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Imigração e Trabalho: determinantes históricas da formação de um circuito de subcontratação de imigrantes bolivianos para o trabalho em oficinas de costura na cidade de São Paulo

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Academic year: 2021

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Imigração e Trabalho:

determinantes históricas da formação de um circuito de subcontratação de

imigrantes bolivianos para o trabalho em oficinas de costura

na cidade de São Paulo

*

Patrícia Tavares de Freitas**

Palavras-chave: imigração boliviana, imigração coreana, setor de confecção, negócios étnicos

Resumo:

Provenientes, em grande parte, do altiplano andino, o fluxo migratório de bolivianos diretamente ligado ao trabalho no setor de confecção da cidade de São Paulo, especialmente, para o abastecimento do comércio coreano, iniciou durante a década de 1980, enquanto uma das tendências dos “novos fluxos migratórios” do e para o Brasil. Ao longo das últimas duas décadas, esse fluxo migratório se consolidou em torno de uma espécie de “circuito de subcontratação transnacional”, que mobiliza uma complexa rede de intermediários não institucionalizados, entre algumas regiões da Bolívia e a cidade de São Paulo, para subcontratar e deslocar pessoas.

A comunicação proposta sumariza os principais resultados de dissertação de mestrado sobre este circuito econômico, desenvolvida pelo Departamento de Sociologia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), denominada “Imigração e Experiência Social: o circuito de subcontratação transnacional de força de trabalho boliviana para o abastecimento de oficinas de costura na cidade de São Paulo”.

Parte-se de uma perspectiva que insere a dimensão econômica e migratória do circuito em foco em um quadro histórico estrutural mais amplo. Nesse sentido, serão considerados, por um lado, os processos sociais e econômicos em curso na Bolívia e na Coréia do Sul em torno dos fluxos migratórios para o Brasil. E, por outro lado, o desenvolvimento do setor de confecção na cidade de São Paulo, tendo em vista suas estruturas de produção e comércio e as transformações em curso no momento da entrada, no mercado local, do comércio coreano.

* Trabalho apresentado no XVII Encontro Nacional de Estudos Populacionais, ABEP, realizado em Caxambú- MG – Brasil, de 20 a 24 de setembro de 2010

* *Estudante de doutorado do Departamento de Sociologia, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). "Este estudo compõe a tese de doutorado e está inserido no Projeto Temático da FAPESP "Observatório das Migrações em São Paulo".

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Imigração e Trabalho:

determinantes históricas da formação de um circuito de subcontratação de

imigrantes bolivianos para o trabalho em oficinas de costura

na cidade de São Paulo

*

Patrícia Tavares de Freitas**

Introdução

A imigração internacional – incentivada e, muitas vezes, subsidiada, ao longo do século XIX e primeiras décadas do século XX – é componente estruturante do processo de formação demográfico, social, econômico e político do Brasil e, em especial, do Estado de São Paulo e de sua capital1. Do ponto de vista econômico, os imigrantes foram proeminentes não apenas enquanto trabalhadores livres e assalariados no início do desenvolvimento industrial da cidade de São Paulo, mas também enquanto empresários2, mecenas, cientistas etc, ou seja, fomentadores diretos deste desenvolvimento (BAENINGER, 2009; BASSANEZI, 1995 e 2008; BRESSER PEREIRA, 1964; FAUSTO, 1991; HALL, 2004; PACHECO & PATARRA, 1998; PATARRA & BAENINGER, 1995, TIRAPELI, 2007).

Nesse sentido, destaca-se a participação das comunidades de imigrantes na formação do setor de confecção da cidade. A princípio, ao longo da primeira metade do século XX, de maneira incipiente, com o comércio de tecidos, roupas e armarinhos por sírios e libaneses. E, a partir dos anos 1950, com a entrada de judeus e gregos, principalmente, na produção e comercialização de roupas e produtos de cama, mesa e banho (GARCIA & CRUZ – MOREIRA, 2004 , KONTIC, 2001, TIRAPELI, 2007, TRUZZI, 2001).

Atualmente, a partir dos anos de 1990, depois de um longo período em que as migrações internacionais deixaram de ser relevantes na definição do perfil demográfico da população brasileira3, a questão volta a tona, animada pelas mudanças no sentido e

* Trabalho apresentado no XVII Encontro Nacional de Estudos Populacionais, ABEP, realizado em Caxambú- MG – Brasil, de 20 a 24 de setembro de 2010

* *Estudante de doutorado do Departamento de Sociologia, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)."Este estudo compõe a tese de doutorado e está inserido no Projeto Temático da FAPESP

"Observatório das Migrações em São Paulo".

1 “No fim do século XIX e começo do século XX, São Paulo era uma das maiores cidades de imigração do mundo. Dos 4,8 milhões de pessoas que vieram para o Brasil entre 1820 e 1949, um pouco mais da metade, 2,5 milhões entraram no Estado de São Paulo. Em 1893, os estrangeiros já formavam a maioria da população na capital, 54,6% e sua predominância provavelmente cresceu por mais alguns anos. [...] Mesmo em 1934, quando os imigrantes formavam 28% da população total, o recenseamento revelou um dado impressionante: 67% dos paulistanos eram ou estrangeiros ou filhos de estrangeiros. Embora a imigração prosseguisse em ritmo reduzido, a porcentagem de estrangeiros ainda atinge 22% da população em 1940 e 14% em 1950” (HALL, 2004:121).

2 De acordo com Bresser Pereira (1964), em estudo sobre as origens étnicas e sociais dos empresários no início da industrialização brasileira, no momentos iniciais, 84% dos empresários eram estrangeiros.

3 “Os anos 50 encerraram o período de vocação receptora da história brasileira, verificando-se que o período pós 1964 marcou definitivamente a redução no número de imigrantes entrados no Brasil [...]. Na verdade, com a imigração estrangeira diminuindo progressivamente a partir de 1930, as próximas etapas da economia brasileira contariam com a participação das migrações internas para suprir a necessidade de mão-de-obra. [...] Assim, até o Censo Demográfico de 1980, os demógrafos trabalhavam os dados populacionais considerando fechada a população brasileira [...], uma vez que era bastante pequena a participação da população estrangeira no total da população nacional. [...]. Esse panorama modificou-se na década de 80; os movimentos migratórios internacionais passaram a constituir uma questão emergente, avolumando-se,

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composição dos fluxos a partir da década anterior. O tema começa a ser debatido em mesas-redondas, grupos de trabalho, simpósios e seminários e vem sendo tratado em artigos, teses e livros que acusam, justamente, as novas configurações das migrações internacionais do e para o Brasil (SALES & SALLES, 2002; ASSIS & SASAKI, 2001 e PATARRA & BAENINGER,1995).

Na cidade de São Paulo, o setor de confecção continua a funcionar como um importante receptáculo das comunidades de imigrantes, refletindo algumas dessas “novas” tendências migratórias. Nesse sentido, destaca-se, atualmente, a entrada, nesse setor da cidade, de imigrantes coreanos, como atacadistas e bolivianos, como força de trabalho e donos de oficinas de costura. E, apesar da distância geográfica e cultural destas duas comunidades, bolivianos e coreanos fazem parte de um mesmo circuito de produção e comercialização de roupas, que adquire visibilidade a partir de fins da década de 1980, na capital paulistana (AZEVEDO, 2005; BASSEGIO, 2004; BUECHLER, 2003; FERRETI, 2002; FREIRE, 2008; FREITAS, 2009, GALETTI, 1995, KADLUBA, 2007, SILVA, 1997 e 2006), em meio a um amplo contexto recessivo do setor de confecção – que passava por processos de reestruturação produtiva, transferência e mesmo fechamento de plantas industriais tradicionais da cidade de São Paulo (GORINI, 2000; LEITE, 2004; KELLER, 2002; GARCIA & CRUZ-MOREIRA, 2004).

A paisagem que, a princípio, refletia, no início da década de 1990, uma parte deste circuito, era a Praça Padre Bento, localizada no Pari – bairro tradicionalmente acolhedor de imigrantes de diversas comunidades. Nessa praça, divisavam-se, aos domingos à noite, os vestígios de um mercado de trabalho paralelo, em que donos de oficina e lojistas de origem coreana contratavam imigrantes bolivianos. Conforme visualiza-se a partir da descrição abaixo, de repórter do jornal O Globo:

Todos os domingos, a Praça Padre Bento, em frente à imponente Igreja Santo Antônio do Pari, em São Paulo, se transforma no cenário de uma insólita atividade, uma evocação moderna dos mercados de escravos que funcionaram na cidade dos barões do café até o século passado. Dezenas de imigrantes bolivianos oferecem-se como força-de-trabalho para os coreanos que mantém oficinas de costura na cidade. As condições de trabalho pouco variam: jornada de 16 horas diárias e um cativeiro que só pára da tarde de sábado à noite de domingo. [...] A partir das 18h, os primeiros imigrantes – na maioria bolivianos em situação irregular no país – chegam à praça e vão se agrupando nos bancos sob as árvores e nos bares das redondezas. Por volta das 21h, o mercado informal estabelecido na Praça Padre Bento já concentra cerca de 100 clandestinos. É nesse momento que os primeiros donos das oficinas chegam e transformam a praça numa bolsa de ofertas, misturando palavras em português, espanhol e coreano. [...] No ritual de contratação de empregados, são comuns cenas em que casais de meia idade examinam cuidadosamente jovens na faixa dos 20 anos e, depois de alguma discussão, acabam arrematando 3 ou 4 deles [...] Muitos jovens coreanos, donos de pequenas oficinas em regiões mais afastadas da cidade, também freqüentam a praça à procura de bons negócios. É comum a contratação de casais com filhos pequenos. Munidos de amostras do serviço que os eventuais contratados terão que executar, os negociantes expõem na praça o tipo de camisa a ser costurada ou o acabamento a ser executado (TEJCH & CASTELLON, domingo, 13 de dezembro de 1992)4.

Essa forma de organização da produção de roupas dos lojistas coreanos (a partir do trabalho informal de imigrantes bolivianos em pequenas oficinas de costura clandestinas)

tornando-se visíveis e notórios, constituindo-se numas das expressões da crise econômico-social e do impacto do processo de reestruturação produtiva em âmbito mundial” (PATARRA & BAENINGER, 1995:80-81).

4 Em uma outra descrição de um repórter da Revista Veja, de 1993, uma cena muito parecida: “Domingo à noite em São Paulo. Numa praça escura no Pari, um antigo bairro industrial próximo ao centro da cidade, centenas de bolivianos oferecem seus serviços de costureiros a pequenos empresários coreanos empenhados em contratar mão-de-obra barata para as suas oficinas [...]” (PEDRAL, 19 de maio de 1993).

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constituiu prática generalizada, uma estratégia explícita de diminuição dos custos de produção da comunidade coreana – assumida, inclusive, por seus representantes, em declarações dadas aos grandes jornais da cidade5. Entretanto, a partir de fins da década de 1990, provavelmente, devido a uma estratégia da comunidade coreana de transferência do agenciamento da força-de-trabalho e costura das peças, os imigrantes bolivianos começam a aparecer nas notícias dos jornais, não mais apenas enquanto trabalhadores explorados, mas também como exploradores de seus compatriotas em oficinas de costura informais6.

E, a partir dos anos 2000, uma nova faceta do circuito é revelada: suas conexões com os locais de origem da comunidade boliviana, refletida na constituição de uma série de arranjos “institucionalizados” para o agenciamento da força-de-trabalho boliviana e que envolvem não apenas a contratação informal na cidade de São Paulo, mas um complexo sistema para a circulação de: i) uma grande quantidade de pessoas de maneira ilegal por entre fronteiras nacionais e, ii) habilidades específicas para a realização do trabalho.

Vale notar que existem redes de agenciamento de mão-de-obra na Bolívia, em cidades como La Paz, de onde vem grande parte dos bolivianos que vivem em São Paulo, e Santa Cruz de La Sierra, cidade mais próxima do Brasil e, portanto, última etapa antes da saída do país. O custo da viagem para o emigrante pode variar, dependendo do trajeto escolhido. Para quem opta pela entrada por Corumbá (MT), pode custar cerca de US$ 120. Porém, o risco de ser detido por um agente federal é maior. Já quem escolhe a rota do Paraguai terá que enfrentar uma longa e exaustiva viagem até chegar à Ciudad del Leste, para depois cruzar a fronteira e entrar no Brasil por Foz do Iguaçu (PR). O custo desse trajeto pode chegar a US$ 160 (SILVA, 2006: 160).

O trabalho de imigrantes sem documentação legal, em pequenas oficinas clandestinas, nos grandes centros urbanos, com a formação de amplas redes de subcontratação, não é uma novidade paulistana ou latino-americana. Constituindo-se em fenômeno crescentemente abordado pela literatura internacional, a partir de investigações em contextos urbanos como os de Nova Iorque, Los Angeles, Londres e Paris (BONACICH, 1973 e 1993; PORTES, 1999 e 1995; PORTES & SASSEN-KOOB, 1987; POTOT, 2003; MOROKAVASICK, 1990 e 1999; PORTES, 1999; KLOSTERMAN, VAN DER LEUN & RATH, 1999; LOGAN, ALBA & MC NULTY, 1994; PALPACUER, 2002, ROSS, 2002 e TARRIUS, 2002).

As análises de caráter histórico-estrutural de maior impacto sobre a emergência desses empreendimentos econômicos e das relações de trabalho correlatas apontam para o papel determinante das “novas” necessidades da acumulação capitalista que se conjugam aos

5 Note-se que o objetivo da comunidade coreana no período era, justamente, a desvinculação entre os lojistas e/ou donos de oficinas coreanos e os costureiros bolivianos. Entretanto, as evidências eram tantas que qualquer estratégia eficiente nesse sentido passava por assumir que tais vínculos de fato existiram em um momento anterior. Ver este trecho do jornal O Globo: “O próprio presidente da Associação Brasileira dos Coreanos, Sang Im Kim, admite que esse sistema de trabalho provocou uma série de embates entre micro-empresários e a justiça brasileira. Diz porém que esses métodos foram abandonados. 'Isso é coisa muito antiga que não condiz com o perfil que a colônia adquiriu' [...] 'A nova geração de coreanos ambiciona posições mais destacadas do que as dos donos de confecções', diz ele” (s.n., segunda-feira, 14 de dezembro de 1992).

6 Conforme é possível visualizar em notícias, como esta do jornal O Estado de São Paulo: “O delegado Luciano Pestana Barbosa, da Delegacia Marítima, Aérea e de Fronteiras (DPMAF), da Polícia Federal, em São Paulo, informou ontem estar investigando uma dezena de oficinas de costura de bolivianos que trabalham exclusivamente para lojas de propriedade dos coreanos nos bairros do Bom Retiro, Brás e Pari. As oficinas recebem os tecidos cortados e costuram vestidos, jaquetas, calças e camisas. Os bolivianos são suspeitos de explorar os patrícios em situação irregular no país: 'Esse ano já descobrimos dez oficinas, indiciamos os bolivianos e alguns estão com processo de expulsão', adiantou o policial” (LOMBARDI, sábado, 26 de julho de 1997).

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contextos econômicos recessivos das décadas de 1970 e 19807. De acordo com Sassen-Koob e Portes (1987), o desaquecimento das economias “centrais” e “periféricas” teria levado a adoção, em ambos os casos, de estratégias de exportação para a obtenção de divisas e aceleração da produção interna. E, no entrecruzamento dessas estratégias de superação da crise, se constituiria a “nova” informalidade, especialmente ligada ao trabalho de imigrantes clandestinos, tanto nas economias “centrais” quanto nas “periféricas”.

Nessas novas configurações, as estruturas se confundem e – ao contrário das décadas anteriores em que as diferenças no padrão de desenvolvimento entre as economias “centrais” e “periféricas” pareciam bastante evidentes – põem em xeque análises em torno da oposição, convivência ou justaposição entre o “tradicional/arcaico” e o “moderno”. Nessa perspectiva, portanto, a despeito das especificidades históricas, a partir de então, essas economias urbanas estariam diante de fenômenos de formas e causas semelhantes8.

Thus, the process of informalization is reinforced in the Third World by efforts of producers and countries to break out of economic stagnation through an export-oriented strategy; but the latter promotes, in turn, the reproduction of similar labor arrangements in the developed world as the affected industries struggle for survival. Simultaneously, the very circumstances of the economic crisis and the efforts to cope with it create an abundant labor supply that further encourages and facilitates informalization” (PORTES & SASSEN-KOOB, 1987:55)9

A partir desta abordagem, as determinantes histórico-estruturais para a concentração de imigrantes bolivianos em oficinas de costura clandestinas na cidade de São Paulo ligadas à emergência dos negócios coreanos, encontrar-se-iam nas transformações recentes do setor de confecção da capital e em suas estratégias de aumento da produtividade e competitividade nos mercados locais e internacionais (AZEVEDO, 2005; BUECHLER, 2003; FREIRE, 2008).

Apesar da reconhecida efetividade de tal abordagem, este artigo explora um outro enfoque analítico: ao invés de partir da atividade econômica na cidade de destino, propõe trazer para o primeiro plano as determinantes histórico-estruturais das atividades migratórias de bolivianos e coreanos ligados ao setor de confecção e seus percursos. A necessidade de considerar esses elementos advém do próprio fenômeno que extrapola o contexto urbano paulistano: i) em suas origens, na medida em que os fluxos que se dirigem para São Paulo fazem parte de uma dinâmica migratória mais ampla, em que a capital paulistana é apenas um dos destinos possíveis, podendo ainda ser ora o destino principal, ora o destino provisório desses imigrantes. E, ii) em suas territorialidades constituídas a partir dos percursos migratórios, pois o fenômeno da contratação de bolivianos para o trabalho em oficinas de

7 Sassen-Koob (1998:44) enumera ainda três circunstâncias contextuais importantes: primeiro, o fim da denominada “Pax Americana” (período de relativa paz mundial, depois da Segunda Guerra Mundia, marcado pela hegemonia política e econômica dos Estados Unidos) concomitante ao fim do acordo do Bretton Woods, recuperação das economias da Europa ocidental e ascensão do Japão. Segundo, a transferência do eixo geográfico das transações internacionais do sentido norte-sul para o sentido leste-oeste. E, por fim, o peso crescente dos mercados financeiros nas economias nacionais.

8 “Este livro demonstra como algumas cidades – Nova Iorque, Tóquio, Londres, São Paulo, Hong Kong, Toronto, Miami, Sidney, entre outras – se transformaram em espaços “transnacionais” no que diz respeito ao mercado. À medida que essas cidades prosperaram, passaram a ter mais em comum umas com as outras do que com centros regionais existentes em seu próprio Estado Nação, muitos dos quais declinaram quanto à sua importância” (SASSEN-KOOB, 1998:12).

9 “Então, o processo de informalização é reforçado no Terceiro Mundo pelos esforços dos produtores e países para interromper a estagnação econômica a partir de uma estratégia orientada para a exportação; mas, os últimos, promovem, como resultado, a reprodução de arranjos de trabalhos similares no mundo desenvolvido como as indústrias afetadas lutam para sobreviver. Simultaneamente, as várias circunstâncias da crise econômica e os vários esforços para lidar com ela, criou uma abundante reserva de força-de-trabalho que, posteriormente, encoraja e facilita a informalização” (PORTES & SASSEN-KOOB, 1987:55, tradução própria).

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costura ligadas à lojistas coreanos repete-se em outros espaços urbanos da América Latina (em Buenos Aires, na Argentina e Santiago, no Chile), para onde se dirigiram os fluxos migratórios de coreanos e bolivianos no mesmo período.

Para uma abordagem histórico estrutural do fenômeno migratório, destacam-se as observações de Singer (1976)10 sobre a questão migratória em suas conexões com desenvolvimentos industriais específicos. Nessa perspectiva, a abordagem estrutural evidenciaria as condições sócio-econômicas das regiões de origem dos fluxos migratórios e, portanto, as classes sociais que, nesse quadro, optam pela alternativa migratória11.

Quando uma classe social se põe em movimento, ela cria um fluxo migratório que pode ser de longa duração e que descreve um trajeto que pode englobar vários pontos de origem e de destino. É o fluxo migratório originado por determinados fatores estruturais, que determinam seu desdobramento no espaço e no tempo, o primeiro objeto de estudo. Uma vez compreendidos, as suas causas e fatores condicionantes, determinados movimentos que o compõem podem ser estudados isoladamente (SINGER,1976:237).

De acordo com Singer, os contextos estruturais de origem dos fluxos migratórios são importantes não apenas por se referirem à realidade de origem, mas, principalmente, por informarem as condições e sentidos iniciais de inserção nas sociedades de destino. Pois é a condição de classe anterior daqueles que migram que vai delimitar o campo de possibilidades iniciais para os recém chegados nas sociedades de destino.

A adaptação do migrante recém-chegado ao meio social se dá freqüentemente mediante mecanismos de ajuda mútua e de solidariedade de migrantes mais antigos. Isto significa que o lugar que o novo migrante vai ocupar na estrutura social já é, em boa medida, pré-determinado pelo seu relacionamento social, isto é, por sua situação de classe anterior (SINGER,1976:240).

No caso dos fluxos migratórios de coreanos e bolivianos para a cidade de São Paulo foi possível divisar dois momentos chave nos países de origem – que coincidem com momentos determinantes do desenvolvimento industrial da Bolívia e Coréia do Sul – e que interferiram diretamente nas formas de inserção desses imigrantes na cidade: um primeiro, que deu início às rotas entre os países – a partir da década de 1950, na Bolívia e, a partir dos anos de 1960, na Coréia do Sul – diretamente vinculado ao início do desenvolvimento industrial nos dois países12. E, um segundo momento – a partir da década de 1970, na Coréia do Sul e, a partir dos anos de 1980, na Bolívia – de intensificação do desenvolvimento industrial na Coréia do Sul e falência sócio-econômica e política do Estado boliviano.

Esses dois momentos ligados às origens dos fluxos migratórios de bolivianos e coreanos para São Paulo também correspondem a momentos diferentes nas relações desses

10 Em artigo clássico sobre as migrações internas rural-urbanas, que também constitui-se importante referência para o estudo das migrações internacionais.

11 “Convém sempre distinguir os motivos (individuais) para migrar das causas (estruturais) da migração. Os motivos se manifestam no quadro geral de condições sócio-econômicas que induzem a migrar. É óbvio que os motivos, embora subjetivos em parte, correspondem a características dos indivíduos: jovens podem ser mais propensos a migrar que velhos, alfabetizados mais que analfabetos, solteiros mais do que casados e assim por diante. O que importa é não esquecer que a primeira determinação de quem vai e de quem fica é social ou se se quiser de classe. Dadas determinadas circunstâncias uma classe social é posta em movimento. Num segundo momento, condições objetivas e subjetivas determinam que membros desta classe migrarão antes e quais ficarão para trás” (SINGER,1976:237).

12 No sentido de desenvolvimento industrial dado por Cano: “resultado de um processo de acumulação de capital através do qual a economia passa a contar com as bases especificamente capitalistas de produção, isto é, que produz não somente os meios de reprodução da força de trabalho, mas também produz os meios de produção necessários à reprodução de seu sistema produtivo. Quando isso se dá, dizemos também que efetivamente é essa indústria que comanda o processo de acumulação, e que o investimento autônomo é o principal determinante da renda e do emprego” (CANO, 2002:77).

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imigrantes com a cidade e com o seu setor de confecção. Nesse sentido, no primeiro momento, ao longo dos anos 1950 e 1960, enquanto os coreanos – mais empobrecidos e estigmatizados pelas dificuldades com a língua – se inseriram no setor de confecção (como costureiros, vendedores ambulantes e oficinistas) e os bolivianos – profissionais liberais e estudantes – no mercado de trabalho local da cidade de São Paulo (como médicos, dentistas, administradores, operários especializados etc). No segundo momento, as circunstâncias se invertem e essas duas comunidades de imigrantes se aproximam: os coreanos, que vêm de uma Coréia desenvolvida e com dinheiro para a realização de investimentos comerciais no bairro do Bom Retiro e os bolivianos – nesse momento, empobrecidos e provenientes das classes trabalhadoras e rurais da Bolívia – inserem-se no setor de confecção como costureiros e donos de oficinas para o abastecimento, a princípio, dessas lojas coreanas.

Para o desenvolvimento desta abordagem o artigo será dividido em cinco partes. Na primeira seção, as determinantes histórico-estruturais presentes nas origens dos fluxos migratórios de bolivianos e coreanos para a cidade de São Paulo, ao longo das décadas de 1950 e 1960. Na segunda seção, a inserção inicial da comunidade coreana no setor de confecção da cidade de São Paulo e as configurações gerais do setor naquele momento13. Na terceira seção, as determinantes histórico-estruturais dos países de origem em torno de novos fluxos migratórios de bolivianos e coreanos para São Paulo, entre as décadas de 1970 e 1980. Na quarta seção, os desdobramentos do setor de confecção e as especificidades dos negócios coreanos na cidade de São Paulo. E, na última seção, serão feitas algumas considerações finais.

1. A origem dos percursos: os fluxos migratórios de bolivianos e coreanos para a cidade de São Paulo

Os fluxos migratórios de bolivianos e coreanos para a cidade de São Paulo inicia nas décadas de 1950 e 1960, respectivamente. Momento bastante tumultuado da histórica econômica e política brasileira e, ao mesmo tempo, de consolidação do desenvolvimento industrial da capital paulistana. E, apesar da pouca relevância quantitativa desses fluxos para a cidade, fazem parte de importantes processos de emigração nos países de origem, para os quais São Paulo era apenas um dos destinos possíveis. Nos dois casos, tratam-se de fluxos migratórios dinamizados no momento de início da modernização capitalista das estruturas produtivas dos países de origem. Apresentando-se enquanto consequência direta de tais desdobramentos.

A imigração boliviana contemporânea para a cidade de São Paulo inicia, de acordo com Silva (2006:159), nos primeiros anos da década de 1950, inaugurada a partir de um convênio cultural entre o Brasil e o governo boliviano, que previa o intercâmbio de estudantes bolivianos para a obtenção de formação acadêmica não disponível na Bolívia. Esse acordo foi estabelecido pelo denominado “governo revolucionário” de Victor Paz Estenssoro, líder do MNR (Movimento Nacionalista Revolucionário), eleito, em 1952, com o intuito de empreender a modernização das estruturas produtivas e sociais do estado boliviano.

De acordo com a literatura (CARUSO & CARUSO, 2008; GUEVARA, 2004; PEREIRA, 2004; SENPAS, 1991), durante o governo de Estenssoro foram implementadas, de maneira geral, as seguintes medidas modernizadoras: i) reforma agrária, que foi mais significativa por ter estabelecido o fim do sistema, praticamente, semi-feudal, de trabalho –

13 A inserção boliviana no mercado de trabalho local da cidade de São Paulo, neste primeiro período, não será abordada neste artigo porque não diz respeito diretamente ao setor de confecção em foco.

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que atrelava os camponeses indígenas à terra em que estavam14 – do que, propriamente, pela redistribuição da posse da terra que, de fato, não se efetivou15; ii) nacionalização das minas; iii) estabelecimento do voto universal em um sistema que até então só permitia o voto da elite branca; iv) ampliação da fronteira agrícola16 e; vi) tentativa inicial de produção dos próprios bens de consumo, em consonância com a lógica das políticas de substituição de importações – também desenvolvidas, no período, por outros países da América Latina. Todas essas medidas provocaram mudanças importantes na estrutura da economia boliviana, principalmente, em sua dinâmica demográfica em que percebe-se: i) pronunciado êxodo rural17; ii) intensificação das migrações transfronteiriças já existentes e; iii) início das migrações internacionais18.

No caso boliviano, portanto, as migrações internacionais foram uma consequência indireta das tentativas de modernização do Estado boliviano e nesse período passaram a conectar diretamente os imigrantes bolivianos à cidade de São Paulo. Diferentemente do caso coreano (BUECHLER, 2003; CHOI, 1991; GALETTI, 1995; KIM, 2008; MERA, 2006), em que a imigração para a cidade de São Paulo, iniciada na década de 1960, fez parte de um amplo processo emigratório para países da América Latina, projetado pelo governo da Coréia do Sul19, no âmbito do primeiro Plano Nacional de Desenvolvimento. E tratava-se, invariavelmente, de uma segunda opção dos imigrantes coreanos, depois de um fracasso inicial na tentativa de inserção nas zonas agrícolas do país, conforme previsto inicialmente no

14 “O processo republicano do país, iniciado em 1825, teve a exclusiva participação de uma elite de descendentes de espanhóis que chamamos criollos, que se apropriou do Estado e o usou em benefício próprio, qualquer um sabe disso. Quer dizer se apropriou do Estado, das minas, das terras e das próprias populações indígenas que até há pouco eram vendidas ou compradas com as fazendas. Até a revolução de 1952, muitos campesinos não recebiam salários e menos ainda se imaginava que eles um dia pudessem ter direito ao voto” (LUIZAGA, Jorge Miranda apud CARUSO & CARUSO, 2008: 42).

15 De acordo com Pereira (2004:45), enquanto em 1950, três anos antes da reforma agrária, 95% dos 33 milhões de hectares cultiváveis estavam nas mãos dos grandes proprietários, em 1984, 85% das terras ainda continuavam nas mãos desses grandes proprietários.

16 Nesse sentido, tendo em vista também integrar o mercado interno e potencializar essas dinâmicas produtivas, o oriente boliviano, em especial, o departamento de Santa Cruz (zona pouco povoada e com muita terra para atividades agropecuárias) foi incorporado ao eixo central, antes em torno das regiões ocidentais do altiplano (La Paz) e dos vales (Cochabamba) - destacando-se a construção da estrada Cochabamba – Sta Cruz, em 1954. Cf. PEREIRA, 2004 e SENPAS, 1991.

17 Nesse sentido, note-se, de acordo com Pereira (2004:35) a partir de investigação nos dados dos censos bolivianos, que, enquanto, na década de 1950, a população rural representava 73,8% do total da população boliviana – situação não muito diferente do ano de 1900, em que a população rural representava 82,1% do total da população boliviana – em 1976, a população rural passaria a representar 58,3 da população total. 18 “No que se refere às migrações, o fim da pongueaje* [prestação de serviços não remunerada, devida pelas

comunidades indígenas aos proprietários das terras] (serviço obrigatório nas fazendas) e a reforma agrária realizada pela revolução liberaram a grande massa laboral da área rural boliviana (mais de 75% do total) e lhe deram maior capacidade de movimento e de translado. [...] Até a Revolução de 1952 não se pode falar de fluxos migratórios importantes da Bolívia até o exterior, apenas de migrações estacionais que respondiam, principalmente, às dinâmicas regionais transfronteiriças particulares, facilmente situadas na zona oeste (norte do Chile e sul do Peru) e ao sul (norte da Argentina)” (GUEVARA, 2004:175, tradução própria).

19 O Estado da Coréia do Sul foi estabelecido em 1948, depois de sua separação da Coréia do Norte e é um país pequeno, com uma área de aproximadamente 98.500Km² (equivalente a área do estado brasileiro de Pernambuco), com uma população, em 2007, em torno de 48.500 milhões e meio de pessoas, considerado um país homogêneo em termos de raça, língua e escrita.. De acordo com os dados estatísticos divulgados em anuário estatístico do governo sul-coreano, em 1953, o setor primário compunha 47,3% do Produto Nacional Bruto (PNB) sul-coreano, sendo 40% preenchido pelo setor de serviços e, apenas, 9% pelo setor manufatureiro. E desses 9% do setor manufatureiro, 78,9% correspondia à indústria leve e, apenas, 21,1% à indústria pesada. Cf. MASIERO, 2007: 72, em tabela com dados extraídos do Seoul Office of Statistics, Republic of Korea, de agosto de 1995.

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plano de emigração coreano20.

De acordo com Mera (2006), o diagnóstico de uma situação de “super população” impeditiva do desenvolvimento industrial e que levou a elaboração desta “política de emigração” é decorrente de, principalmente, três processos: i) a entrada de um milhão de norte-coreanos em fuga antes do início da guerra da Coréia; ii) o retorno de 2,3 milhões de sul-coreanos depois da Segunda Guerra Mundial e, iii) o aumento da expectativa de vida concomitante aos processos de desenvolvimento econômico e social.

A política de emigração sul coreana, realizada a partir de acordos bilaterais entre a Coréia do Sul e os países da América Latina, previa uma migração familiar para a inserção nas zonas rurais dos países de destino, a partir da compra prévia de terras pelos imigrantes, que recebiam do governo sul-coreano um subsídio de 200 dólares ao embarcarem. De acordo com os historiadores da migração coreana para a América Latina, citados acima, essa política de emigração agrícola, adotada pela primeira vez na Coréia do Sul, foi inspirada no êxito que o governo japonês teve com esse tipo de política em relação aos seus emigrantes.

Entretanto, o modelo de inserção dos imigrantes nas zonas agrícolas dos países de destino não funcionou no caso coreano. E em, praticamente, todos os casos, com exceção do Paraguai, os coreanos re-emigraram para os centros urbanos dos países de destino. Além da origem urbana de muitos desses imigrantes, destacam-se, enquanto motivações para o deslocamento quase que imediato, as péssimas condições em que se encontravam as propriedades adquiridas21. Conforme relata Kim (2008), em relação à inserção dos imigrantes coreanos em território brasileiro, além do problema das condições precárias das terras compradas por esses primeiros fluxos de imigrantes coreanos – mal localizadas, sem condições de cultivo e distantes de uma infra-estrutura básica, em termos de saúde e educação – em alguns casos, as terras eram impróprias até para a moradia, o que levou esses imigrantes a assumirem muitos gastos extras nesse momento de chegada no Brasil22.

Dessa forma, por vias diferentes, coreanos e bolivianos dirigem-se a alguns centros urbanos da América Latina em um contexto de desenvolvimento de suas estruturas produtivas capitalistas. E, de maneira geral, enquanto, por um lado, no caso boliviano, de acordo com os

20 O Brasil foi o primeiro país a receber, em 1963, esses grupos de imigrantes coreanos, depois de um ano de funcionamento do primeiro Consulado Sul-Coreano, instalado no Rio de Janeiro, em 1962. Entre 1962 e 1966, migraram para o Brasil cinco grupos oficiais de famílias coreanas: o primeiro, chegou em fevereiro de 1963, composto por 17 famílias que totalizavam 103 pessoas e foi, primeiramente, instalado em fazendas no Estado de São Paulo (Mogi das Cruzes e Guarulhos). O segundo, chegou ao final de 1963, composto por cerca de 100 imigrantes, familiares do primeiro grupo, foi para as mesmas terras. Já o terceiro grupo, 68 famílias, que chegou em 1964, foi instalado em uma fazenda na divisa entre São Paulo e Espírito Santo. O quarto grupo, que também chegou em 1964, composto por 50 famílias, foi deslocado para uma fazenda em Goiás. E o último grupo oficial, que desembarcou no Brasil em 1966, composto por 53 famílias, foi organizado por uma igreja católica coreana e se instalou em Ponta Grossa, no estado do Paraná. Cf. GALETTI, 1995 e MERA, 2006.

21 “No caso dos deslocamentos para a América Latina na década de 1960, o governo da Coréia fomentou as 'migrações em grupo' de famílias para o estabelecimento em áreas rurais. Entretanto, como veremos adiante, esses grupos de assentamento agrícola não prosperaram. A razão é que a maioria dos migrantes nunca havia praticado antes atividades agrícolas, tampouco tiveram experiências rurais (apesar de ter sido um dos requisitos para a migração) e se tratavam de regiões pouco desenvolvidas, com infraestrutura precária e poucos serviços educativos e sanitários. Por essas razões acabaram por se deslocar para as zonas urbanas e grandes cidades como São Paulo, no Brasil, Assunção, no Paraguai e Buenos Aires, na Argentina, para dedicarem-se a atividades comerciais”(MERA, 2006:9, tradução própria).

22 Cf. CHOI, 1991, GALETTI, 1995 e KIM, 2007. “Outras terras adquiridas por coreanos, na região de Capão Bonito, também em São Paulo, eram impróprias para a moradia e a agricultura: os insetos venenosos dominavam a área que, ainda por cima, era pantanosa. [...] Na época, o governo brasileiro chegou a comunicar o governo coreano que não iria mais permitir a imigração coreana devido ao fracasso do projeto inicial” (KIM, 2008:51).

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dados do documento do Sistema de Informação sobre Migração Internacional nos países da Comunidade Andina – SIMICA (CEPAL/CELADE/OIM, 1999) e, em pesquisa realizada por Silva (1997), os imigrantes bolivianos que vieram para a cidade de São Paulo, no período, eram das zonas urbanas mais desenvolvidas e, em sua maioria, estudantes e profissionais liberais, que saíam de seu país por motivos políticos, profissionais ou para adquirir alguma formação específica, sendo significativa também a emigração de mulheres para trabalhar em casas de família, como babás e empregadas domésticas.

Por outro lado, no caso coreano, conforme indica a literatura, os imigrantes que vieram nos grupos oficiais faziam parte de uma classe média urbana bem educada e hostilizada na Coréia do Sul por ser de origem norte-coreana (TRUZZI, 2001; GALETTI, 1995, KIM, 2008, CHOI, 1998 e BUECHLER, 2003). Entretanto, ao contrário dos bolivianos que se inseriram, em sua maioria, no mercado de trabalho local da cidade de São Paulo, os coreanos, provavelmente, devido às dificuldades com a língua portuguesa e ao fato de terem chegado bastante empobrecidos na cidade (boa parte tinha gasto todas as suas economias na tentativa frustrada de fixação no campo), não conseguiram uma inserção direta no mercado de trabalho local e tiveram que improvisar meios de subsistência, iniciando, dessa forma, o negócio em torno do comércio e produção de roupas no qual, na década de 1980, os imigrantes bolivianos irão se inserir.

2. Da venda ambulante à fabricação de roupas – a inserção inicial dos coreanos na cidade de São Paulo

Todos os dias, em São Paulo, por volta das dez horas da manhã, centenas de 'fusquinhas' saíam da Rua Conde de Sarzedas, pegando as mais diferentes direções. Maridos ao volante e esposas, ao lado, com sacolas carregadas de mercadorias. Objetivo: vender de porta em porta (GALETTI, 1995:138).

Nos momentos iniciais de inserção na cidade de São Paulo, os imigrantes coreanos se estabeleceram de maneira concentrada na Rua Conde de Sarzedas, no bairro da Liberdade, reduto de imigrantes japoneses, em um local que passou a chamar-se “Vila Coreana” – caracterizado pelos aluguéis baratos e proximidade das áreas centrais da cidade (GALETTI, 1995 e TRUZZI, 2001). Note-se que, apesar das rivalidades históricas entre coreanos e japoneses, devido à longa ocupação japonesa da península coreana, a escolha era considerada melhor do que a inserção em outros locais da cidade, pois facilitava a adaptação inicial dessa comunidade de imigrantes tão diferentes da população brasileira23.

Nessas circunstâncias precárias iniciais, de chegada e moradia24, em que à condição de pobreza inicial, somavam-se: o não domínio da língua portuguesa e a falta de qualificações mais específicas, a alternativa de inserção econômica encontrada enquanto estratégia de sobrevivência imediata foi a prática do “bendê” (venda ambulante, a domicílio), realizada pelas mulheres coreanas25, a princípio, de objetos trazidos da Coréia. E, a partir de então, tendo em vista as possibilidades abertas pelo início deste comércio ambulante e para a sua

23 “A localização dos coreanos no seio do bairro dos japoneses significava facilidades tanto em termos de comunicação, quanto no que se refere a usufruir dos benefícios de se passar por anônimo, perante a sociedade nativa, misturando-se a uma comunidade mais antiga e já adaptada. Esse último ponto foi muito importante para atenuar possíveis choques culturais” (TRUZZI, 2001:8).

24 “A situação do bairro coreano em São Paulo parecia um verdadeiro inferno, com péssimas condições higiênicas, dominado pela prostituição, pelo crime e pela pobreza” (manchete de jornal de 1973, citado por CHOI, 1991:98).

25 “[...] essas moças, mesmo sem falar português corretamente, batiam de porta em porta vendendo roupas típicas, perucas importadas da Coréia e até objetos pessoais” (KIM, 2008:56).

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continuação iniciam uma atividade de produção de roupas domiciliar26.

O setor de confecção havia se consolidado, na cidade de São Paulo, nos anos cinqüenta, apenas uma década antes da chegada dos coreanos, em torno, por um lado, de fábricas que procuravam alcançar o ideal fordista de verticalização da produção – destacando-se, como exemplo paradigmático, a planta das Alpargatas, na Moóca, conforme exemplifica Kontic (2001). E, por outro lado, da produção de “carregação”, um circuito clandestino (ilegal e informal) de confecção e comercialização de roupas para o mercado popular, que foi desenvolvido por migrantes do nordeste brasileiro. A partir da década de 1960, conforme desenvolve o autor, começa a se constituir uma terceira modalidade de organização da produção têxtil e de confecção nos bairros centrais da cidade, dinamizada pelos imigrantes judeus que chegaram nas primeiras décadas do século XX. E que seria caracterizada por ser uma produção de massa, mas mais diferenciada e segmentada.

O comércio ambulante e produção de roupas desenvolvidos pelos coreanos se inseriram, nesses primeiros momentos, na “cadeia de carregação”27

. Este segmento, concentrou, até, pelo menos, meados da década de 1990, as práticas arcaicas de precarização do trabalho no interior do setor da confecção da capital paulistana, tais como “grande rotatividade da mão-de-obra, contratação de trabalho informal, mesmo então, utilização intensiva de trabalho a domicílio, de oficinas clandestinas etc” (KONTIC, 2001:48). E foi a “porta de entrada” de diversos empresários e firmas que evoluíram para outros tipos de produto e configurações, graças à acumulação primária de capital e de aprendizado comercial e industrial gerado nesse espaço (KONTIC, 2001:49).

No caso da comunidade coreana, as práticas de precarização e intensificação do trabalho estavam presentes e assemelham-se ao que, na década de 1990, caracterizaria o trabalho boliviano nas oficinas de costura clandestinas espalhadas pela cidade de São Paulo. Conforme, descrição abaixo de Truzzi sobre a inserção inicial da comunidade coreana:

O espírito competitivo vigente na colônia reservava aos imigrantes uma primeira fase de sacrifícios intensos, relacionados a longas jornadas, ao engajamento de toda a família – dos mais jovens aos mais idosos –, a uma pauta de despesas mínimas que possibilitasse acumular certo capital. 'Revezávamo-nos sobre duas máquinas de costura, que trabalhavam continuamente, 24 horas por dia', recorda-se um dos entrevistados (TRUZZI, 2001:9).

3. As origens do circuito de subcontratação – o segundo momento dos fluxos migratórios de coreanos e bolivianos

Depois desse período – ao longo da década de 1950 e primeiros anos da década de 1960 – de recebimento legal de fluxos migratórios de bolivianos e coreanos, o governo brasileiro – que, a partir de 1964, transformou-se em uma ditadura militar – iniciou um processo de recrudescimento da política migratória, tendo em vista a proteção do trabalhador nacional. Nesse sentido, destaca-se, já em 1967, a suspensão dos acordos de emigração com o governo sul-coreano e a manutenção da permissão de entrada oficial apenas para técnicos coreanos de nível superior e com contratos de trabalho já estabelecidos antes de sua saída da Coréia28. No

26 “Foi apenas em 1968 que eles começaram a manufaturar roupas, quando as roupas trazidas da Coréia acabaram. Nesse momento, eles perceberam que poderiam contratar seus compatriotas a um preço mais barato e que a língua não seria um grande obstáculo. Outros no mesmo período viraram vendedores, fornecedores de comida e joalheiros. Muitos foram de uma atividade a outra em busca de negócios mais vantajosos” (BUECHLER, 2003:12, tradução própria).

27 Ou seja, utilizavam as vias de fornecimento, produção e circulação desenvolvidas pelos nordestinos para a produção e comercialização de roupas populares.

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caso da imigração boliviana, que se desenvolveu de maneira muito menos ordenada e sem a necessidade de acordos específicos, a própria mudança na composição e volume dos fluxos migratórios posteriores à década de 1980 acabaram por imprimir o caráter de ilegalidade a essa migração.

Dessa forma, as restrições, iniciadas em 1967, inauguraram o período da imigração coreana ilegal para o Brasil29: o destino direto era quase sempre São Paulo e as principais rotas de entrada dos coreanos no Brasil eram ora a partir do Paraguai, ora a partir da Bolívia30. No caso da Bolívia, existia a facilidade de concessão de vistos de “turista” para coreanos no momento da entrada no Brasil. De acordo com os dados sobre a entrada de “turistas” coreanos via Bolívia, disponibilizados pela Empresa Brasileira de Turismo (Embratur), em pesquisa de Buechler (2003), os vistos para esses “turistas” coreanos apresentam uma tendência de aumento, principalmente, a partir da década de 198031.

Auxiliados por profissionais, que cobravam volumosas quantias para transportar clandestinos para dentro do território brasileiro, os emigrantes [coreanos] tinham várias opções de rotas. De Assunção podiam ultrapassar a Ponte da Amizade e entrar por Foz do Iguaçu. Outro caminho, partindo da capital paraguaia, era seguir até a cidade de Pedro Juan Caballero, cruzar a Avenida Internacional e chegar a Ponta Porã, no Mato Grosso do Sul. Na Bolívia, pegavam a rota de Puerto Juarez, cidade vizinha a Corumbá, ou ainda a que atravessa o rio Uruguai na altura de Uruguaiana – os mesmos caminhos usados pelo tráfico de drogas (GALETTI, 1995: 137).

Nesse momento, especialmente, a partir da década de 1970, a Coréia do Sul encontrava-se em situação de pleno desenvolvimento econômico, praticamente, dez anos depois do início da denominada “Era Park”, em que o país foi presidido ditatorialmente pelo general Chung-Hee Park – responsável pela implementação do plano de emigração sul-coreana para a América Latina. E os países da América Latina, diferentemente, entravam em contextos recessivos que duraram a década inteira. De acordo com os dados disponibilizados por Masiero (2007:73)32 sobre a taxa de crescimento anual do PIB, na Coréia do Sul, percebe-se que, durante a “Era Park”, o país atingiu as respectivas taxas de crescimento médio do PIB: entre 1963-1971, momento de início do primeiro plano qüinqüenal de desenvolvimento, 8,8% ao ano; entre 1972-1975, momento de desenvolvimento das indústrias química e pesada, 8,9% ao ano e, entre 1976 e 1979, de consolidação do parque industrial sul-coreano, 10,6% ao ano. E apesar de um pequeno momento recessivo no início da década de 198033 – em que apresenta um crescimento quase nulo de 1,1% ao ano, entre 1980-1982 (MASIERO, 2007:73) – já no período entre 1983-1987, volta às altas taxas de crescimento médio do PIB de 10,22% ao ano. Enquanto, na América Latina, de acordo com os dados da UNCTAD (2008), por exemplo, entre 1980 e 1990, o Brasil apresentou um crescimento anual médio do PIB em torno de 2,8% ano e a Argentina e a Bolívia apresentaram crescimentos negativos de -0,4 e -0,2, respectivamente.

Brasil, o próprio governo sul-coreano decide proibir as migrações em direção a esse país. 29 Estes coreanos adquiriram residência legal posteriormente com as anistias de 1980 e 1988.

30 Note-se que essa rota ilegal é inaugurada pelos coreanos de maneira praticamente concomitante aos fluxos legais, devido a algumas dificuldades pontuais de entrada de alguns grupos previamente autorizados, num momento bastante tumultuado da política brasileira, entre 1963 e 1964.

31 “No Brasil, o Consulado Boliviano assinou um acordo no qual eles poderiam expedir o visto dos coreanos para entrar na Bolívia via Brasil. Os coreanos então entravam primeiramente como turistas. De acordo com as estatísticas da Empresa Brasileira de Turismo (Embratur), de 1950 e 1960 até o começo e, especialmente, o fim de 1970 ocorreu um grande salto no número de vistos turísticos dados a “turistas” que entravam no Brasil pela Bolívia” (BUECHLER, 2003:10, tradução própria).

32 Masiero utilizou como fonte as estatísticas disponibilizadas pelo Banco Mundial e FMI.

33 Momento, inclusive, em que se percebe um aumento dos fluxos migratórios de coreanos para a Argentina e para o Brasil e o início dos fluxos para o Chile, que se intensificariam na década de 1990.

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Dessa forma, a Coréia do Sul encontrava-se em situação econômica bem mais vantajosa do que os países da América Latina para os quais os imigrantes coreanos costumavam se dirigir. Essas circunstâncias indicam uma complexidade maior de motivações em torno desse segundo momento dos fluxos migratórios de coreanos para a cidade de São Paulo. Em relação a essas motivações, encontramos na literatura sobre a imigração coreana para a América Latina referências ainda bastante esparsas, mas que apontam, em geral, para as dificuldades de inserção profissional e educacional, em um sistema marcado pela competitividade, como no trecho de um depoimento reproduzido abaixo (GALETTI, 1995; CHOI, 1991, BUECHLER, 2004 e KIM,2008).

'Na Coréia a educação é obrigatória até o colégio. A partir daí o afunilamento e a competição são muito grandes. Quem não consegue entrar numa faculdade é discriminado. Não terá emprego bom capaz de sustentar família, comprar casa ou mesmo carro. Por isso muitos pais preferem arriscar tudo e vir para o Brasil na esperança de dar um futuro melhor para os filhos' (Keum CHOI apud GALETTI, 1995: 137-8).

A literatura citada acima também indica uma mudança na classe sócio-econômica daqueles que começaram a vir no período. Nesse momento, ao invés de imigrantes coreanos empobrecidos que migraram, de navio, para conseguir sobreviver – em meio a mudanças estruturais na economia e perseguição política na sociedade de origem – a partir da década de 1970, emerge a figura de um imigrante coreano que chega de avião e com algum dinheiro para investir, muitas vezes, em negócios no ramo de confecção iniciados por familiares que vieram nos primeiros grupos, a despeito de sua condição de ilegalidade inicial34.

A situação dos bolivianos, principalmente a partir da década de 1980 é bastante diferente, não apenas em relação à Coréia do Sul, conforme vimos, mas também em relação ao início de seus fluxos migratórios para a cidade, perfazendo uma inflexão quantitativa35 e qualitativa, que reflete, justamente, essa mudança nos “contextos de expulsão” desses imigrantes.

Nesse período, a Bolívia passava por intensa recessão econômica – o início auspicioso das tentativas de modernização e desenvolvimento industrial, inauguradas na década de 1950, soçobrou. E, ao invés de desenvolvimento, os governos bolivianos alcançaram, 30 anos depois, uma enorme dívida externa e uma taxa inflacionária anual ímpar na história da economia (de mais de 20 mil por cento36), que se agravava, na década de 1980, graças aos desastres naturais, de 1982 e 1983, provocados pelo fenômeno do “El Niño”37.

34 “A segunda onda de imigrantes coreanos, grande parte ilegal, constitui a maioria das lojas de roupas e seus donos. Alguns desses imigrantes já trouxeram capital e freqüentemente estiveram envolvidos com a indústria de confecção na Coréia” (BUECHLER, 2003: 12, tradução própria).

35 Apesar da dificuldade para precisar o número de imigrantes, considerando que são indocumentados, percebe-se um importante aumento no fluxo. Por exemplo, pelos dados do censo, citados em Kadluba, 2007: em 1980, foram registrados 3213 bolivianos, em 1991, 4525 bolivianos e em 2000, 7722 bolivianos. Uma outra forma de verificar este aumento expressivo, de acordo com Cymbalista e Xavier, 2007, seria através dos registros da Polícia Federal que, em 1995, registrava 255 bolivianos e, em 1999, 17897 bolivianos. 36 “A partir de 1980, inicia-se uma das crises mais agudas da história boliviana. Para 1985, uma crise fatal

envolvia a economia e a sociedade boliviana. Recessão, dívida externa, baixa produtividade, desequilíbrio fiscal, perda do poder aquisitivo dos salários, queda das matérias primas, inflação etc, se davam juntos em um país que parecia que iria desaparecer” (PEREIRA, 2004:52, tradução própria).

37 Esses desastres levaram a secas importantes na região do altiplano, com perdas nos setores agrícolas e pecuários que chegaram a 80% da produção, afetando, principalmente, os departamentos de Potossi, Oruro, Cochabamba e Chuquiasca, nos quais se concentrava, na época, de acordo com Pereira (2004), em média, 74% da população boliviana.E, na parte oriental do país, onde ocorreu o desencadeamento de uma série de desastres provocados por chuvas intensas e transbordamento dos rios.

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Essas circunstâncias38 dinamizaram movimentos migratórios internos, levando a uma taxa de migração interna anual, entre 1987 e 1992, de mais de 100 mil bolivianos por ano, em uma população que, naquele período, era de seis milhões e meio de habitantes39. E, em relação às migrações internacionais, percebe-se, nesse período, um importante adensamento e diversificação dos fluxos que, apesar de continuarem se dirigindo para a Argentina (principal destino dos emigrantes bolivianos desde o século XIX) e Brasil, se dirigiram também, intensamente, durante as décadas de 1980 e 1990, para o Peru e a Venezuela, na América Latina, para os Estados Unidos, países da União Européia – principalmente, Itália e Espanha – e também Israel, Japão e Austrália. E estima-se que, atualmente, em torno de 20% da população boliviana viva fora de seu país (CEPAL/CELADE/OIM, 1999).

Nesse momento, os imigrantes bolivianos que escolheram como destino migratório a cidade de São Paulo eram, ao invés dos profissionais liberais e estudantes das décadas anteriores, ex-trabalhadores das minas e fábricas bolivianas, geralmente jovens e com baixas qualificações. E a principal forma de inserção econômica desses imigrantes foi o trabalho na costura (SILVA, 1997 e 2006; KADLUBA, 2007; FREIRE, 2008, CYMBALISTA & XAVIER, 2007). De acordo com os dados da Fundação Bolívia, além do trabalho na costura, os imigrantes bolivianos que chegaram a partir desse período também se inseriram em trabalhos domésticos, venda ambulante, construção civil e carpintaria.

4. Inovação e precarização – a consolidação comercial da comunidade coreana no Bom Retiro

Há inúmeros depoimentos de judeus que venderam imóveis a coreanos, seduzidos por propostas irrecusáveis: 'Eles abrem uma mala de dólares em cima do seu balcão' [...].Conforme apurou uma matéria publicada em 1982: 'os comerciantes tradicionais do Bom Retiro e Brás costumam brincar entre eles dizendo que os coreanos, em busca de ponto para instalar suas lojas, fazem sempre duas perguntas. A primeira é: Quanto custa? A segunda, independente do preço pedido, nunca muda: Quando o senhor desocupa?' Nessas condições, para boa parte dos judeus previamente instalados, a invasão coreana soou como uma bênção, recrudescendo a disputa por pontos comerciais, que passaram a ser avaliados em dólares (citado por TRUZZI, 2001:14 - 15).

A partir da década de 1980, os imigrantes coreanos, até então restritos ao “circuito de carregação” da cidade de São Paulo40

, começam a se instalar comercialmente nos bairros centrais da cidade. Esses bairros possuíam um reconhecido comércio de roupas e tecidos, controlado pelas comunidades judaica, síria e libanesa. E, apesar de tratar-se de um momento pouco auspicioso desse comércio, a entrada coreana não se deu a partir da vacância de lojas falidas, mas devido a oferta de altos lances, em dólares, dos imigrantes coreanos aos membros das comunidades imigrantes que controlavam esse comércio, especialmente, da comunidade judaica, concentrada no Bom Retiro.

Dessa forma, estaríamos diante de pequenos empreendedores com capital suficiente para conseguir estabelecer, com bastante agilidade, uma espécie de enclave comercial

38 “As sequelas econômicas em baixa produção, perda de terras por erosão ou alagadas, perda de colheitas, de reservas, das próprias sementes que foram consumidas pelos campesinos, de infraestrutura rodoviária, baixa suficiência alimentar etc ligadas a incidências na saúde, mortalidade, emprego, rendimentos, deram lugar, portanto, a uma forte migração interna” (PEREIRA, 2004:69, tradução própria).

39 “[...] ou seja, mais de 100 mil bolivianos por ano que abandonaram terras, famílias, bens adquiridos, parentes, costumes, cultura e identidade” (PEREIRA, 2004:89, tradução própria).

40 Até esse momento, os imigrantes coreanos encontravam-se ou no trabalho como costureiros em oficinas de outros imigrantes, compatriotas ou das outras comunidades de imigrantes residentes nas regiões centrais da cidade, ou ainda em suas próprias oficinas, geralmente, domiciliares para o comércio ambulante ou em oficinas de outras confecções.

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coreano no bairro41. Mas, afinal, como é que a atividade de comércio ambulante ou a partir de pequenas oficinas de costura clandestinas poderia ter gerado lucros tão grandes, capazes de possibilitar tamanha poupança, em dólares, por parte desses imigrantes? A aposta de Truzzi (2001) é a de que os imigrantes sul-coreanos teriam um eficiente sistema de auto-financiamento, interno à comunidade, o Key, que possibilitaria o acúmulo de grandes somas42. Concomitante ao key e outras formas de lealdade no interior da comunidade, consideramos importante salientar o papel da chegada desse segundo fluxo de coreanos, que trouxe quantias consideráveis de capital, provenientes de uma Coréia do Sul em pleno desenvolvimento econômico. Nesse sentido, destaca-se, por exemplo, o alto investimento feito no início da década de 1980, por um empresário sul coreano, o Sr. Won Kyu Lee, quando de sua mudança para a capital, na construção de um prédio na Rua Cesare Lombroso – até então, dominada por fábricas já em decadência e umas poucas lojas – para o estabelecimento de um shopping para abrigar as lojas atacadistas dos imigrantes coreanos43.

With many bringing small amounts of capital, Korean businessmen form financial consortiums or savings clubs, called Kye, among friends often made at protestant and catholic Korean churches in Sao Paulo to auto-finance their businesses. The clubs provide pools of money for low-interest loans. The garment industry was seen as a sector where profits could be made in a short period of time (BUECHLER, 2003:3)44.

Apesar da entrada dominante dos empreendimentos sul-coreanos, especialmente, no Bom Retiro, note-se que não se tratou de uma simples troca de posições em que os judeus deixaram suas lojas para coreanos que, a partir de então, seriam os novos comerciantes do bairro. Pois os imigrantes da comunidade judaica não só mantiveram boa parte das estruturas construídas, com reformas apenas de fachada, permanecendo com parcela importante do capital imobiliário do bairro, mas ainda: muitos dos fabricantes de roupas tradicionais, suas plantas industriais e comerciantes permaneceram nesses bairros, conforme observa Truzzi (2001).

Entretanto, os coreanos estabeleceram, de fato, uma nova forma de organização da produção e comercialização, que se diferenciava da forma até então praticada pelos judeus45.

De acordo com Kim (2008), um importante diferencial dos negócios coreanos, seria uma mistura de investimento em qualidade e no estabelecimento de uma marca própria –

41 Pois além das lojas coreanas, o bairro foi recebendo restaurantes, igrejas e outros estabelecimentos coreanos ao longo dos anos.

42 “[o Key é] uma espécie de consórcio destinado a reunir capitais que serão revertidos para um determinado objetivo perseguido por seus membros. Típico expediente utilizado na terra natal e em qualquer país que abrigue coreanos. (...) Tal sistema de autofinanciamento viabilizou e acelerou o sucesso econômico de muitas futuras famílias de empreendedores da colônia no Bom Retiro. O resultado é que hoje os coreanos dominam as atividades comerciais do bairro” (TRUZZI, 2001:10).

43 “'Naquela época só havia cerca de 10 lojas abertas ali. O resto eram fábricas e oficinas de costura', lembra [o empresário Won Kyu Lee]. Mesmo assim, ele ergueu um prédio em um dos quarteirões, o que foi considerado uma ousadia por uns e tolice por outros, por causa do pouco movimento gerado no local. Hoje, esta rua é uma das mais importantes do pólo atacadista do Bom Retiro” (KIM, 2008:67).

44 “Com vários trazendo pequenas quantidades de capital, os empresários coreanos formaram consórcios financeiros ou clubes de poupança, chamados Kye, entre amigos, geralmente, feitos nas igrejas coreanas católicas e protestantes em São Paulo, com o intuito de auto-financiar seus negócios. Os clubes forneciam somas de dinheiro a baixas taxas de juros. A indústria de confecção era vista como um setor cujos lucros poderiam ser atingidos em curto período de tempo” (BUECHLER, 2003:3, tradução própria).

45 (...) os estilistas geralmente copiam um modelo de sucesso, especializam-se em um ou dois tipos de roupas, cortam os tecidos e distribuem as peças em lotes para diferentes oficinas de costura. (...) “Os judeus trabalham em escala industrial, fornecendo para os grandes magazines. Os coreanos distribuem as mercadorias pelas lojas e mantêm vendedores que mais funcionam como fiscais desse estoque invisível. Isso agiliza as vendas, eu mesmo já comecei a adotar esse sistema”[depoimento do empresário judeu Bernardo Dorf] (GALETTI, 1995:140 - 141).

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envolvendo todo um corpo de profissionais extremamente especializados46 – concomitante ao investimento em diversidade: são lançados novos modelos a cada 15 dias e os desfiles de lançamento da estação contam, em média, com 80 modelos iniciais. Esses números, bastante altos nos termos mesmo do circuito pret-a-porter no qual os designers dessas lojas se inspiram, minimizam a importância do “modelo específico” lançado no desfile, como no circuito tradicional: ao invés do modelo único, os coreanos propõem a multiplicidade de variações em torno de um mesmo tema.

Os coreanos desenvolveram não apenas a tática de ganhar a clientela pela beleza e qualidade das peças, mas também pela agilidade no abastecimento de suas prateleiras e pela quantidade dos modelos disponíveis. 'Nós fazemos um lançamento de coleção com, no mínimo, 80 modelos de roupas diferentes. Impossível fazer menos que isso', ilustra Sandra Kim, proprietária da confecção ModasCor. Ela e a maioria dos outros confeccionistas abastecem suas lojas a cada 15 dias. E a perspicácia do comerciante não está apenas em manter a loja cheia, mas repleta daquilo que o cliente quer ver. 'Se algum modelo não teve uma boa saída em 15 dias, nós recolhemos as peças e renovamos a mercadoria', explica Sandra. A tática é adotada por todos os seus conterrâneos e, acreditamos, que não foi fácil chegar a essa logística afinada, na qual peças chegam e saem numa velocidade sem fim (KIM, 2008:72).

E, para atingir essa alta produtividade e rotatividade, ao invés do modelo fabril, centralizado, com funcionários fixos, os coreanos estabeleceram um sistema de produção descentralizado que mobiliza uma miríade de pequenos produtores: as pequenas oficinas de costura clandestinas ligadas, a princípio, aos imigrantes bolivianos. Conforme ressalta matéria do jornal O Diário Popular, citada abaixo, a partir de dados do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Sócio-econômicos – DIEESE, esse sistema de subcontratação representaria um gasto dez vezes menor com a folha de pagamento dos costureiros, o que parece ser bastante significativo nesse tipo de negócio que envolve enorme produtividade e alta rotatividade.

Segundo estimativa da subseção do Dieese, no Sindicato das Costureiras, uma empresa constituída legalmente gastaria por volta de R$ 31 mil apenas com a folha de pagamento de 25 funcionários que recebessem o piso da categoria (R$351,00). Nesse cálculo estão incluídos encargos e horas extras. Mesmo que as três confecções [de bolivianos apreendidas pela Polícia Federal] pagassem a um total de 25 bolivianos um salário mínimo, a despesa ficaria em R$3 mil reais – 10 vezes menos (s.n., sexta-feira, 25 de julho de 1997).

De maneira bastante esquemática e considerando as informações obtidas no trabalho de campo47, em relação ao comércio atacadista dos imigrantes coreanos na cidade de São Paulo, nota-se o estabelecimento de uma divisão do trabalho para a produção e comercialização das peças em que, principalmente:

i) Os coreanos seriam responsáveis pelo desenvolvimento do produto e insumos necessários para a sua realização e pelo controle das oficinas de costura ou, em alguns casos, pelo capital inicial dos bolivianos através do empréstimo de máquinas e/ ou outros equipamentos para que constituam as próprias oficinas e pela comercialização das roupas confeccionadas.

ii) E os bolivianos – mas também, muitas vezes, imigrantes de outros países da América Latina e brasileiros – realizariam o trabalho de costura das roupas. Atualmente, em muitos casos, também seriam responsáveis pelo corte dos tecidos, pois são muito mais baratos do que os cortadores coreanos ou mesmo brasileiros, além de se consolidarem cada vez mais

46 O processo de desenvolvimento deste “produto da moda” envolve uma série de etapas: “além do desenvolvimento de coleção, da prospecção de tendências da moda, do envolvimento com os calendários nacionais e internacionais, e do estudo de cartela de cores, formas, volumes e acessórios e aviamentos para a montagem da coleção” (site da CDL - http://www.cdlbomretiro.org.br/06).

47 Trabalho de campo realizado ao longo do curso de Mestrado em Sociologia, na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

Referências

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