23/02/2007, que decidiu, além do mais, “Não julgar inconstitucional a norma dos artigos 374.º, n.º 2, e 379.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal, interpretados no sentido de que não é sempre necessária menção específica na sentença do conteúdo dos depoimentos da arguida e das testemunhas de defesa.”.

[7] Supremo Tribunal de Justiça.

[8] “Cfr. Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 05.12.2007; proferido no proc. nº 1378/07, disponível in Sumários do Supremo Tribunal de Justiça; www.stj.pt. “O objecto do recurso é definido e balizado pelas conclusões extraídas da respectiva motivação, ou seja, pelas questões que o recorrente entende sujeitar ao conhecimento do tribunal de recurso aquando da apresentação da impugnação – art. 412.º, n.º 1, do CPP –, sendo que o tribunal superior, tal qual a 1.ª instância, só pode conhecer das questões que lhe são submetidas a apreciação pelos sujeitos processuais, ressalvada a possibilidade de apreciação das questões de conhecimento oficioso, razão pela qual nas alegações só devem ser abordadas e, por isso, só assumem relevância, no sentido de que só podem ser atendidas e objecto de apreciação e de decisão, as questões suscitadas nas conclusões da motivação de recurso, questões que o relator enuncia no exame preliminar – art. 417.º, n.º 6, do CPP –, a significar que todas as questões incluídas nas alegações que extravasem o objecto do recurso terão de ser consideradas irrelevantes. Cfr. ainda Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 24.03.1999, CJ VII-I-247 e de 20-12-2006, processo 06P3661 em www.dgsi.pt) no sentido de que o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas [Ressalvando especificidades atinentes à impugnação da matéria de facto, na esteira do doutrinado pelo acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17-02-2005, quando afirma que :“a redacção do n.º 3 do art. 412.º do CPP, por confronto com o disposto no seu n.º 2 deixa alguma margem para dúvida quanto ao formalismo da especificação dos pontos de facto que no entender do recorrente foram incorrectamente julgados e das provas que impõem decisão diversa da recorrida, pois que, enquanto o n.º 2 é claro a prescrever que «versando matéria de direito, as conclusões indicam ainda, sob pena de rejeição» (...), já o n.º 3 se limita a prescrever que «quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar (...), sem impor que tal aconteça nas conclusões.” -proc 04P4716, em www.dgsi.pt; no mesmo sentido o acórdão do Supremo

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Tribunal de Justiça de 16-06-2005, proc 05P1577,] (art.s 403º e 412º do Código de Processo Penal), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (art. 410º nº 2 do Código de Processo Penal e Acórdão do Plenário das secções criminais do STJ de 19.10.95, publicado no DR Iª série A, de 28.12.95).” (com a devida vénia, reproduzimos a nota 1 do acórdão da RC de 21/01/2009, relatado por Gabriel Catarino, no proc. 45/05.4TAFIG.C2, in www.dgsi.pt).

[9] Importa considerar que, como se afirma no Ac. do STJ de 17/02/2005, relatado por Simas Santos, in www.dgsi.pt, processo 04P4324, “1 - O recurso em matéria de facto para a Relação não constitui um novo julgamento em que toda a prova documentada é reapreciada pelo Tribunal Superior que, como se não tivesse havido o julgamento em 1.ª Instância, estabeleceria os factos provados e não provados e assim indirectamente validaria ou a factualidade anteriormente assente, mas é antes um remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir erros in judicando ou in procedendo, que são expressamente indicados pelo recorrente, com referência expressa e específica aos meios de prova que impõem decisão diferente, quanto aos pontos de facto concretamente indicados, ou com referência à regra de direito respeitante à prova que teria sido violada, com indicação do sentido em que foi aplicada e qual o sentido com que devia ter sido aplicada. 2 - Se o recorrente aceita que o teor expresso dos depoimentos prestados permite que a 1.ª Instância tenha estabelecido a factualidade apurada da forma como o fez e questiona tão só a credibilidade que, no seu entender, (não) deveria ter-lhes sido concedida, sem indicar elementos objectivos que imponham a sua posição, a sua pretensão fracassa pois a credibilidade dos depoimentos, quando estribadas elementos subjectivos e não objectivos é um sector especialmente dependente da imediação do Tribunal, dado que só o contacto directo com os depoentes situados na audiência de julgamento, perante os outros intervenientes é que permite formar uma convicção que não pode ser reproduzidas na documentação da prova e logo reexaminada em recurso. 3 - Se apesar de se esforçar, a 1.ª Instância não consegue estabelecer o motivo que levou o arguido a agir, mas estão presentes todos os elementos do respectivo tipo legal de crime, nenhuma dúvida se pode levantar sobre a culpabilidade do agente. …”. E no Ac. do STJ de 12/06/2008, relatado por Raul Borges, in www.dgsi.pt, processo 07P4375, de cujo sumário citamos: “I - A partir da reforma de 1998 passou a ser possível impugnar (para a Relação) a matéria de facto de duas formas: a já existente revista (então cognominada de ampliada ou alargada) com invocação dos vícios decisórios do art. 410.º, n.º 2, do CPP, com a possibilidade de sindicar as anomalias ou disfunções emergentes do texto da decisão, e uma outra, mais ampla e abrangente – porque não confinada ao texto da decisão –, com base nos elementos de documentação da prova produzida em julgamento, permitindo um efectivo grau de recurso em matéria de facto, mas impondo-se na sua adopção a observância de certas formalidades. II - No primeiro caso estamos perante a arguição dos vícios decisórios previstos nas als. a), b) e c) do n.º 2 do art. 410.º do CPP, cuja indagação, como resulta do preceito, apenas se poderá fazer através da leitura do texto da decisão recorrida, circunscrevendo-se a apreciação da matéria de facto ao que consta desse texto, por si só considerado ou em conjugação com as regras da experiência comum, sem possibilidade de apelo a outros elementos estranhos ao texto, mesmo que constem do processo. Nesta forma de impugnação os vícios da decisão têm de emergir, resultar do próprio texto, o que significa que os mesmos têm de ser intrínsecos à própria decisão como peça autónoma. III - No segundo caso, a apreciação já não se restringe ao texto da decisão, mas à análise do que se contém e

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pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre a partir de balizas fornecidas pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus imposto pelos n.ºs 3 e 4 do art. 412.º do CPP, tendo em vista o reexame dos erros de procedimento ou de julgamento e visando a modificação da matéria de facto, nos termos do art. 431.º, al. b), do mesmo diploma. IV - A alteração do art. 412.º do CPP operada em 1998 visou tornar admissível o recurso para a Relação da matéria de facto fixada pelo colectivo, dando seguimento à consagração do direito ao recurso resultante do aditamento da parte final do art. 32.º, n.º 1, da CRP na revisão da Lei Constitucional n.º 1/97, vindo a ser “confirmada” pelo acórdão de uniformização de jurisprudência n.º 10/2005, de 20-10-2005 (in DR, I Série-A, de 07-12-2005), que estabeleceu: «Após as alterações ao Código de Processo Penal, introduzidas pela Lei n.º 59/98, de 25/08, em matéria de recursos, é admissível recurso para o Tribunal da Relação da matéria de facto fixada pelo tribunal colectivo». V - Esta possibilidade de sindicância de matéria de facto, não sendo tão restrita como a operada através da análise dos vícios decisórios – que se circunscreve ao texto da decisão em reapreciação –, por se debruçar sobre a prova produzida em audiência de julgamento, sofre, no entanto, quatro tipos de limitações: - desde logo, uma limitação decorrente da necessidade de observância, por parte do recorrente, de requisitos formais da motivação de recurso face à imposta delimitação precisa e concretizada dos pontos da matéria de facto controvertidos, que o recorrente considera incorrectamente julgados, com especificação das provas e referência ao conteúdo concreto dos depoimentos que o levam a concluir que o tribunal julgou incorrectamente e que impõem decisão diversa da recorrida, com o que se opera a delimitação do âmbito do recurso; - já ao nível do poder cognitivo do tribunal de recurso, temos a limitação decorrente da natural falta de oralidade e de imediação com as provas produzidas em audiência, circunscrevendo-se o “contacto” com as provas ao que consta das gravações e/ou, ainda, das transcrições; - por outro lado, há limites à pretendida reponderação de facto, já que a Relação não fará um segundo/novo julgamento, pois o duplo grau de jurisdição em matéria de facto não visa a repetição do julgamento em 2.ª instância; a actividade da Relação cingir-se-á a uma intervenção cirúrgica, no sentido de restrita à indagação, ponto por ponto, da existência ou não dos concretos erros de julgamento de facto apontados pelo recorrente, procedendo à sua correcção se for caso disso, e apenas na medida do que resultar do filtro da documentação; - a jusante impor-se-á um último limite, que tem a ver com o facto de a reapreciação só poder determinar alteração à matéria de facto se se concluir que os elementos de prova impõem uma decisão diversa e não apenas permitem uma outra decisão. …”.

[10] Neste sentido, cf. ainda o Ac. do STJ de 25/03/1998, in BMJ 475/502, com anotação de que neste sentido se vinham orientando a doutrina e a jurisprudência.

[11] Neste sentido, ver também o Ac. RL, de 10/10/2007, relatado por Carlos Almeida, in www.dgsi.pt, processo 8428/2007-3, de cujo sumário citamos: “…XVII – No caso, embora a prova produzida e examinada na audiência permitisse, eventualmente, uma decisão em sentido diferente, ela não impunha decisão diversa da proferida, razão pela qual o recurso não pode ter provimento.”.

[12] No mesmo sentido, cf. o Ac. do STJ de 20/11/2008, relatado por Santos Carvalho, in www.dgsi.pt, processo 08P3269, de cujo sumário citamos: “I - O STJ tem reafirmado que o recurso da matéria de facto perante a Relação não é um novo julgamento em que a 2.ª instância aprecia toda a prova produzida e documentada em 1.ª instância, como se o julgamento ali realizado não existisse; antes é um remédio

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jurídico destinado a colmatar erros de julgamento, que devem ser indicados precisamente com menção das provas que demonstram esses erros. II - Conhecendo-se pela fundamentação da sentença o caminho lógico que, segundo a 1ª instância, levou à condenação do recorrente, deveria este ter-se limitado a sindicar os pontos de facto que nesse percurso foram erradamente avaliados, com a indicação das provas que impunham uma decisão diversa e com referência aos respectivos suportes técnicos. …”.

[13] Neste sentido, veja-se o acórdão da RG de 16/05/2016, relatado por João Lee Ferreira, no proc. 732/11.8JABRG.G1, com o seguinte sumário: “I) Na apreciação do depoimento das testemunhas e das declarações dos arguidos atribui-se relevância aos aspectos verbais, mas também se pode considerar a desenvoltura do depoimento, a comunicação gestual, o refazer do itinerário cognitivo, os olhares para os advogados e as partes, antes, durante e depois da resposta, os gestos, movimentos e toda uma série de circunstâncias insusceptíveis de captação por um registo áudio. Todos estes indicadores são importantes e podem ser reveladores do desconforto da mentira e da efabulação. II) A função do julgador consiste em determinar como os factos se passaram, raciocinando sempre entre os limites de racionalidade e da experiência comum. III) Exista ou não univocidade no teor dos depoimentos e declarações, o convencimento da entidade imparcial a quem compete julgar depende, assim, de uma conjugação de elementos tão diversos como a espontaneidade das respostas, a coerência e pormenorização do discurso, a emoção exteriorizada ou a consistência do depoimento pela compatibilidade com a demais prova relevante.”.

[14] Neste sentido, ver o acórdão da RP de 04/02/2016, relatado por Antero Luís, no proc. 23/14.2PCOER.L1-9, in www.dgsi.pt.

[15] Neste sentido cf. Ac. RP de 23/02/1993, in BMJ 324/620: “Dado que o dolo pertence à vida interior de cada um, é portanto de natureza subjectiva, insusceptível de directa apreensão. Só é possível captar a sua existência através de factos materiais comuns de que o mesmo se possa concluir, entre os quais surge com maior representação o preenchimento dos elementos integrantes da infracção. Pode comprovar-se a verificação do dolo por meio de presunções, ligadas ao princípio da normalidade ou das regras da experiência.”.

Ainda no mesmo sentido decidiu o Ac. do STJ de 11/12/1996, relatado por Joaquim Dias, in BMJ 462/207, de cujo sumário citamos: “Sendo o dolo um acto psíquico, porque ocorre no interior do sujeito, só é revelado indirectamente através de actos exteriores. Se a natureza do instrumento utilizado, a zona atingida e as características da lesão consentirem a ilação de que o arguido, agredindo a vítima, representou a morte desta como consequência possível da sua acção e agiu conformando-se com tal evento, estará fundamentada a existência de dolo eventual.”.

Ver também o acórdão da RC de 27/10/2010, relatado por Alice Santos, in www.gde.mj.pt, processo 132/08.7TASRE.C1, de cujo sumário citamos: “…2.Os factos integradores do tipo subjectivo de ilícito, v.g. relativos à intenção criminosa, normalmente não resultam provados através de prova directa, mas de prova indiciária. Na normalidade das situações, é da prova de factos materiais e objectivos, que não fazendo parte dos concretos factos integradores do tipo de ilícito que o tribunal, por inferência, no respeito das regras da lógica e da experiência comum, dará ou não como provados factos integradores do tipo subjectivo de ilícito.”.

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Ver ainda, no mesmo sentido, Antunes Varela/J. Miguel Bezerra/Sampaio e Nora, in “Manual de Processo Civil”, Coimbra Editora, 1984, a págs. 393.

[16] Mas, é necessário ter em conta que “I - “As regras da experiência são argumentos que ajudam a explicar o caso particular como instância daquilo que é normal acontecer”, mas “o caso particular pode ficar fora do caso típico” e “o juiz não pode confiar nas regras da experiência mais do que na própria averiguação do real concreto”, pois “a prova é particularística, sempre”. II - Embora o dolo se retire frequentemente dos factos externos e a prova dos atos interiores decorra da demonstração da conduta exterior do agente, tal não significa que assim seja necessariamente e o juiz não está dispensado de justificar, na sentença, autonomamente, a demonstração dos factos do dolo. III - Se o arguido nega o “saber” e “querer” de factos objetivos que praticou e apresenta explicação em concreto verosímil no contexto geral dos factos e das provas, é de reconhecer um peso contra-indiciante relevante a essas declarações, pelo que a ausência de “dúvida razoável” quanto aos factos do dolo do tipo fica por explicar na sentença e ocorre o erro de julgamento.” (Acórdão da RC de 23/02/2016, relatado por Ana Brito, no proc. 879/11.0PALGS.E1, in www.dgsi.pt)

[17] Código Civil.

[18] Cf. P. Lima e A. Varela, in "CC Anot.", I Vol., 4ª Ed., p. 312.

[19] Sobre a constitucionalidade do recurso a presunções judiciais em processo penal, ver Jorge Miranda e Rui Medeiros, in “Constituição Portuguesa Anotada”, Tomo I, Coimbra Editora, 2005, págs. 356/357, donde citamos: “... III - O princípio da presunção de inocência é também por vezes identificado com o da livre convicção do julgador, o que determinaria o pleno afastamento do âmbito do processo penal de toda a espécie de presunções legais. Não o cremos. As presunções fundam-se no senso comum, nas regras válidas da experiência, constituindo princípios de direito para a valoração da prova. Trata-se, a maioria das vezes, de uma vigilância moderada do juiz. As presunções não dispensam o tribunal de procurar a verdade e de assegurar ao arguido todos os meios práticos para demonstrar o infundado da presunção.

A regra é a da razão natural, mas em situações extremas, na dúvida impõe-se a presunção legal. ...”. Ver também o acórdão do TC n.º 391/2015, de 12/08/2015, relatado por João Cura Mariano, do qual citamos: “…Ora, na prova por utilização de presunção judicial, a qual pode sempre ser infirmada por contraprova, na passagem do facto conhecido para a prova do facto desconhecido, intervêm juízos de avaliação através de procedimentos lógicos e intelectuais que permitem fundadamente afirmar, segundo as regras da normalidade, que determinado facto, que não está diretamente provado é a natural consequência, ou resulta com toda a probabilidade próxima da certeza, ou para além de toda a dúvida razoável, de um facto conhecido. Quando o valor da credibilidade do id quod e a consistência da conexão causal entre o que se conhece e o que não se apurou de uma forma direta atinge um determinado grau que permite ao julgador inferir este último elemento, com o grau de probabilidade exigível em processo penal, a presunção de inocência resulta ilidida por uma presunção de significado contrário, pelo que não é possível dizer que a utilização deste meio de prova atenta contra a presunção de inocência ou contra o princípio in dubio pro reo. O que sucede é que a presunção de inocência é superada por uma presunção de sinal oposto prevalecente, não havendo lugar a uma situação de dúvida que deva ser resolvida a favor do Réu.

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Se, no caso concreto, houve lugar à utilização de presunções sem a necessária credibilidade ou consistência é uma questão que o Tribunal Constitucional não tem competência para avaliar.

Mas, no entender do Recorrente, a norma do artigo 127.º do Código de Processo Penal, na interpretação que lhe foi dada pela decisão recorrida, seria ainda inconstitucional, por violação “dos princípios do Estado de direito democrático, da vinculação à Lei e da fundamentação das decisões dos tribunais, consagrados respetivamente nos artigos 2.º, 203.º e 205.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa”.

O que está em causa na questão de constitucionalidade suscitada no presente recurso é, essencialmente, a alegada violação da exigência constitucional de fundamentação das decisões judiciais, consagrada no art. 205.º, n.º 1, da Constituição, o qual determina que "as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei".

Como já acima se disse, no ponto 2.2., constitucionalmente é exigível que na fundamentação seja visível uma racionalização dos motivos da decisão, revelando-se às partes e à comunidade o conhecimento das razões que subjazem ao concreto juízo decisório, devendo, para isso, a fundamentação revelar uma aptidão comunicativa na exteriorização das premissas que presidem à sua conclusão, assim como o respetivo juízo de valoração, de modo a transmitir, como condição de inteligibilidade, a intrínseca validade substancial do decidido.

Ora, tendo em consideração as características acima apontadas à utilização de presunções judiciais, verifica-se que a prova indireta ou por presunções assenta num processo lógico de inferência que não pode ser entendido como uma operação puramente subjetiva, emocional e imotivável, mas sim como uma valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, que permita ao julgador objetivar a apreciação dos factos e proceder a uma efetiva motivação da decisão. Daí que a utilização de presunções judiciais não seja incompatível com o dever de fundamentação das decisões judiciais, antes exigindo uma explicação mais rigorosa que seja claramente explicitadora do processo lógico que lhe é inerente.

Se no caso concreto o rigor exigível foi ou não observado já é uma questão que excede as competências do Tribunal Constitucional.

Por estas razões se conclui que a interpretação da norma constante do artigo 127.º do Código de Processo Penal, na interpretação de que a apreciação da prova segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador permite o recurso a presunções judiciais em processo penal não viola qualquer parâmetro constitucional. …”.

No mesmo sentido, Ac. do TC n.º 521/2018, de 17/10/2018, relatado por Gonçalo Almeida Ribeiro, que decidiu o seguinte: “... Não julgar inconstitucional, por violação dos princípios da presunção de inocência e da estrutura acusatória do processo penal, consagrados nos n.os 2 e 5 do artigo 32.º da Constituição, o artigo 125.º do Código de Processo Penal, na interpretação de que a prova indiciária e a prova por presunções judiciais são admissíveis em direito penal e em direito processual penal. ...”.

[20] Cf. neste sentido Ac. do STJ de 11/11/2004, relatado por Simas Santos, in www.gde.mj.pt, processo 04P3182, do qual citamos: “… O juízo valorativo do tribunal tanto pode assentar em prova directa do facto, como em prova indiciária da qual se infere o facto probando, não estando excluída a possibilidade do julgador, face à credibilidade que a prova lhe mereça e as circunstancias do caso, valorar

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preferencialmente a prova indiciária, podendo esta só por si conduzir à sua convicção.

Por isso que, em sede de apreciação, não dispensa a prova testemunhal um tratamento cognitivo por parte de restantes meios de prova, sendo que a mesma, tal qual a prova indiciária de qualquer natureza, pode ser objecto de formulação de deduções ou induções correcção de raciocínio mediante a utilização das regras da experiência. Desde logo, é legítimo o recurso a tais presunções, uma vez que são admissíveis em processo penal as provas que não forem proibidas por lei (art. 125.º do CPP) e o art. 349.º do C. Civil prescreve que presunções são as ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido, sendo admitidas as presunções judiciais nos casos e termos em que é admitida a prova testemunhal (art. 351.º).

Depois, as presunções simples ou naturais (as aqui em causa) são simples meios de convicção, pois que se encontram na base de qualquer juízo. O sistema probatório alicerça-se em grande parte no raciocínio indutivo de um facto conhecido para um facto desconhecido; toda a prova indirecta se faz valer através desta espécie de presunções. As presunções simples ou naturais são, assim, meios lógicos de apreciação das provas, são meios de convicção. Cedem perante a simples dúvida sobre a sua exactidão no caso concreto (cfr. Cavaleiro de Ferreira, Curso de Processo Penal, I, 333 e segs.). O que vale por dizer que as presunções naturais não violam o princípio in dubio pro reo. Este princípio é que constitui o limite daquelas. No caso, o próprio recorrente aceita que a decisão recorrida não ficou em estado de dúvida, mas entende que deveria ter ficado, o que como vimos é agora insindicável pelo Tribunal de Revista.”.

[21] Ainda no mesmo sentido, cf. o acórdão da RC de 06/03/1996, relatado por Santos Cabral, no proc. 716/95, in CJ, II, pp. 44 e ss., o acórdão da RC de 09/02/2000, relatado por Santos Cabral, no proc. 78/2000, in CJ, I, pp. 51 e ss., e acórdão da RC de 11/05/2005, relatado por Oliveira Mendes, no processo 1056/05, in www.dgsi.pt, do qual citamos: “I – Na ausência de prova directa nada impede que o tribunal deduza racionalmente a verdade dos factos a partir da prova indiciária (prova artificial ou por concurso de circunstâncias). II – No entanto, a prova indiciária deverá obedecer, em princípio, aos seguintes requisitos: Existência de uma pluralidade de dados indiciários plenamente provados ou absolutamente credíveis; -Racionalidade da inferência obtida, de maneia que o facto “consequência” resulte de forma natural e lógica dos factos-base, segundo um processo dedutivo, baseado na lógica e nas regras da experiência (recto critério humano e correcto raciocínio).”.

[22] Neste sentido, ver também o acórdão da RC de 28/10/2009, Processo 31/01, relatado por Jorge Jacob, no processo 31/01, in JusNet 6710/2009, donde citamos: “…Esta afirmação não colide, no entanto, com a validade da prova obtida através de presunção judicial. Não oferece dúvida que são admissíveis em processo penal as provas que não sejam proibidas por lei (art. 125º), aí incluídas as presunções judiciais, que são as ilações que o julgador retira de factos conhecidos para firmar outros factos, desconhecidos (art. 349º do Código Civil), sem que daí resulte prejuízo para o princípio da livre apreciação da prova. Não sendo meio de prova proibido por lei, pode o julgador, à luz das regras da experiência e da sua livre convicção, retirar dos factos conhecidos as ilações que se ofereçam como evidentes ou como razoáveis e firmá-las como factos provados. De resto, este é um mecanismo recorrente na formação da convicção. Basta pensar na prova da intenção criminosa. A intenção, enquanto elemento volitivo do dolo (enquanto decisão pela conduta, suposto serem conhecidos pelo agente os elementos do tipo legal de crime), na medida em que

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traduz um acontecimento da vida psicológica, da vivência interna, não é facto directamente percepcionável pelos sentidos do espectador, havendo que inferi-la a partir da exteriorização da conduta. Só por recurso à presunção judicial, diluída naquilo que em processo penal se designa por "livre convicção", é possível determiná-la, através de outros factos susceptíveis de percepção directa e das máximas da experiência, extraindo-se como conclusão o facto presumido, que assim se pode ter como provado. Desde que as máximas da experiência (a chamada "experiência comum", assente na razoabilidade e na normalidade das situações da vida), não sejam postas em causa, desde que através de um raciocínio lógico e motivável seja possível compreender a opção do julgador, nada obsta ao funcionamento da presunção judicial como meio de prova, observadas que sejam as necessárias cautelas:

- Desde logo, é necessário que haja uma relação directa e segura, claramente perceptível, sem necessidade de elaboradas conjecturas, entre o facto que serve de base à presunção e o facto que por presunção se atinge (sendo inadmissíveis "saltos" lógicos ou premissas indemonstradas para o estabelecimento dessa relação);

- Por outro lado, há-de exigir-se que a presunção conduza a um facto real, que se desconhece, mas que assim se firma (por exemplo, a autoria - desconhecida - de um facto conhecido, sendo conhecidas também circunstâncias que permitem fazer funcionar a presunção, sem que concomitantemente se verifiquem circunstâncias de facto ou sejam de admitir hipóteses consistentes que permitam pôr em causa o resultado assim atingido);

- Por fim, a presunção não poderá colidir com o princípio in dubio pro reo (é esse, aliás, o sentido da restrição referida na parte final do exemplo que antecede). …”.

No mesmo sentido, ainda, o acórdão da RE de 19/11/2013, relatado por António João Latas, no proc. 95/08.9IDFAR.E2, de cujo sumário citamos: “... III - A prova indireta não só é admissível como é mesmo da maior importância no nosso processo penal, que não faz sequer depender o seu valor probatório de especiais características dos indícios, contrariamente ao que sucede com o art. 192.º, nº 2. do C.P.Penal italiano, nem tão pouco lhes fixa abstratamente quaisquer limites, quer do ponto de vista dos factos objeto da prova, quer de ordem quantitativa, como sucedia no antigo sistema de provas legais.“.

[23] No sentido de que o recurso à presunção judicial em processo penal não põe em causa o princípio da presunção da inocência consagrado no art.º 32º da CRP, cf. Jorge Miranda e Rui Medeiros, in “CRP Anotada”, tomo I, Coimbra Editora, 2005, a págs. 356 e 357.

[24] Neste sentido, cf. o acórdão do STJ de 14/07/2016, relatado por Tomé Gomes, no proc. 377/09.2TBACB.L1.S1, in www.dgsi.pt, de cujo sumário citamos: “I. As presunções judiciais não se reconduzem a um meio de prova propriamente dito, consistindo antes em ilações que o julgador extrai a partir de factos conhecidos para dar como provados factos desconhecidos, nos termos definidos no artigo 349.º do CC; tais presunções judiciais são admitidas nos casos e termos em que é admitida a prova testemunhal, conforme o disposto no artigo 351.º do mesmo Código. II. Essas presunções são um meio frequente de provar os factos de natureza psicológica, já que estes, em regra, não são passíveis de demonstração direta, mas antes por via de circunstâncias e comportamentos exteriores que, à luz da experiência comum, indiciem condutas e atitudes, de índole cognitiva, afetiva ou volitiva, dos agentes visados. III. Face à competência alargada da Relação em sede de reapreciação da decisão de facto, em

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