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Migração e território: uma aproximação teórica

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Academic year: 2021

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XXI ENCONTRO NACIONAL DE ESTUDOS POPULACIONAIS

Migração e Território: uma aproximação teórica

Ricardo Alves* e Sueli Siqueira**

O presente trabalho propõe a adoção da abordagem das teorias do território, importante vertente da Geografia, como instrumental eficaz na análise dos processos migratórios internacionais contemporâneos. Como processos complexos, multifacetados, migração e território inspiraram teóricos de diversas áreas, cujos estudos contemplam visões a partir de diferentes campos do conhecimento. Essa conjugação teórica de postulados sobre os fluxos migratórios e sobre as conformações territoriais permite enxergar intersecções entre os dois processos, que integram dimensões políticas, econômicas e culturais. A partir de visões estruturais e subjetivas, que vai do nível local ao global, os deslocamentos populacionais são tomados aqui como meio e produto das configurações dos territórios. Entender a imbricação do fenômeno migratório com as teorias do território torna-se, dessa forma, um caminho firme para conduzir os pesquisadores até a compreensão desse destacado movimento da população pela aldeia global no século XXI.

* Mestrando em Gestão integrada do Território pela Universidade Vale do Rio Doce (GIT-Univale), bolsista da Capes.

** Doutora em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), professora do Programa de Mestrado GIT-Univale.

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Introdução

“Falar da imigração é falar da sociedade como um todo”, pontua Sayad (1998. p.16) ao abordar a prática migratória como “fato social total” em sua dimensão histórica (diacrônica) e do ponto de vista das estruturas de funcionamento da sociedade (sincrônica). Alude-se a essa observação para salientar como é complexo entender e explicar os fluxos de pessoas entre e pelos diferentes territórios no mundo. Territórios esses que têm a existência e o funcionamento atrelados a uma série de fatores tanto históricos quanto estruturais e sistêmicos. Em suma, migração e território são fenômenos e processos sociais multifacetados, cuja apreensão é multidimensional e transpassa diversos campos do saber.

Importante frisar que existe uma estreita relação entre as práticas migratórias e as composições territoriais, visto que o ato de migrar é exatamente mover de um lugar a outro, passar de um a outro território. Percebe-se que o território aqui é tomado enquanto processo – e não como coisa estanque – uma vez que ele se configura na relação de um indivíduo ou grupo social com um espaço material e/ou simbólico. Resulta da vivência, uso e significação de um espaço apropriado (HAESBAERT, 2004). E abarca em si as dimensões inerentes aos sujeitos e às sociedades, permitindo tomar emprestado de Sayad a afirmação acima e empregá-la em outros termos: faempregá-lar de território é faempregá-lar da sociedade como um todo.

É a partir da constituição histórica e pela estruturação e sistematização de ambos os processos sociais aqui analisados que se busca relacionar as teorias sobre migração com as teorias que abordam o território. Como processos complexos e multidimensionais, ambos os objetos de estudos exigem dos pesquisadores olhares múltiplos e sensíveis para serem compreendidos. Nessa perspectiva, diz Douglas Massey a respeito da imigração – podendo ser também pertinente ao território – que não basta contar apenas com as ferramentas de uma única teoria ou se ater a níveis superficiais de análise. “Em vez disso, sua natureza complexa e multifacetada requer uma teoria sofisticada que incorpore uma variedade de perspectivas, níveis e premissas” (MASSEY et al., 1993, p.432)1.

O horizonte para a aproximação teórica que se propõe neste trabalho tem como foco a revisão das teorias da migração internacional proposta por Massey et al

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(1993) enriquecida por abordagens posteriores a essas teorias. E ampliada por diferentes níveis de análise, como o proposto por Sayad (1998, 2000), que parte da abordagem do sujeito como figura central para o estudo do fenômeno migratório. Do ponto de vista territorial, transcorre-se por diversos autores e seus peculiares entendimentos sobre o território, buscando-se sempre alinhar a perspectiva da análise do território com a perspectiva a partir da qual se constitui a teoria da migração em questão.

Cumpre dizer que o território aqui é entendido em uma perspectiva ampla e dependente não unicamente do espaço que o origina, mas principalmente das relações sociais que o configuram. Relações que expressam o exercício de um poder, como postula Raffestin (1993). Para ele, o território “é gerado a partir do espaço, constituindo o resultado de uma ação conduzida por um ator que realiza um programa em qualquer nível [...] apropriando-se concretamente ou abstratamente de um espaço” (RAFFESTIN, 2008, p.26). Essa definição um tanto funcional, mas ainda assim processual, define como “produção territorial” a aplicação de energia e informação em um espaço material com fins do exercício de um poder, eminentemente político, ainda que pela via econômica através do controle dos meios de produção.

Indo além da materialidade e funcionalidade, o território que aqui se aborda compreende, para além das dimensões econômicas e políticas, a dimensão simbólico-cultural que gera o enraizamento, o afeto e a identificação com os espaços vividos. Nesse sentido, Saquet (2008) propõe a compreensão dos processos formadores do território a partir das relações de espaço-tempo que lhe são inerentes e que atuam nas dimensões econômica, política, cultural, social e natural. Ele defende “uma abordagem histórica, relacional e multidimensional-híbrida do território e da territorialidade” (SAQUET, 2008, p.74).

Nessa direção, Haesbaert (2004) é quem mais expande o conceito de território a fim de que caiba a pluralidade de processos nele e por ele gerados, definindo-o como um movimento que engloba tanto a dominação política e econômica, quanto a apropriação simbólico-cultural e afetivo-identitária. Para Haesbaert, o território – e as territorialidades correspondentes – vão além de limites espaciais e se justapõem em múltiplas escalas e múltiplas conexões reticulares. Haesbaert (2004) postula que os territórios são sempre múltiplos e geram, em sujeitos e grupos, uma multiterritorialidade.

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As migrações pelas lentes sociológicas

Como movimento social, a migração atrai os olhares sociológicos e desperta a atenção de pesquisadores a partir do século XX. Uma releitura de teóricos clássicos como Thomas Malthus, Karl Marx, Émile Durkheim e Max Weber informa que a migração era enxergada, cada um a seu modo, como consequência do processo de desenvolvimento do capitalismo e a organização da produção industrial (SIQUEIRA, 2009), que gerou o crescimento urbano e o esvaziamento do campo2. No campo dos estudos de território, Saquet (2007) e Haesbaert (2005) utilizam o termo desterritorialização para definir esse esvaziamento espacial e/ou simbólico. Nesse caso, há uma aproximação semântica do conceito biológico de território no sentido material de cisão entre o animal e seu habitat. Todavia o termo comporta também componentes psicossociais e afetivos eu sua condição dinâmica, de processo, à qual está subordinada a existência do território (HAESBAERT, 2004).

A complexidade do tema atraiu a atenção da Escola de Chicago, de onde partem as primeiras abordagens das ciências sociais sobre as migrações. A obra pioneira, o livro “A Polish Peasant in Europe and America”, de Thomas e Znaniecki, surgiu em 1918 e impulsionou não somente os estudos sobre migração, mas também a sociologia como ciência nos EUA (SASAKI e ASSIS, 2000). O pensamento entre em Chicago era o de que os migrantes de outras nações, ao se assentarem em território estadunidense, passariam pela assimilação da cultura daquele país e de todos os seus componentes: valores, ritos e significados. A essa aculturação com a mistura de elementos culturais oriundos de diferentes etnias, os estudiosos de Chicago chamaram melting pot3. (SOARES, 2002).

Para Raffestin (1993) e Haesbaert (2003b), sob diferentes pontos de vista, o

melting pot seria um processo de reterritorialização dos migrantes no destino, ou a

apropriação de novos espaços de produção de riquezas e de significados. Essa aculturação que defendia a Escola de Chicago, porém, não obteve respaldo

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Paul Singer (1973) fala em urbanização não somente como atração da mão de obra para as indústrias, mas como resposta às pressões populacionais sobre a terra. Para Singer, esses deslocamentos puseram fim à ordem do campo estendendo a ordem urbana às regiões rurais.

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O termo melting-pot, ou caldeirão em tradução livre, foi popularizado pela peça teatral “The melting-pot”, de Israel Zangwill (1908), que conta a história de um judeu russo refugiado nos EUA após fugir de perseguições étnicas e passa a viver em no ambiente multiétnico e multicultural dos EUA.

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empírico e foi abandonada como conceito central de adaptação dos imigrantes. O que se viu foi a formação de enclaves étnicos, territórios de agrupamentos de migrantes de mesma origem e de culturas próximas (SASAKI e ASSIS, 2000), dando origem a bairros e cidades inteiras. Essa maneira de reterritorialização e tida por Raffestin (1993) como uma apropriação material de um espaço onde se reproduz uma relação social, política e cultural peculiares àquele grupo. Sob essa ótica, as relações políticas, sociais e culturais que os migrantes mantinham em seu território de origem são replicadas em novo território, tornando-se um escudo contra a penetração da cultura do local de destino, impedindo a aculturação ou o suposto

melting-pot.

Para Haesabaert, o processo caracteriza-se como produção de múltiplos territórios, em que a desterritorialização na origem desses migrantes, ou a perda dos laços físicos e da convivência com os símbolos da cultura da origem, é acompanhada de um “processo de reterritorialização espacialmente descontínuo e extremamente complexo” no novo espaço (1994, p.214 apud 2004). Sobre o termo múltiplos territórios, ou multiterritorialidade, Haesbaert (2004) explica que as relações entre o migrante e os seus territórios, ainda que peculiares, se conformam inevitavelmente a partir e pelo evento da migração e tudo o que ela significa desde a origem até o destino. Sendo assim, os migrantes trazem consigo os elos simbólicos que os ligam aos seus territórios de origem – suas territorialidades primeiras – e os ressignificam no destino, justapondo novas territorialidades construídas no novo território apropriado.

O território do migrante é assim definido por Haesbaert (2011) como territórios-rede, em que diferentes pontos do espaço são apropriados pelos indivíduos e grupos em diáspora. “Esse migrante globalizado pode estar ligado a territorialidades locais, regionais, nacionais e globais” (HAESBAERT, 2011, p. 5), cujo acionamento pode ser simultâneo e/ou sucessivo. Para Haesbaert (2004), os enclaves étnicos, como espaço de múltiplos territórios, se apresentam ora mais permeáveis e propensos à hibridização pelo contato com a cultura estrangeira local, ora mais fechados e propensos à reclusão e maior confinamento étnico. No aspecto político, os mesmos enclaves são tidos como “territórios identitários”, segundo Guy Di Méo (2004, p.6), onde a identidade cultural é acionada pelos indivíduos e grupos como componente expressivo das práticas sociais e espaciais que os constituem enquanto sujeitos e que constituem suas territorialidades. O culturarista Stuart Hall

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entende que é justamente a condição diaspórica – de ruptura com a terra natal – que impulsiona o migrante a evocar a sua origem para afirmar sua identidade como prova de pertencimento a uma cultura e lugar no mundo global fragmentado (HALL, 2003a). Seguindo essa ideia, os enclaves significam “a reinvenção do lar no interior de uma diáspora globalmente estruturada” (HAESBAERT 2003a, p.19).

Um ponto de entendimento comum entre os teóricos da migração é que alguns dos elementos componentes do fenômeno migratório – causa, duração e efeito – formam um escopo que pode ser acionado para iluminar questões relativas à mobilidade espacial em geral. Como pontua Massey et al (1993), as circunstâncias que valem para os deslocamentos internacionais também podem ser utilizadas para explicar a mobilidade interna, cabendo diferenciar as proporções e a aplicação de cada uma das teorias em cada circunstância. As migrações internas, também processo complexo e repleto de rupturas (SAYAD, 2000), possuem dinâmicas e teorias específicas que as abordam, mas encontram, em muitos casos, similaridades com as práticas migratórias entre países. Ressalte-se que aqui o objeto de estudo são as migrações internacionais.

As lentes econômicas

A partir do insucesso dos modelos de assimilação cultural, as perspectivas teóricas começaram a focar no mercado de trabalho e nos vetores econômicos, o principal viés de análise das migrações até os dias atuais. Estes, porém, são insuficientes para explicar fatores como perpetuação dos fluxos, cultura migratória e outros fenômenos correlatos à migração (MASSEY et al, 1993; CODESAL, 2005; SIQUEIRA, 2009). O olhar mais atento para as implicações teóricas sobre os fluxos de migrantes foi levado, em grande parte, pelo rearranjo da mobilidade humana pós-guerra, próximo dos anos 50: antes da Europa para América e, naquele momento, das colônias para as antigas metrópoles e da América Latina para os EUA (SIQUEIRA, 2009). O pioneiro a enxergar os fatores econômicos como principal causa da migração foi Ernst Ravenstein (1885). Seus estudos partem dos números do censo inglês no final do século XIX para entender a mobilidade de trabalhadores naquele país e levam em conta fatores territoriais de expulsão e atração de trabalhadores.

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A proposta de Ravenstein foi revisitada e aprimorada por Everett Lee (1966) e se tornou o framework mais acionado em estudos migratórios dos últimos anos:

Push and Pull Theory (SOARES, 2002). Segundo Lee, forças econômicas, políticas,

sociais, culturais e afetivas agem sobre os indivíduos em seus locais de origem, impulsionando-os à decisão de migrar – push factors. Nesse compasso, fatores de estabilidade como melhoria econômica, segurança política e liberdade cultural são colocados em perspectiva como atrativos dos locais escolhidos como destino pelos migrantes – pull factors. De outra maneira, o que Lee designa como fatores de expulsão podem ser lidos como condicionantes territoriais que expressam a parte mais fraca de uma “relação dissimétrica” de forças (RAFFEESTIN, 1993, p.36) entre esses indivíduos e aqueles atores que exercem um maior poder sobre esse território. Em especial, a relação entre o poder do capital e a força de trabalho.

Embora aqui o foco seja eminentemente econômico, a Push and Pull Theory também pode ser acionada para abordagens dos estudos migratórios que se orientam por motivações jurídico-políticas ou culturais-identitárias. Em ambos os casos, o poder se faz presente nas relações entre migrantes e os territórios de origem e destino, seja como fator de repulsão ou atração. Em cada caso, uma perspectiva diferente de território pode ser acionada para se entender os fluxos migratórios e seus efeitos, como pontua Haesbaert (2011), sobre as tentativas de controle dos fluxos – de capitais, mercadorias, pessoas – em um mundo global marcado pela fluidez espacial. Ou como lembra Di Méo (2004) sobre o acionamento político das identidades com vistas a uma maior mobilização social e maior controle do território.

As teorias de Ravenstein e Lee foram elaboradas de um ponto de vista estrutural e não se inserem em uma linha de pensamento única. De visão macro, ela ainda é incorporada pelas diversas teorias que as sucederam, principalmente as econômicas. Entre essas, este estudo traz algumas das vertentes de pensamento: a neoclássica – microteoria e macro teoria; a nova economia da migração – os novos economistas; da teoria do mercado de trabalho – mercado segmentado e capital humano; a teoria histórico-estrutural e dos sistemas mundiais. Essa classificação, descrita por Masssey et al (1993) em sua revisão analítica das teorias das migrações internacionais, é uma das mais utilizada por pesquisadores brasileiros (SASAKI e ASSIS, 2000; SOARES, 2002, SIQUEIRA, 2009; SANTOS et al, 2010).

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A teoria neoclássica determina como mecanismo primário das migrações as diferentes taxas salariais praticadas em diferentes regiões em relação à oferta de mão de obra nesses mesmos lugares. Por essa visão macro, trabalhadores tendem a migrar de regiões de salários mais baixos para centros onde os salários são mais altos. O resultado desse movimento seria um aumento na oferta de mão de obra e redução nas vagas de trabalho dos países mais ricos e diminuição da mão de obra e aumento de vagas de trabalho em países mais pobres. Seus defensores, como Gustav Ranis e John Fei, defendem que uma vez equilibrada as taxas salariais e a demanda de trabalhadores, um pressuposto econômico liberal, os movimentos migratórios tenderão a cessar (SANTOS et al, 2010).

Esse mesmo pressuposto, porém numa visão micro, atribui ao trabalhador a decisão da migração a partir do simples cálculo do quociente custo/benefício da empreitada, cálculo usualmente econômico, aponta Massey et al (1993). Há nesse horizonte teórico a conta do capital humano do indivíduo em vista das possibilidades de incremento nas taxas salariais, facilidades de emprego e outras vantagens possíveis que pesarão na decisão e no destino para onde migrará o trabalhador. A teoria neoclássica, defendida pelos economistas John Harris e Michael Todaro, não leva em conta outras forças sociais que possam pesar na decisão de migrar (SASAKI e ASSIS, 2000). Tal modo de ver a migração irá pressupor, inevitavelmente, na adoção de uma perspectiva materialista do território. Como observa Raffestin (1993), são relações de produção que se projetam no espaço para fundar um território. Raffestin lembra que são os investimentos das empresas que forçam os deslocamentos populacionais para atender à demanda do capital. E destaca que os componentes econômicos são indissociáveis de suas raízes políticas e inseparáveis de suas facetas culturais e sociais.

Ignorar as forças sociais como propulsoras da migração foi um posicionamento criticado pelo sociólogo Alejandro Portes, que considera a migração uma ação socialmente orientada a partir de fatores étnicos, das redes sociais e do capital humano de que dispõe o migrante (PORTES, 1995), além dos efeitos inesperados e da percepção do custo das transações envolvidas. Uma visão que inclui aspectos sociais, como é o caso, permite enxergar com mais clareza as afetações territoriais a que dão efeito. Como em Portes (1995), em que o envoltório sociocultural do migrante e suas relações são fundamentais para a decisão de migrar. Entende-se aqui como territorialidades o que emerge das relações desses

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sujeitos com seu entorno socioespacial através de representações simbólico-culturais. Ou ainda expressões territoriais do cotidiano, uma aproximação com o que Paul Claval nos apresenta como territorialidades. Ou o ponto de encontro entre a construção da identidade e a expressão da cultura. (CLAVAL, 1999).

As ideias de Portes são centrais também na perspectiva dos novos economistas da migração, que consideram as migrações como projetos coletivos – geralmente familiares – com vistas ao incremento da renda (MASSEY et al, 1993). Por essa vertente, os migrantes orientam-se pela mobilização de recursos em prol de diminuir os riscos econômicos em um mercado de trabalho oscilante e inseguro. Segurança econômica e uma menor dependência de políticas econômicas locais é o que buscam os migrantes pelo víeis dessa corrente teórica, que tem entre seus defensores os economistas Oded Stark, David Bloom e John E.Taylor (SANTOS et al, 2010). Uma articulação de redes de relações sociais, meios de produção locais e estrangeiros, de recursos materiais e simbólicos, de ações e significados que espelham as dimensões nas quais operam as relações de poder entre o sujeito e seus espaços vitais – na origem e no destino – e entre os atores e seus grupos sociais na condução dos projetos migratórios. Movimento que serve bem a uma caracterização de território – e territorialidades – no sentido pluridimensional e polissêmico do termo, observado em Haesbaert (2003a, p.13) através de suas vertentes jurídico-política, simbólico-cultural e econômica.

A economia também é terreno das postulações sobre o funcionamento do mercado de trabalho para explicar os fluxos migratórios, com duas visões diferentes. Uma trata da segmentação do mercado e das vagas de empregos – o mercado dual – e a outra se prende na qualificação dos trabalhadores – o capital humano. Atuante nas teorias do capital humano, o estadunidense George Borjas defende a adoção de medidas para conter a entrada no país de imigrantes com baixa qualificação. Segundo Borjas (1990; 1996), os imigrantes pouco qualificados provocariam o desemprego e o achatamento salarial de funções antes exercidas por nativos com baixa qualificação. Além disso, o desenvolvimento dos setores produtivos seria comprometido pela falta de qualificação dos trabalhadores migrantes. Borjas defende a adoção de políticas efetivas de seleção para a entrada de imigrantes nos EUA, estabelecendo cotas e priorizando os candidatos mais qualificados, cuja “contribuição econômica poderiam exceder os custos de fornecimento de serviços sociais” (BORJAS, 1996, p.9). Essa ideia de defesa das fronteiras corresponde

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exatamente ao “controle do acesso” que Robert Sack propõe para a defesa de um território com vistas ao controle da área e o consequente poder de influenciar pessoas e processos que ali se desenvolvem. Segundo Sack, os territórios “são formas construídas de relações sociais e seus efeitos dependem de quem controla quem e com que propósitos” (SACK, 1986 apud BRAGA, 2010, p.27)

Outra ideia do funcionamento do mercado de trabalho como âncora de uma teoria econômica da migração é a que defende a existência de um mercado segmentado de trabalho – dual labor market, como resultante das demandas por mão de obra, intrínsecas à sociedade industrial moderna. Nessa direção, Michael Piore (1979), propôs uma divisão estrutural da economia dos EUA em setores bem distintos: um setor primário, estável, no qual as vagas de trabalho requerem qualificação, oferecem bons salários e permitem ascensão profissional; e um setor secundário, instável, de baixos salários, alta rotatividade e quase nenhuma ascensão profissional. É este setor do mercado de trabalho que visam os migrantes, segundo Piore. A teoria do mercado dual de trabalho implica uma menor assimetria na relação capital-trabalho que configura o território do trabalho dos imigrantes (HAESBAERT, 2003a): o que seria pouco para um nativo se torna vantajoso para um trabalhador estrangeiro, reflexo das diferentes realidades nos territórios de origem e destino do migrante.

Os novos economistas enxergam a migração do ponto de vista macro. Os fatores históricos e estruturais do capitalismo, nessa perspectiva, constituem peça chave para a geração dos fluxos de trabalhadores migrantes entre os diferentes territórios nacionais. Concentração populacional nos centros urbanos, rearranjo espacial da produção e desigualdades regionais acentuadas são alguns desses fatores a forçar a mobilidade de massas de trabalhadores, em geral grupos social e geograficamente definidos. (SOARES, 2002). Por outro lado, a mobilidade da força de trabalho deixa de ser efeito e toma o lugar de causa. Acionada estrategicamente pelos setores produtivos em um movimento de reprodução das relações capital-trabalho, a mão de obra se torna fundamental para a manutenção da ordem de produção capitalista (SOARES, 2002).

Os aspectos materiais, nesses dois casos, se tornam proeminentes nas relações dessas sociedades de origem dos migrantes com os novos territórios reconfigurados por esses rearranjos estruturais produtivos. De maneira que se torna adequada a assertiva de Raffestin de que “o território é o espaço onde se projetou

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um trabalho” (1993, p.144) para falar de (re)configurações espaciais determinadas por relações de produção. Na mobilidade do capital, Raffestin destaca os conflitos entre “a territorialidade abstrata e instável das multinacionais e a territorialidade concreta e estável da população” (1993, p.95). Em troca do salário, a população se desterritorializa pelo rompimento com seu meio simbólico, pela perda de todo contato com uma informação existencial. No entanto, Haesbaert (2004) pontua que a desterritorialização não se concretiza simultaneamente em todas as dimensões, resguardando que há sempre o movimento de reterritorialização que a acompanha.

A teoria dos sistemas mundiais pode ser considerada o ponto de chegada dos fatores histórico-estruturais. Segundo Soares (2002), a nova ordem mundial faz emergir a necessidade de se abordar a migração internacional atual no mesmo compasso em que se reordenam as economias dos países de origem e destino desses fluxos: ambas são partes de um sistema globalmente instituído. Portes (1995) acrescenta que para entender os novos fluxos é necessário compreender a posição na economia global dos países de partida e de chegada dos migrantes – economias desenvolvidas versus economias em desenvolvimento. Saskia Sassen (1988 apud SIQUEIRA, 2009) alerta que os rearranjos globais da produção envolvem a internacionalização das unidades fabris e a fragmentação da produção, associadas à quebra das estruturas tradicionais de emprego e expansão do capital, bem como uma preparação das corporações para um ambiente transnacional.

Nesse cenário de rupturas, defende Sassen, o fluxo de migrantes é só mais um dos fluxos – entre capital, mercadorias e informação – a compor um território global da economia. Inspirada nesse contexto, Glick-Schiller (1992) utilizou o termo transnacional para se referir aos migrantes que se territorializam em duas ou mais nações do mundo, mantendo os vínculos em ambos os lugares. É também nesse sentido, de compressão espaço-tempo, que Haesbaert adota o conceito de “multiterritorialidade reticular” (HAESBAERT, 2004 apud 2008, p.401) para descrever as relações dos indivíduos com os múltiplos territórios possíveis de se produzirem na aldeia global, seja pela mobilidade espacial ou virtual seja na migração ou mesmo na imobilidade espacial.

Essa nova ordem mundial geradora de inúmeras contradições, criou o que Otávio Ianni classifica como “trabalhador coletivo desterritorializado” (IANNI, 1996, p.3). Ianni cunha o termo para ilustrar a nova divisão internacional do trabalho, onde a origem da força produtiva não condiciona a quantidade ou qualidade do trabalho

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ou produto. E segue afirmando que o mundo, fábrica global, desterritorializa coisas, gentes e ideias através de uma homogeneização cultural em que os sujeitos perdem o sentido de seu lugar4 no mundo. Di Méo (2004) argumenta que a

desterritorialização funciona como exercício de poder político, ao suprimir vínculos que alimentam as identidades individuais e coletivas, poderosos instrumentos mobilizadores da sociedade. Para Hall (2003b) essa ruptura se opera pela fragmentação das certezas, em um circuito de reprodução simbólica da ideologia capitalista através da linguagem, uma reprodução ideologizada de cultura. A partir dessa conjuntura, as migrações internacionais são vistas pelo capital como mais um recurso disponível e pelos indivíduos migrantes como mais uma opção palpável de trabalho (SIQUEIRA, 2009). Haesbaert (2005) ressalta que a desterritorialização econômica, política ou cultural pela exclusão social pode levar indivíduos e grupos sociais à migração forçada.

Pela conjugação dos fatores econômicos que mobilizam trabalhadores migrantes e configuram o território do trabalho, é plausível dizer que a economia ocupa posição central nos projetos migratórios. No entanto, fica evidente que fatores políticos, culturais, étnicos e sociais são também motivações para os deslocamentos espaciais. A procura do migrante por melhores condições de vida pode ser entendida como busca por um espaço onde possa exercer um domínio político e/ou econômico, ou uma apropriação simbólica. Onde possam, enfim, se territorializar.

A migração a partir das redes sociais

Esta aproximação entre as teorias das migrações internacionais e as abordagens territoriais encontra na teoria das redes o perfeito encaixe epistemológico. Isso porque as redes, além de serem categorias próprias de análises conceituais em ambos os campos de estudos, comportam, em suas extensões, todas as dimensões constitutivas tanto da migração quanto do território. Saquet (2007) argumenta que as redes e os territórios se condicionam mutuamente, uma vez que as redes de circulação, comunicação “são meios na articulação interna do território e, ao mesmo tempo, são território” (SAQUET, 2007, p.72). Charles Tilly

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Aqui o lugar é tomado no sentido expresso por Doreen Massey (2000), como lócus de enraizamento material e simbólico, afetivo, social e cultural. Massey resguarda que esse lugar carrega a noção de pertencimento (sem deixar de ser dinâmico e híbrido), lugar onde o indivíduo se integra aos sistemas mais amplos da aldeia global, mas onde também encontra a si mesmo no mundo.

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(1990) considera que as redes sustentam uma estrutura comunitária que traslada. Haesbaert (2011) sustenta que os migrantes em diáspora configuram múltiplos territórios em rede.

Massey et al (1993) entende que as redes migratórias são constituídas por meio de conexões de parentesco e amizade e propiciam uma atuação em conjunto para minimizar custos e riscos e maximizar ganhos no processo migratório. Monica Boyd (1989) argumenta que as relações comunitárias e laços de solidariedade ajudam a tecer as redes sociais migratórias. Soares distingue entre pessoal, social e migratória as redes articuladas pela migração, considerando a migratória como um tipo específico, processual, uma “rede de redes sociais” (2002, p.23). Nesse sentido, Soares aponta que as imbricações entre as redes estruturantes da migração contêm fatores de ordem social, política, econômica e afetiva, que são acessados de acordo com a necessidade e/ou disponibilidade dos envolvidos no processo migratório. Sobre as redes sociais, Saquet e Mondardo (2008, p.119) a comparam a um “cimento comunitário” que une indivíduos e coletividades em seus territórios na origem, durante a mobilidade e no destino. Siqueira (2009) observa que as redes sociais da migração propiciam uma infinidade de conexões entre as duas sociedades que impedem uma ruptura definitiva entre o migrante e a comunidade de origem, criando assim a figura do “transmigrante” (SIQUEIRA, 2009, p.49). Essa amplitude global dos laços territoriais produz, para Haesbaert (2010, p.19) uma realidade “transterritorial”.

Essas novas territorialidades proporcionadas pela formação das redes sociais da migração refletem tanto o território de origem quanto o de destino. No local de partida, observa Siqueira (2009), as redes dão novas configurações ao meio no qual se estabelecem, mobilizando recursos e dinamizando relações nos círculos sociais do migrante. No destino, um novo território se configura, visto que o migrante “leva também sua identidade étnica, suas relações de parentesco, suas identidades de gênero, enfim, um background cultural que vai consigo” (SIQUEIRA, 2009, p.46). Nesse mesmo processo, os territórios se articulam nas e pelas redes, obedecendo à lógica da fragmentação e simultaneidade de tempos e espaços, eclodindo em um “território-rede” (Haesbaert 2004, p.348), considerado o território global do migrante em diáspora. Sob uma perspectiva econômica transnacional e ambiente

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transcultural5, os migrantes – ou transmigrantes – configuram, segundo o autor uma

transterritorialidade, manifestação do “estar-entre” (HAESBAERT 2010, p.35) múltiplos territórios, ou uma “territorialidade de trânsito”.

Redes técnicas (energia, transporte, informação), redes sociais e redes simbólicas; as redes se mostram nevrálgicas na efetivação do processo de globalização: é o próprio mundo que se conecta em redes. Nesse sentido, material ou relacional, as redes são também imprescindíveis para fundar territórios, agenciar migrações e articular os dois processos.

Massey et al (1993) elenca algumas das principais razões para a perpetuação de fluxos migratórios entre territórios específicos. As redes são apontadas como o principal fator. Por elas se espraiam os mecanismos facilitadores das partidas – mobilização de recursos, suporte logístico e institucional – e das chegadas no destino – moradia, emprego e superação de barreiras culturais. Além disso, tornam-se incentivo às novas partidas e para projetos de retorno (SIQUEIRA, 2009). As redes migratórias abrigam ainda dinâmicas que dão suporte a outras teorias de perpetuação: a institucional e da causalidade cumulativa. Pela teoria institucional, a migração gera demanda por serviços na origem que facilitem a entrada no país desejado. E propicia o surgimento de ações de apoio e defesa dos migrantes no destino. Sejam públicas ou privadas, legais ou criminosas, voluntárias ou lucrativas, essas instituições são, segundo Massey et al (1993), infraestrutura social para o incremento dos fluxos. Do ponto de vista territorial, são dinâmicas econômicas e políticas a configurar o território dos migrantes (HAESBAERT, 2003) e a reforçar a estrutura das redes de circulação de produtos, serviços, de relações e de significados que conectam e configuram territórios (SAQUET, 2007).

A causalidade cumulativa, conceito difundido por Gunnar Myrdall (MASSEY et al, 1993), se dá quando uma ação gera efeitos que se acumulam, criando um ambiente propício para que essa ação se repita. Dessa forma, o fluxo migratório se retroalimenta dos efeitos que cria nos territórios onde ocorre. A privação relativa, elencada por Stark e Taylor (SANTOS et al, 2010), acontece quando não migrantes sentem-se impelidos a migrar para ter acesso aos bens de consumo e ao padrão de vida, introduzidos no território de origem pela migração. Território esse que se reconfigura a partir do aumento da renda de grupos de migrantes, que terão maior

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Ambiente exposto a uma concentração de representações de culturas hibridizadas, estas no sentido exposto em Hall (2003) e Doreen Massey (2000).

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acesso às terras e aos meios de produção agrícola (MASSEY et al, 1993), garantindo também maior controle sobre o trabalho (RAFESTIN, 1993). Tal ação gera redução na demanda por mão de obra, o que força a migração e causa mais desequilíbrio na distribuição do capital humano. O resultado na origem é a desterritorialização do trabalho (HAESBAERT, 2005) e, no destino, a rotulação de “trabalho de imigrantes” para os empregos menos valorizados pela lógica do mercado dual de trabalho (PIORE, 1979). Um setor de absorção da mão de obra sem especialização é um incentivo à migração e à criação de certos nichos étnicos de trabalho. É, segundo Haesbaert (2005) a reterritorialização, no destino, do trabalho e da renda.

Outro fator do ciclo efeito-causa-efeito que retroalimenta a migração é a cultura da migração. Para Massey et al (1993), o contato com as estruturas econômicas e sociais do destino muda hábitos de consumo e expectativas nos locais de origem. Em estudo empírico desenvolvido no México, ficou latente entre jovens uma “prevalência do comportamento migratório” (KANDEL E MASSEY, 2002, p.983), originada no contato com a ascensão econômica de migrantes retornados. O estudo detecta que a propensão a migrar é passada de geração a geração como uma prática natural, que se torna normativa sendo tomada por jovens como rito de passagem para uma vida adulta. Fator parecido foi observado por Sayad (1998) na migração argelina para a França, em que os migrantes adquiriam grande valor, um status de heróis, junto às comunidades de origem. Nesse sentido, Claval pontua que a transmissão de normas e valores que constituem uma cultura é feita primeiramente pela família e em seguida pelo grupo social (CLAVAL, 2007). E afirma que as práticas culturais são refletidas inteiramente, em forma de territorialidade, no território de vivência social. “Os homens concebem seu ambiente como se houvesse um espelho que, refletindo suas imagens, os ajuda a tomar consciência daquilo que eles partilham” (CLAVAL, 1999, p.11).

Em que pese a ideia contemporânea de mobilidade como regra, como frisa Haesbaert (2005), os territórios em que se identifica comportamentos migratórios possuem dinâmicas próprias, observadas também em outros locais, como afirmam Cohen e Sirkeci (2011). Eles comparam o caso mexicano com os fluxos migratórios na Turquia e a partir da África e Ásia para defender que a migração é um processo que gera sua própria dinâmica. Uma vez que os deslocamentos são vistos como a melhor alternativa para resolver problemas locais, os fluxos tendem a se estabelecer

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e se perpetuar, enraizando-se como uma prática cultural. Esse processo acontece em um contexto territorial que previamente reúna as condições de germinar o comportamento migratório: fatores de expulsão e causalidades cumulativas nos territórios de origem, mercado de trabalho no território de destino e uma sólida rede de relações que conectam ambos os territórios (COHEN E SIRKECI, 2011). Tais condições são também vetores dos poderes que configuram o território, cujas emanações trafegam pela cultura. Ou, como propõe Stuart Hall (2003, p.142), pelos “sentidos e valores que nascem entre as classes e grupos sociais diferentes [...] em suas relações e condições históricas”.

A migração na perspectiva do sujeito

O fenômeno migratório é teorizado amplamente em suas perspectivas histórica, estrutural, funcional e processual tendo em vista os fatores que estabelecem, estimulam, acentuam, refreiam e perpetuam os fluxos migratórios internacionais, sob diversas óticas: econômica, social, política e cultural. Entretanto, os estudos desse movimento ficariam incompletos sem o ponto de vista do protagonista dessas ações: o sujeito que migra. É desse sujeito de entre-lugares, esse viajante de tantos sonhos na bagagem, que tratam alguns postulados teóricos como o exílio em Edward Said (2003), a diáspora em Stuart Hall (2003a) e o retorno em Abdelmalek Sayad (2000). Desterritorializados em suas culturas e identidades, exilados em si mesmos e ausentes tanto na origem quanto no destino, o migrante – em sua condição diaspórica – torna-se um personagem emblemático das sociedades na era globalizada.

O processo de viver em outro país acentua o que Said (2003) pontua sobre o exílio e sua condição de ruptura que acompanha o exilado por toda a vida. Forçado a viver longe de casa (para Said, a migração é sempre uma relação de forças que impelem o migrante a se deslocar), os migrantes se tornam apartados de suas referências socioespaciais da origem e apartados de suas matrizes socioculturais no destino (SAYAD, 1998). A ruptura inicial, segundo Sayad (2000), é um tácito acordo entre o migrante e seus familiares que o permitem suportar a condição de exílio. Ou condição diaspórica, no sentido de Hall (2003a) e Haesbaert (2010). Essas rupturas – espacial, temporal, cultural e identitária – provocam no exilado, pontua Said (2003), uma condição ciumenta com o capital simbólico que o pertence: a pátria, a

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cultura e os ideais nacionais. É pela diferenciação com o outro que essas identidades são acionadas pelo migrante com o objetivo de se afirmar cultural, identitária e territorialmente. Lembra Claval (1999 p.23) que “a maior parte das estruturas conhecidas da vida coletiva se traduz em formas de territorialidade”.

Todavia, essas formas de territorialidade, agenciadas pelos migrantes para se afirmar em alteridade com as culturas estrangeiras, não passam incólumes e se hibridizam pelo atrito com as culturas hospedeiras (HAESBAERT, 2012). Doreen Massey observa que a relação com os lugares onde se chega fazem o viajante, “de alguma forma, ligar-se à coleção de estórias entrelaçadas das quais aquele lugar é feito” (MASSEY, 1998, p.176). Embora essa nova relação se estabeleça, o sujeito em trânsito não de desvincula totalmente de suas identidades territoriais da origem. E para ela quer voltar, garante Sayad (2000), trazendo para as teorias das migrações uma indispensável contribuição: o desejo de retorno como constituinte do processo migratório. Não um retorno simples ao local da partida, mas “ao ponto de partida” (SAYAD, 2000, p.12), antes da migração, para um lugar onde o migrante pode encontrar a si mesmo e a seu território tal qual ele o deixou. Mas os retornos, alerta Doreen Massey (1998), “são sempre para um lugar que se transformou [...], a tessitura de um processo de espaço-tempo”. Essa impossibilidade do retorno concreto, fundamental, cria um lugar aberto à nostalgia, objeto de um “intenso investimento de memória afetiva, uma terra santa”, que engaja toda a identidade social e cultural (SAYAD, 2000, p.12).

Aspectos como os explorados por Sayad nas migrações, como a perspectiva do retorno e as áreas de origem dos migrantes, com algumas exceções, são pouco exploradas do ponto de vista teórico nos estudos das migrações (SAYAD, 1998). Sendo processo, o retorno tem implicações também multidimensionais – econômicas, políticas, sociais e culturais –, que partem de experiências transnacionais, transculturais e transterrritoriais. Entre os efeitos, estão a não adaptação dos retornados aos seus lugares de origem, além da perspectiva da circularidade6 – e o empreendimento de nova migração.

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Circularidade ou migração circular é um termo usado desde o final da década de 60 para designar migrações laborais sazonais ou periódicas, sendo adotado nos anos 80 por teóricos da migração internacional. O Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) oferece algumas definições que podem ser resumidas como o movimento sazonal contínuo de ida e vinda do migrante entre países aos quais se vincula para atender a fins laborais e sociais (NEWLAND, 2009).

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Conclusão

Alude-se então às condições nas quais se funda a era globalizada para inferir que a circulação de capital, mercadorias, informação e pessoas só tende a aumentar no planeta. Some-se a isso as perspectivas estruturais e simbólicas de transnacionalismo e transculturalismo cada vez mais presentes no cotidiano dos indivíduos e nações, e pode-se supor que os estudos das migrações ainda terão um longo caminho a percorrer a fim de acompanhar a dinâmica dos múltiplos fatores desse intrincado processo. Como profícuas ferramentas, as teorias do território – tão complexas, pluridimensionais e multifacetadas quanto as teorias das migrações – agregam um rico ponto de vista nas análises dos fenômenos migratórios. Contribuem largamente para a compreensão de elementos que dão causa e que mantém os fluxos. E facilitam o entendimento dos efeitos gerados nos lugares pela mobilidade humana, tanto na origem quanto no destino dos fluxos.

Há que se observar nesse percurso, que as teorias desenvolvidas até o momento não são necessariamente obsoletas ou excludentes umas das outras. São, antes de tudo, base epistemológica para um leque de possibilidades conceituais e teóricas que despontam no caminho de construção do conhecimento. Massey et al (1993) acentua que as teorias da migração podem ser articuladas em níveis amplamente divergentes de análise. Mas não bastam, isoladamente, para “dar conta de todas as nuances desse fenômeno”, complementa Siqueira (2009, p.53). Hall (2003b) adverte que não há segurança ontológica que possa levar a sociedade da informação a construir certezas epistemológicas. Haesbaert (2012) insere que a instabilidade recheia as geografias “do espaço cotidiano mais local ao global”. Pintam, todos esses estudiosos, um retrato das condições um tanto etéreas em que os estudos das migrações e do território se realizam e se entrecruzam, sobretudo nos tempos atuais. Vislumbram um horizonte onde o conhecimento acerca dos processos sociais, na complexidade típica do século XXI, passa pela compreensão de vários outros processos e fenômenos correlatos. Assim, enxergar as migrações pelas lentes do território possibilita entender que a elaboração de políticas favoráveis aos migrantes – e às localidades de origem e destino – só será possível a partir do conhecimento de suas relações com os espaços onde vivem: os seus territórios. Pois como lembra Sayad (2000, p.12), “emigrar e imigrar é, antes de mais nada, mudar de espaço, de território”.

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