• Nenhum resultado encontrado

Saudade: Representação e Semiótica em Villa-Lobos

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "Saudade: Representação e Semiótica em Villa-Lobos"

Copied!
173
0
0

Texto

(1)

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM MÚSICA

CLEISSON DE CASTRO MELO

SAUDADE: REPRESENTAÇÃO E SEMIÓTICA EM

VILLA-LOBOS

SALVADOR-BA 2016

(2)

SAUDADE: REPRESENTAÇÃO E SEMIÓTICA EM

VILLA-LOBOS

Tese apresentada ao Programa de Pesquisa e Pós-graduação em Música, Escola de Música, Universidade Federal da Bahia, como requisito parcial para obtenção do grau de Doutor em música. Área de concentração: Composição

Orientador: Prof. Dr. Wellington Gomes

Coorientadores: Prof. Dr. Eero Tarasti e Prof. Dr. Paulo Costa Lima

SALVADOR-BA 2016

(3)

M528 Melo, Cleisson de Castro

Saudade: Representação e semiótica em Villa-Lobos /Cleisson de Castro Melo. -- Salvador, 2016.

174 f.

Orientador: Prof. Dr. Wellington Gomes

Tese (Doutorado - Programa de Pós-graduação em Música) -- Universidade Federal da Bahia, Escola de Música, 2016.

1. Música : Análise e apreciação. 2. Villa-Lobos, Heitor. 2. Semiótica. I. Título.

CDD 780.15

(4)

© CopyLeft Cleisson Melo

(5)

SAUDADE: REPRESENTAÇÃO E SEMIÓTICA EM VILLA-LOBOS CLEISSON DE CASTRO MELO

Tese apresentada como requisito parcial para obtenção do título de Doutor em música, Escola de Música da Universidade Federal da Bahia

Aprovada em 13 de julho de 2016.

Welligton Gomes da Silva – Orientador, UFBA Doutor em Música pela Universidad Federal da Bahia

Paulo Costa Lima – Co-orientador

Doutor em Educação pela Universidade Federal da Bahia

Paulo Cesar de Amorim Chagas

Doutor em Composição pea Universidade de Liége, Bélgica

Paulo de Tarso Salles

Doutor em Música pela Unicamp

Wellington Mendes da Silva Filho

(6)
(7)

“A Saudade é Brigitte Bardot acenando com a mão num filme muito antigo”.

(8)

Aos meus pais Linaldo Oliveira e Cecilia Mello pela educação e suporte a mim proporcionados.

Aos meus irmãos Cleisse e Linaldo Jr pelo apoio e companheirismo.

À minha amada esposa Kadija Teles pelo apoio incondicional e suporte necessários para que este trabalho chegasse até aqui.

À CAPES pelo apoio financeiro que permitiu a condução desta pesquisa tanto no Brasil, como na Universidade de Helsinki durante o ano de doutorado sanduíche.

Ao meu orientador Prof. Dr. Wellington Gomes pelos ensinamentos meticulosos, disposição, paciência, orientações e o norte acadêmico, o meu muito obrigado!

Aos meus coorientadores Prof. Dr. Eero Tarasti pelo meticuloso norteamento, suporte, orientações e por ser a bússola deste trabalho, e ao Prof. Dr. Paulo Costa Lima pelas conversas sempre atenciosas e direcionamentos meticulosos para que essa pesquisa caminhasse neste sentido, o meu muito obrigado a vocês.

Ao Programa de Pós-Graduação em Música da UFBA, na pessoa da Profa. Dra. Diana Santiago (coordenadora), pelo imenso apoio, ajuda e atenção.

Aos professores(as) do Programa de Pós-Graduação em Música da UFBA pela doação de conhecimento.

Às funcionárias do Programa de Pós-Graduação em Música da UFBA Maísa e Selma, pela apoio prestado sempre.

À Juliana Gois por tudo!

Aos amigos Prof. Dr. Luciano Carôso, Valéria Almeida e Prof. Dr. Pablo Sotuyo pela amizade, companheirismo, pelas contribuições para este trabalho, e por estarem sempre presentes.

Aos Professores Dr. Paulo Chagas e Dr. Paulo Salles pelas valiosas contribuições e pelo empenho, dedicação e disponibilidade para estarem na banca examinadora.

À Profa. Dra. Heloisa Valente pelo empenho e préstimos.

Ao Professor Dr. Dario Martinelli pelo manifesto “Numanities” (New-Humanities), o que abriu novas possibilidades para esta pesquisa.

Aos meus colegas de pós-graduação, nas pessoas de Laurisabel Silva, Ernesto Silva e Reis, Vilma Fogaça e Larissa Padula, pela assistência e companheirismo.

(9)

Dominguez pela ajuda, acolhimento e enorme amizade! Também à Dra. Tiina Vainiomäki e Takemi Sosa pelo companheirismo e suporte! Kiitos Paljon!

À Dra. Sári Helkala-koivisto pelo incentivo e colaboração. A Paul Forsell pela inestimável ajuda.

À Universidade de Helsinki, nas pessoas de Irma Rinne e Maija Urponen, pelo imenso amparo e suporte a mim prestados.

Ao Museu Villa-Lobos, na pessoa de Pedro Belchior e sua inigualável memória, pela imensa ajuda e dedicação.

Aos funcionários da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro pela cordialidade e presteza. Ao Banco de Partituras de Música Brasileira da Academia Brasileira de Música, na pessoa de Alessandro de Morais, pela eficiência e presteza.

A todos que de uma forma direta ou indireta contribuíram para este trabalho, mas que por um lapso de memória não estejam aqui, muito obrigado.

(10)

RESUMO

Este trabalho visa identificar elementos do processual villalobiano no sentido de revelar atitudes que, ligadas ao sentimento da saudade, nos permita uma reconsideração de sua música pelo viés da semiótica existencial. Para isso, almejamos construir um arcabouço teórico fundamentado na semiótica existencial, no gesto musical e tópicas, tendo como fio condutor o sentimento da saudade que, ativando ou sendo ativada por esta abordagem semiótica, nos possibilite investigar aspectos e relações com o hibridismo cultural brasileiro, buscando identificar elementos e atitudes do seu processual. Assim, uma abordagem teórico analítica plural permite nos debruçarmos sobre suas danças em ambiente orquestral, com o objetivo de identificar tais atitudes e seus desdobramentos, evidenciando aspectos do seu compor na tentativa de melhor entender seus processos composicionais.

Palavra-chave: Villa-Lobos. Saudade. Semiótica Existencial. Análise Musical. Significado Musical.

(11)

ABSTRACT

This research aims to distinguish Villa-Lobos’ processual elements in order to uncover attitudes, which associated with saudade (nostalgia), allows us a reconsideration about his music by the bias of existential semiotics. In this regard, we aim to build a reasoned theoretical framework in the light of existential semiotics, musical gesture, and topics, where

saudade is the guideline among these points. Therefore, saudade acting or being activated by

this semiotic approach allows us to investigate aspects and relations with Brazilian cultural hybridity, trying to recognize elements and attitudes of Villa-Lobos’ processual. Thus, a plural analytical theoretical approach allows us to deal with his orchestral dances in order to identify such attitudes and developments, underlining aspects of his composing in an attempt to better understand Villa-Lobos’ compositional processes.

Keywords: Villa-Lobos. Saudade. Existential Semiotics. Musical Analysis. Musical Signification.

(12)

Exemplo  3:  Danças  Características  Africanas  1.Mov.  Comp.  34-­‐38  (redução).  _________________________________  92   Exemplo  4:  Floresta  do  Amazonas,  Dança  de  Índios,  Comp.  01-­‐07  (redução).  __________________________________  94   Exemplo  5:  Floresta  do  Amazonas,  Conspiração  e  Dança  Guerreira,  Comp.  102-­‐109.   _________________________  97   Exemplo  6:  Floresta  do  Amazonas,  Conspiração  e  Dança  Guerreira,  Comp.  110-­‐114.   _________________________  99   Exemplo  7:  Bachianas  No.  4  –  IV.  Dança  Miudinho.  Comp.  01-­‐10.  ______________________________________________  101   Exemplo  8:  Bachianas  No.  4  –  IV.  Dança  Miudinho.  Comp.  11-­‐16  ______________________________________________  102   Exemplo  9:  Bachianas  No.  4  –  IV.  Dança  Miudinho.  Comp.  115-­‐124   ___________________________________________  104   Exemplo  10:  Bachiana  No.2  -­‐  III.  Dança  (Lembrança  do  Sertão).  Comp.  01-­‐06.  _______________________________  107   Exemplo  11:  Bachiana  No.2  -­‐  III.  Dança  (Lembrança  do  Sertão).  Comp.  24-­‐29.  _______________________________  109   Exemplo  12:  Bachianas  Brasileiras  No.  7  –  Giga  (Quadrilha  Caipira).  Comp.  192-­‐201  _______________________  111   Exemplo  13:  Bachiana  Brasileira  No.  4.  Dança  Miudinho.  Comp.  191-­‐197.  ____________________________________  115   Exemplo  14:  Amazonas  –  Dança  do  Encantamento  das  Florestas.  Comp.  68-­‐72.  Cifra  9.  _____________________  116   Exemplo  15:  Floresta  do  Amazonas.  Conspiração  e  Dança  Guerreira.  Comp.  42-­‐52.  __________________________  119   Exemplo  16:  Amazonas  –  Dança  do  Encantamento  das  Florestas.  Comp.  73-­‐76  ______________________________  122   Exemplo  17:  Amazonas  –  Dança  do  Encantamento  das  Florestas.  Comp.  81-­‐84.  Cifra  10.  ____________________  123   Exemplo  18:  Dança  dos  Mosquitos.  Comp.  21-­‐30  ________________________________________________________________  126   Exemplo  19:  Dança  dos  Mosquitos.  Comp.  96-­‐105  ______________________________________________________________  129   Exemplo  20:  Dança  Frenética.  Comp.  31-­‐39.   ____________________________________________________________________  132   Exemplo  21:  Bachiana  Brasileira  No.  2.  Lembrança  do  Sertão.  Comp.  86-­‐93  __________________________________  134   Exemplo  22:  Danças  Características  Africanas.  1.  Mov.  Comp.  01-­‐04  (05-­‐08).  ________________________________  138   Exemplo  23:  Danças  Características  Africanas.  3o  Mov.  Comp.  188-­‐197.  ______________________________________  140   Exemplo  24:  Dança  Frenética.  Comp.  101-­‐120.  __________________________________________________________________  144   Exemplo  25:  Floresta  do  Amazonas.  Dança  da  Natureza.  Comp.  27-­‐34.  _______________________________________  148   Exemplo  26:  Amazonas  –  A  Dança  Sensual  da  Jovem  Índia.  ____________________________________________________  151   Exemplo  27:  Bachiana  Brasileira  No.  2.  Lembrança  do  Sertão.  Comp.  15-­‐18.  _________________________________  152   Exemplo  28:  Bachiana  Brasileira  No.  7.  Guiga  (Quadrilha  Caipira).  Comp.  222-­‐231.  _________________________  155  

(13)

Figura  2  -­‐  modelo  do  Dasein  -­‐  semiótica  existencial  (Tarasti)  ___________________________________________________  60   Figura  3  -­‐  Quadrado  Semiótica  de  Greimas  x  Moi/Soi  ___________________________________________________________  62   Figura  4  -­‐  Z-­‐model  (Tarasti)  _______________________________________________________________________________________  63   Figura  5  -­‐  Z-­‐model  e  processo  composicional   ____________________________________________________________________  67   Figura  6  -­‐  interseção/comunicação  entre  Moi(s)  e  Soi(s)   _______________________________________________________  70   Figura  7  –  Z-­‐model  _________________________________________________________________________________________________  79   Figura  8  –  Ação  do  Moi1  ___________________________________________________________________________________________  96   Figura  9  -­‐  Ich-­‐Ton  e  Transcendência  filtrados  no  Soi-­‐Moi  (Tarasti)  ____________________________________________  98   Figura  10  -­‐  Soi  no  Moi  –  gesto  ____________________________________________________________________________________  128   Figura  11  –  Kankikis:  ritmo  ______________________________________________________________________________________  139   Figura  12  –  Movimento  M1-­‐S1  –  S1-­‐M1  no  processual  villalobiano  (Z-­‐model)  ________________________________  153  

(14)

1.2   CONTEXTO DE PESQUISA ... 17  

1.3   ESTRUTURAÇÃO DO TRABALHO ... 18  

2   VILLA-­‐LOBOS  ...  20  

2.1   MEMÓRIAS, SAUDOSISMO E DANÇAS ... 20  

2.2   BRASIL E A OBRA DE VILLA-LOBOS ... 23  

2.3   MODERNISMO E OUTROS DIÁLOGOS ... 26  

3   UM  CAMINHO  TEÓRICO  ...  29  

3.1   A SAUDADE ... 29  

3.1.1   Ontologia,  mito  e  simbolismo  ...  29  

3.1.2   Memória  e  representação  ...  35  

3.1.3   Saudade  e  seus  lugares  ...  37  

3.2   DO GESTO MUSICAL ... 45  

3.2.1   Gesto  e  ritmo  ...  52  

3.3   TÓPICAS: DO GESTO À SAUDADE ... 55  

3.4   A SEMIÓTICA EXISTENCIAL ... 58  

3.4.1   A  semiótica  existencial  e  processo  composicional  ...  66  

3.4.2   O  gesto  existencial  ...  71  

3.4.3   Villa-­‐Lobos  e  a  semiótica  existencial.  ...  72  

3.4.4   Representação  e  saudade  ...  76  

3.4.5   Lugares  da  Saudade  ...  79  

4   MODALIDADES  NAS  DANÇAS:  ATITUDES  E  PROCESSOS  ...  83  

4.1   REPERTÓRIO ABORDADO ... 84  

4.2   QUERER: VILLA-LOBOS E O BRASIL SONORO ... 88  

4.3   PODER: PERTENCIMENTO E EXPRESSÃO ... 105  

4.4   SABER: ESTÍMULO E REPRESENTAÇÃO ... 120  

4.5   DEVER: FENÔMENO E COMPOSICIONALIDADE ... 136  

5   CONSIDERAÇÕES  FINAIS  ...  158  

(15)

1.1 PRIMEIRAS PALAVRAS

Villa-Lobos, um dos mais importantes compositores brasileiros, desenvolveu uma linguagem musical notadamente criativa e exuberantemente numerosa. Porém, entender seu estilo, ideologia, técnica e estratégias continua sendo um desafio. Considerando a quantidade de trabalhos a respeito de Villa-Lobos, na sua maioria bibliográficos ou focado nos aspectos nacionalistas, os estudos analíticos mais sistemáticos a respeito de sua obra ainda estão longe de superar estes em número. Ainda falta considerar e evidenciar mais os méritos de sua obra como contribuição significativa para a música ocidental, dando assim substância para a prerrogativa que é a de ser um dos maiores compositores de seu tempo.

A vida de Villa-Lobos foi marcada por períodos de viagens e experiências dentro e fora do Brasil. Seu primeiro período parisiense (1923-1924) foi fundamental no desenvolvimento de sua linguagem musical. Com a ajuda de pintores e outros artistas, alguns dos quais ele conheceu pouco antes da Semana de Arte Moderna de 1992, Villa-Lobos, através de encontros e desencontros, conseguiu galgar seu lugar como compositor numa cidade bastante distinta culturalmente de suas origens.

Já as suas andanças pelo Brasil lhe rendeu bastante conhecimento sobre seu país em seus diversos aspectos, culturas, personagens, lendas, mitos, etc. O contato com essa diversidade lhe proporcionou noções desses Brasis, o que refletirá mais tarde nas representações dessas “realidades”.

Esta pesquisa caminha no sentido de reconsiderar a música de Villa-Lobos e suas relações com o hibridismo cultural-musical brasileiro, na tentativa de identificar atitudes que, conectadas ao sentimento da sensibilidade saudosista brasileira, nos proporcione meios para entender alguns processos composicionais que fundamentam sua música. Tendo isso em vista, investigar algumas de suas atitudes e processos composicionais pelo viés da semiótica pode iluminar outros aspectos de suas obras, em contrapartida às investigações mais institucionalizadas a este respeito. Desta forma, fica mais claro observar essas relações e atitudes, assim como sua expressividade composicional em desenvolver parâmetros estéticos capazes de promover seu discurso musical.

As danças representam um importante componente no folclore brasileiro, estando diretamente ligadas à tradição e cultura (inclusive são vistas como uma forte expressão

(16)

cultural em determinadas sociedades). Por isso que investigar as danças de Villa-Lobos pode ajudar a esclarecer sua miscigenação musical, bem como os caminhos por ele trilhados na construção da “alma brasileira”; uma linguagem musical brasileira.

Através de uma abordagem analítica que parte do sentimento da saudade e com base na semiótica existencial, no gesto musical e na teoria das tópicas, demonstraremos estratégias e atitudes do processual de Villa-Lobos, especialmente quando se pretende explorar os mecanismos de composição e expressão. Sendo assim, esta abordagem aplicada aos aspectos brasileiros emergentes do seu processo de criação poderá nos permitir identificar signos culturais-musicais em sua música orquestral. Posto isto, esta pesquisa visa retratar certas atitudes que, através do gestual, apontam para a construção de elementos representativos e significativos através da experiência e imersão cultural.

Portanto, tendo a saudade como principal “fio condutor”, este sentimento da sensibilidade saudosista presente na alma brasileira, seja como elemento identitário ou anexo (como veremos mais adiante), está ativando e sendo ativado pela semiótica existencial proposta por Eero Tarasti. Isso nos permitirá agregar diversas abordagens teóricas que, fundamentadas pela saudade e através da fluidez e flexibilidade da semiótica existencial, nos possibilita um arcabouço teórico capaz de evidenciar as atitudes e estratégias processuais almejadas. Assim, o que buscamos com diferentes abordagens é estabelecer uma fundamentação teórica alicerçada na saudade e embasada pela semiótica existencial que, em conjunto com o gesto musical, tópicas e o processo composicional segundo Lindembergue Cardoso, irão compor pequenos conglomerados que servirão de pontos de apoio para as análises pretendidas.

Assim, almejamos demonstrar alguns elementos e atitudes do processual villalobiano através de análises fundamentadas por este complexo teórico a ser desenvolvido. Neste sentido, vale ressaltar que partimos em busca de uma teoria da saudade que fosse original a partir de uma perspectiva portuguesa e também universal, contemplando uma visão brasileira e de como este sentimento se apresenta na alma brasileira. Por este ponto de vista, pudemos estabelecer uma interpretação de modo a fazer um contraponto com abordagens brasileiras, privilegiando uma perspectiva que discutirá a música brasileira pelo viés de uma teoria brasileira.

No sentido de contextualizar o leitor para melhor entendimento dos objetivos almejados com esta pesquisa, esta também visa contemplar aspectos de teorias de Brasil. Ou seja, a partir do momento em que buscamos tratar da música brasileira no contexto brasileiro, estamos trazendo estas abordagens teóricas para o contexto brasileiro, o que justifica uma

(17)

proposta de assegurar o Brasil como lugar de falas. Mas por que a semiótica? Por que uma semiótica europeia? Para responder estas e outras questões é necessário abrirmos um breve parêntese a respeito de como esta pesquisa foi construída e desenvolvida.

1.2 CONTEXTO DE PESQUISA

Esta pesquisa começou no mestrado, cujo aspecto fulcral era a música orquestral brasileira. Já durante o doutorado, o interesse era de desenvolver um estudo específico e mais aprofundando a respeito de uma possível orquestração tipicamente brasileira.

Os problemas foram diversos, e não cabe discuti-los aqui. A pesquisa terminou mudando de rumo e passou a focar nos aspectos estruturais e processuais das danças orquestrais brasileiras de um determinado período histórico. Um ponto amplo, mas que permitiu um contato com diversas vertentes analíticas e um vasto repertório; mais de 30 movimentos e músicas. Dentre todas as vertentes vistas, o campo da significação e do significado em música parecia muito promissor, com diversas possibilidades de abordagens. Por isso, a semiótica passou a ser uma linha muito pertinente para o caminho analítico desejado.

Para que isso se concretizasse, seria necessário um aprofundamento no campo da semiótica e da música brasileira. Então optamos por uma abordagem semiótica que permitisse interseções e confluências com o gesto e elementos da orquestração.

Diante deste quadro, surgiu a possibilidade de conduzir esta etapa de pesquisa fora do Brasil. Este trabalho terminou sendo acolhido pelo Prof. Dr. Eero Tarasti da Universidade de Helsinki. Frente a este cenário bastante promissor (as facilidades e recursos bibliográficos e acadêmicos), a pesquisa seguiu, desta vez, na direção de Villa-Lobos, com amplas possibilidades de aprofundamento no campo da semiótica.

O contato com os ensinamentos e direcionamentos do Prof. Tarasti permitiu vislumbrar o uso da sua teoria da semiótica existencial; uma teoria bastante fluida e capaz de abarcar uma enorme gama de possibilidades de interseções analíticas, seja pela sua base filosófica ou por agregar uma espécie de releitura da semiótica “clássica”, apontando para novas perspectivas em meio ao mundo moderno.

Ao deparar com uma abordagem em torno da escola franco-alemã de filosofia a respeito do Moi (eu) e Soi (coletivo, sociedade), um amplo caminho se abriu com diversas possibilidades de intercâmbios e interseções teóricas. Essa extrema fluidez apresentada pela

(18)

semiótica existencial tornou-se o principal elo que permitiu juntar todas as peças.

Durante o tempo na Universidade de Helsinki, muita coisa foi escrita, discutida e analisada. A peça que faltava viria de um pedido do Prof. Tarasti para falar de sentimento/emoção e música em Villa-Lobos. Eis que surgiu a saudade como o fio condutor de todo o processo, costurando cada abordagem teórica dentro de uma visão nossa; brasileira. Assim, discutir música brasileira, Brasil e suas culturas passa, nesta pesquisa, de vicissitude a realidade.

A intenção deste trabalho não é apenas introduzir a semiótica existencial no meio acadêmico brasileiro, mas fazer uma leitura e aplicabilidade pelas lentes de um discurso brasileiro. Com isso, faremos um contraponto e interseções com alguns autores e abordagens locais que, além de demonstrar a flexibilidade dessa teoria semiótica, nos permitirá reafirmar teorias e abordagens que dão conta de abarcar nossa realidade sócio-musical.

1.3 ESTRUTURAÇÃO DO TRABALHO

Este trabalho está estruturado em três partes e conclusão. No primeiro capítulo, faremos uma reflexão a respeito do sentimento da saudade presente na alma brasileira, das andanças, e experiências de Lobos e suas danças. Também faremos uma consideração sobre Villa-Lobos e sua relação composicional com o Brasil, bem como o seu processo de apropriação e diálogo com o modernismo.

No segundo capítulo, montaremos um arcabouço teórico com base na saudade, semiótica existencial e o gesto, capazes de lidar com os processos e atitudes a serem demonstrados. Através da semiótica existencial será possível levantar e responder algumas questões sobre o pensamento composicional villalobiano, bem como estabelecer uma abordagem plural onde se possa contemplar os elementos simbólicos e representativos da personalidade e do compor villalobiano. Este quadro teórico, tendo como fio condutor a saudade com a semiótica existencial, torna-se o elo entre os diversos tópicos, permitindo-nos fundamentar as análises propostas. Por este viés, esperamos ter uma visão mais ampla a respeito da música de Villa-Lobos e suas relações com o hibridismo cultural brasileiro, procurando identificar elementos e atitudes do seu processual.

Já o terceiro capítulo (analítico) abordará as danças villalobianas, ou melhor, as músicas ou movimentos de músicas exclusivamente em ambiente orquestral que tenham o nome “dança”, ou de alguma dança. Para este processo analítico listaremos quatro pontos

(19)

fundamentados nos desdobramentos oriundos de superposições de algumas modalizações. Este processo segue na direção da prerrogativa de Sílvio Ferraz (2014) quando ele diz: “de-compor” para “re-“de-compor”, ou seja, “desmontar para montar” (FERRAZ, 2014, p. 191). Isso abre nosso leque de opções e experimentações nos recortes analíticos que pretendemos “des-construir”, no sentido de “re-construir”1 um sentido no discurso villalobiano.

Por fim, no quarto e último capítulo, apresentaremos as considerações finais a respeito das atitudes analisadas, evidenciando o comportamento dos Mois e Sois nestas atitudes, e oferecendo ideias para futuras investigações.

1Estamos fazendo uma alusão ao re-presentar (nachzuwirken – continuar a ter efeito), no sentido de interconectar

(20)

2.1 MEMÓRIAS, SAUDOSISMO E DANÇAS

Em 5 de março de 1887, na cidade do Rio de Janeiro, nasceu Heitor Villa-Lobos, filho de Noemia Umberlina Santos Monteiro e Raul Villa-Lobos. Um dos personagens fundamentais na história da música brasileira, Villa-Lobos sempre apresentou um caráter e postura excepcional como compositor, músico e maestro.

Suas obras figuram em grande parte dos estudos a respeito do nacionalismo musical brasileiro e/ou na busca por elementos de brasilidade na música nacional. Uma das possíveis explicações para isso, poder ser o fato de que, no processo de construção de nossas memórias

(musicais), Villa-Lobos é um personagem constante com sua multifacetada brasilidade.

Compositor de centenas de obras, ele soube como ninguém usar o universo musical à sua volta que, com sua formação e sensibilidade, conseguiu alçar grandes voos, principalmente na construção de uma obra repleta de significados, significantes e enredos dramáticos que eram o reflexo de seu ímpeto e orgulho dessa terra brasilis.

Nesta sensibilidade brasileira, considerando o processo de formação do Brasil como nação, as múltiplas expressões de saudade são parte do cotidiano, do aprendizado cultural e das construções históricas do sentimento de pertencimento da comunidade de língua portuguesa. Assim, esse sentimento muitas vezes subjetivado (e identificado como nostalgia, perda, desilusão, melancolia, etc.) como expressão consciente de valores compartilhados, pode ser evocado como sentimento ou emoção por meio de categorias que permitem sua articulação com diferentes significados. O que acontece em Villa-Lobos não são só elementos saudosistas no sentido estrito da palavra (apesar de um tom nostálgico saudosista em algumas de suas obras), mas atitudes fundamentadas por aspectos saudosistas que se apresentam como processos na construção de seu discurso. São essas estratégias de conexão entre o intra e o extramusical que identificam singularidades específicas de um compositor. Neste sentido, Villa-Lobos foi bastante profícuo na construção de uma sonoridade particular, no intuito de desenvolver uma identidade sonora como base para a identidade de uma nação/sociedade.

A apropriação de elementos imanentes ao imaginário brasileiro, ativados pela saudade, é fundamental na representatividade de elementos culturais refletidos nos seus processos composicionais. Do mesmo modo, a (re-)apropriação de conceitos socioculturais estabelecidos por uma corrente nacionalista, especialmente os participantes da Semana de Arte Moderna de 1922, pode estar na dimensão das rememorações saudosas, e no desejo de

(21)

retomar o processo de identificação de um povo; neste caso, brasileiro. Para isso é preciso ir às raízes. Desta maneira, a saudade, presente no imaginário e no ser brasileiro, é parte substancial; a essência que embebida pela dialética da multiplicidade brasileira não pode ser dissociada do todo.

Quando falamos que Villa-Lobos procurou estabelecer um território singular relacionado a uma sonoridade ímpar e essencialmente brasileira, estamos falando do desejo de criar algo seu, mas, ao mesmo tempo, universal. Esse desejo presente na apropriação de elementos culturais e folclóricos traduz-se como o desejo de reconstruir uma nação sonora, uma identidade. Essas rememorações da saudade de outrora, de representar uma diversidade de miscigenação, estão enraizadas numa coletividade saudosa como elemento de distinção destes povos; representação das influências africana, portuguesa e indígena, por exemplo.

As danças, como elemento cultural, são importantes no processo do nacionalismo brasileiro. Mesmo apontado como “modismo” por Mario de Andrade, este estilo está presente nas páginas da história da música no Brasil. O estilo dança tem, dentre outras funções, a de trazer elementos culturais e populares para o meio musical; seja para a música de concerto ou para a própria música popular. O “dançável” era uma atitude de representação, de resgate das memórias, de trazer o passado ao presente, das raízes, de retratar elementos folclóricos e culturais no desenvolvimento de uma música que poderia ser identificada como brasileira. Não estamos querendo dizer que o retorno ao passado é uma maneira de explicar a cultura de hoje, mas esta ontologia de compartilhar experiências do passado no presente estabelece laços de pertencimento comum a uma determinada cultura, ou seja, é esse processo de reapropriação de elementos histórico-sociais que permite que a arte, especialmente neste caso a música, ecoe, evoque e transforme este passado imagético no saudosismo da alma brasileira.

Mario de Andrade (1982) em seu livro Danças Dramáticas do Brasil, fruto de seus estudos etnográficos no norte e nordeste do Brasil entre 1920 e 1940, aponta a dança como manifestação folclórica com elementos de dramaticidade que, dentro de um quadro amplo, está representando as manifestações populares por ele observadas. Há uma intenção de relacionar estas manifestações com manifestações pagãs europeias e o teatro grego antigo, referenciando as danças dramáticas como um espetáculo confluente com a música, movimento e drama.

Se olharmos pelo prisma da hibridação da linguagem sonora e visual, podemos dizer que:

(22)

se organiza por meio de signos, é uma maneira de ordenar informações – uma ação. Assim, na dança, a organização dos movimentos se dá de modo semelhante ao que promove o surgimento dos pensamentos: o processo da semiose, cadeia infinita de autogeração sígnica, pois envolve a atualização da tríade signo/objeto/interpretante (GONÇALVES, 2009, p. 47).

Assim, dentro do campo das imagens e metáforas, a construção das danças como signo estético acontece por meio da apropriação de elementos culturais populares (considerando a nacionalização das danças de origem europeias com a valsa, quadrilha, etc.).

“A dança desperta qualidades de sentimentos” (GONÇALVES, 2009, p. 77). Portanto, o olhar atento de compositores como Villa-Lobos proporcionou a reapropriação destes elementos, tanto pelo viés popular como folclórico, no sentido de trazer estes elementos representativos de brasilidade para o meio musical. Desta maneira, a dança passa a figurar como elemento representativo e também como meio de expressão.

Por outro lado, numa visão mais ampla, a saudade, no universo pluralista brasileiro, lida com duas grandes forças: união e desilusão. A força que uniu diferentes povos no território brasileiro também promoveu a desilusão na imposição forçada de colonização; atitude colonialista onde o colonizado não tem direto a uma língua própria – falas. Este sofrimento desilusivo, anexo ao ser brasileiro, estabelece uma relação direta com as tradições musicais brasileiras, especialmente as tradições afro-brasileiras. As danças, desta forma, foram e continuam sendo um meio de expressão bastante fértil em vários aspectos.

Considerando que a dança está fortemente presente nas mais diversas culturas, motivos não faltam para sua execução; rituais, cerimônias, fertilidade, colheita, celebrações, festividades, caça, natureza, e assim por diante. Assim, o uso de ritmos de dança como significado nacional assume forma bastante substancial na música brasileira e sul-americana.

O movimento nacionalista brasileiro achou terreno produtivo na apropriação e no uso das danças como consciência nacional. O adjetivo “novo”, como emblema de todas as manifestações, passou pelo crivo do saudosismo dessas raízes no intuito de compor elementos de identificações significativas ao desenvolvimento da “alma brasileira”. Em contrapartida, o movimento de vanguarda buscou este novo na contramão do saudosismo. Isso se concretizou no movimento Música Nova, o que não invalida de maneira nenhuma o movimento modernista como a retomada das raízes nacionais brasileiras.

No universo das danças, a relação entre saudade e memória atinge uma valorização afetiva de conteúdo mnemônico, o que retoma os aspectos psicossociais e culturais. Este estado de recordações está presente nas diversas manifestações culturais brasileiras. Por isso que, como forma marcante na construção de nossa biografia, dentro deste contexto de

(23)

memória social, as danças (como manifestação cultural) podem ser vistas como meio para a concretização do discurso memorialista nacional.

Como um ato corporal, a dança pode ser fruto de um hábito, algo que pode ser aprendido. Também como um ato incorporado e, metaforicamente, como o musical visível, a sua elaboração no âmbito da música pode significar a formalização de um discurso compositivo em combinação com o gesto, o canto, e assim por diante. Considerando que os aspectos comunais presentes principalmente nas danças de ancestralidade africana podem ser um dispositivo eficaz na transmissão da memória social, música e dança, então, funcionam como dispositivos mnemônicos de preservação desta memória, que no contexto da saudade passam a adquirir um poder de representação e ressignificação de valores e traços socioculturais.

Por outro lado, essas falas podem representar formas de saciar o desejo da memória, um resgate histórico e emotivo. Ao fazer uma reconstrução sensível do tempo e da temporalidade, imagens sonoras podem ser apresentadas, metaforicamente, como cartografia de emoções a partir de uma realidade imagética saudosa. Deste modo, a relação entre memória social e saudade se apresenta no sentido de que “o saudosismo tem raramente sido encarado como elemento crucial para a própria articulação social da memória brasileira” (NASCIMENTO; MENANDRO, 2005, p.06). É neste sentido que entendemos que memória está diretamente ligada a processos emotivos e lembranças, e que “o significado é essencial à lembrança e, além disso, (...) é fornecido pela cultura” (STOETZEL, 1976, p.130).

2.2 BRASIL E A OBRA DE VILLA-LOBOS

Villa-Lobos dedicou-se prontamente à construção de uma identidade musical. Isso está presente em suas falas, discursos, e principalmente na sua trajetória de vida. O pensamento voltado para esta missão foi estabelecido em suas andanças e no ímpeto de reinventar um Brasil; o que Darcy Ribeiro (1995) chama de construir o país que nós queremos. Villa-Lobos soube usar esse ímpeto em suas obras, buscando e compreendendo os diversos Brasis e seus regionalismos, dialetos, etc.

A sua experiência nas noites do Rio de Janeiro como músico nos lounges dos teatros e cinemas, e como boêmio a conviver com chorões e diversos músicos populares, foram fatores preponderantes na consolidação de um compositor envolvido com os elementos de sua comunidade. Assim, a apropriação em Villa-Lobos (como veremos mais adiante) vai além da

(24)

simples citação de uma melódica ou ritmo de origem popular. O que se ouve é um uso representativo e re-significado, fazendo com que os elementos da música popular assumam novo sentido em sua obra. Isto é um segmento do seu acervo de opções e criações, de escolhas que o conduziram por caminhos diversos, tornando-se parte de sua identidade musical.

É neste meio que Villa-Lobos, com seu espírito independente e cercado de influências externas conseguiu juntar diferentes realidades de um país tropical e suas miscigenações. Com personalidade intensa e envolvente, ele fez uma síntese de culturas e universos distintos através de uma obra extraordinariamente numerosa e original. Por outro lado, as possibilidades de romper com ideologias e idealismos impulsionaram seu imaginário que, alicerçado pelo folclore/popular, fundamentou uma percepção mais cinética em relação às técnicas formais até então usadas. São suas formas de reler os estilos e técnicas que, filtrados pela sensibilidade brasileira, refletiram diretamente nos seus processos de escolhas.

Villa-Lobos era, efetivamente, tão representativo de tudo o que é essencialmente brasileiro, do autêntico folclore, bem como do espírito e dos anseios do nosso povo, que bastava me aproximar dele quando tinha o coração cheio de saudades, para encontrar, seja em New York ou em Paris, a genuína atmosfera da terra brasileira que ele, sozinho, conseguia recriar (...) o genial talento do compositor e a maestria do regente, mas também o dinamismo e o vigor do homem que soube, no decorrer dos últimos anos de sua fecunda existência, vencer tantos obstáculos que pareciam intransponíveis e afirmar sua esplêndida vitória no cume da mais milagrosa carreira jamais alcançada por um músico brasileiro (LEITE, apud Magdalena Tagliaferro, 1999, p. 135-136).

Esse depoimento de Magdalena Tagliaferro resume bem a relação entre Villa-Lobos e o Brasil. Seu empenho em construir uma nação sonora passa pela transformação dos elementos culturais por ele apropriados em sons. Porém, essa euforia expressiva é parte de sua personalidade musical, formada a partir do seu envolvimento com eventos históricos e suas experiências de vida. Sua relação com o governo Vargas, por exemplo, possibilitou a instituição de um plano de educação musical, bem como de um processo de construção da brasilidade em paralelo à estratégia de Vargas, que era construir uma ideia de nação que abarcasse todo o território nacional.

Suas andanças pelo Brasil e períodos no exterior fizeram de Villa-Lobos um cidadão universal com raízes fortemente fixadas em solo brasileiro, segundo suas próprias declarações. Isso além de influenciar suas decisões e processos composicionais, refletiu na construção sonora do um primitivismo presente no imaginário social como estereótipo. Essa

(25)

linguagem imagética contempla os três principais conteúdos socioculturais: o branco, o negro e o indígena. Essa relação permite identificar alguns elementos do seu discurso como folclóricos.

Todavia, essas retóricas de representações sociais que se apresentam em Villa-Lobos são como um retrato das atribuições do indivíduo enquanto ser dentro de um coletivo, ou seja, como um ícone da representação sociocultural deste país, Villa-Lobos buscou refletir em suas obras estes indivíduos, personagens, e mitos com os quais teve contato em suas andanças.

Todo esse universo de “realidades” está presente e representado em suas obras, com voz ativa nas mais diversas situações musicais villalobianas. Sua linguagem musical passa pelo uso do social, das influências populares e folclóricas, das matrizes culturais, e da predileção pela natureza do Brasil. Suas narrativas musicais embebidas pelo ethos popular/folclórico definem seu personalismo, que são o reflexo dessa natureza do Brasil.

Sua postura e estética, que caminharam num sentido mais vanguardista e explosivo, mais moderno, por assim dizer, são frutos do meio ao qual teve de se adaptar. Neste contexto de mudanças emergentes na música, que apontavam para o rompimento do sistema tonal da música ocidental combinado a uma proposta rítmica bastante rica, desembocarão em obras como Choros e as Bachianas Brasileiras.

Seguindo este caminho, as danças tiveram um papel importante para Villa-Lobos. Lundus, maxixes, polcas, tangos são algumas das influências que marcaram sua trajetória musical, seja pelo lado folclórico ou popular. Em Villa-Lobos, as danças se apresentam como meio narrativo para seus diversos enredos e dramas musicais; os elementos constitutivos de nossa sociedade estão devidamente representados, e a apropriação passa a figurar nos diversos elementos do tecido musical. Assim, podemos perceber a intensidade de sua personalidade compositiva e a representação mítica num gestual bastante expressivo, rítmico e obstinado em alguns momentos.

A dança, enquanto movimento artístico, tem destaque em seu programa de educação musical como um elemento importante na educação; se considerarmos sua afinidade com a música. Talvez fosse a intenção de Villa-Lobos não só criar um bailado tipicamente brasileiro, mas resgatar suas origens (populares ou não) como um símbolo de nacionalidade, pois:

a arte da dança elevada é justamente umas das que o Brasil poderia cultivar com superioridade sobre os demais países, porque é notória a beleza plástica da mulher brasileira; a flexibilidade de nossos atletas; o ritmo singular e obstinado da nossa música popular; o amor que possuímos pelos livres

(26)

movimentos físicos diante da nossa incomparável natureza (VILLA-LOBOS, 1972, p. 85, v.7).

Villa-Lobos, neste apelo ao chefe do governo provisório, externa suas convicções e pensamentos relacionados a uma educação que tem a arte como um componente imprescindível.

2.3 MODERNISMO E OUTROS DIÁLOGOS

Um ponto importante quando se fala de modernismo, dentro do contexto da Semana de Arte Moderna de 1922, é o desafio de construir o nacional, de conciliar a expressão individual e a expressão nacional. Neste sentido, não foi somente a experiência da Semana de Arte Moderna que deu certa projeção para Villa-Lobos, mas a sua estadia em Paris foi fundamental para o desenvolvimento e amadurecimento do seu compor “moderno” e nacional. Villa-Lobos soube desenvolver um ethos vanguardista com características de um modernismo nacionalista.

Apesar das músicas apresentadas na Semana de Arte de 1922 terem sido classificadas com um certo ar de impressionismo debussiniano, o ímpeto villalobiano predominou de forma a representar um tipo de “impressionismo tropical” (SALLES, 2009, p. 86). Assim, essa ideia de uma cultura nacional vinculada à valorização das tradições populares e folclóricas transbordou como valores modernistas em criações significativas.

Por outro lado, Villa-Lobos também foi influenciado pela linguagem de Wagner e Stravinsky. Essa mistura de elementos e arquétipos presentes em algumas de suas obras representou a transição do vocabulário do compositor para uma expressão mais moderna.

Villa-Lobos sabia como ninguém da expectativa do publico parisiense. Por isso que, ao mediar as imagens do mito da floresta e da natureza selvagem do Brasil, conseguiu construir uma sonoridade singular e de grande representatividade. Ao explorar o “exótico”, Villa-Lobos estava mediando as forças entre o seu ímpeto e sua expressividade, relacionadas ao seu sentimento de pertencimento.

A conjugação entre o folclórico e o tradicional europeu neste período, fez de Villa-Lobos um compositor que conhecia e sabia definir o Brasil e o brasileiro. Neste sentido, o estilo antropofágico de Villa-Lobos pode ser entendido como uma linguagem capaz de inserir a construção do nacional dentro dos padrões aceitos na época. Por outro lado, o desejo pelo

(27)

novo em meio às mudanças ocorridas na sociedade durante o Modernismo fez emergir um Brasil com a aspiração do conhecimento de sua cultura enquanto instrumento de conhecimento de si e do outro. Essa busca pela identidade se deu em um caminho híbrido de linguagens.

No início do séc. XX as valsas, polcas, mazurcas, conviviam dentro dos salões da elite, assim como nos bailes populares, com canções sertanejas e as diversas manifestações de regionalismos. Esse gosto pelo exótico trouxe à tona o folclore, e com ele novos protagonistas. Foi neste meio que o modernismo brasileiro se fundamentou e encontrou em algumas danças, como a polca, a possibilidade de haver um desenvolvimento de uma cultura musical brasileira como uma “entidade rítmica” (MACHADO, 2010, p. 137).

O cruzamento entre o popular e o tradicional musical foi um dos protagonistas no desenvolvimento de uma linguagem musical brasileira, que nas mãos de Villa-Lobos assumiu personalidade forte e predominante. Essa mistura de elementos e influências, considerando as atribuições de intencionalidade à produção musical, foram partes importantes na inventividade villalobiana. Portanto, a construção de um pensamento musical livre passou pelas suas necessidades expressivas.

Ao mesmo tempo em que o impulso expressivo de uma personalidade intensa e a influência da estética francesa, por exemplo, se moldaram em suas obras da fase inicial, seu diálogo com o modernismo se deu dentro de uma significação estética. Assim, especialmente suas obras desta primeira fase têm uma linguagem musical adaptada às exigências “estéticas” da música brasileira. Porém, Villa-Lobos já havia desenvolvido uma personalidade musical autêntica e forte, capaz de lidar com seu impulso, fluxo composicional e ideias, um tipo de contraponto com a exuberância da natureza brasileira. Desta forma, a apropriação e uso de elementos populares, folclóricos, e de obras modernas da época, determinaram a expressividade villalobiana em benefício da adaptação de sua energia cinética e seu ímpeto composicional em relação às diversas ações do modernismo.

Por outro lado, seu tempo em Paris o tornou mais brasileiro ainda. Ou melhor, Villa-Lobos em vez de voltar de Paris cheio de Europa, voltou transbordando de Villa-Villa-Lobos. Talvez seu tempo na capital francesa o tenha feito mais moderno e mais brasileiro, pois ser moderno para Villa-Lobos era, acima de tudo, ser brasileiro em essência e expressão.

Assim, os tentáculos de uma mestiçagem cultural que assolou o território brasileiro no início do séc. XX se destacaram pela associação entre o indivíduo (compositor) e a natureza, a ponto de Villa-Lobos afirmar que sua obra era fruto de uma predestinação, e numerosa em igualdade com a riqueza natural brasileira. Contrapontos como o selvagem x o civilizado,

(28)

urbano x rural, etc. estão presentes em muitas de suas obras, ao mesmo tempo em que essa

fusão de contradições – a (i)lógica brasileira – é uma entidade fundamentadora da “alma brasileira” (tudo isso é parte de uma ideologia brasileira que habita o imaginário como o mito

das três raças). O “primitivismo” então passa a figurar ações extramusicais, indo à narrativa

musical como uma forma de escrita processual dramática que aborda a mistura de estilos e linguagens.

Sua intempestividade, rotulada como símbolo do selvagem, rude e primitivo, não está distante do langor da sensibilidade brasileira – a saudade e melancolia tropical – que irá se revelar em algumas de suas obras. O quanto de saudade nostálgica permeia os pizzicatos da

Ária das Bachianas Brasileiras No. 5? Ou nas cordas do Prelúdio das Bachianas Brasileiras No. 4, bem como no tratamento melódico dado ao trombone no 4o movimento (Dança Miudinho) desta Bachiana? Esta tropical tristeza, que invade a alma do ser brasileiro como

parte da identidade deste povo, está axiomática em parte das obras de Villa-Lobos. Suas danças são um ótimo exemplo, pois estão entremeadas de atitudes que, ligadas à saudade, nos permite um olhar diferenciado sobre sua obra e seus processos.

(29)

O campo da análise musical tem se expandido nas mais diversas direções. Os mais diversos sistemasanalíticos têm sido empregados na tentativa de poder explicar “quase tudo”. Essa dimensão estética da análise musical acaba por muitas vezes esquecendo o fundamental, o próprio processo. Sendo assim, Paulo Costa Lima em seu texto O Campo da Análise

Musical e suas Ontologias (2004) aponta para a importância da “conjugação entre sons e

ideias” como “núcleo, o lugar onde a verdade se manifesta” (LIMA, 2004, n.p.).

Antes de qualquer coisa é importante considerarmos uma visão analítica como uma rede de conexões que interligam as várias direções do fazer musical com a própria experiência musical. Desta maneira, é possível conectar diversas abordagens numa mesma direção. Essa flexibilização demarca uma maior força analítica, abrangendo os diversos diálogos do fenômeno musical. Neste sentido,estamos considerando a pluralidade da música, em especial a música brasileira e suas matrizes. Na tentativa de tecer uma relação entre os conceitos, ideias, atitudes e estratégias composicionais, é que pretendemos desenvolver um arcabouço teórico (analítico) que possa contemplar nossos objetivos; entender melhor os processos, atitudes, e ideologia composicional de Villa-Lobos por outro viés. Uma abordagem ampla, que também contemple a dimensão cultural, poderá nos permitir explorar melhor os mecanismos de composição e expressão, e a identificar caminhos que nos possibilite estruturar uma análise capaz de produzir as interpretações aspiradas.

3.1 A SAUDADE

3.1.1 Ontologia, mito e simbolismo

Falar da saudade pode ser uma tarefa bastante complexa, especialmente no entorno do seu significado. As primeiras coisas que nos vêm à mente são falta, perda, nostalgia, uma certa tristeza. Essa complexidade de sentimentos, muitas vezes difícil de descrever na língua portuguesa, pode ser expressa em uma única palavra: saudade. O sentimento de nostalgia, perda, falta, e por vezes melancolia (para alguns povos), é um ícone para o povo português. A história da saudade muitas vezes se funde com a história deste povo, moldando a alma portuguesa; seja em seus fados, poesias, literatura, etc. Neste sentido, foram os portugueses quem mais falaram e continuam falando sobre a saudade.

(30)

Com relação à etimologia da palavra saudade, duas grandes correntes se dividem sobre a origem dela: uma com base no latim solitate ou solidad, e outra no árabe saudah. Por outro lado, a tradução dessa palavrapara algumas línguas precisam de mais definições, detalhes que possam expressar tal sentimento. Souvenir ou nostalgie (francês), por exemplo, não traduz a profundidade de suas acepções, pois a saudade não é somente nostalgia e/ou tristeza, como veremos no decorrer do texto.

Os primeiros escritos a usarem esta palavra datam do séc. XII. Dom Dinis2 (1261-1325) foi um dos primeiros a usar a palavra soidade relacionada à saudade portuguesa – a perda ou ausência de um amor ou de alguém que partiu em descobertas/aventuras marítimas. Mais tarde, o jurista, gramático e historiador português Duarte Nunes de Leão (1530-1608), em sua obra Origem da Lingoa Portuguesa (1606), pioneiramente assumiu a tarefa de definir e avaliar a palavra suidade/soidade. Ele evidenciou dois aspectos da saudade: positivo e negativo. Por exemplo, o coração (não razão) vs. tristeza; memória que traz prazer vs. sentimento de perda. Certamente este foi o principal motivo temático na música folclórica portuguesa (Fado) que encontrou terreno fértil neste sentido. São inúmeros os que tratam do tema da saudade. Semdúvidaisto é icônico, fundamental para a alma portuguesa (mito).

O grande poeta português Fernando Pessoa (1888-1935) traduziu primorosamente este sentimento em seu poema Mar Português:

Ó mar salgado, quanto do teu sal São lágrimas de Portugal!

Por te cruzarmos, quantas mães choraram, Quantos filhos em vão rezaram!

Quantas noivas ficaram por casar Para que fosses nosso, ó mar!

Valeu a pena? Tudo vale a pena Se a alma não é pequena.

Quem quer passar além do Bojador Tem que passar além da dor.

Deus ao mar o perigo e o abismo deu, Mas nele é que espelhou o céu. (PESSOA, 1934, p. 64).

Este efeito saudosista expressa essencialmente o espírito português, possibilitando pensar a saudade como mito cultural e estabelecer relações entre a saudade e o imaginário português. O que podemos notar é uma relação profunda com o mar. Uma vez que a saudade ascende no período das cruzadas e descobertas, essa relação com o mar fica mais evidente,

(31)

como notamos neste poema de Pessoa. O mar é o reflexo, o espelho para a projeção representativa da saudade.

Por outro lado, Roberta Ferraz (2007) faz um importante levantamento sobre o mito da saudade com base nos estudos do filósofo português Teixeira de Pascoaes (1877-1952). Pascoaes, sem dúvida, foi um dos mais importantes estudiosos a este respeito, e neste sentido afirmou que a saudade é:

em sua última e profunda análise, 'o amor carnal espiritualizado pela Dor ou o amor espiritual materializado pelo Desejo; é o casamento do Beijo com a Lágrima; é Vênus e a Virgem Maria numa só Mulher. É a síntese do Céu e da Terra; o ponto onde todas as forças cósmicas se cruzam; o centro do Universo: a alma da Natureza dentro da alma humana e a alma do homem dentro da alma da Natureza'. A 'Saudade' é a personalidade eterna da nossa Raça; a fisionomia característica, o corpo original com que ela há de aparecer entre os outros Povos. (...) A Saudade é a manhã de nevoeiro; a Primavera perpétua, 'a leda e triste madrugada' do soneto de Camões. É um estado de alma latente que amanhã será Consciência e Civilização Lusitana... (FERRAZ apud PASCOAES, 2007, p. 39, grifos do autor).

Podemos salientar os dois pontos abordados por Pascoaes: a concepção de saudade como local e universal. Isso sublinha o mito português, ao mesmo tempo em que admite sua universalidade; o ser humano e sua relação com a natureza e o cosmos numa visão mais poética do homem e o tempo.

Este mito português atravessa mares e montanhas e chega ao Brasil. Podemos retratá-lo de três modos: o primeiro é a saudade portuguesa das terras além-mar; o segundo, a saudade africana, saudade da terra mãe África e sua liberdade3; e o terceiro, mas não menos

importante, é a saudade indígena, a saudade de viver livremente pelas suas próprias terras. Portanto, saudade é um elemento essencial na construção do discurso – imagem da nação como representação e identidade. É evidente que, apesar da influência portuguesa, neste caso, os aspectos culturais e o viver dos brasileiros – o modo de encarar a vida, a miscigenação, o jeito de viver – influenciaram bastante. Por conseguinte, isso também contribui significativamente para o desenvolvimento do mito e imaginário do povo brasileiro.

Este ponto de vista mito-melancólico sempre esteve presente na construção do povo brasileiro como sociedade. Essa visão miscigenada, ou como Gilbert Durand (2002) expressa com o termo “tigrada”, consegue dar conta como metáfora da pluralidade individual e cultural. Assim, como visto anteriormente, a saudade, presente no mito e imaginário do povo

3 De acordo com Freyre (2003), o Banzo, como este sentimento saudosista era conhecido entre os escravos

(32)

brasileiro, também se construiu de forma miscigenada, mestiça. Vejamos como o poeta parnasiano brasileiro Olavo Bilac (1865-1918), em seu poema Musica Brasileira, aborda essa influência “tigrada”:

Tens, às vezes, o fogo soberano Do amor: encerras na cadência, acesa Em requebros e encantos de impureza, Todo o feitiço do pecado humano.

Mas, sobre essa volúpia, erra a tristeza Dos desertos, das matas e do oceano: Bárbara poracé, banzo africano, E soluços de trova portuguesa.

És samba e jongo, xiba e fado, cujos Acordes são desejos e orfandades De selvagens, cativos e marujos:

E em nostalgias e paixões consistes, Lasciva dor, beijo de três saudades, Flor amorosa de três raças tristes (BILAC, 1940, p. 140)

Interessante notar que ao expressar neste poema sua visão a respeito da música brasileira, Bilac ressalta os aspectos mestiços e a saudade como elemento cultural presente na construção da sociedade e no mito brasileiro. São esses três beijos de saudade (portuguesa, africana e indígena) que, concreta e abstratamente, constituem o povo brasileiro – a formação sociocultural brasileira, onde os aspectos mestiços se estendem a vários setores (psico-socio-culturais), colocando a saudade como elemento essencial neste desenvolvimento. Ao mesmo tempo isso ressalta o aspecto nostálgico na formação do povo brasileiro, presente até os dias atuais na memória e imaginário deste. Podemos notar que as influências portuguesa, africana e indígena estão presentes nos mais diversos aspectos do nosso povo, principalmente na formação como sociedade, fortemente fundamentada nestas influências. Isso reforça o mito das três raças tristes, colocando um caráter melancólico/nostálgico como parte deste povo.

Todavia, este complexo sentimento seguiu por diversos caminhos. Apesar da dor (tristeza/nostalgia), a esperança parece ter estado presente nesta construção, dando uma nova dose de ânimo (um pouco de otimismo) ao saudosismo, no intuito de fazer crescer o desejo de ter e também de lembrar, em concomitância com a dor; o desejo de liberdade, de mudanças, de algo novo. “Saudade Brasileira! Uma saudade nova, mais alegre que triste, mais imaginação que dor” (ORICO, 1940, p. 44).

(33)

Consequentemente, transpor este complexo misto de sentimentos em poucas palavras pode não ser tão fácil. Osvaldo Orico (1940) em seu livro A Saudade Brasileira mostra bem este misto sentimento quando fala que:

Sôdade é uma dô que dá, Mas não é dô de doê; É vontade de alembrá, Com vontade de esquecê. É dô de dente e machuca, Mas onde dói ninguém vê. E a gente pega e cutuca Pra não deixá de doê (ORICO, 1940, p. 12).

Neste breve poema podemos também notar a ambivalência demonstrada por Nunes. Parece que neste sentido há uma relação entre a saudade portuguesa e a brasileira, ao mesmo tempo em que percebemos uma universalização desta. Também podemos perceber que, segundo Orico (1940), a saudade brasileira tem um ar mais otimista, mais alegre (ou menos triste) do que a portuguesa, destacando que é mais imaginação que dor. Isso não significa que o povo brasileiro é mais imaginativo ou mais criativo, mas que a construção do mito brasileiro seguiu por um rumo mais esperançoso. É o desejo de liberdade que o negro sempre almejou, a “melancolia” do índio não tão livre em suas próprias terras e a saudade portuguesa do além-mar. Esse mix de dor e esperança, ao mesmo tempo melancólico, ajudou a compor a “alma brasileira”.

É neste sentido que Chaves e Araújo (2014) chamam essa alma mítica imaginária brasileira de alma imaginal, uma vez que este termo aborda simultaneamente aspectos psicológicos, antropológicos e filosóficos. Desta forma, é possível se referir aos “conteúdos arquétipos, míticos que pensamos caracterizar a alma ancestral brasileira na perspectiva hermenêutica-simbólica” (CHAVE e ARAÚJO, 2014, loc 562). É seguindo por este ponto de vista que entendemos a alma brasileira como tigrada, mestiça e plural.

Como base nisto, Elza Murata (2009) aponta, segundo os escritos de Gilbert Durand (2002), que o estudo da cultura imaginária e as inter-relações com o mito possibilitam trocas dinâmicas de imagens míticas. Desta forma, Durand aborda as estruturas imaginárias separando as imagens de duas maneiras: regime diurno e regime noturno. O regime diurno é a antítese, ligado à verticalização das imagens; oposição entre ideias ou palavras. O regime noturno é a harmonização, conjunção, eufemismo, a horizontalidade das estruturas místicas e

(34)

sintéticas. “O regime diurno é da antítese, isto ou aquilo; o noturno é da junção, eufemização, do isto e aquilo” (MURATA, 2009, p. 207).

Isto se relaciona diretamente com a teoria linguística de Saussure. Segundo Saussure (2006), os elementos linguísticos se relacionam em dois domínios distintos; eixo de seleção (paradigmático) e eixo de combinação (sintagmático)4. Sabemos que esse processo de combinação e escolha não se dá se maneira aleatória, e é necessário que o enunciador selecione os termos e os ordene de maneira lógica, cabendo assim obedecer a um padrão definido pelo sistema.

Há uma familiaridade entre os pontos de vista de Durand e Saussare. O de Saussare pode não ser aplicado diretamente aos regimes de Durand, porém a lógica é a mesma. O processo de escolha e combinação funciona de igual maneira – isto ou aquilo versus isto e aquilo, conjugando para o sentido do discurso. Isso pode dar além de sentido, linearidade ao imaginário/mito. Desta maneira, entendemos que:

o mito é um sistema dinâmico de símbolos, arquétipos e esquemas, sistema dinâmico que, sob o impulso de um esquema, tende a compor-se em narrativa. O mito é já um esboço de racionalização, dado que utiliza o fio do discurso, no qual os símbolos se resolvem em palavras e os arquétipos em ideias. O mito explicita um esquema ou um grupo de esquemas (MURATA, 2009, p. 208).

Esta leitura aplicada ao mito saudade é bastante pertinente. Se pensarmos que a saudade, como abordado aqui é isto ou aquilo e também isto e aquilo, devido a sua complexa dualidade – é dor e prazer; alegria ou tristeza – pode ser vista por estes dois prismas superpostos. Isso nos permite entender e compreender a saudade como mito no discurso

identitário brasileiro. Também podemos mencionar a visão de Levi-Strauss (1978) a respeito

do mito, pois para ele o mito não pode ser compreendido como uma sucessão contínua. Portanto, “o significado básico do mito não está ligado à sequência de acontecimentos, mas antes, se assim se pode dizer, a grupos de acontecimentos, ainda que tais acontecimentos ocorram em momentos diferentes da história” (LEVI-STRAUSS, 1978, p. 66). Sua proposta é de ler o mito como uma partitura musical, considerando todas as frases, elementos e camadas da música, onde cada parcela contribui com as partes posteriores da partitura. Ou seja, segundo Lévi-Strauss, para que uma primeira frase musical adquira significado, é preciso considerar que este é uma parcela constitutiva de outros eventos posteriores em cada página da obra musical. Essa simultaneidade permite perceber o mito em sua totalidade, 4 Falaremos melhor sobre isso ao abordar o gesto.

(35)

considerando que essa verticalidade nos permite “perceber que cada página é uma totalidade. E só considerando o mito como se fosse uma partitura orquestral (...) é que podemos entender como uma totalidade, e extrair o seu significado” (Ibid., p. 67). O que o autor está demonstrando é que, na escuta musical, para o entendimento de uma sinfonia, por exemplo, é preciso estabelecer uma relação entre os acontecimentos “que antes se escutou com o que se está a escutar, mantendo a consciência da totalidade da música” (Ibid., p. 72).

3.1.2 Memória e representação

Dando continuidade, nos cabe perscrutar o campo da memória coletiva brasileira no intuito de esclarecer a saudade, que no campo mítico pode ser simbolicamente representativa na produção de valores.

Segundo Coelho Neto (1864-1934), “a casa da saudade chama-se memória” (2015, s.p.). Esta metáfora, que também abrange aspectos de representação, intercala a saudade presente na memória ao mesmo tempo em que colocar a memória no campo da metáfora. “A memória carrega consigo a dimensão profunda de mitos, lendas e crenças das sociedades humanas, as quais configuram as práticas ordinárias de seus grupos sociais” (ECKERT e ROCHA, 2000, p. 12). Por exemplo, para o compositor Zeca Baleiro, em sua música Brigitte

Bardot, uma possível definição é a de que “a saudade é Brigitte Bardot acenando com a mão

num filme muito antigo” (2000, s.p.). Isso só reitera Coelho Neto, no sentido de uma interseção entre saudade e memória. Mas em que sentido, então, a saudade/memória são repositórios de crenças, mitos, valores ou imaginário?

Apesar de obvio, vale ressaltar novamente que a saudade necessita da memória para que haja uma recordação e/ou lembrança, suscitando este sentimento. É exatamente no campo das crenças e mitos que, como já visto, a memória social é imprescindível como meio de preservação e transmissão destes, bem como na fundamentação da identidade de um determinado grupo de pessoas.

Candau (2011) em Memória e Identidade aponta para a identidade como espaço construído coletivamente, socialmente. Uma vez que este espaço se dá diante da interação do sujeito com a coletividade (sociedade), esta identidade, neste caso cultural, se localiza na identificação do sujeito com tais elementos identitários. Esta construção narrativa se dá dentro de um processo de negociação, na medida em que se considera a pluralidade individual dentro da coletividade. Então, podemos pensar a identidade dentro de um panorama social, e que a

(36)

memória é um processo continuamente construído, conferindo “à identidade a sensação de continuidade no tempo” (SOUZA, 2014, p. 112), no sentido formal, moral e psicológico da palavra. Desta maneira, “a memória viabiliza (...) a cristalização de valores e de tradições, que está estritamente ligada ao sentimento de pertencimento, à sensação de unidade e à demarcação de fronteiras individuais e coletivas” (Ibid., p. 112). Assim,

a memória é uma realidade dinâmica que intervém no processo de tessitura social, ilustrando elementos de formação cívica e de transformação social. Por ser uma realidade multidimensional, a sua fragmentação e recomposição encontra-se relacionado com os mecanismos de construção e reconstrução identitária dos indivíduos (MENDES, 2012, p. 60)

Neste contexto, a colocação de Coelho Neto é bastante pertinente. Porém, ao abordar o termo casa, podemos levantar uma breve questão: uma casa tem cômodos, aposentos, sala, e assim por diante. Então, neste aspecto a saudade guarda em si diferentes e diversos elementos, trazendo consigo essa complexidade. Por outro lado, cada cômodo desta “casa” pode guardar (ou transmitir) diferentes aspectos. Onde é que guardamos cada coisa? Em diferentes cômodos ou até mesmo em diferentes partes dentro destes cômodos? Como se dá esse processo de escolhas e armazenamento?5

Estes aspectos metafóricos nos remetem, mais uma vez, à citação anterior de Eckert e Rocha (2000). Estamos exatamente na dimensão profunda do mito e crenças de uma sociedade. Compreendemos e reforçamos o poder simbólico e representativo da memória/saudade. Isso inclui pensar a sociedade como um repositório de crenças, mitos, valores e do imaginário, concretamente presente na memória social de um povo, no nosso caso, sendo suscitada pela saudade.

Admitindo a pluralidade cultural brasileira, este “território plural de existência” (ECKERT e ROCHA, 2000, p. 14) serve de lugar comum para um conjunto de indivíduos ou grupo, onde se reinventa, recria-se, imagina-se ou até apropria-se do imaginário cultural, representativo e simbólico como forma de se eternizar no tempo. Por exemplo, a representação mítica da floresta amazônica em sua imensa exuberância, eternamente presente e representada no imaginário de todo indivíduo brasileiro como algo gigante, belo e exuberante – mito e representação. “Habitar o espaço da memória é conviver com memórias coletivas, individuais e sociais negociadas, e não, simplesmente, domesticar um território

5 Não pretendemos um estudo cognitivo/psicológico da memória, mas no decorrer deste trabalho abordaremos

Referências

Documentos relacionados

Um módulo fotovoltaico é um conjunto de células conectadas em série (somam-se suas tensões) que formam uma unidade com suficiente tensão para poder carregar uma bateria de 12 volts de

A Ideias Emergentes apresentou uma programação diversificada que deu a conhecer na Lituânia alguns aspectos da cultura e da arte contem- porânea portuguesa, como

Walteir GOIÂNIA 2ª a domingo. INSTITUIÇÕES FILANTRÓPICAS

Transformações Geométricas • Matrizes em OpenGL ModelView GL_MODELVIEW Projection GL_PROJECTION Object Space World Space Camera Space Screen Space..

Essas referências tem permitido a realização de paralelos e aproximações entre a dança e o Tai Chi Chuan no que diz respeito ao modo como

Por mais sutil e profunda que seja a atuação das essências, mesmo quando adequadamente selecionadas para cada caso, às vezes não se consegue atingir o núcleo principal

Orientações como essas não são determinações inquestionáveis, e sim como afirma Ana Mae 1998, lembretes pós-críticos, que uma vez exercitados, ajudam a romper as ilusões

Relativamente à estratégia de aquisição de suporte social, os autores observam um declínio que se inicia na(s) fase(s) de família com filhos ( fase 2) relativa aos filhos em