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PROSA. Editora Literária Prosa, N.º 9. César e a Vestal. Capítulo III (91-88 a.c.) Maria Galito

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PROSA

Editora Literária

Prosa, N.º 9

César e a Vestal

Capítulo III

(91-88 a.C.)

Maria Galito

2017

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César e a Vestal 64 Maria Galito

Capítulo III

663-666 AUC

O assassinato de Druso despoletou a guerra dos italianos

e o pontífice máximo morreu quando Sila invadiu Roma pela primeira vez.

Druso foi assassinado dois meses depois de assumir funções como tribuno da plebe. Foi atacado à porta de casa, em 663 AUC, no Palatino. Apoiado por Mário, ganhara fama de demagogo e a sua morte deu muito que falar, pois ele era um grande patrono da cidade. Rico e popular possuía centenas de clientes, muitos deles da classe equestre.

 Morreu estupidamente! – Queixou-se Fonteia, tentando controlar as lágrimas que lhe corriam pelo rosto. – Era um homem tão interessante…

 Olha o juízo! – Corrigiu a vestal máxima.

A admoestada limpou a cara com as mãos e defendeu-se:  Só estou a dizer que tenho pena de Druso.

Nessa noite, Popília e Perpena vigiavam o fogo sagrado. Eu partilhava a refeição com Metela, Fonteia e a chefe, e estava atenta ao que as veteranas conversavam entre si. Elas estavam de luto pela morte de um colega de colégio. Mas, a mais jovem das três, carpia com o coração. Fonteia nunca beijara um homem, mas fora secretamente apaixonada pelo pontífice assassinado. Tentei salvá-la da atrapalhação e mudei de conversa:

 Porque é que a atividade de tribuno da plebe gera tanta controvérsia? – Perguntei. No templo de Rómulo, o rei governava a urbe e a classe guerreira defendia-o. Com o advento da República os plebeus começaram a reivindicar direitos. Os seus tribunos eram inicialmente dois. Para melhor se defenderem, o seu número cresceu No meu tempo eram dez. Eleitos quatro dias antes dos idos do décimo mês, apelavam à Assembleia do Povo a favor de leis ou contra abusos. Em tempo de guerra submetiam-se à autoridade dos cônsules. Mas estavam afetos à Cúria Tributa e podiam vetar qualquer lei do Senado, o que lhes concedia grande poder.

Os tribunos da plebe pouco estrago fizeram enquanto foram cidadãos das camadas mais pobres. Tibério Graco alterou o paradigma ao transferir, para o cargo, o poder dos seus privilégios.

 O facto de ser bem-relacionado e orador carismático, capaz de mobilizar as massas, assustou os seus pares e fez dele um exemplo. – Explicou a chefe.  Positivo ou negativo? – Indaguei.

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César e a Vestal 65 Maria Galito

 Depende da perspetiva. – Concluiu a mestre. – Tibério Graco é um herói para os

populares. Os optimates nem podem ouvir o seu nome que ficam com urticária!

Ele não era inicialmente um demagogo. Sobrevivera à terceira guerra púnica e fora galardoado na juventude. Mas, enquanto questor na Hispânia Citerior, selara tratado com os celtiberos que, por ser considerado desfavorável para os romanos, não foi ratificado pela Cúria Hostília. O Senado chegou a propor a entrega do jovem aos inimigos, ao invés de curvar-se aos termos acordados. A humilhação foi imensa! Ele só se salvou porque apelou ao povo e este lhe acudiu.

Tibério Graco tornou-se no campeão dos desfavorecidos para pagar a dívida de gratidão que tinha para com eles. Não se virou contra a sua classe. Sentiu-se traído por ela! Enquanto nobre, pela lei da honra, não podia engolir o orgulho, portanto, tentou vingar-se daqueles que o tinham ofendido.

Tibério Graco também quis deixar legado que lhe assegurasse a imortalidade e fez o mais difícil: tentou contrariar o êxodo rural para as cidades e proteger o campesinato dos latifundiários gananciosos, cada vez mais poderosos, que cultivavam as terras recorrendo a escravos. Almejava distribuir terras pelos mais pobres, para que estes não dependessem do Estado ou da caridade dos ricos. Colocou em risco interesses instalados. Pagou, com a própria vida, o preço por desafiá-los.

 Tibério Graco obrigou o Estado a distribuir terras por gentalha que não queria trabalhar e as vendeu à primeira oportunidade. – Criticou Metela, que era

optimate. – Alguns proprietários tiveram de pagar para recuperar os lotes que lhes

haviam sido roubados pela reforma agrária liderada por menino da cidade que não percebia nada de como a vida funcionava na província!

 Não é bem assim. – Corrigiu Fonteia. – Muitas famílias foram manipuladas por advogados sem escrúpulos e venderam os lotes a baixo preço por desconhecerem o seu valor. Druso contou-me que algumas casas foram incendiadas por capangas de homens ricos e os donos tiveram de fugir, com medo de morrer.

 Tu falavas muito com Druso, pelos vistos! – Irritou-se a sumo-sacerdotisa.  Eu só trocava palavra com ele nas assembleias, na presença de todos os nossos

colegas. – Defendeu-se Fonteia e eu sei que era verdade.

 Tibério Graco foi morto pelo povo a quem tentou ajudar! – Opinou Metela. Fonteia armou-se de coragem e contrariou essa ideia:

 Druso disse-me que Tibério Graco não foi atacado pela multidão, mas por mercenários misturados na turba, liderados pelo pontífice máximo da época. Engoli em seco. Nem acreditei à primeira!

 Um sumo-pontífice pode mandar matar um tribuno da plebe? – Perguntei.  Claro que não! – Disse Fonteia. – O líder da religião não ataca um sacrossanto.  Eles eram primos e há problemas que só a família resolve. – Avisou a chefe.

Eu estava perplexa. Metela encolheu os ombros.

 Não retirem o bico ao prego! O Senado queria ver-se livre de Tibério Graco e, para o povo, ele foi um equus october1. – Admitiu Fonteia.

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César e a Vestal 66 Maria Galito

Mas elas não tinham vivido os acontecimentos e desconheciam o episódio com detalhes. Não adiantava insistir naquele toque de caixa! Optei por via alternativa.

 Os irmãos Graco eram dois. O que pensam do outro? – Tentei saber.

Caio Graco candidatou-se a tribuno da plebe, dez anos depois, mais por necessidade do que por escolha. Havia expetativas que ele seguisse os passos do irmão e os senadores não lhe davam margem de manobra. Mas se tinha a mesma mãe determinada e recebera igual tipo de educação, ele era tímido e avesso à tribuna. Em público era apessoado. Em privado era estoico, sem ócios e pouco bebia. Não lucrava e censurava os usurários que exigiam juros elevados, admitindo que os devedores ficavam com a vida penhorada. Caio Graco tentou implementar reformas militares, como a introdução de idade mínima no exército e número máximo de anos de carreira nas armas. A sua lei frumentária obrigava o Estado a distribuir à população trigo a preço mínimo e fixo. Criou um tribunal anticorrupção e incluiu mais nomes nas listas dos cidadãos romanos.

Os optimates revoltaram-se contra ele. O Senado acusou-o de incitar à violência, declarou-o inimigo público e Caio Graco não sobreviveu à pressão.

 Outro a quem o povo matou! – Acusou Metela de punhos cerrados. A veia ideológica cegava-a.

 O que aconteceu? – Indaguei.

 A sua cabeça foi colocada a prémio. – Resumiu Fonteia. A chefe deu voz aos rumores que circulavam sobre o tema:

 Alguém prometeu pagar, em ouro, o peso da cabeça de Caio Graco. Portanto, havia vários homens no seu encalço, naquela noite. Aquele que lhe cortou a cabeça, substituiu-lhe os miolos por areia, para que o troféu fosse mais pesado e arrecadasse recompensa maior.

O que era macabro!

 Caio Graco não foi assassinado. – Advogou Fonteia. – Druso garantiu-me que ele se suicidou e que foi encontrado sem vida por um mercenário que lhe arrancou a cabeça do corpo. Mas foi o pai do nosso colega Cévola, que era pontífice máximo e parente da sua esposa, que lhe negou auxílio. Caio Graco pediu santuário por toda a cidade, sem conseguir encontrar quem lhe acudisse. Deve ter preferido morrer às suas mãos, a ser torturado por terceiros.

 Tu acreditavas em tudo o que Druso dizia! – Irritou-se a chefe.

 Deixe lá. Ele agora morreu e eu nunca mais ouvirei as suas teorias. – Queixou-se Fonteia, com olhos baixos e mãos entrelaçadas no regaço. Entristecida, controlava o choro.

Fez-se silêncio. A vestal máxima resolveu dedicar-se aos lavores, puxou por uma cesta aninhada a seus pés, da qual retirou umas longas agulhas de ferro enfiadas num novelo de lã. Começou a tricotar um agasalho e eu fixei os olhos no que ela fazia. Mas Fonteia e Metela mantinham-se ociosas e eu não estava com vontade de dormir, portanto, relancei a conversa:

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César e a Vestal 67 Maria Galito

 Falámos sobre os irmãos Graco, mas… e Saturnino?

Eu sempre tivera dúvidas sobre a sua morte, mas evitara admiti-las perante Apuleia, por respeito a Marco. Agora tinha talvez a oportunidade de esclarecer o assunto. Mas Metela suspeitou do meu interesse e pigarreou, para avisar as colegas, que a minha pergunta não era inocente:

 O irmão de Emília casou com uma filha de Saturnino.

 Eu sei. – Confirmou a sumo-sacerdotisa, sem retirar os olhos das agulhas.  Digam-me só o que pensam que aconteceu. – Pedi-lhes.

A nossa chefe, que já me conhecia muito bem, fez-me a vontade.  Tudo começou quando Saturnino foi eleito questor…

Na época, o jovem foi encarregue de supervisionar a importação de cereais no porto de Óstia. Mas desaguisou-se com o responsável pelo aprovisionamento dos grãos em Roma, um optimate que preferia encher os silos, a distribuir grão pela população. Saturnino acabou despedido. Mas não foi o fim da sua carreira. Ele haveria de ganhar três eleições para tribuno da plebe, ao defender programa de reformas populistas, com o apoio de Mário.

O pai de Apuleia queria o povo livre da especulação do preço dos cereais (e do pão) que matava a população à fome. Mas, para agradar ao seu patrocinador, também defendeu uma reforma agrária que, não só distribuía terras aos veteranos das guerras de Mário, como lhes concedia a cidadania romana – medidas que revoltaram os optimates.

 Os conservadores não estavam dispostos a partilhar privilégios com tanta gente! – Reconheceu Metela.

 Estamos a falar do quê, exatamente? – Tentei perceber. – Os senadores querem acumular além do que precisam, ou temem perder aquilo de que necessitam? A vestal máxima retirou os olhos da lã que tricotava e rosnou de orgulho:

 Ninguém enche barriga com pão que é para todos e os nobres não aceitam comer migalhas.

Não me deixei abater pelo tom ameaçador da sua voz:

 Migalhas? O sustento tem aumentado de tamanho. Há mais do que suficiente para todos os romanos! – Alertei, pois eu estudara a importância do crescimento económico nas contas públicas. – Roma começou por ser uma pequena cidade mas, nos últimos séculos, conquistou vastos territórios! Se a riqueza fosse bem distribuída, nenhum romano passava fome e podia trabalhar o seu pedaço de terra.  O poder está nas mãos de privados. O Estado é pequeno e não tem meios para

fazer tudo isso. – Argumentou a chefe, que considerava a minha conversa irritante. Metela concordava com a colega mais velha. Mas deu enfoque a outra questão:  Cuidado! Saturnino e os irmãos Graco admitiam conceder a nossa cidadania a

povos conquistados. Nós, os romanos, somos valentes mas poucos em número. Se dermos plenos direitos aos italianos, na nossa República, eles conquistam-nos por dentro… não pelas armas, mas pelo voto.

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 As propostas de Saturnino alteravam o equilíbrio de poderes a nosso desfavor? – Murmurei, preocupada. – Eu não tinha pensado nisso…

 Pois, mas não basta ter pena dos camponeses ou dos veteranos das guerras, na sua maioria italianos. É preciso recordar que eles já foram nossos inimigos e que podem, no futuro, virar-se outra vez contra nós.

Optimates como Metela davam prioridade à segurança dos romanos. Temiam que as

preocupações sociais dos populares fossem dispendiosas e, sobretudo, perigosas para a cidade.

 Os irmãos Graco não sobreviveram aos seus ideais. Mas Saturnino tinha as costas quentes e só caiu por ter destabilizado as eleições. Não se lembram? Ele foi acusado de mandar matar um homem que se candidatava a cônsul.

 O quê?! – Eu estava perplexa com a denúncia da vestal máxima.

Saturnino alegou inocência. Os amigos defenderam-no. Os inimigos ameaçaram-no. No que resultou em mais violência! Ao ponto de Mário ser chamado, pelo Senado, a impor a ordem. O pai de Apuleia aceitou aguardar julgamento na Cúria Hostília. Mas os optimates ficaram com medo que ele fosse ilibado por um júri, subiram ao telhado, começaram a arrancar telhas e a atirá-las à sua cabeça. Saturnino morreu lapidado.

 Quem subiu ao telhado? – Perguntei diretamente.

 Que importa! – Negligenciou Metela de olhos em riste. – Foi Mário quem encurralou o tribuno num espaço fechado, não foi?

 Ora essa! É suposto o Senado ser um lugar seguro. – Ripostei, escandalizada.  Mário colocou-o a jeito. – Insistiu Metela.

 Porque o dizes? Já alguém fora assassinado na Cúria Hostília antes de Saturnino?  Que eu saiba, não. – Admitiu a chefe.

 Ninguém me convence que a raposa de Arpino queria salvá-lo. – Teimou Metela.  Mas porquê? Eles eram aliados. – Perguntou-lhe Fonteia.

Metela deixou bem clara a sua posição:

 Saturnino reforçara o poder tribunício e queria levar à justiça os senadores que recebiam subornos de reis estrangeiros e… dizem que Mário era um deles. Tal ideia não era novidade para mim. O meu pai já disso se havia queixado!  Isso é traição. – Admiti.

 Com certeza! – Exclamou Metela. Fonteia admitiu outra possibilidade:

 Druso sempre disse que Mário não desejava a morte de Saturnino. A ordem de abate foi dada pelos irmãos Numídico e Dalmático!

Uma declaração ousada, atendendo a que Metela estava sentada a seu lado.  Como te atreves? Não é verdade! – Rosnou Metela, erguendo-se em pé. – Eles

não cometeram nenhum assassinato. Tu não denigras a memória da minha família.  Fonteia pede desculpa à tua colega. – Ordenou a sumo-sacerdotisa.

Ela ainda hesitou em fazê-lo. Mas decidiu retratar-se:  Perdoa-me. Falei demais, foi insensível da minha parte…

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Metela sentou-se abruptamente e virou as costas a Fonteia.  Portanto, Emília, a política é complicada. – Rematou a chefe.

Fez-se silêncio. Respirei com força. Resolvi tirar ilações do que tinha ouvido:  Se a função é perigosa, porque é que tantos homens querem ser tribunos da plebe?

Entreolharam-se. Fonteia cruzou os braços. Metela hesitou. A chefe retorquiu:  É uma rampa de lançamento para plebeus que querem fazer carreira no Senado.  O cargo dá prestígio. Já percebi. Mas muitos morrem pelo caminho…

A vestal máxima ouviu o meu comentário e disse-me:  Quando exageram no que dizem e no que fazem.  Quando traem o Estado. – Afincou Metela.

 Concordo. Mas o problema é mais interno, do que externo. – Advertiu a chefe.  Como assim? – Perguntei-lhe.

 Os tribunos da plebe são alvos fáceis numa sociedade já de si dividida.  Isso quer dizer o quê? – Insisti. – Que as posições estão estremadas?

A mestre teceu os seus argumentos:

 Os senadores populares defendem uma maior distribuição de riqueza, delegando poderes no povo, pensando assim dirimir tensões sociais. Os optimates preferem ser solidários para com os capite censi, mas sem transferir o poder para as mãos de muitos, admitindo que o sistema de cada cabeça sua sentença promove a anarquia.

 Portanto, é uma questão de governabilidade… mas a doutrina defendida pelos

populares pode levar a abusos da maioria sobre a minoria; e a dos optimates pode

gerar abusos da minoria sobre a maioria, é isso? – Tentei inferir. A vestal máxima precisou refletir, antes de acrescentar o seguinte:

 Os populares acreditam num Estado mais representativo, com elementos de todos os quadrantes da sociedade, para que estes tenham voz e contribuam para a elaboração de políticas públicas mais justas. Os optimates criticam o modelo liberal que se centra talvez nos direitos e garantias, mas desresponsabiliza os cidadãos; e propõem uma Cúria Hostília com menos senadores mas capazes de administrar os recursos disponíveis em benefício do bem-comum.

 Sendo assim, as duas versões têm vantagens e desvantagens.

 Espera lá! O governo conservador é melhor. – Interrompeu Metela, por ser, de todas as vestais, a mais ideológica.

 Nós temos várias formas institucionais de nos organizarmos, em sociedade, que servem de contrapeso umas às outras, para impedir abusos. Temos o Senado, por exemplo; mas também as Assembleias das Cúrias, das Centúrias e das Tribos; para além do Conselho da Plebe. – Explicou a sumo-sacerdotisa.

 Então porque é que o sistema rebenta pelas costuras? – Insisti em saber.

A líder do templo arqueou a sobrancelha e voltou-se para as agulhas, com as quais tricotava laboriosamente. Evitava assim pronunciar-se sobre o assunto. Mas Fonteia disse-me:

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 Hoje em dia há demasiadas unidades a sobreporem-se umas às outras. O que gera confusão quando se têm de tomar decisões, sobretudo em momentos de crise económica, quando há invasão das fronteiras a Norte, revolta de escravos (houve duas na Sicília) ou tensão com os aliados italianos (como parece haver agora).  Os romanos preferiam um modelo simplificado? – Inferi.

 O modelo era simples no tempo da Monarquia e não nos servia. – Argumentou Fonteia. – Não basta perguntar quem manda no Estado… se o chefe não presta! Mastigou-se uma pausa para reflexão. Metela entendia que Roma tinha aberto as portas a um cavalo de Troia, ao conceder demasiados privilégios aos povos conquistados. A vestal máxima defendia que o problema era mais interno do que externo, admitindo que o bipartidarismo alimentava divisões sociais, não apenas políticas. Fonteia dava enfoque à complexidade do sistema atual, mas não era favorável ao retorno à Monarquia.

 Eu sou uma boa líder e sei o que faço. – Sorriu a mestre, marcando território. O que estava aberto a debate! Como nem Metela ousou contrariá-la, prosseguiu com as suas contemplações. – Mas liderar um templo não é a mesma coisa que governar uma cidade… muito menos quando essa cidade é Roma! Um indivíduo não pode ficar responsável pelos desígnios de milhares e milhares de pessoas, ou rapidamente se tornará num tirano.

 Depende do indivíduo e do tempo que permanece no poder. – Admitiu Metela.  Na nossa Monarquia o rei não governava sozinho. Era eleito pelo Senado e

recorria regularmente a ele. Mas o sistema só funcionou com Numa Pompílio. Tarquínio o soberbo só fazia o que queria! – Lembrou Fonteia.

A vestal máxima concordou com ela:

 O rei tornou-se num abusador que não ouvia os seus conselheiros, nem recorria ao Senado e mandava matar a torto-e-a-direito! Não podemos voltar a esses tempos de arbitrariedade total!

Olhei para elas, uma a uma.

 Nenhuma solução do passado nos serve. Então o que propõem? – Perguntei.  O melhor é manter tudo como está. De mal o menos! – Propôs a sumo-sacerdotisa.  O status quo é insustentável. Algo tem de mudar. – Advogou Fonteia. – Ou vamos deixar morrer os nossos tribunos da plebe como se fossem coelhos numa caçada?  A propósito, quem mandou assassinar Druso? – Perguntei. O mistério era grande! Ninguém tinha certezas e eu lancei várias propostas. – Um estrangeiro? Um romano? Um optimate? Um rival do próprio partido? Um rico? Um pobre?  Sei lá! – Exclamou a nossa chefe. Ela pouco se importava com o assunto!

 Atenção! Druso não foi atacado fora das muralhas, numa rua tortuosa de Roma, no fórum ou no Senado, mas à porta de casa! – Frisou Metela, que tinha queda para as teorias da conspiração.

 Realmente, é estranho. – Concordou Fonteia, fazendo contas de cabeça. – Quem poderia ter sido?

 Alguém que tinha acesso à sua casa. – Admitiu Metela.  Mas quem? – Insistiu Fonteia.

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 Pensem comigo. – Pediu Metela, entusiasmada com as suas conjeturas. – Dizem que Druso morreu de um só golpe. Mas ele era homem ossudo e forte, capaz de se defender e andava sempre com escolta. Não terá sido ferido num ato de loucura, pois o golpe foi certeiro. Concluo que ele foi apanhado de surpresa por uma cara conhecida, com treino militar. Creio que o homicídio foi premeditado e friamente executado por um homem que o odiava.

Fonteia parecia confusa.

 Qual é a tua teoria? – Perguntei.

 Penso que foi Servílio. – Rematou Metela, com secura.  O cunhado? – Fonteia estava em estado de choque.  Que disparate! – Criticou a chefe.

Mas Metela estava convicta do que dizia:

 Servílio era a única pessoa com acesso à casa sem levantar suspeitas e com poder para silenciar os escravos sem ter de os matar. Jurou vingança após o divórcio, por Drusa lhe ter posto os cornos! Foi ele quem teve de sair da casa do cunhado, lembram-se? Porque Druso não renegou a irmã quando ela cometeu adultério e ainda permitiu que Saloniano fosse viver com eles no Palatino.

 Druso tinha bom coração e defendeu a irmã da família e dos amigos. – Suspirou Fonteia. – Ele era boa pessoa…

Metela estava mais interessada no drama do que na vítima.

 Servílio nunca permitiria que as filhas fossem educadas pelo descendente de um escravo e tudo fez para se vingar da humilhação. É o que eu penso e sei que tenho razão! – Concluiu Metela.

 Calem-se! – Vociferou a chefe, com as agulhas ameaçadoramente erguidas no ar. – Falam sem conhecimento de causa. Vocês não sabem o que aconteceu! As vossas conjeturas não se baseiam em provas.

Fonteia baixou os olhos. Mas Metela resistiu à pressão e murmurou:  Só mais uma coisa.

 O quê? – Desafiou a vestal máxima, como um leão antes de atacar.

 Quando Saloniano assumiu o cargo de pretor e começou a fazer justiça, arranjou muitos inimigos. Entre os quais, Servílio.

A advertência fez-me recordar episódio ocorrido seis meses antes, quando Metela me convidou a assistir a uma sessão de tribunal. Lembro-me que nos sentámos nos banquinhos reservados às vestais. Duas filas atrás de nós estava Servílio, à esquerda da ex-mulher. O que podia não ser representativo. Eles ocupavam lugares cativos e, enquanto eu lá estive, não trocaram palavra.

Saloniano presidia ao tribunal. Cota fora nomeado advogado de defesa de Rutílio. De acordo com as alegações finais, o tio tentara proteger os cidadãos da província da Ásia dos coletores de impostos que aplicavam taxas excessivas. Mas os publicanos uniram-se contra a ingerência e processaram-no. A principal testemunha de acusação era um cozinheiro famoso, chamado Apício e o júri era maioritariamente composto por equestres, da mesma classe dos publicanos.

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Rutílio foi condenado. Cota queixou-se de conspiração contra o tio e apontou o dedo aos cavaleiros, supostamente corruptos, por manipularem a República a seu belo prazer. O sobrinho admitia interpor recurso em tribunal, a favor do tio. Mas este pediu para falar à multidão que se calou para o escutar:

 Os deuses sabem que sou inocente. Mas se a vontade do júri é condenar-me, então eu partirei para o exílio pelo meu próprio pé. – Anunciou.

Fiquei sensibilizada com o seu depoimento. O povo aplaudiu-o. Saloniano deu o caso por encerrado e foi ter com a mulher, que voltou costas ao ex-marido. As pessoas começaram a dispersar. Nós levantámo-nos do banquinho, saudámos a quem nos cumprimentava e caminhámos de regresso ao templo, com ela a puxar pela conversa:

 Rutílio desarmou, porquê? – Admirou-se Metela.

 O tio de Cota teve uma atitude digna. Não interpôs recurso em tribunal para preservar o seu nome, herdado dos antepassados. Ele é um conservador nos meios e nos termos, cujo único vício é a gula.

 O cozinheiro podia ter falado mais do que disse…

 Ele acusou Rutílio de ter recebido subornos do rei Mitridates e de conspirar contra os romanos que viviam na província da Ásia. Há pior do que isso?  És ingénua, Emília! Às ceias de Apício só vão homens.

 E então? Rutílio é casado e respeita a mulher. É amigo de Mário há mais de vinte anos. Foi seu legado no exército, sabendo que o comandante condecorava a virilidade e castigava a licenciosidade. Os aliados têm de partilhar o seu código de valores, ou ele rejeita-os e exclui-os do seu ciclo de amigos. Não tem contemplações.

 Acredito. Sila queixa-se que Mário não é para brincadeiras! – Comentou Metela, antes de contra-argumentar. – A propósito, viste o comandante na audiência?  De facto, não vi Mário, nem Júlia, nem Júlio. Eu perguntei por Aurélia a Rutília,

que estava atrás de mim. Ela disse-me que a filha ficara em casa porque o neto estava doente. Eu perguntei se era grave e ela disse-me que não era caso para alarme, apenas umas febres passageiras. Mas pode ter sido a razão para a família não ter vindo. Talvez estejam de quarentena. – Ponderei como hipótese.

 Começo a pensar que Mário não gostou de saber a história de Apício e renegou Rutílio. Mas pouco importa! Voltando a Drusa, viste-a?

 Sim, claro. É sobrinha de Rutílio. Deve ter ido apoiar o tio que a defendeu publicamente de Servílio, na época do divórcio.

 Por isso mesmo! Hoje estavam todos no fórum, como se nada fosse. Porquê? Mas eu podia invocar razões que o justificassem:

 Druso e Servílio têm filhos em comum e possuem lugar marcado na assistência.  Mas o divórcio deles foi litigioso! Trocaram acusações muito feias, garanto-te.  Talvez tenham feito as pazes.

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César e a Vestal 73 Maria Galito

Não liguei. Entrámos no santuário e o assunto foi esquecido. Metela voltou à carga, dois meses depois, quando Drusa morreu de parto:

 Saloniano vai continuar a viver em casa de Druso?

 Sim, para cuidar das crianças que são seis: cinco da falecida Drusa e duas do viúvo. – Explicou Fonteia, que estava a par do assunto.

 Servílio não vai gostar! – Alertou Metela.

Druso ocupava-se da campanha eleitoral e passava pouco tempo no lar, mas os vizinhos faziam referência a brigas constantes entre Servílio e Saloniano. Foi então que o pretor faleceu, de forma suspeita, pois nem estava doente! Depois faleceu o tribuno da plebe. Se ninguém duvidara que Drusa tivera morte natural, menos compreensível era o facto do irmão e do marido terem sucumbido os dois, logo depois.

 Morreram três pessoas da mesma família em menos de seis meses. Não é normal! A vestal máxima revidou, dizendo:

 Parece-me imprudente acusar Servílio de todo o mal que acontece àquela gente! Saloniano era um pretor controverso e Druso um tribuno da plebe incendiário! Homens como eles não vivem muito tempo.

 Infelizmente, qualquer um podia ter atacado a Druso. – Lamentou Fonteia. Metela abanou a cabeça e cruzou os braços com força:

 Como queiram. Mas depois não digam que eu não avisei.

O colégio de pontífices reuniu-se seis dias após o funeral de Druso. Por cooptação, substituiu-o por Mamerco. Ninguém tinha coragem de debater o tema com o irmão da vítima, portanto, as teorias da conspiração foram sendo silenciadas.

 Os meus pêsames, Mamerco. – Lamentei. – Druso não merecia este fim trágico.  Agradeço as tuas palavras, Emília. – Respondeu, arrastando as palavras.

 Passa-se mais alguma coisa? – Perguntei, guiada pela intuição. Ele respirou fundo, antes de replicar:

 Cota embarcou ontem, no porto de Óstia. Eu soube hoje da notícia, quando fui visitar o teu irmão.

Mamerco contou-me que o melhor amigo de Druso partira, com destino a Mitilene, na companhia da mãe e do tio Rutílio, que eram viúvos e de um filósofo amigo da família. Ele fora acusado de instigar os italianos contra Roma e tinha, recentemente, subido ao Palatino para se despedir de Marco.

 Há muito tempo que não vejo o meu irmão. – Queixei-me. – Como está ele?  Pensa que perdeu dois amigos. Druso foi assassinado, Cota partiu para o exílio e

Marco está revoltado com tudo o que aconteceu!

Tive um mau pressentimento. Cota e Druso eram populares, tal como Marco.  Eles tinham os mesmos inimigos? Na verdade, o que eu quero saber é se o meu

irmão corre risco de vida?

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César e a Vestal 74 Maria Galito

A tensão entre romanos e italianos existia há anos mas, desta feita, desembocara em conflito e o Estado apelava às armas. Marco foi dos primeiros a cumprir com o seu dever cívico. Ainda tentou despedir-se de mim, mas a vestal máxima foi insensível aos seus apelos e não me chamou quando ele foi ter comigo. Facto que eu nunca perdoei.

No Palatino ficou Apuleia, a cuidar dos três filhos de ambos. Mas, na falta do marido, a relação entre nora e sogra deteriorou-se.

A minha mãe andava preocupada com o filho e não se cuidava. Dormia mal e agasalhava-se menos, num período em que o frio alastrava e o inverno estava especialmente rigoroso. As suas defesas baixaram. Engripou-se. Como estava convencida que o resfriado passava, descurou da saúde e, para espanto da família, a sua condição física piorou drasticamente. O meu pai mandou vir o médico e este sangrou-a tanto quanto pôde, para lhe aliviar os humores. Mas ela ficou anémica e morreu.

Lembro-me de Perpena entrar no templo, para avisar Metela do sucedido. Sentaram-se as duas a meu lado, a pensar nas palavras adequadas ao momento. A princípio nem acreditei no que diziam. Pensei que fosse uma partida de mau gosto! Só quando a vestal máxima me confirmou a notícia é que me rendi às evidências:

 As minhas condolências, Emília. Eu sei que é difícil…

 A minha mãe morreu? Não pode ser… – Queixei-me, agarrada às seis tranças do sacerdócio, com as lágrimas a correr pelo rosto.

 Vou chamar um lictor. Fonteia vai contigo, para não ires sozinha. – Notificou a sumo-sacerdotisa. Metela não me acompanhou para evitar Mário e os seus aliados, que fariam certamente parte do cortejo funerário.

Fonteia foi buscar um agasalho e cobriu-me com ele. Descemos os degraus da escada do templo, saímos do santuário e entrámos na via-sacra, a passo cavado. Não subimos ao Palatino, porque entrámos diretamente na procissão das carpideiras que haviam sido contratadas para o efeito.

O meu pai estava triste. Mas, enquanto estoico e patrício, controlava ferreamente as emoções. Atrás dele vinha Apuleia com os filhos enlutados, a minha irmã Secunda e o marido. Como eu era vestal, a minha família não me abraçou em público, para se manter fiel ao protocolo e eu segui a comitiva, como uma alma sem corpo. Quando cheguei ao túmulo, fui-me abaixo. Não me lembro de mais nada.

O que senti? Um vazio enorme! De regresso ao santuário de Vesta, dediquei-me às orações, fiz vigílias interruptas ao fogo sagrado e afundei-me na bruma da memória. Dormia mais do que o normal. Nada me interessava! Os meus silêncios gritavam dor que invadia os cinéreos recantos dos meus pensamentos e a mágoa foi tão profunda que marcou um ponto de viragem na minha vida.

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César e a Vestal 75 Maria Galito

O conflito arrastou-se de 663 a 666 AUC. Foi o tempo que os romanos precisaram para acabar com a reivindicação de independência dos aliados italianos, com capital em Corfínio, onde haviam estabelecido Senado e um sistema de cunhagem de moeda. Marco regressou vitorioso ao Palatino e, ao entrar em casa, abraçou-se ao pai que o aguardava orgulhoso! Porém, poucas famílias, como a nossa, terminaram o confronto sem declarar mortos.

Os Júlios fizeram funeral a Sexto. Ele acabara de assumir funções, como cônsul, quando rebentaram as hostilidades e teve de partir imediatamente, para estancar a revolta dos italianos. Foi a primeira grande vítima da contenda, no cerco de Asculum. Dizem que ele lutou até ao fim, de espada na mão, como o valente que era! Márcia Rex recebeu a notícia com um ataque de coração e morreu.

Em seguida, Lúcio foi eleito cônsul. Assumiu o comando militar que pertencera a Sexto e lutou em Asculum, mas foi ferido durante a refrega, socorrido na tenda e recambiado para Roma. Deve ter apanhado um grande susto pois, ao regressar ao Senado, defendeu lei que concedia cidadania romana aos italianos que a solicitassem, desde que jurassem fidelidade a Roma. Era uma cedência, para um optimate como ele. Mas era também uma solução de compromisso, para que a guerra terminasse e se reiniciassem as negociações. Marco também lutou em Asculum – a cidade natal de um dos principais líderes revoltosos – mas partilhou a glória do pai de Pompeu, pois estava integrado no seu exército. Foi assim que conheceu a família de Piceno e, em especial, o jovem a quem os legionários chamavam de Alexandre Magno. O meu irmão tinha o dobro da idade do miúdo de quinze anos que surpreendia toda a gente com a sua coragem; mas dava-se bem com ele, talvez por ambos terem maneira de ser desabrida, emotiva e carismática.

Mas a figura do jogo foi Sila! Foi ele quem substituiu Mário, quando a raposa de Arpino ficou doente e teve de regressar a casa para se curar. Ultrapassou todas as expetativas ao colocar um ponto final ao conflito e, em Roma foi aclamado como herói. Candidatou-se a cônsul e venceu as eleições. Aproveitou para se divorciar de Élia e contrair matrimónio com Dalmática, uma prima de Metela. Também casou a filha com o primogénito de Rufo, o seu colega de consulado.

 Quem haveria de dizer! – Suspirou Metela. – Sila perdeu as primeiras eleições para pretor. Só a custo foi eleito edil e agora entrou para a minha família!

Era uma questão de poder, para alguém que pertencia à influente casa dos Cecílios. Mas a vestal máxima reprovava a conduta moral dos intervenientes:

 A tua prima não tem vergonha de fazer festa de casamento dois meses depois de a tua irmã ter morrido de parto?

 Dalmática não é minha prima direita. É parente…

 Antigamente, as famílias eram mais unidas e tinham respeito pelas tradições. – Insistiu a nossa chefe.

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César e a Vestal 76 Maria Galito

 Eu sei que Dalmática gostava da minha irmã. Mas Sila está de partida para a província da Ásia e deu-lhe a entender que, a casarem, tinha de ser agora.  Eu não confio em Sila. – Confessou a mestre. – Sorri demais, não larga o jogo

partidário e eu só lhe vejo os caninos! Metela encolheu os ombros:

 Não adianta queixar-me de Dalmática ou de Sila. Nada traz de volta a minha irmã.  Tens saudades dela, Metela? – Perguntei-lhe, mostrando-me sensível à sua dor.  Sim, claro. Mas a minha irmã era uma virtuosa que vivia para o marido e para os

filhos. Eu raramente a via. Ela só me visitava pela Vestália. – Explicou.

Metela ainda não conhecia o novo sobrinho que, ao nascer, dera um forte grito tribunício2. Enquanto patrício, ele não podia candidatar-se a campeão do povo. Mas os astrólogos já lhe vaticinavam morte violenta como a dos irmãos Gracos, Saturnino ou Druso.

 Sila quer reduzir os poderes dos tribunos da plebe. – Avisou Mamerco, numa reunião do colégio de pontífices.

Ele era optimate e defendia o líder do seu partido.  Mas não vai conseguir fazê-lo. – Atirou-lhe Aenobarbo.

 Sila queixa-se dos abusos de linguagem e dos ataques pessoais que lhe dirigem os tribunos. – Alertou Vopisco, igualmente optimate.

 Numa República há liberdade de expressão e Sila não é o único com boca para falar. – Avisou Aenobarbo, um popular exasperado com a veia autoritária do cônsul sénior. – Ele já era perigoso à frente de um exército e agora é poderoso no Senado. Mas nem ele pode alterar o sistema!

Cévola arqueou a sobrancelha e observou:

 Agora que Mário está doente, o único a fazer-lhe frente é Júlio.

 Ficou famoso ao afirmar que Sila edil fazia bem em considerar o lugar como seu,

pois pagara bom preço por ele. – Troçou Aenobarbo, citando o pai de César.

Júlio nunca fora na cantiga do bandido, nem se mostrava intimidado pelas ameaças dos cabelos rubros. Mas, ao agir assim, arriscava a carreira política.

 Com o andar da carroça, o cunhado de Mário não vai além de pretor agora que ferrou o dente em fera maior do que ele. – Profetizou Cévola.

Mas o sumo-sacerdote mantinha-se confiante:

 Talvez as coisas mudem, agora que Sila parte para combater Mitridates.

O Senado atribuíra o comando da Ásia ao cônsul sénior e Rufo oficializou um Justitium, ou seja, um período durante o qual nenhuma lei podia passar no Senado, para que a deliberação não fosse vetada pelos tribunos da plebe. Sila saiu de Roma calmamente para liderar as suas coortes. Mas nada estava garantido.

 Não percebo. Porque é que Sila haveria de perder a nomeação? – Foi a minha pergunta, pois não estava a par da situação.

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César e a Vestal 77 Maria Galito

 Há anos que o marido de Júlia recebe ouro de Mitridates para deixar as fronteiras sossegadas. Mas Sila desafiou o velho mestre e reclama para si a glória de vencer o rei do Ponto! – Disse Vopisco, antes de recentrar a questão no que era mais importante. – O cônsul sénior quer livrar-nos de um inimigo perigoso.

 Mário não recebeu suborno nenhum de Mitridates e está tão interessado, como Sila, em defender Roma das ameaças externas. – Irritou-se Aenobarbo.

 Pois, pois…

Para Cévola a questão era outra:

 A verdade é que Mário tem inveja de Sila e não admite que ninguém seja mais glorioso do que ele!

Sila e Rufo formavam uma parceria estratégica contra Mário. Este, porém, era resiliente, sabia defender-se e, assim que recuperou a saúde, regressou em força ao fórum, para defender direitos que reclamava como seus. Foi acusado de pagar a tribunos da plebe para convencerem o povo que Sila lhe roubara o comando da Ásia; e fez aprovar uma lei que atribuía cidadania romana aos seus veteranos de guerra que, em contrapartida, votaram a favor das reivindicações do seu campeão.

A raposa de Arpino atingiu o seu objetivo ao retirar, a Sila, o comando da Ásia e não era a primeira vez que subtraía o comando a um colega senador. Mas agora o interlocutor não era Numídico, era um patrício de longos caninos, que resolveu revidar, reclamando o poder proconsular e a liderança das suas coortes.

 Mário e Sila são Cila e Caríbdis. – Ouvi dizer a Cévola, no colégio de pontífices. Eles respiravam perigosidade, mas não eram farinha do mesmo saco. O tio de César era ambicioso e truculento, mas franco, pelo que as pessoas sabiam com o que contavam. O segundo era um falinhas mansas que se transformaria num devorador de ossos. O que apanhou muita gente de surpresa.

Os distúrbios começaram de mansinho. Até que grupos rivais se enfrentaram no fórum. O filho de Rufo morreu na confusão e o pai teve de fugir para Nola, onde se reencontrou com Sila.

O cônsul sénior enviou o colega contra os márcios e Rufo, ainda de luto pelo filho, foi ter com o pai de Pompeu, para o substituir. Mas este resistiu ao comando, admitindo que Sila estava em situação irregular desde que decidira desafiar a autoridade do Senado. Pouco depois, os legionários amotinaram-se e trucidaram Rufo.

 Eu não sei exatamente o que aconteceu. Só sei que um grupo de legionários tirou a vida a Rufo. – Explicou-nos Cévola, na Cúria Régia.

O pai de Pompeu tinha alguma coisa a ver com o assunto? Era uma incógnita.  E agora? – Perguntei. – Organizam-se novas eleições?

 Pode nomear-se um cônsul substituto de Rufo. – Admitiu Vopisco.

 O importante é que Sila cumpra a lei e devolva o comando das coortes, que não são dele, mas do Estado romano. – Ripostou Aenobarbo.

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César e a Vestal 78 Maria Galito

 Não estávamos nesta situação se Mário não tivesse metido o bedelho onde não era chamado! – Murmurou Vopisco, entre dentes. Ele estava furioso!

Naquele jogo de interesses, a verdade era o que menos interessava. A falta de valores grassava pelas ruas e os cidadãos da República troçavam da corrupção dos costumes. Contavam anedotas sobre o sangue a jorrar na calçada. Riam-se uns dos outros, como se mandar espancar um adversário político, fosse divertido. Haveriam de arrepender-se de tal incúria!

 A sumo-sacerdotisa disse-me que viu senadores à pancada no fórum. Perpena era arauto de más notícias e Popília parecia assustada:  Hoje?

 Agora. – Notificou a mais nova. Fonteia temeu a ira dos deuses:  Vesta, não nos abandones!

Aguardámos, sem saber o que fazer. Fonteia inevitavelmente sentou-se. Popília e Perpena tentaram ocupar a mente, mas a última picou os dedos na costura e queixou-se.

Umas horas depois, resolvi ir deitar-me. Deixei o fogo da deusa entregue a Metela e à sumo-sacerdotisa. Recolhi-me ao átrio das vestais, entrei no meu cubículo e estique as pernas ao comprido. De tão cansada, inevitavelmente peguei no sono.

Quando acordei, bebi um copo de água, lavei-me e fiz as minhas orações. Só quando saí do dormitório e pisquei os olhos à luz do dia é que Popília, muito séria, me deu a novidade. O nosso pontífice máximo estava morto.

 Aenobarbo faleceu durante a madrugada.

Eu não gostava dele, mas fiquei perplexa com a reviravolta do destino!  Mas como? Nem sequer estava doente. – Estranhei.

 Sei lá! Foi repentino.  Deu-lhe uma coisinha má?

 Que esperavas, Emília? Ele era um homem velho, grisalho e cadavérico. O tempo não perdoa. – Rematou Popília, para me calar. A conversa ficou por ali.

Aenobarbo podia ter sido envenenado. Oficialmente foi morte natural. Desconheço a verdade. Os enredos da vida não são exercícios de retórica, são factos com os quais lidamos no quotidiano, que nem sempre fazem sentido. Só sei que o pontífice máximo foi enviado para o Tártaro, onde Plutão podia, enfim, medir forças com ele. Para trás ficou o seu corpo, exposto, sobre um estrado de madeira, lavado e perfumado com óleos, trajado em alvura e com olhos cobertos por moedas para pagar ao barqueiro Caronte, antes da travessia do principal rio dos Infernos.

O líder da religião romana foi velado durante três noites, pois não era todos os dias que morria do seu gabarito! Depois foi purificado pelas chamas e as suas cinzas guardadas em urna. Recebeu um elogio fúnebre, à luz dos archotes.

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O choro das carpideiras e o desfile das máscaras dos seus antepassados perturbaram-me. Mas as pompas fúnebres tiveram pouco impacto sobre as minhas colegas, que pareciam mais motivadas a comentar o evento:

 Caramba que os Aenobarbos eram todos feios! – Foi a poesia de Popília. Ela tecia considerações sobre efígies que não faziam jus à beleza de ninguém!  Quem sai aos seus não degenera. – Admitiu Fonteia.

 Calma! Os filhos dele não são desperdício. – Alertou Metela, observando os órfãos adultos que se mantinham, em pé, no cortejo fúnebre.

 Que a vestal máxima não te ouça. – Censurou Popília.

 O que foi? Olhar discretamente e à distância não faz mal. – Contra-argumentou Metela. – Fonteia fazia isso a Druso e nunca lhe aconteceu nada.

A referida colega enrubesceu e tapou o rosto com as mãos. Popília e Metela abanaram a cabeça e viraram-lhe as costas. Eu centrei as minhas atenções em Aenobarbo que, deitado e sereno, era um autêntico velhinho de barbas! O autoritário líder da religião romana já não parecia um carrasco, mas uma ovelha de lã muito branca. Para mim fora um carrasco. Eu não o chorei.

 Quem será o novo pontífice máximo? – Perguntou Popília.

 Terá de ser eleito, primeiro. – Comentou Fonteia. – São as novas regras.  Falam em Cévola. – Respondeu Metela, que sabia sempre mais do que nós. O seu prognóstico não falhou. Em Roma não era raro eleger homem dado como vencedor! Cévola foi o candidato mais votado no escrutínio, assumindo cargo para o qual o antecessor fora nomeado. A sua escolha foi unânime, pois havia consenso à sua volta. Cévola era um homem de ideais muito fortes. Os pontífices preferiram não teimar com ele, pois as suas opiniões eram vincadas e dificilmente negociáveis. Mas em palavras era refletido e prudente. Logo na primeira assembleia marcou a diferença, pois não gritava para se fazer ouvir, como Aenobarbo. Ele recusava-se a elevar o tom de voz. Se os pontífices queriam ouvi-lo, tinham de fazer pouco barulho, pois Cévola não se repetia nem falava barato. O que contribuiu para baixar a animosidade alimentada pelo antecessor, que era um conflituoso do pior! Até que os ventos trouxeram mudanças.

 O fogo sagrado apagou-se! – Confessou a chefe, lívida de morte.

Ela partilhara turno com Perpena. Mas esta viera ao átrio das vestais chamar Popília, para a substituir. Portanto, a sumo-sacerdotisa estava sozinha no templo quando uma rajada apagou a lareira.

Quando Popília subiu os degraus, encontrou a chefe ajoelhada no chão, a tentar reacender os madeiros e, por inexperiência ou fervor religioso, entrou em pânico! Ameaçou reportar o sucedido e a mais velha ficou atrapalhada, temendo pela vida. Portanto, quando eu cheguei ao templo, na companhia de Perpena e de Metela, o lume continuava apagado e as minhas colegas gritavam uma com a outra.

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César e a Vestal 80 Maria Galito

 Não! Podem condenar-me à morte por causa disto. – E virando-se para Perpena, apontou com o dedo. – A ti também, pois deixaste-me sozinha na vigília do fogo.  Que culpa tenho eu? Nem estava aqui! – Tentou defender-se a mais nova.

A chefe agarrou nos braços de Perpena e de Popília, para as controlar e alertou:  Quando estas coisas acontecem, nós somos todas responsabilizadas pelo colégio

dos pontífices e podem ter a certeza que nos levam a tribunal e nos enfiam às seis num buraco!

Metela hesitava no que fazer.

 A deusa enviou-nos um sinal. – Avisou Fonteia, mirrada pela superstição. – Em teoria, a cidade está prestes a ser invadida.

 Por quem? – Quis eu saber. – Pelos italianos? Julguei que Sila os havia vencido.  A Sila ainda ninguém venceu. – Lembrou Perpena, uma popular que o temia.

Fez-se silêncio. O breu dominava-nos e a ansiedade também.

 Talvez o significado seja outro. – Foi a proposta da sumo-sacerdotisa. – O fogo pode ter-se apagado porque morreu um pontífice máximo, substituído por outro. Quantos dias passaram desde que tudo aconteceu? Contam-se pelos dedos de uma mão. Nem sempre os alertas da deusa vêm antes, às vezes chegam depois. Entreolhámo-nos. As colegas continuavam aflitas.

 Bom, a prioridade é reacender o lume de Vesta. – Avisei, assumindo a liderança. De acordo com os regulamentos do templo, o fogo sagrado só podia ser reacendido a partir da fricção de madeira da arbor felix, um carvalho do nosso bosque sagrado. O ritual foi realizado discretamente, sem avisar o colégio dos pontífices.

Como eu era a mais nova e mantive neutralidade durante o processo, não participei nas negociações das colegas. A dada altura, cheguei a assegurar sozinha a vigília do fogo sagrado, enquanto as cinco mediam forças no átrio das vestais. Metela contou-me depois, que a sumo-sacerdotisa negociara o silêncio com ela e Fonteia; e que calara as histerias de Popília e Perpena a bofetadas!

Mas Vesta não avisara em vão. Roma foi, de facto, invadida pelas armas!

O pomério não foi conspurcado por estrangeiros, mas por cidadãos alistados no exército, que haviam jurado proteger o nosso território. Alguns legados de Sila tentaram proteger Roma do seu comandante e amotinando-se contra ele durante a marcha, mas a ousadia custou-lhes a vida.

Mário mal teve tempo de organizar a resistência. No Senado, ninguém acreditou que fosse necessário defender a cidade de Sila e o líder dos populares enfrentou o adversário com poucas coortes, parcialmente constituídas por mercenários e gladiadores. Esta força militar ou até paramilitar, foi incapaz de travar o avanço de Sila e Mário fugiu da cidade. Eu não assisti à batalha. Nem espreitei para lá das muralhas sérvias. Mal saí do santuário de Vesta, quanto mais do fórum magno! Só me lembro do barulho e era ensurdecedor!

 Desde quando é que nos invadimos a nós próprios? – Inquiri a Vesta, em oração.  O mundus virou-se ao contrário, parece a Saturnália! – Queixou-se a chefe.

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A batalha eventualmente terminou e o ambiente serenava. As minhas colegas ainda não ousavam sair do templo, mas queriam muito saber quem vencera a contenda. Portanto, a sumo-sacerdotisa incumbiu-me de ir saber o que se passava.

Peguei nas minhas sandálias, sai do templo e aproximei-me da porta do santuário. Pedi informações aos lictores que nos protegiam e eles contaram-me o pouco que sabiam, que Sila vencera e Mário fugira. Apercebi-me que estavam assustados e tão colados às nossas paredes quanto podiam, temendo pelo seu futuro. Pediram-me para entrar, advertindo que o perigo se mantinha elevado e eles tinham razão! Qual não foi o meu espanto quando, a curta distância, vi legionários de Sila imolarem um senador. Rasgaram-no a gritos com golpes de espada! Depois atiraram-lhe o corpo para fogo ardente. Entrei em estado de choque e paralisei de susto. Recordo o cheiro a churrasco! Os transeuntes fugiram em todas as direções e, a dada altura, uma mulher, que corria pela rua, atirou-se a meus pés.

 Virgem santíssima rogai por nós, romanos.

Os lictores afastaram-na de mim, pois outras pessoas vieram no seu encalço e começaram a pressionar a entrada do santuário. Eles não podiam empurrar-me, mas quase o fizeram e fecharam-me a porta na cara, para garantir que a turba não invadia o chão sagrado de Vesta.

Levei a mão ao rosto, de olhos fixos na madeira e ouvidos moucos pela gritaria. Eu tremia, desorientada, de entranhas revolvidas. Sei que vomitei tudo o que tinha no estômago. Fonteia, que estreitava do templo, veio socorrer-me e levou-me para dentro do templo. Ajoelhei-me a rezar, enquanto o fogo sagrado me trazia à memória o corpo do senador em chamas e o rosto de Roma a implorar pela graça divina de Vesta

Aquele foi o início da guerra civil. A hemorragia alastrou dentro das muralhas sérvias e a deusa-mãe carpiu as suas mágoas. As vestais continuavam virgens, mas o fogo apagara-se e a cidade fora violentada.

Os pontífices reuniram-se na Cúria Régia para discutir a invasão do ponto de vista religioso. Mas a política estava impregnada nas veias daqueles homens, que eram também senadores e, portanto, tentávamos evitar pronunciar-nos sobre o assunto, para que o caldo não se entornasse sobre nós.

 Será que os livros sibilinos nos ajudam a explicar o sucedido? – Indagou Vopisco.  Infelizmente, tudo se pode esperar dos filhos de Saturno! – Queixou-se Cévola.

Ninguém me dava informações sobre a minha família. Perguntei pela de César.  Aurélia e os filhos estão bem? – Tentei saber junto de Vopisco.

Eu sabia que ele cortara relações com o lado mariano da família, mas consegui que me informasse sobre Júlia que, pelos vistos, já não residia na casa de mármore cor-de-rosa, pois o edifício fora invadido e destruído por legionários de Sila. O terreno estava à venda em hasta-pública, pois Mário fora declarado inimigo público e a esposa residia agora com a cunhada, no bairro de Subura.

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César e a Vestal 82 Maria Galito

Nesse dia, mais à tardinha, Apuleia veio visitar-me. Obteve autorização da sumo-sacerdotisa para falar comigo e eu fui ter com ela à porta do santuário. Saudei-a com nervosismo e enchi-a de perguntas. Ela garantiu-me que o meu pai estava de boa saúde. Sentia-se solitário e com saudades da mulher, mas ocupava os dias a dar aulas aos netos. Nem ele, nem o filho haviam participado na batalha, mantendo-se prudentemente neutros na contenda e, portanto, continuavam vivos e de boa saúde. O marido de Secunda, porém, empunhara a espada contra o exército traidor.

 O nosso cunhado morreu a defender a cidade da invasão de Sila. Fiquei obviamente preocupada:

 A minha irmã, como está ela?  Muito triste, como seria de esperar.  Poderá Sila vingar-se da nossa família?

Apuleia cerrou os punhos e lançou voz tribunícia contra o homem que odiava:  Aquele rato de esgoto é uma besta! Sabe-se lá o que ele vai fazer!

Respirei fundo, com o coração apertado:

 Subo contigo ao Palatino. – Decidi imediatamente. – Quero dar as condolências à minha irmã Secunda e falar com o Pater.

 Espera! Deves ficar aqui. – Pediu Apuleia, com determinação.

 O quê? Não posso permanecer no santuário, de braços cruzados, sabendo que vocês precisam de ajuda.

 Ouve! – Exigiu Apuleia. – Eu vim dar-te todas as informações de que disponho, para não seres apanhada desprevenida. Mas tenho indicações explícitas do teu pai e do meu marido, para te manter segura no templo de Vesta. Incorres em público se saíres à rua.

Levei a mão ao peito, sentindo-me atacada, como quem reclama por justiça:  Foi Sila quem invadiu a cidade com os seus legionários, não fui eu! – Defendi.  Mas é ele quem manda em Roma! – Exclamou convictamente. – Imagina que Sila

precisa de um bode expiatório que o salve de acusações religiosas. – Advertiu. – O teu cunhado lutou contra ele, pelo que se o cônsul sénior desejar vingar-se, pode usar-te no seu plano contra nós.

 Que horror! – Exclamei.

 Reza a Vesta e auxilias-nos mais. – Pediu Apuleia, antes de acrescentar palavras de esperança – Garanto-te que o meu sogro está em negociações para resolver o problema.

 Qual é o plano do Pater? – Insisti em saber.

 Não sei pormenores. – Começou por dizer. – Mas ele já enviou mensagem para a Sardenha, a informar que a filha Secunda vai a caminho da ilha.

A ideia era juntar as irmãs. Prima vivia sozinha com um marido envelhecido. Ela não tinha filhos e dera a entender, nas entrelinhas, que já não podia engravidar. Portanto, podia receber pessoas em sua casa, sem constrangimentos de espaço ou de tempo.

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Quando Sila ameaçou Roma, pela primeira vez, o marido de Prima admitiu regressar ao pomério para o defender, por considerar ser sua obrigação, enquanto patrício. Mas fora desaconselhado a fazê-lo pelo meu pai. Uma sugestão que podia ter-lhe poupado a vida. Mas não lhe garantia a salvação, se Sila admitisse que o ex-cônsul era uma sombra que ameaçava, à distância, o seu poder.

Desta vez, o meu pai aconselhava o consorte da filha a enviar missiva a Sila, renunciando definitivamente à política e comprometendo-se a receber a cunhada, em sua casa. Ao mesmo tempo que garantia, por escrito, que todos aceitavam pacificamente o exílio e a atitude tomada por Sila. Seria o suficiente para ele os deixar em paz?

O plano resultou. A minha família não foi incluída na lista de proscritos. Confirmei-o no dia em que o papiro foi pregado na porta do Senado e os lictores do santuário consultaram o seu conteúdo, a pedido da sumo-sacerdotisa, regressando até nós com a informação solicitada.

O primeiro da lista era Mário. A sua cabeça estava a prémio e tinha perdido tudo o que tinha, pois o Estado confiscou-lhe os bens. Só conseguira salvar a vida e a roupa que tinha no corpo. Apuleia contou-me, mais tarde, que o comandante fora acolhido na província de África por veteranos de guerra, seus clientes, que lhe continuavam fiéis, pois tinham beneficiado da sua reforma agrária.

Numídico havia alertado para os perigos das leis fundiárias de Mário que permitiam, ao Estado romano, recrutar capite censi para um exército que não podia pagar-lhes os serviços. Se o comandante militar lhes garantisse o soldo, a lealdade dos legionários transferia-se para um líder cujos interesses podiam ser incompatíveis com os de Roma.

 Sila é que violou o pomério. Não foi Mário. Quem te ouve falar, parece que foi o contrário! É injusto. – Queixou-se Perpena, uma popular.

 Mário destrambelhou o sistema militar e político com as suas ideias arbitrárias! – Gritou Metela, com ódio na voz. A esposa do cônsul sénior era sua prima e toda a Gens dos Cecílios se unia contra o tio de César, para se vingar de agravos antigos. – A estratégia dele era manter o poder até que lhe dessem na telha? Sempre que lhe apetecia, ele pagava a tribunos da plebe que, através do veto e com o apoio do povo, roubavam o comando militar a cidadãos honrados da República. Tal tinha de acabar!

Perpena não calou a revolta e enfrentou corajosamente a colega mais velha:  Tu não tens provas da corrupção de Mário. Mas não há dúvidas que Sila liderou

um exército contra Roma. Isso sim é um ultraje! Uma heresia! Um escândalo! Metela deu-lhe uma bofetada, que fez eco. Fui em defesa de Perpena:

 Acabaram-se as brigas no santuário! – Exigi, colocando-me entre as duas. – É tempo de orar à deusa. O pomério foi invadido e nós somos vestais, lembram-se?  Emília tem razão. Vamos rezar. – Admitiu a sumo-sacerdotisa, de tão cansada.

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César e a Vestal 84 Maria Galito

As raposas de Arpino estavam de marcha forçada em África. Mário partira para o exílio na companhia de Mariozinho, levando consigo um irmão e três sobrinhos. Mas só quatro destes seis homens constavam da lista publicada por Sila.

Os sobrinhos eram filhos de duas irmãs já falecidas do comandante e por ele adotados. O mais famoso era Gratidiano. Os outros eram os irmãos Grânio.

Os outros oito nomes da lista eram Albinovano, Bruto, Cetego, Letório, Rúbrio, Carbão, Sulpício e Censorino. Todos se tinham oposto a Sila nos últimos anos. O primeiro era pontífice. Meteu-se em trabalhos ao discursar contra o envio de Sila para a Ásia, durante o seu mandato de tribuno da plebe. Não foi por falta de aviso que houve problemas em Roma. Albinovano fartou-se de pedir para termos cuidado com o patrício de cabelos rubros. Meteu-se em fuga e andou de rabo ripado durante uns tempos, meio perdido do juízo, a pensar que morria!

Bruto, Cetego e Letório eram amigos de Marco e de Apuleia. Não admira que eu tenha ficado com medo pelo meu irmão, não fosse ele meter-se em sarilhos, a fazer o que não devia. Cetego era patrício de família decadente, levantava a crista e armava-se em galo, mas não tinha ouro para luxos! Letório era filho de um falecido aliado de Caio Graco. Bruto era o mais poderoso da alcateia, por ter defendido Roma com estatuto de pretor. Era casado com a primogénita de Servílio. Tinha fama de jurista. Podia não ter grande queda para as vitórias militares, mas era corajoso e estava sempre preparado para a luta! Carbão, Censorino e Rúbrio eram inimigos dos Cecílios. O primeiro fora pretor um ano antes da invasão e, ao aplicar a justiça nos tribunais, chamara a atenção de Sila que, desde então, o detestava. Os outros dois eram menos experientes, mas tinham defendido as paredes das muralhas com determinação férrea. Para os populares eram heróis. Para os

optimates eram detestáveis.

Sulpício não sobreviveu à perseguição. Reconhecido pelos seus dotes de oratória, gabava-se de memória prodigiosa e de não recorrer a anotações para falar em público. Talvez por isso, os seus discursos raramente eram transcritos para papiro e deles não há registo. Tinha fama de talento inato e divino. Mas era mais vaidoso do que facioso! Não sabia medir a gastos. Era perdulário atolado em dívidas que virou caça dos seus credores. Mário prometeu ajudá-lo a saldar as contas se, em troca, o ajudasse a obter o comando da guerra contra Mitridates. Sulpício aceitou o desafio e ganhou as eleições para tribuno da plebe. Antagonizou-se com Sila e impediu Vopisco de ser cônsul, queixando-se que o adversário não tinha sido pretor e que, portanto, a sua candidatura ao cargo era irregular. Vopisco e Sila aliaram-se contra ele e obtiveram a sua vingança.

 A cabeça de Sulpício está exposta nos rostra! Um espetáculo macabro e triste de se ver! – Suspirou Perpena, quando entrou no templo.

Ela vinha da rua e observara o presente que Sila trouxera da cidade de Nola.  Se isto continua assim, eu nunca mais ponho o pé fora do santuário! – Ameaçou

a sumo-sacerdotisa.

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César e a Vestal 85 Maria Galito

 Sila quer matar todos os populares? Tenho medo pelo meu avô. – Disse Perpena.  Devíamos estar mais preocupadas connosco. – Foi o egoísmo de Popília.

Mas a vestal máxima deu-lhe razão.

 Sim, o povo pode virar-se contra nós a qualquer momento.  Contra mim? – Queixou-se Fonteia, levando as mãos ao peito.

 Claro! Somos todas vestais, independentemente no partido das nossas famílias.  Foi a chefe quem deixou apagar o fogo! – Avisou Popília, para se livrar das culpas.

Elas estavam à beira do conflito, novamente. Tive de intervir:

 Devemos estar calmas neste momento de dificuldade. Oremos. – Pedi.

Vesta apaziguou-nos e o tempo passou. Mas ninguém aprendeu com a lição! A primeira invasão de Sila foi uma espécie de ritual de iniciação, que verteu sangue antes de a noiva se pentear com seis tranças e consumar o matrimónio.

 Como assim? Não estou a perceber. – Perguntei no colégio de pontífices.  Mamerco vai casar com Cornélia. – Anunciou Cévola.

Mamerco era pontífice e primo do meu pai. Ao mesmo tempo era irmão do falecido Druso e, portanto, sobrinho de Rutílio cuja irmã era sogra de Júlia, a esposa de Mário. Cornélia era filha de Sila.

 Uniram-se as famílias. – Avisou Mamerco, orgulhosamente, perante os colegas. As jogadas políticas, em Roma, eram tão intrincadas que conseguiam surpreender-nos.

O casamento foi uma festa de arromba! O colégio dos pontífices fez questão de marcar presença na cerimónia – exceto Albinovano, que andava a coxear por montes e vales naquela altura! Fonteia e Perpena ficaram a vigiar o fogo sagrado, mas Metela insistiu em levar-me, pelo que fiz companhia à sumo-sacerdotisa e a Popília no cortejo religioso. Cévola encabeçava a comitiva. Enquanto pontífice máximo, fora contrário à invasão do pomério. Mas declarara apoio ao líder do partido, para manter a cabeça sobre os ombros. Também preferia Roma governada pelos optimates do que pelos populares. Não

A consciência pesou-me a caminho da festa. Eu não mostrara qualquer interesse em aceitar o convite de Sila, era uma voluntária à força em todo aquele processo e ainda só tinha treze anos. Mas não conseguia vencer a agonia da viagem! Dentro do carpeto era um solavanco atrás do outro e bati, várias vezes, com a cabeça no teto de pano! Os transeuntes deixavam passar a nossa carruagem, mais por medo de serem atropelados, do que por consideração pelos pontífices que nada faziam para impedir a desgraça e nela pareciam participar alegremente!

Também constatei, naquele carrocel por ruas esburacadas, que o cidadão comum continuava entretido na sua vida, entre tecidos para túnicas, placas de cera para escrever, varapaus e todo o tipo de armas que usavam para se ferirem uns aos outros e, ultimamente, a moda era bater no vizinho! Mas os cheiros, os suores, os excrementos e a falta de escrúpulos, revolveram-me as tripas.

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César e a Vestal 86 Maria Galito

 Já chegámos! É aqui. – Avisou o pontífice máximo, antes de apear-se.

A balbúrdia era grande. As pessoas acotovelavam-se à porta enquanto as liteiras se atropelavam junto ao homem que vendia bifanas. Ou ali casava a filha de Sila ou tínhamos chegado às corridas!

 Está um frio de rachar! – Queixou-se Popília, voltando-me as costas, para não ver o quanto eu regurgitava de vergonha.

 Acalma-te, Emília. – Pediu Metela, pegando-me pelas tranças para eu não cair. Havia muitos convidados à porta, a quererem entrar. Outros eram expulsos da festa a pontapé! A vestal máxima hesitou em avançar, ao ver o voo picado que os indesejados faziam ao estamparem-se no chão:

 Dentro do templo estava tão quentinho! Não devíamos ter saído de lá numa noite gelada como esta…

Popília enrolou-se ao manto que a cobria e tomou a frase pelo seu valor facial:  Até me doem os ossos!

 Estás melhor, Emília? – Preocupou-se Metela. – Anda comigo.

Eu estava preocupada com o Pater e sobretudo com o meu irmão. Sabia, de antemão, que eles tinham sido convidados para a festa e temia pela segurança de ambos. Mas talvez eu pudesse ajudá-los! Em teoria, uma vestal salvava as pessoas em quem tocava.

O mordomo desfez-se em salamaleques para receber condignamente os representantes da religião romana. Avançámos, assim, para vestíbulo de mesurices e mar policromático de perigosidade elevada, como quem entra no covil de um animal selvagem aparentemente amistoso.

Medi os passos atrás de Metela, sob a luz de grandes archotes. Ela conhecia os cantos à casa e ajudava Cévola a encontrar o peristilo, num edifício aquecido com lareiras. Popília seguia a meu lado, de rosto pregado nos frescos satíricos e libertinos da casa de Sila.

 Vestais não podem entrar num sítio pintado desta maneira! – Resmungou Popília.  Não olhes. – Pediu Metela, marchando à sua frente com autoconfiança.

 Eu não estou a olhar! – Garantiu Popília, o que não era verdade.

Os painéis de cores berrantes desenhavam figuras em tamanho natural. Eu recordo os tripés traçados e os tabuleiros cheios de comida, mas também havia nus integrais. À direita, o artista pintara seios redondos semideitados com faunos dissolutos a beber de cornucópias. Há esquerda, havia rapazinhos a brincar como malabaristas, uns por cima dos outros. Mas nem todas as pinturas eram escaldantes. Algumas eram violentas. Nas paredes havia leões a comerem caçadores; panteras a engolirem cabeças de gladiadores, cujo sangue espirrava do pescoço; e cavaleiros com espadas na mão, rodeados de gente degolada. A uma curva, antes do recinto pincelado de convidados, havia um painel de pedrinhas onde figurava um Priapo de pernas abertas e punhos cerrados, barbudo e musculoso que, do baixo-ventre, crescia um pau com trevo de quatro folhas germinado na ponta.

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César e a Vestal 87 Maria Galito

 Para onde estás a olhar, santinha? – Perguntou-me um homem com cara de vinho. Popília deixara-me para trás. Portanto, eu estava sozinha com três faunos.  Não te metas com ela, Róscio! É uma vestal. – Pediu-lhe o mais maquilhado.

Eles observavam-me, de alto-a-baixo, mas com distanciamento.  Conheces-me? Sou um grande ator. – Gabou-se o embriagado.

Encolhi os ombros. Nem que quisesse eu podia identificá-lo.  Não frequento o teatro, lamento. – Avisei.

O interlocutor deu dramatismo à voz e aos gestos:  Ora essa! Eu sou Róscio, o maior comediante de Roma!

Achei piada ao seu desempenho, mas sorri serenamente. A minha reação causou-lhes espanto. Entreolharam-se, hesitando no que fazer. Depois viraram-se para mim e apresentaram-se:

 Eu sou Sorex, o pantomineiro. Este é Metróbio, que faz papel de mulher no teatro, pelo que se pensa mais sensível do que nós. – Disse o mais ágil dos três.

Cumprimentei-os com um aceno de cabeça. Eles apreciaram a saudação.  Pareces simpática. Como te chamas? – Perguntou Róscio.

 Emília. – Confessei, depois de retroceder um passo.

 Não temas, santinha. Não te fazemos mal. – Tartameleou Róscio, de tão ébrio. Eu só soube que estava em segurança quando Metróbio, o líder do grupo, reuniu as hostes. Ele tinha mais força do que parecia e Róscio não hesitou em cumprir as suas ordens.

 Deixem a sacerdotisa em paz, antes que Vesta nos castigue!

Sorex fez-lhe a vontade, mas não se foi embora sem me dar um conselho:  Isto não é lugar não é para ti, virgem santíssima. Quando puderes, vai-te embora.

Engoli em seco e corri para junto das minhas colegas.

 O que queriam aqueles homens, Emília? – Perguntou Popília.

Cévola e Metela saudavam os convidados, sem desconfiarem de nada.  Advertir-me sobre Sila, creio eu…

 Não devias falar com eles. Não têm respeito pelas vestais ou pelas instituições da cidade. – Repreendeu Popília. – É gente dissoluta, que frequenta as tabernas mais rascas de Roma e gosta de desafiar as regras da sociedade.

 E aquele ali é quem?

A minha intenção não era interromper-lhe o raciocínio. Mas, à esquerda, um dos convidados mostrava as nádegas a uma escrava que fugia de susto com a travessa na mão, espalhando comida pelo caminho, em direção à cozinha.

 Por todos os deuses, mas o que é isto?! – Sarapantou-se Popília. – Vou já queixar-me ao pontífice máximo. – Foi a sua declaração de intenções.

Marchou em direção a Cévola e reclamou contra a imoralidade vigente. Ele ouviu-a até ao fim, mas lembrou-lhe que Sila invadira a cidade com o seu exército e que o melhor era

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