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Entre palavra e imagem: um espaço possível

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Academic year: 2021

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Programa de Pós-Graduação em Letras e Lingüística

Rua Barão de Geremoabo, nº147 - CEP: 40170-290 - Campus Universitário Ondina Salvador-BA Tel.: (71) 263 - 6256 – Site: http://www.ppgll.ufba.br - E-mail: pgletba@ufba.br

ENTRE PALAVRA E IMAGEM: UM ESPAÇO POSSÍVEL

por

MARIA JULIA ALVES DE SOUZA

Orientadora: Profª Drª Elizabeth de Andrade Lima Hazin

SALVADOR 2004

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Rua Barão de Geremoabo, nº147 - CEP: 40170-290 - Campus Universitário Ondina Salvador-BA Tel.: (71) 263 - 6256 – Site: http://www.ppgll.ufba.br - E-mail: pgletba@ufba.br

ENTRE PALAVRA E IMAGEM: UM ESPAÇO POSSÍVEL

por

MARIA JULIA ALVES DE SOUZA

Orientadora: Profª Drª Elizabeth de Andrade Lima Hazin

Tese de Doutoramento apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras e Lingüística do Instituto de Letras da Universidade Federal da Bahia, como parte dos requisitos para obtenção do grau de Doutor em Letras.

SALVADOR 2004

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Biblioteca Central - UFBA

S729 Souza, Maria Julia Alves de,

Entre palavra e imagem : um espaço possível / Maria Julia Alves de Souza. - 2004.

280 f. : il.

Orientadora : Profª Drª Elizabeth de Andrade Lima Hazin.

Tese (doutorado) - Universidade Federal da Bahia. Instituto de Letras, 2004.

1. Sociolinguística. 2. Linguagem e cultura. 3. Comunicação visual. 4. Sinais e símbolos na comunicação visual. I. Souza, Maria Julia Alves de. II. Universidade Federal da Bahia. Instituto de Letras. III. Título.

CDU - 81’27 CDD - 306.44

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ENTRE PALAVRA E IMAGEM: UM ESPAÇO POSSÍVEL

Tese aprovada como requisito parcial para obtenção do grau de Doutor em Letras, Universidade Federal da Bahia, pela seguinte banca examinadora:

Albertina Ribeiro da Gama ___________________________________________________ Doutor em Filologia Românica e Lingüística, Université de Lettre, Strasbourg, França Universidade Federal da Bahia (PPGLL/UFBA)

Antonia Torreão Herrera_____________________________________________________ Doutor em Letras, Universidade de São Paulo (USP)

Universidade Federal da Bahia (PPGLL/UFBA)

Elaine Figueira Norberto Silva_________________________________________________ Doutor em Economia, Universidade de Paris IX (Paris-Dauphine), França

Universidade Federal da Bahia (FCE/UFBA)

Elizabeth de Andrade Lima Hazin  Orientador __________________________________ Pós-Doutor em Lingüística, Letras e Artes, Universita degli Studi di Roma, U. Roma, Itália Universidade Federal da Bahia (PPGLL/UFBA)

Maria Irene de Queiroz Ferreira Szmrecsanyi_____________________________________ Pós-Doutor em Ciências Humanas, Universidade de Oxford, U.O., Inglaterra

Universidade de São Paulo (FAU/USP)

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Existe neste ciclo,(...) amor, trabalho, tempo.

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____________________________________________________________________________ AGRADECIMENTOS

Somente a presença constante da minha família e dos meus amigos poderia gerar a energia necessária para realizar este trabalho.

Agradeço especialmente:

- A Mauricio, pelo seu amor. Todo o estímulo, a fé e a paciência nascem daí.

- À minha pequenina Ana. A sua chegada encheu nossos corações de amor, alegria, esperança e força.

- Aos meus queridos pais e irmã, pelo amor e por acreditarem em mim, sempre. - Aos meus avós queridos, Hilda e Carlos. Vocês moram em meu coração. - À família Pedrão pelo apoio e carinho de sempre.

- À querida Elizabeth, por sua dedicação e carinho. É uma grande felicidade tê-la como orientadora e amiga.

- A amiga Ana Lúcia, pelas conversas, pelos livros, pelo afeto e amizade.

Agradeço também:

- A todos os professores do Programa de Pós-Graduação em Letras e Lingüística da UFBA. Em especial, as professoras Albertina Gama e Antonia Herrera, pela atenção e carinho de sempre.

- Aos funcionários da Pós-Graduação. Em especial, Cristiana, por tudo. - Aos colegas, pela troca de conhecimento e afeto.

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____________________________________________________________________________ RESUMO

O objetivo deste trabalho é a tentativa de propor o conceito de texto-objeto como instrumento de análise de universos intersígnicos, nos quais palavra e imagem se entrelacem. Tal conceito resulta complexo em diversos sentidos: abrange muitos elementos – além das idéias de palavra e imagem, diz respeito às fronteiras com a arte, literatura, comunicação -; é observável sob diferentes aspectos e apresenta seus elementos de modo intrincado. Daí termos julgado importante a apresentação, aqui, de uma reflexão sobre as transformações do pensamento ocidental ocorridas desde o final da Era Medieval até a realidade contemporânea, a partir justamente da história das transformações da relação entre palavra e imagem.

A compreensão da realidade atual não pode pretender espelhar o real, mas deve estar fundamentada na vida concreta, segundo parâmetros sempre móveis. O pensar o mundo e o agir no mundo devem ser legitimados, portanto, pelo contexto presente. Dadas essas condições e limites do pensar hoje, as questões sobre linguagem se impõem como fundamentais.

A partir da noção de contingência como diferenciadora da Pós-Modernidade, tomamos como parâmetros teóricos para a elaboração do conceito de texto-objeto: a perspectiva marxista de análise da realidade, o pensamento de Wittgenstein sobre os limites da linguagem e a concepção de agir comunicativo de Habermas. E como apoio para o desenvolvimento da idéia de texto-objeto, utilizamos as iluminuras medievais e a escrita ideogrâmica oriental; esta última, segundo a abordagem do cineasta inglês Peter Greenaway no filme Livro de Cabeceira.

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____________________________________________________________________________ ABSTRACT

The objective of this work is the tentative of proposing the concept of text-object as instrument of analysis of intersignic universes, where word and image are intertwined with each other. Such a concept has a complex result in many aspects: as it includes many elements –beyond the ideas of word and image, refers to the boundaries with art, literature and communication -; it can be observed under a variety of features, and presents its elements in intricate ways. Hence having judged important this presentation, on the reflexion of transformations of the Occidental thought that happened since the end of the Middle Ages through the contemporary reality, taking as a start point the history of transformations between word and image.

The comprehension of the present reality will not intend to mirror what is real, but should be based in the concrete life, always within flexible parameters. The way of thinking the world and living the world must be legitimated by the present context. Given this conditions and limits of the thinking nowadays, the imposed matters by language appear as fundamental.

Given the notion of contingency to differentiate of pos-modernity, we take as theoretical parameters for the elaboration of the text-object concept: the Marxist perspective of analysis of reality, the thought of Wittgenstein about limits of language and the concept of the communicative action from Habermas. As a support for the development of the idea of the text-object, we use the medieval illumination and the oriental ideogram writing. This last one according to the approach of the movie director Peter Greenaway in the film The Pillow Book.

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____________________________________________________________________________ SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 8

CAPÍTULO I–RES E VERBA:O ANÁLOGOS MEDIEVAL 19

1. Idade Média e representação artística 21

2. A imagem do livro 27

3. A palavra iluminada 40

4. Ilustrações 60

CAPÍTULO II–A CONSTRUÇÃO DO SIGNO VAZIO E O DISTANCIAMENTO

ENTRE AS PALAVRAS E AS COISAS 74

1. Configuração do pensamento moderno: da analogia à racionalidade 75

2. A linguagem no romance e nas poéticas modernas 106

3. Da mimesis a poiesis 117

4. A transformação do pensamento moderno 133

5. O fim da modernidade e as transformações na linguagem artística 143 CAPÍTULO III–PENSAMENTO, LINGUAGEM E COMUNICAÇÃO

NA PÓS-MODERNIDADE 156

1. Pós-modernidade e contingência: realidade, pensamento e linguagem 157

2. Linguagem e sociedade: a dialética do signo 171

3. Wittgenstein e a comunicação como jogo de linguagem 184 4. Habermas e a comunicação como ação emancipadora 199 CAPÍTULO IV–O ESPAÇO CONTEMPORÂNEO DA PALAVRA E IMAGEM:

SINCRONICIDADE, FRAGMENTAÇÃO E MOBILIDADE 218

1. Pós-modernidade e linguagem artística: um novo olhar

sobre a imagem e a escrita 219

2. A escrita oriental e a imagem da palavra 233

3. O Livro de Cabeceira como uma introdução à idéia de texto-objeto 240

3.1. Imagens 253

4. O texto-objeto como parâmetro conceitual 265

PALAVRAS FINAIS 270

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I

NTRODUÇÃO

Quando eu morrer morre comigo um certo modo de ver.

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Uma das características fundamentais do ser humano é a capacidade de transformar sentimentos em imagens. E tudo que é expresso em imagens retorna ao próprio homem modificando-o, acrescentando-lhe algo novo. O estudo da complexificação da relação entre homem e mundo – o da própria história, portanto - não pode deixar de lado o papel da produção e percepção de imagens.

O homem produz imagens há mais de 25 mil anos, mas só começa a escrever 15 mil anos depois. A relação entre texto e imagem surge quando nasce a própria escrita e, desde então, os universos visual e verbal, ao mesmo tempo em que têm tido suas características específicas definidas e seus limites mais e mais demarcados, têm sido inter-relacionados de diversas formas.

De um modo bem diverso do ocidental, a estrutura do pensamento oriental criou a escrita ideogrâmica, cujo significado condensado produz a impressão inicial de que os universos verbal e visual se misturam numa harmonia incompreensível à lógica do Ocidente. Entretanto, uma reflexão sobre as transformações das relações entre texto e imagem dentro do último milênio nos leva a acreditar que a Idade Média ocidental também vivenciou uma espécie de equilíbrio entre imagem e palavra com a produção das iluminuras, ainda que a imagem pura tivesse sua importância assegurada num mundo de iletrados. Mas, pensando nas iluminuras, certamente a relação entre o texto e a imagem era trabalhada de forma indissociável e complementar.

O Renascimento intensificou a reprodução do visível fazendo crescerem as possibilidades de representação visual do mundo. O mundo moderno terminou por sobrevalorizar o racional em nome do progresso e elevar a função da palavra – signo lógico por excelência – a uma posição muito acima da imagem. Mas foi esse mesmo mundo moderno, privilegiador da palavra, que criou as primeiras máquinas de reprodução do visível, fato que representou o grande passo em direção à expansão da imagem vivida pelo século XX e ao universo virtual do século XXI.

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A máquina fotográfica foi elemento fundamental na reestruturação de uma nova relação entre homem e imagem no mundo moderno. A fotografia inaugurou a possibilidade de reprodução infinita da realidade, a sua duplicação; ou mesmo a sua captura definitiva. A fotografia, roubando um pedaço da vida, eterniza o que já passou. Porém, ao mesmo tempo em que parece ser uma doce vingança contra a mortalidade, lembra-nos que vida é morte. Eterniza a morte fazendo crer que imortaliza a vida. A fotografia é um duplo de algo que não existe mais. A sua presença lembra a ausência do que ela capturou.

Essa conscientização da possibilidade do duplo fez surgirem, ainda no século XIX, as principais teorias sobre o signo e a linguagem, problematizando o duplo, assim como as relações entre pensamento e realidade. Até então, a linguagem era vista como algo natural. A modernidade traz a consciência de que a linguagem não é natural. O signo substitui algo que não está ali, lembra a ausência do objeto representado.

A visualidade se desenvolveu cada vez mais, e a fotografia foi colocada em movimento. O cinema é mais um representante da aventura humana em busca do signo perfeito. Aventura angustiada, pois o próprio homem sabe que no momento em que tornar possível a produção de tal signo, a realidade se tornará desnecessária; como, poeticamente, imaginou Bioy Casares no seu romance “A Invenção de Morel”1.

A conseqüência da capacidade do homem de compreender o mundo é o seu afastamento do próprio mundo. A linguagem rompe a ligação do homem com a natureza. Faz compreender, por isso separa. A fotografia é o modelo dessa separação, estabelecendo um corte plenamente perceptível entre o homem e a realidade.

A pintura quis um dia ser fotografia. E, quando a fotografia foi inventada, a pintura teve que se reinventar. Ao contrário da idéia de que a fotografia acabaria com a pintura - ou de que o cinema acabaria com a literatura -, o que vemos é que cada

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linguagem criada, ao contrário de destruir as anteriores, une-se àquelas, aumentando as possibilidades de representação.

As experiências com a intermídia têm afirmado a necessidade de uma reintegração dos sentidos, superando o privilégio alcançado pelo olhar racional, no mundo moderno, em detrimento das outras sensações. O homem desenvolve forças de destruição e preservação diante do mundo e, acreditando que apenas algo que é plenamente substituível pode desaparecer, vemos nesse processo as diversas linguagens modificando-se, complementando-se, afastando-se, relacionando-se, estimulando-nos, assim, a pensar mais profundamente as suas relações. Aqui, propomos uma reflexão histórica e teórica sobre as relações entre as linguagens verbal e visual.

De um modo geral, podemos afirmar que a Idade Média experimentou a união entre texto e imagem, o Renascimento privilegiou a imagem e a modernidade exaltou a linguagem escrita. A contemporaneidade, por sua vez, vive novamente a possibilidade de reunir palavra e imagem, exigindo que o homem contemporâneo desenvolva novas estratégias não apenas de expressão, mas igualmente de percepção e compreensão do mundo, aproveitando o trânsito entre as diversas linguagens e possibilitando que uma linguagem ensine a perceber outra.

No momento em que tudo é linguagem, o próprio olhar é um constructo, uma espécie de representação, um signo. Nenhum olhar é inocente. Será sempre um modo de perceber as coisas. Somos máquinas interpretativas e precisamos buscar meios de compreensão de todo esse processo de expressão/percepção/interpretação do mundo e de nós mesmos.

***

Interações indissolúveis entre palavra e imagem são facilmente observáveis em diversificados processos de comunicação, tais como: publicidade, poesia visual, artes plásticas, cinema e, inaugurando experiências realmente inovadoras, o espaço virtual das multimídias e hipermídias.

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A força crescente com que as imagens têm invadido o cotidiano contemporâneo desde o advento da imprensa, combinada com o lugar central ocupado pela linguagem verbal no pensamento moderno/contemporâneo ocidental, justifica o objetivo geral desta pesquisa de tratar das relações entre palavra e imagem.

Estudos nesse sentido se multiplicam. Entretanto, em sua maioria, abordam o tema, ou privilegiando o paralelismo entre os dois tipos distintos de representação - verbal e visual -, ou ressaltando o domínio da linguagem verbal sobre a imagem, ou ainda aplicando categorias do sistema verbal em análises de elementos pertencentes a sistemas não-verbais.2

Buscamos aqui pensar a relação entre imagem e texto tentando extrapolar problemas do tipo encontrar e descrever processos interativos de palavra e imagem, privilegiando questões como: “o que há de imagem na palavra e de palavra na imagem?”, no sentido de buscar formulações teóricas que ajudem a compreender a história das relações entre texto e imagem, construindo idéias que, longe de objetivar privilegiar um ou outro sistema sígnico, tentem explorar as fronteiras desses sistemas, ajudando a refletir sobre fenômenos complexos com categorias também complexas.

No século XX, século que elegeu a palavra como elemento preponderante, mas que dialeticamente foi invadido pelas imagens, tivemos um grande número de teóricos que se ocuparam de forma significativa de questões que tratam do universo intersessivo das relações entre palavra e imagem.

2 Sobre estudos que privilegiam o paralelismo entre verbal e visual ver PRAZ, Mario. Literatura e Artes

Visuais. São Paulo: Cultrix, 1982. (principalmente o capítulo I: “Ut Pictura Poesis”). Jacques Aumont, por

sua vez, é um exemplo de teórico que ressalta o domínio da linguagem verbal sobre a imagem: “... vamos só lembrar que não há imagem “pura”, puramente icônica, já que para ser plenamente compreendida uma imagem necessita do domínio da linguagem verbal.” (AUMONT, Jacques. A Imagem. 2. ed. São Paulo: Papirus, 1995, p. 248). Já em relação à aplicação das categorias do sistema verbal em análises de sistemas visuais, destacamos especialmente o método dos semiologistas.

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Pound definiu a poesia como o máximo de significação concentrada no mínimo de espaço-tempo, aproximando-a da imagem visual e da música. Para ele, poesia é concentração, condensação, tensão de significados.3

Barthes também tratou da relação texto e imagem através da poesia. Em seu livro “A Estratégia dos Signos”, Lucrécia Ferrara aborda o pensamento de Barthes, segundo o qual a poesia seria um pilar que mergulha num total de sentidos, de reflexos, de remanências, um signo de pé.4

Compartilhamos das seguintes indagações feitas por Lucia Santaella no seu texto Palavras, Imagens e Enigmas:

“Como discorrer ingenuamente sobre a palavra, depois de Sausurre, Jakobson, Chomsky, mas principalmente depois de Derrida e Lacan? É possível, por outro lado contemplar qualquer imagem e pensar sobre ela, ignorando as gigantescas figuras de Gombrich, Arnheim, Panofsky e a escola Gibsoniana? Como falar sobre ambas depois de Peirce? Palavra e imagem não são mais o que os iluministas sonhavam que fossem: meios transparentes através dos quais a realidade se apresenta à compreensão. Elas se tornaram tão enigmáticas, problemas para serem decifrados, quanto é enigmática a realidade que, sempre com certa distorção e ambigüidade, elas intentam representar.”5

Por causa do enigma presente na palavra e na imagem e, ainda mais na relação entre elas, buscamos, a partir de um mergulho no enredamento teórico em que palavras e imagens estão entretecidas, e da escolha de algumas manifestações que representam uma simultaneidade significativa entre texto e imagem, desenvolver a idéia de texto-objeto

3 POUND, Ezra. ABC da Literatura. 8. ed. São Paulo: Cultrix, 1998, p. 40.

4 FERRARA, Lucrécia D’Aléssio. A Estratégia dos Signos. São Paulo: Perspectiva, 1981, p. 78. 5 SANTAELLA, Lúcia. Palavra, Imagem e Enigmas. Revista USP, v. 16, dez-jan-fev. 1993, p. 36-37.

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como um instrumento de análise útil às reflexões próprias ao universo intersígnico que acolhe texto e imagem, simultaneamente.

Todavia, alguns problemas que envolvem conceitos fundamentais deverão ser enfrentados inicialmente, como o próprio conceito de imagem.

O componente iconográfico das expressões sígnicas que serão trabalhadas complexifica a questão da “imagem do texto”. Portanto, em lugar de tratar de imagens no sentido de percepção do mundo espacial - cores, texturas, superfícies, formas, etc. -, ou, por outro lado, de percepção do mundo simbólico - sinais e símbolos escritos -, será preciso tratar da imagem no espaço entre essas duas concepções.

De saída, algumas perguntas se impõem. O que leva um sistema sígnico a se afirmar em outro sistema sígnico? Por que a palavra buscaria a imagem, ou vice-versa?

Não é na imagem espacial ou na imagem textual, mas no diálogo entre esses dois modos de percepção, que poderemos obter respostas a essas perguntas. Margueritte Duras, por exemplo, que, com a experiência de quem criou textos e imagens, teorizou sobre eles e “recorria à imagem por insuficiência das palavras, retornando às palavras devido à insuficiência da imagem.”, esperando um dia haver “uma escrita da não-narrativa”6, nos legou algumas pistas:

“Um dia isto virá: uma escrita breve, sem gramática, uma escrita de palavras sozinhas. Palavras sem apoio de gramática. Ali, escritas. E logo deixadas de lado.”7

Deleuze também afirma que as fronteiras entre as linguagens são espaços de crescimento das possibilidades de representação e percepção e, conseqüentemente,

6 GUIMARÃES, César. Imagens da Memória: entre o legível e o visível. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1997, p. 30.

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espaços onde a capacidade do homem de compreender e crer no mundo pode ser consideravelmente ampliada.

“O que a fala profere é também o invisível que a vista só vê por vidência, e o que a vista vê é o que a fala profere de indizível.”8

O primeiro problema específico será afirmar a unidade entre imagem e texto nas iluminuras medievais. O livro iluminado, obra espantosa da Idade Média, apresenta palavra e imagem unidas de modo indissociável, cada uma agindo na especificidade das suas naturezas, mas, principalmente, as duas agindo pela interrelação entre elas para levar a um mais completo entendimento da mensagem que precisava ser transmitida e o mais amplamente compreendida (intelectual, emocional e espiritualmente).

“O homem é, na verdade, um ser material que, embora aceda à abstração, necessita da imagem, seja ela abstrata, seja ela concreta. Por isso, a representação plástica - o desenho, a pintura, etc. - não se destina apenas, como imagem, a iluminar o discurso do verbo: ao torná-lo visível por outra forma, aprofunda-lhe o significado e acrescenta-lhe o entendimento que a palavra por si só, não logra atingir. De algum modo, a dualidade palavra-imagem reflete, como em espelho, a própria dualidade da essência humana.”9

O problema seguinte será tratar da ruptura com o modo de representação medieval vivida pela modernidade. As profundas modificações no pensamento ocorridas a partir do final da era medieval são as bases para o distanciamento entre os modos racionais e intuitivos de percepção e relação com o mundo que caracterizou o pensamento moderno. Através de uma reflexão sobre as poéticas e o romance modernos é possível se perceber a consciência do intervalo entre realidade e pensamento, vivenciada pelo homem moderno, condensada no pensamento de Kant.

8 DELEUZE, Gilles. Cinema II: a imagem-tempo. São Paulo: Brasiliense, 1990, p. 138

9 MINISTÉRIO DA CULTURA/BIBLIOTECA NACIONAL. A Iluminura em Portugal: Identidade e

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A hegemonia do verbal convive na modernidade com a consciência do limite do verbal para representar a realidade – e a verdade. Aliás, o pensamento moderno tem consciência do limite de qualquer representação. Os signos e as imagens estão, portanto, justamente nesse intervalo entre consciência e real. Por causa desse limite, imagem e palavra passam a constituir universos independentes e auto-suficientes. Pelo seu valor em si, cada linguagem passa a possuir sua própria verdade. Não são mais cúmplices na realização de uma verdade maior – como a Verdade de Deus, na Idade Média.

Serão as transformações do pensamento moderno e das tecnologias que configurarão uma nova relação entre as linguagens, indicando uma reaproximação entre palavras e imagens na contemporaneidade. Após algumas reflexões sobre os limites entre Modernidade e Pós-Modernidade é possível se chegar a uma compreensão do pensamento e realidade contemporâneos. Assim como, a partir do pensamento sobre a linguagem desenvolvido por alguns teóricos fundamentais – como Bakhtin, Wittgenstein e Habermas - e de algumas expressões sígnicas contemporâneas, é possível se chegar a alguns consensos sobre novas relações possíveis entre palavras e imagens - entre os campos perceptivos racionais e não-racionais - que possibilitarão o desenvolvimento da idéia de texto-objeto.

O problema seguinte será considerar os ideogramas orientais modelos de texto-objeto. Para Pound, assim como a escrita oriental, a poesia é condensação (poetizar = condensar). O pensamento ocidental tende à separação. O homem ocidental precisa separar-se do seu “objeto” para compreendê-lo.

“O ideograma chinês não tenta ser a imagem de um som ou um signo escrito que lembre um som, mas é ainda o desenho de uma coisa; de uma coisa em uma dada posição ou relação, ou de uma combinação de

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coisas. O ideograma significa a coisa, ou a ação ou situação ou qualidade, pertinente às diversas coisas que ele configura.”10

O significado da escrita oriental foi tratado pelo cineasta inglês Peter Greenaway em seu filme Livro de Cabeceira. Pensaremos a escrita ideogrâmica a partir dessa abordagem, pois consideramos que o diretor nos apresenta e explica, através da linguagem cinematográfica, a noção de texto-objeto.

“- A palavra significando chuva deve cair como chuva, a palavra significando fumaça deve flutuar como fumaça. Não tenha medo de cometer um erro, pois o pincel é de madeira, mas o escritor é apenas humano”11

Assim como as iluminuras medievais, a escritura oriental exerce um extremo fascínio aos olhos do ocidente contemporâneo. Considerando sempre que a palavra, a escrita, a leitura e a fruição, para cada um desses contextos (oriental e medieval), são bem diferentes do que são esses mesmos elementos para o mundo contemporâneo ocidental, os produtos desses contextos, entretanto, são para nós inestimáveis exercícios de percepção e importantes instrumentos de ampliação da nossa capacidade de compreender o atual estado de transformações em que vivemos. Revisitações de períodos e processos históricos passados, ou diferentes, se tornam cada vez mais necessárias para a recuperação da consciência histórica do homem contemporâneo. Este talvez seja um caminho para a descoberta de razões para crer neste mundo, como insiste Deleuze.

“O fato moderno é que já não acreditamos nesse mundo. (...) Somente a crença no mundo pode religar o homem com o que ele vê e ouve. É preciso que o cinema filme não o mundo, mas a crença neste mundo,

10 POUND, Ezra. ABC da Literatura. 8. ed. São Paulo: Cultrix, 1998, p. 26. 11 Trecho extraído da narração do filme Livro de Cabeceira de Peter Greenaway.

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nosso único vínculo. (...) Cristãos ou ateus, precisamos de razões para crer neste mundo.”12

(22)

_________________________________________________________________________

C

APÍTULO

I

R

ES E VERBA

:

O ANÁLOGOS MEDIEVAL

Se eliminamos a imagem, não é o Cristo, mas o universo inteiro que desaparece.

(23)

A Idade Média criou alguns dos mais importantes elementos econômicos, tecnológicos e culturais, pilares da vida moderna: a ogiva e a perspectiva; o moinho hidráulico (primeiro passo no desenvolvimento do maquinismo); a letra de câmbio (base do capitalismo); a idéia de amor nos moldes modernos; e até mesmo a noção de morte, que faz parte do imaginário ocidental até os tempos atuais. Porém, mais do que inventar novas técnicas, a Idade Média as difundiu, e esta difusão talvez seja historicamente mais importante do que a própria invenção. Apenas com a sua difusão, uma invenção é capaz de modificar em extensão e profundidade as estruturas de uma sociedade, e tornar-se verdadeiro objeto histórico.

Os estudos avançam e sabemos hoje que a Idade Média da “Lenda Dourada”, construída a partir do final do século XIX e começo do século XX, assim como as precursoras lendas negras renascentistas acerca da Idade Média, é também uma meia verdade. A Idade Média que teria inventado os pilares da vida moderna foi a Idade Média do escrito, uma parte realmente pequena daquela civilização; que, longe de expressar toda a realidade medieval, nos faz correr o risco de criar uma civilização fantasiosa, tomando a parte pelo todo. A outra Idade Média - a da fome, das epidemias, das guerras, da rudeza, do medo e da ignorância - não exatamente completa o quadro da Idade Média dourada, mas principalmente o modifica. Esse lado “negro” certamente desmistifica a imagem daquela Idade Média de cavaleiros heróicos, damas e castelos; mas não a torna menos fascinante. Acentua, sim, sobremaneira, as dificuldades de nos movermos nesse campo de estudo, tal a sua complexidade.

As recentes descobertas – que se baseiam muito menos em documentos escritos, do que nos resultados de pesquisas arqueológicas, geológicas, antropológicas, etnológicas e até climatológicas – não nos levam às camadas nobres reveladas pela historiografia tradicional. Levam-nos, por outro lado, aos alicerces, às estruturas daquela civilização.

Os textos iluminados, objeto central deste capítulo, expressão sofisticada da mentalidade medieval, são um produto que circulou entre uma pequena parte letrada daquela civilização. Mesmo os copistas, muitas vezes eram analfabetos, condição algumas

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vezes desejável para o cumprimento ideal desta função, pois evitava a contaminação desses fiéis por informações consideradas perigosas. Apesar da consciência acerca do vasto universo que se amplia além desta camada “letrada” da sociedade, para tratarmos especificamente das iluminuras, estaremos enfocando prioritariamente essa minoria.

A consciência das estruturas, entretanto, dará o tom desta abordagem. As iluminuras são, sim, expressões de uma minoria, mas a mentalidade que produziu esse tipo de representação não esteve jamais separada das estruturas do seu tempo. Portanto, busca-se busca-sempre um corte transversal entre os diversos níveis, pois as mais altas expressões medievais estiveram sempre enraizadas num terreno bastante difícil. Nesse sentido, através da análise da relação entre imagem e texto, pretende-se acessar elementos da “outra” Idade Média latentes em expressões essencialmente de uma elite. O texto ao qual uma imagem se refere nunca é a única fonte desta imagem. A imagem presentifica a vivência de uma realidade. Dessa forma, contém mais informações do que o texto de referência.

O período entre os séculos XII e XIV nos pareceu ser o mais adequado para esta pesquisa por representar um momento histórico, dentro do longo tempo denominado Idade Média, cujas modificações estruturais são de extrema importância para a formação da futura mentalidade moderna, como será visto no segundo capítulo desta tese. Ao mesmo tempo, esse período possui características essencialmente medievais que irão prolongar-se até a completa afirmação do modo de pensar moderno.

1. Idade Média e representação artística

A unidade cultural do longo período entre os séculos V e XV, sob o título de Idade Média, é bastante enganadora. Essa longa massa de tempo divide-se em três períodos muito distintos, a saber: o período da economia natural primitiva, o período marcado pela cultura da cavalaria e o período da cultura urbana do final da Idade Média. Muitos historiadores consideram que as mudanças entre essas três fases são muito mais profundas do que as mudanças que caracterizam o começo e o fim desse longo período. Não só isso, como os acontecimentos que caracterizam os dois últimos períodos da Idade Média – a

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constituição do germe do individualismo, a partir do desenvolvimento do lirismo cavaleiresco e da vida monástica; a mudança da economia natural para a economia monetária urbana; o naturalismo gótico; e a emancipação da burguesia – são mais importantes para explicar a moderna concepção de vida do que as realizações espirituais da Renascença.

O único elemento que justifica a unificação desse longo período sob uma mesma nomenclatura é a cosmovisão com base numa concepção metafísica concebida pelo cristianismo. Ao longo desse período, apesar da presença permanente das heresias e do sectarismo, o domínio do clero permanece sem concorrentes.

A sociedade do Ocidente Medieval, vivendo em meio a um mundo de calamidades – invasões, guerras, pestes, doenças, adaptação à falta de um poder central e referenciador – passou a valorizar muito mais o conteúdo espiritual da arte do que os antigos refinamentos formais. Além dessa explicação com base na intenção do artista, que se preocupava muito mais com o conteúdo do que com a forma, temos igualmente um retrocesso em relação ao domínio das técnicas: habilidades técnicas foram realmente perdidas com a desestruturação do Império Romano.

O período que se segue à Era Cristã Primitiva – A alta Idade Média – entre os anos 500 e 1000, é geralmente conhecido como Idade das Trevas (apesar desse termo infeliz, definido pelo Renascimento, ser usado ainda hoje para designar todo o período medieval). Esse termo se deve ao fato deste ter sido um período caótico, quando a Europa foi assolada pelas destruições e pilhagens das tribos teutônicas – Godos, Vândalos, Saxões, Vikings. Essa configuração significava uma diversidade de povos e classes e, conseqüentemente, uma variedade e proliferação de estilos e concepções artísticas que, em geral, caracterizavam-se por padrões complexos que, apesar de bem diferentes dos padrões gregos e romanos de beleza, não podem ser considerados primitivos.

Monges e missionários da Irlanda Céltica e da Inglaterra saxônica tentaram aplicar as tradições desses artífices nórdicos à arte cristã, o que resultou em obras de grande êxito, principalmente no que se refere aos manuscritos iluminados, apresentando tramas

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complexas de padrões geométricos e animalistas. Tais padrões sinuosos e expressivos, próprios da arte nórdica, em choque com a tradição clássica que nunca pode ser inteiramente esquecida, provavelmente foram o estímulo para o surgimento de algo inteiramente novo em termos de representação artística na Europa Ocidental.

O surgimento desse novo tipo de representação possibilitou à arte medieval realizar algo que nem a antiga arte oriental, nem a arte clássica alcançaram: os egípcios representavam o que sabiam existir; os gregos, o que viam; e os medievais aprenderam a representar aquilo que sentiam. Para isso, a semelhança com a natureza era um objetivo inteiramente dispensável. O conteúdo e a mensagem sagrada era o que importava.

Assim que a Igreja Cristã estabeleceu o seu poder, a construção de templos tornou-se atividade fundamental, redefinindo os parâmetros para a arte. A forma da construção dos antigos templos foi em parte aproveitada, sendo, porém, totalmente redefinidas as suas funções. Nessa redefinição de funções, a questão de como decorar os novos templos foi um problema com conseqüências importantes. Em relação ao uso das estátuas, quase todos os cristãos primitivos estavam de acordo: o uso de imagens esculpidas era claramente proibido pela Bíblia. Era preciso eliminar da mentalidade dos novos cristãos a antiga idéia de que a imagem era o próprio Deus. O Deus cristão é Uno, Onipotente, invisível; e, por conseguinte, abstrato. A formação desse novo tipo de concepção será de importância fundamental para possibilitar o modo de representar medieval. Essa capacidade de abstrair a idéia do objeto é o que irá colocar os diversos campos sígnico e simbólico num mesmo patamar, pois signos e símbolos serão, durante a Idade Média, meios – complementares entre si – de atingir a Idéia superior.

O Papa Gregório Magno, do século VI, atribuía uma função didática inigualável à pintura, considerada o texto dos iletrados. Entretanto, para cumprir sua função deveria ser simples e clara; só conter o estritamente necessário para a compreensão do conteúdo. A observação da natureza foi abandonada, e as imagens se distanciaram cada vez mais da realidade.

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Por volta de 732, os árabes ocuparam as províncias bizantinas do Oriente Próximo e Norte da África, dividindo mais profundamente a História do Oriente e Ocidente medievais. A Igreja de Roma rompe definitivamente com o Oriente e procura o apoio do Norte germânico, onde a dinastia carolíngia, liderada pelo rei dos francos, aspirava a um poder imperial catalisador. O Papa coloca-se sob a proteção do rei dos francos e lombardos, cuja legitimidade dependia do mesmo Papa, que conferiu a Carlos Magno o título de Imperador. Carlos Magno construiu sua capital em Aachen, na fronteira entre Bélgica, Alemanha e Holanda; e a partir daí, o centro de gravidade da civilização européia desloca-se da Península Ibérica para o Norte dos Alpes; do Mediterrâneo para o Canal da Mancha.

O Império de Carlos Magno não durou muito, mas as realizações culturais do seu reinado revelaram-se muito duradouras. A pretensão de unificar novamente a Europa sob o seu comando, levou Carlos Magno a se inspirar nas realizações clássicas em vários aspectos para estruturar seu império. Nesse sentido, teve um papel ativo na tentativa de restaurar a cultura clássica – movimento que ficou conhecido como Restauração Carolíngia ou Renascimento Carolíngio.

Em 870, o Império Carolíngio já estava de fato desarticulado, o que facilitou novas invasões bárbaras, dentre elas, a invasão viking do Norte ao Oeste da França. Na Alemanha, após a morte do último monarca carolíngio, em 911, os reis saxões tomaram o poder, sendo o maior deles Oto I, que, ressuscitando as ambições imperiais de Carlos Magno, levou à formação de um novo estilo, conhecido como otoniano, cujo realismo expressivo tem feito parte da arte alemã até hoje.

Após a invasão da França, os normandos logo adotaram o legado da civilização carolíngia e o Cristianismo, desenvolvendo a partir de então um estilo de construção que ganhou forma em diversas regiões da Europa. Os bispos e nobres – novos senhores feudais – começaram a afirmar seu poder construindo abadias e mosteiros seguindo esse novo estilo que ficou conhecido na Inglaterra como estilo normando e, no resto da Europa, como estilo Românico.

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O estilo Românico foi a chamada fase da Igreja militante, que precisava se impor diante dos fiéis, acolhendo-os, protegendo-os, sem, é claro, deixar de mostrar a insignificância humana.

O estilo Românico aproveitou as idéias estruturais das antigas basílicas, engrandecendo-as. Mantiveram a estrutura fundamental de uma nave central que levava a uma abside ou coro, cercada de uma ou mais naves colaterais. Porém, o estilo Românico recuperou os arcos redondos da arquitetura romana, aproveitando as colunas que passaram a ser preenchidas por maciças paredes de pedra, dando a sensação da robustez compacta típica do estilo. Os antigos telhados de madeira foram substituídos por fortes telhados de pedra, em parte para evitar os freqüentes incêndios, mas especialmente para dar maior dignidade às construções.

Para sustentar o peso das grandes abóbadas era necessário se construírem pilares e paredes adequados. Este foi um problema enfrentado pelos construtores românicos: era preciso recuperar a arte romana de abobadar grandes edificações.

Os métodos evoluíram e, no lugar de abóbadas maciças passou-se a construir arcos de reforço, preenchidos com material mais leve. Os arcos pareciam nervuras, e esse método culminaria na revolução arquitetônica promovida pelo estilo gótico.

Considerando a contextualização dessas construções, de uma época caracterizada principalmente pela militância da Igreja, outra nova característica pôde ser observada nas igrejas românicas, em contraste com os estilos anteriores: a decoração exterior das igrejas, utilizando-se inclusive as antes proibidas esculturas.

As igrejas românicas foram construídas para acolher multidões de fiéis iletrados que, como “bárbaros”, muitas vezes não sabiam nem mesmo o próprio latim – e que por isso precisavam mais do que nunca das imagens para guardar a palavra de Deus na memória.

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O reflorescimento da escultura monumental trazido pelo estilo Românico foi algo espantoso. O rápido desenvolvimento da escultura em pedra, no período anterior à Primeira Cruzada (1050-1100), refletiu o crescimento vertiginoso do número de fiéis, na sua maioria leigos. E, obviamente, tais imagens destinavam-se a esses fiéis leigos, e não primeiramente aos membros cultos da comunidade monástica.

Os ensinamentos da Igreja foram, portanto, consubstanciados nas esculturas dos pórticos das igrejas, que não mais possuíam a leveza das esculturas clássicas, pois o objetivo do artista medieval era transmitir a mensagem sagrada de forma grandiosa e solene.

Essa também era a principal característica da pintura. O artista não estava empenhado numa imitação fiel da natureza. Preocupava-se com a disposição clara dos símbolos tradicionais, e informações a mais eram, sobretudo, indesejadas. Assim como as formas, as cores também estavam livres da realidade visível, e eram utilizadas principalmente para obter efeitos sobrenaturais. O dourado, o azul profundo e o vermelho vivo eram bastante utilizados.

O período Românico plantou a importância da imagem como ponte para o divino; importância que vai afirmar-se, em seguida, com o Gótico.

O Ocidente nunca experimentou a constância de estilo própria do Oriente e, ainda na segunda metade do século XII, a arte passou por uma expressiva transformação. Desenvolvendo ainda mais a técnica de construção das abóbadas, a França Setentrional introduziu algumas inovações que de início pareciam significar apenas uma evolução técnica, mas, por fim, imprimiram um novo sentido às construções das igrejas.

As catedrais góticas transformaram-se em estruturas de pilares e contrafortes, que tornaram desnecessários quaisquer preenchimentos entre elas. No lugar das robustas paredes românicas, passamos a ver nas catedrais góticas imensas janelas aproveitadas para a elaboração de impressionantes vitrais.

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As novas catedrais propiciavam um mundo diferente às pessoas: diferentemente das igrejas românicas que tinham o objetivo de proteger os fiéis das trevas terrenas, as catedrais góticas tinham o objetivo de levar os fiéis ao céu, ou melhor, trazer o céu aos fiéis.

Do mesmo modo, as esculturas, que nas catedrais românicas pareciam sólidos pilares, ganhavam vida e permitiam uma transmissão das mensagens sagradas de um modo mais completo. Cada figura possuía uma dignidade individual, conseguida pela recuperação da perdida arte clássica, e da preocupação não apenas com o quê representar, mas de como representar. Todavia, para os artistas góticos, esses métodos e técnicas continuavam sendo um meio para alcançar o fim maior.

Enquanto a principal tarefa dos escultores góticos era trabalhar para as catedrais, a dos pintores era iluminar os manuscritos sagrados. E aí também se verificou uma grande mudança: os artistas abandonaram ocasionalmente os livros de modelo para imprimir um tom mais pessoal à sua produção.

2. A imagem do livro

Durante toda a Idade Média, o livro foi um objeto raro, assim como rara foi a sua demanda. A história do livro, como não poderia deixar de ser, desenvolve-se em conformidade com a história do pensamento e a história da arte. E é essa permanente relação que vai nos interessar aqui: as formas de representação artística e as formas de manipulação dos signos da escrita como expressões e índices de uma forma de pensamento. A produção de um livro não tem relação apenas com o nível técnico da sociedade, com a realidade material; mas relaciona-se profundamente com a realidade emocional e intuitiva, com as necessidades abstratas e simbólicas.

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Na Idade Média, o acesso aos livros e documentos escritos estava absolutamente limitado a uma minoria religiosa que, segundo Georges Duby1, significava apenas algumas centenas ou, no máximo, mil pessoas por geração, responsáveis pela conservação desses livros e dessa cultura.

Apesar dos números tão restritos relacionados aos livros na Idade Média, a história do manuscrito, inseparável da história da ilustração, está intimamente ligada à história da sociedade e da cultura, e esse é o recorte que se procura traçar aqui.

A ilustração de livros aparece já desde a cultura egípcia, quando a escrita ideogrâmica estava muito mais próxima de uma comunicação por imagens, como ainda hoje acontece com a escrita ideogrâmica oriental. Os exemplos das imagens de rolos ilustrados gregos que chegaram até nós, por sua vez, apresentam uma ligação estilística muito forte com as imagens dos papiros egípcios.

Além do papiro, o mundo greco-romano utilizou como suporte para a escrita os livros de linho e as tábuas enceradas, chamadas em latim codices – de caudex, tronco de árvore. Esses códices constituíam-se de um conjunto de pequenas tábuas retangulares de madeira, marcadas com margens nos quatro lados. A parte central era encerada, escrevendo-se sobre ela com um instrumento pontiagudo, o stilus, que poderia ser de madeira, metal ou marfim. Essa técnica da tábua encerada permitia que a escrita fosse raspada e repetida quantas vezes fosse necessário, sendo bastante utilizada para exercícios escolares, contas, comunicações oficiais e religiosas breves e como rascunho de obras literárias.

“O códice, antepassado do livro impresso, deriva do latim codex, cis (ou

caudex, cis), tronco de árvore; da madeira se faziam tabuinhas (tabulae),

que, cobertas de cera, podiam receber a escrita; amarradas pela margem, à moda dos livros atuais, formavam os códices; mais tarde os livros

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passaram a ser feitos de papel ou pergaminho, mas a designação de codex permaneceu.”2

Um certo número de tábuas era unido com cordas ou fechos metálicos, formando um díptico, um tríptico ou um políptico, segundo o número. Tem-se notícia de que Carlos Magno, entre os séculos VIII e IX, utilizava esse tipo de suporte em tábuas para exercitar a escrita, e de que esse suporte continuou sendo utilizado durante os séculos XII, XIII e XIV para uso privado. Sabe-se também que os sermões eram escritos com um método semelhante à taquigrafia em tábuas enceradas, que poderiam ser apagadas e utilizadas novamente.

Após o período carolíngio, dificuldades de importação levam à escassez do papiro, difundindo-se, em seu lugar, o uso do pergaminho. Entretanto, o alto custo deste material fez surgir o fenômeno do palimpsesto, que consistia na raspagem ou lavagem da escrita primitiva para a reutilização do suporte. Palimpsesto deriva da palavra grega πάγιν, de novo, e ψήΧω, raspar.

“Isso não sucedeu apenas com o pergaminho, senão também com o papiro e até com os primitivos códices feitos de tabuinhas enceradas.(...) Desde o século VII se constata o processo do palimpsesto, pois nessa época os árabes, conquistando o Egito, proibiram a exportação do papiro, cuja escassez nos conventos e mosteiros da Europa – seus maiores consumidores – obrigou os notários à utilização do palimpsesto. A falta de material escriptórico ocasionou grave crise no artesanato bibliográfico dos séculos VII, VIII e IX, levando ao desemprego uma legião de copistas e demais artistas gráficos; para contornar a escassez do papiro e do pergaminho, surgiu então o triste recurso de raspar obras consideradas sem valor ou desatualizadas, especialmente as de literatura e de direito.”3

O livro manuscrito, chamado mais exatamente de códice, constituía-se de um conjunto de cadernos, formado de folhas dobradas e costuradas umas às outras. Durante o

2 SPINA, Segismundo. Introdução à edótica: crítica textual. São Paulo: Cultrix/Edusp, 1977, p. 23. 3 Idem, p. 27-28.

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início da Era Cristã, o códice concorreu com o rolo ou volumen, primeira forma de livro da civilização antiga ocidental e oriental, vigente até o século V da Era Cristã; mas, posteriormente, o códice substituiu completamente o rolo, e o pergaminho substituiu o papiro como suporte da escrita, embora, o uso literário do códice pudesse estar presente até o século I daquela mesma era.

Apesar de todas as perdas, chegaram até nós milhares de livros manuscritos, copiados na forma de códice durante a Idade Média, ou seja, durante os mil anos que precederam a invenção e difusão da imprensa no Ocidente.

O estudo e interesse pelos livros manuscritos medievais não envolvem apenas os aspectos materiais da sua produção, que são muitos – as técnicas de produção, a organização dos cadernos para compor os volumes, a dobra do pergaminho em folhas, o preparo do suporte e das tintas, o traçado das margens feito antes de ser dobrado o pergaminho, as proporções e dimensões das páginas a serem escritas e ilustradas, etc. –, mas envolvem igualmente os significados simbólicos de diversos aspectos dessa produção sígnica, pois assim como técnicas são desenvolvidas de acordo com condições e necessidades materiais, significados são atribuídos de acordo com as condições e necessidades do espírito. E se o desenvolvimento de algum aspecto tem uma relação maior com questões técnicas, outros podem ser mais bem compreendidos se levarmos em consideração questões de gosto e desejo de uma mentalidade.

Não se sabe exatamente quando se passou do rolo ao códice, mas foi sobretudo a adoção do novo suporte – o pergaminho – bastante adequado para ser dobrado em folhas, que deu impulso à nova forma, mais cômoda e prática para ser transportada e guardada, assim como para a leitura, que exigia apenas uma mão, enquanto que para a leitura dos rolos eram necessárias as duas.

À semelhança dos rolos, os códices eram escritos, em princípio, em duas colunas, às vezes em três; as imagens ocupavam a esquerda ou a direita da coluna escrita, ou eram intercaladas no texto. O formato do códice variou entre o quadrado, os volumes mais antigos, e o retangular, que terminou por prevalecer. Os códices são compostos por

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cadernos, subdivididos em fólios, folhas e páginas. Um caderno é um conjunto de folhas costuradas; o fólio é uma folha grande dobrada em dois; a folha, a metade de um fólio; e cada lado da folha uma página.

Em todos os tempos, copistas e tipógrafos realizavam volumes de formas e tamanhos extravagantes, por razões práticas – no caso dos muito pequenos, por exemplo – ou por desejo de originalidade. Sobreviveram volumes minúsculos, ou em forma de círculo, coração, triângulo, lírio, com folhas dobradas em vários sentidos ou encadernações do tipo “bloco de notas”.

Geralmente, o códice medieval não possuía uma página dedicada ao título, mas no início da obra transcrita havia uma frase destacada em letras vermelhas e maiúsculas com nome e características do autor. Alguns manuscritos medievais apresentam uma frase inicial numa página escrita com tinta de cor diferente, decorada com motivos geométricos e arquitetônicos, revelando um grande cuidado com a ornamentação; e as indicações sobre autor e título eram postas ao final da obra, introduzidas pela palavra explicit, de explicare. Posteriormente, as palavras incipit e explicit passaram a ser usadas para indicar, respectivamente, o começo e o final do texto.

Em geral, os manuscritos medievais não apresentam um final, terminando bruscamente, às vezes com as expressões finis operis ou explicit líber, ou, outras vezes, copistas mais cuidadosos finalizavam o texto com seu próprio nome e lugar de procedência e o nome do comitente. As inscrições mais complexas encontram-se nos códices dos séculos XIV e XV; nestes casos, os copistas vangloriavam-se de sua habilidade, pediam recompensa pelo trabalho realizado e invocavam a bênção divina sobre eles e seus leitores.

Ao final do trabalho do copista, iniciava-se o trabalho do rubricador, aquele que realizava a lista dos títulos dos capítulos em tinta vermelha (rubricas) e adornava as iniciais das frases com um traço vertical. A relação entre espaço escrito e margens era definida com base em regras precisas que remontavam aos primeiros séculos da nossa era; esse trabalho era conhecido como quadrático.

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Os livros de estudo eram completados com comentários ou glosas escritos de forma mais livre entre as linhas e nas margens. Com o desenvolvimento das universidades, os copistas de textos para estudos adotavam um formato grande para os códices, permitindo uma maior inserção de comentários.

Para assegurar a regularidade da escrita e a harmonia estética da página, eram traçadas linhas horizontais e definidas as margens com linhas verticais. A partir do final do século XIII, para traçar essas linhas de orientação do texto, a ponta de chumbo (semelhante à grafite do lápis) foi substituída por tinta preta e, posteriormente, colorida, especialmente a rosada.

Para facilitar a encadernação, os copistas adotaram a prática de numerar as últimas páginas dos cadernos, chamada assinatura. A partir de meados do século XI, foi adotado o método do “reclamo”, que consistia em escrever ao final de cada caderno as primeiras palavras do fascículo seguinte. A partir do século XIII, com o desenvolvimento das universidades, e o conseqüente aumento na demanda e produção de livros, a confecção dos códices foi se tornando mais complexa, passando a exigir o trabalho simultâneo de diferentes artistas – rubricadores, desenhistas, miniaturistas – e com isso adotou-se a prática de marcar cada folha com a letra do fólio ao qual pertencia, seguido do número progressivo dentro de cada fólio. No século XIII, época de grandes transformações nas técnicas de fabricação dos manuscritos, numerou-se cada folha do volume, permitindo a utilização de um índice, com a ajuda do qual era possível encontrar facilmente qualquer referência. Todavia, esse costume se difundiu apenas a partir do século XV.

Até o século XV aC, a escrita era ideogrâmica, ou seja, constituída de símbolos relacionados a idéias. A partir de então, os fenícios desenvolveram a escrita alfabética, marcando profundamente o desenvolvimento de diversas civilizações. As escritas grega, etrusca e latina foram derivadas da escrita fenícia, e a romana, por sua vez, desenvolveu-se a partir da etrusca.

A produção de livros, bastante desenvolvida no período Greco-Romano, entrou em decadência com as grandes invasões do início da Idade Média, nos séculos VI e VII. Com

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o despertar da vida religiosa no Ocidente medieval, inaugura-se um novo modo de pensar e um novo campo para a produção de livros.

A expansão da liturgia aumentou a necessidade de livros sagrados, e a escritura de códices passou a ser tarefa exclusiva de monges. A escrita comum tornou-se bastante localizada e limitada, e a escrita oficial concentrava-se nos textos religiosos.

Durante a Idade Média, diversos tipos de escrita foram desenvolvidos: as escritas insulares da Irlanda e Inglaterra; a escrita visigoda da Espanha; a escrita merovígia da França; a cursiva do norte da Itália; a currial romana e a curialesca de Nápoles.

Neste ponto, interessa-nos a análise da escrita gótica em relação à anterior escrita carolina e à posterior escrita humanística.

Entre os séculos VIII e IX, as escolas caligráficas da França, Itália e Alemanha, buscando um aperfeiçoamento do tipo de escrita cursiva utilizada então, buscaram um retorno à minúscula primitiva e à semi-uncial, surgindo assim as chamadas escritas pré-carolinas. Diversos tipos dessa escrita apareceram na França, Itália e Alemanha. A arte da escrita, a essa altura, além de favorecer a formação de diversas variedades locais, favoreceu também o gosto e a doutrina caligráfica que, a partir de esforços simultâneos em diferentes centros (os scriptoria), levou à volta de um tipo comum que, desenvolvido durante o Império de Carlos Magno entre os outros esforços do Imperador no sentido de um “renascimento” da cultura clássica, ficou conhecida como escrita minúscula carolíngia, fruto da Reforma Carolíngia da escrita. Com algumas especificações e diferenças de tempo das mudanças, a escrita medieval européia, entre os séculos VIII e IX, apresentava uma tendência à regularidade e uniformidade. Com o intercâmbio dos códices, o tipo de escrita chamado de carolíngio já estava difundido no início do século IX. Por motivos óbvios, tende-se a se considerar o coração da França carolíngia como o centro de formação também da escrita carolíngia, considerando que esta foi a região central da civilização do Ocidente Medieval durante o Império de Carlos Magno (768-814). É digno de nota a simultaneidade entre criação de um novo tipo de escrita e as Reformas escolásticas e litúrgicas de Carlos Magno, ações que abriram caminho ao Renascimento das letras e do

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pensamento. Favorecendo o ensino e estimulando a afirmação de um novo estilo francês na cultura, assim como solicitando uma grande revisão dos livros eclesiásticos, Carlos Magno estimulou consideravelmente a produção de novos códices, que, por sua vez, respondeu rapidamente com textos de leitura mais fácil, e esteticamente mais harmoniosos, ou seja, uma escrita mais clara e legível difundiu-se.

A escrita carolina foi o resultado de uma busca deliberada no sentido da escrita romana dos séculos IV e V, aliada à influência da regularidade da escrita uncial. A escrita carolina mostrou-se bastante eficiente pois, além de marcar o início, no século IX, da história da escrita medieval e moderna, marcou todas as outras formas de escrita que a seguiram. Giulia Bologna4 considera inclusive que estas foram simples variantes da escrita carolina, que se mostra bastante interessante até a atualidade.

O período entre a segunda metade do século IX e princípio do século X foi a época dourada da escrita carolina, e, apesar da sua introdução mais lenta em regiões como a Espanha, Inglaterra e Sul da Itália, difundiu-se por regiões além do núcleo do Império de Carlos Magno. Na primeira metade do século IX, todos os scriptoria da França e Norte da Itália utilizavam exclusivamente a escrita carolina minúscula, representando uma verdadeira unidade cultural e política. Na segunda metade do século X, a Inglaterra adotou-a, e em princípios do século XI, a Espanha finalmente abriu-se para a nova escrita. A grafia carolina permaneceu quase inalterada entre os séculos VIII e XII e unificou a Europa Ocidental com um mesmo tipo de escrita.

Do mesmo modo que o renascimento cultural carolíngio entre os séculos VIII e IX significou também uma reforma da escrita, o chamado “Renascimento do século XII” significou uma transformação na forma de escrever.

O desenvolvimento das cidades e da cultura urbana no século XII significou uma difusão da cultura escrita no mundo secular e laico. Até então, o estudo e os livros eram campos exclusivos da Igreja. Essa renovação intelectual, acompanhada pela criação das

4 BOLOGNA, Giulia. Manuscritos y Miniaturas – El Libro antes de Gutenberg. Madrid: Ediciones Anaya, 1994, p. 26.

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universidades com apoio do Clero e da Nobreza, provocou uma grande demanda de livros, respondida pelo aumento de artesãos livreiros e copistas que trabalhavam por encomenda.

A dinamização da atividade de escrever não foi provocada apenas pela demanda por livros, mas também pelo desenvolvimento da administração e do direito, devido à ampliação da vida urbana. O desenvolvimento da vida econômica, do comércio e dos bancos multiplicou as necessidades da escrita.

Novas necessidades, novos livros. Nessa nova realidade, os livros mudaram de aspecto e de função. Surgiu a divisão entre livro de luxo e livro comum, assim como a divisão entre a escrita solene e uma escrita cotidiana. Os livros importantes exigiam uma escrita elaborada, nos livros comuns utilizava-se uma escrita menor e modesta; e em documentos, multiplicava-se a variedade de tipos cursivos.

O conjunto desses tipos de escrita foi denominado pejorativamente pelos humanistas do século XV como “escrita gótica”, em contraposição à uniforme e racional escrita carolina. Na verdade, a escrita gótica não significou uma escrita inteiramente nova, em oposição à minúscula carolina. Foi uma transformação dessa última, que se tornou angulosa, fechada, com traços agudos e forma pesada. Como a principal característica da escrita gótica consiste no corte das linhas retas, também foi denominada, no século XIV,

fractura; denominação utilizada nos países germânicos.

Essa variação de estilo na escrita carolina suscita muitas discussões. Entretanto, acreditamos que essa transformação deve-se a diversos aspectos e não principalmente a causas materiais, como afirma Bologna:

“(...)se puede afirmar que no fue una questão de moda y ni siquiera de gusto o búsqueda de la belleza. Una simple moda no hubiera podido imponerse con carácter universal y sustituir por completo, en el transcurso de un siglo, a la carolina. Y tampoco la búsqueda de la belleza, porque las obras de los escribas carolingios, con páginas de letras bien proporcionadas, satisfacían el sentido estético igual que los más bellos códices de la época gótica. Sólo el progreso

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técnico, debido a un cambio del instrumento utilizado por los escribas, puede explicar la revolución producida en el arte de la escritura, dado que la carolina se realizaba con pluma de oca con punta reta, mientras que la gótica sólo se podía obtener con un corte oblicuo en el lado izquierdo de la punta de la pluma.”5

A modificação ocorrida na escrita carolina para a nova forma conhecida como escrita gótica pode não ter significado uma moda no sentido mais estrito do termo, qual seja, um fruto da imposição de um grupo seguida de aprovação coletiva. Pois, apesar dessa variação conter características fundamentais ao conceito de moda, como o caráter regular da variação e a ampla difusão, não se pode afirmar que a mudança foi fruto de uma coerção inicial; ao contrário, o caráter da transformação parece ser muito mais dialético, sugerindo, portanto, uma maior complexidade do fenômeno.

A afirmação mais difícil de ser sustentada, por outro lado, é a de que a variação da expressão formal da escrita não significa “uma simples questão de gosto ou busca da beleza”, mas “só pode ser explicada pelo progresso técnico”, devido a uma mudança do instrumento utilizado pelos escribas.

Ora, o fenômeno de mudança de “gosto”, e aqui se prefere o termo costume, já que se trata de uma expressão social mais ampla, e não de escolhas individuais – ou então podemos nos referir ao “gosto de uma época” –, tal fenômeno está longe de ser um fenômeno “simples”, já que tem relação com as mudanças nas expressões formais da sociedade, e, em última instância, com as mudanças dentro da própria História da Arte.

O período em que houve a transformação da escrita carolina no sentido de uma maior elaboração e “amaneiramento” foi o mesmo período em que a arquitetura começava a deixar as características românicas em direção ao Gótico. Obviamente sabemos que as inovações na construção das abóbadas no sentido do arco ogival tiveram, inicialmente, um caráter de evolução técnica, mas o novo sentido que essas inovações possibilitaram às

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novas construções somente se configurou em sua dimensão, porque as inovações técnicas respondiam às necessidades mentais, e vice-versa.

A complexificação da escrita carolina transformando-se em gótica faz parte de um contexto de transformação do gosto muito mais amplo, que significou em diversos campos – arquitetura, escultura, pintura, artes decorativas – uma tendência para formas mais grandiosas e elaboradas.

Acredita-se que a nova técnica instrumental da escrita gótica tenha partido da Inglaterra, atingindo em seguida o Oeste da França e avançando pelo resto do continente. Os primeiros exemplos de escrita gótica foram encontrados em manuscritos do final do século XI e princípios do século XII no Norte da França, e, ao final do século XII, a nova escrita já havia se espalhado por toda a França, difundindo-se rapidamente por toda a cristandade e mantendo-se até o século XVI.

No século XV, quando os humanistas buscaram um retorno à antiga forma da minúscula carolina, a escrita gótica continuou a ser utilizada nos livros litúrgicos, enquanto na Alemanha a gótica não sofreu a influência renascentista (lembrar que enquanto a Itália vivia o renascimento, ao norte dos Alpes a realidade ainda era feudal). A máxima perfeição da escrita gótica deu-se no século XIII, diminuindo a partir de então, pouco a pouco, sua elegância.

Na escrita gótica, as curvas foram substituídas por ângulos agudos (como os arcos perfeitos das catedrais românicas cederam lugar aos arcos ogivais), as letras tornaram-se mais juntas e perfeitamente verticais (como as torres pontiagudas das catedrais góticas), os traços iniciais das hastes eram feitos com linhas delgadas que se converteram em parte integrante das letras, contrastando com os traços mais grossos; a escrita gótica apresentava esse contraste bem marcado entre traços grossos e finos.

Para as letras maiúsculas dos títulos foi criado um alfabeto especial – que ficou conhecido como gótico – derivado, em grande parte da escrita uncial, com profusões de curvas e traços retorcidos, traços duplos e linhas ornamentais.

Referências

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